Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
48/21.1YRGMR.S3
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃOQ
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
RECUSA
NACIONALIDADE
RECONHECIMENTO DE SENTENÇA PENAL NA UNIÃO EUROPEIA
PRINCÍPIO DO RECONHECIMENTO MÚTUO
PENA DE PRISÃO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
NULIDADE DE SENTENÇA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 06/22/2022
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: EXTRADIÇÃO/M.D.E./RECONHECIMENTO SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - A recusa facultativa de entrega da pessoa condenada ao Estado de emissão no processo de execução de um MDE emitido para cumprimento de pena de prisão aplicada no Estado de emissão, prevista na al. g) do n.º 1 do art. 12.º da Lei n.º 65/2003, requer dois requisitos cumulativos: a nacionalidade portuguesa da pessoa procurada e o compromisso do Estado Português em executar a pena em Portugal.

II - Sendo o processo de execução do MDE inteiramente jurisdicionalizado, o compromisso de execução da pena de prisão em Portugal satisfaz-se mediante decisão do tribunal da relação competente para a execução do MDE que, no processo de execução do MDE, reconheça a sentença condenatória proferida no Estado de emissão, confirmando a pena aplicada, assim lhe conferindo força executiva (art. 12.º, n.º 3, da Lei n.º 65/2003, de 23-08, na redação da Lei n.º 35/2015, de 04-05, e n.º 4, na redação da Lei n.º 115/2019, de 12-09).

III - Caso a duração da pena de prisão que deu origem à emissão do MDE seja incompatível com a lei interna, por exceder a pena máxima prevista para infrações semelhantes, o tribunal da relação pode adaptá-la ao direito interno, reduzindo-a de acordo com os limites legalmente previstos (n.º 3 do art. 16.º e art. 26.º da Lei n.º 158/2015).

IV - A decisão que procede à adaptação da condenação não pode aplicar pena de diferente natureza, em substituição da pena de prisão, por a isso se oporem o regime de reconhecimento de decisões condenatórias que aplicam penas de prisão estabelecido na Decisão‑Quadro 2008/909/JAI, o princípio do reconhecimento mútuo em que a Decisão-Quadro 2002/584/JAI (MDE) e este regime baseiam e as finalidades daquela decisão-quadro, que visa contribuir para alcançar o objetivo de facilitar a reinserção social da pessoa na execução da pena de prisão, devendo ser executada a pena de prisão que deu origem à emissão do MDE, sem prejuízo da sua adaptação, em condições excecionais, nos termos anteriormente referidos.

V - A decisão recorrida, que, realizando o cúmulo jurídico determinado pelo anterior acórdão deste STJ de 23.06.2021, “condenou” o recorrente na pena de 2 anos de prisão, apesar das deficiências de formulação, pois que tal decisão não constitui uma sentença condenatória, na aceção do art. 375.º do CPP, visou, reduzindo-a, proceder à “adaptação” da condenação proferida pelo tribunal de Pontevedra, Reino de Espanha, que aplicou ao recorrente 3 penas de prisão, com a duração total de 3 anos e 9 meses de prisão, nos termos e com fundamento no art. 16.º, n.º 3, da Lei 158/2015, de 17-09, aplicável por força do disposto no art. 26.º do mesmo diploma.

VI - Tendo o recorrente nacionalidade portuguesa e vivendo em Portugal, a decisão recorrida visa assegurar o compromisso de execução, em Portugal, da pena de prisão aplicada pelo tribunal de Pontevedra, adaptada à lei portuguesa, assim justificando a não execução do MDE emitido por esse tribunal para efeitos de cumprimento da pena e a recusa de entrega do recorrente à autoridade judiciária de emissão (art. 12.º, n.º 1, al. g), da Lei n.º 65/2003).

VII - Esta decisão contribui para a finalidade, inscrita na Decisão-Quadro 2008/909 e na Lei n.º 158/2015, de reinserção social do recorrente na execução, em Portugal, da pena de prisão que lhe foi imposta pelo tribunal de Pontevedra, não sendo admissível aplicação de pena de diferente natureza, de substituição da pena de prisão, na decisão de “adaptação”. O que impede o tribunal a quo de ponderar a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do art. 50.º do CP.

VIII - Não tendo o tribunal que se pronunciar sobre a suspensão de execução da pena, não ocorre a invocada nulidade por omissão de pronúncia, prevista na al. c) do n.º 1 do art. 379.º do CPP.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:



I. Relatório

1. AA, de nacionalidade portuguesa, nascido em .../.../1975, em ..., com os demais sinais dos autos, recorre para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 9.5.2022, proferido em cumprimento do decidido no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 12.1.2022, que declarou a nulidade do anterior acórdão daquele tribunal de 15.10.2021, proferido no processo de execução do mandado de detenção europeu emitido pelo Juzgado de lo Penal n.º 3 de Pontevedra, Reino de Espanha, para cumprimento de uma pena de 3 anos e 9 meses de prisão.

2. Arguindo a nulidade deste acórdão de 9.5.2022, por não pronúncia quanto à suspensão de execução da pena, e pedindo a sua revogação e substituição por outro que decrete a suspensão da execução da pena, apresenta agora novo recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, dizendo, em conclusões:

“1 - O recorrente mostra-se em discordância com o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães e que possui a data de 9 de Maio de 2022, que decidiu julgar improcedente a pretensão do requerente de suspensão da pena, face ao decidido neste processo pelo STJ.

2 - Tal acórdão foi proferido, no seguimento da sequência processual que se expõe:

A 12 de Janeiro de 2022, o Supremo Tribunal da Justiça proferiu acórdão, que decidiu o seguinte:

a) Declarar, oficiosamente, nos termos do artigo 119.º, alínea b), do CPP, a nulidade resultante da falta de promoção, pelo Ministério Público, do processo de reconhecimento da sentença condenatória nos termos da Lei n.º 158/2015, imposta pelo artigo 12.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 65/2003 e pelo artigo 16.º, n.º 1, daquele diploma;

b) Consequentemente, nos termos do n.º 2 do artigo 122.º do CPP, declarar inválidos os atos processuais praticados a partir da omissão dessa promoção, que deveria ter ocorrido em momento imediatamente anterior ao do acórdão de 24.5.2021, incluindo a invalidade desse acórdão e do acórdão recorrido, nos termos do disposto no artigo 122.º, n.º 1, do CPP, salvando-se os efeitos do acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 23.6.2021, que, na adaptação da condenação a que haja lugar, deverá ser observado na operação de realização do cúmulo jurídico, para efeitos do disposto no artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal;

c) Devendo, em consequência, ser solicitada à autoridade de emissão a transmissão da sentença condenatória, acompanhada de certidão elaborada em conformidade com a Decisão-Quadro 2008/909/JAI do Conselho, de 27 de novembro de 2008, e com o formulário tipo reproduzido no respetivo anexo I, para que, recebida a sentença e a certidão, o Ministério Público possa promover o procedimento de reconhecimento, a ter lugar com observância da Lei n.º 158/2015, de 17 de setembro, suprindo-se a nulidade verificada, d) Sendo, a final, proferido novo acórdão (artigo 122.º, n.º 2, do CPP) que incorpore a decisão relativa ao reconhecimento da sentença condenatória proferida no Estado de emissão e a decisão relativa à execução do mandado de detenção europeu, com conhecimento e decisão sobre o motivo de recusa previsto na al. g) do n.º 1 do artigo 12.º da Lei n.º 65/2003, nos termos dos n.ºs 3 e 4 deste preceito, decorrente da nacionalidade portuguesa da pessoa procurada.

3 - E é, nesta senda, que o acórdão agora posto em causa, de 9 de maio 2022, veio a assentar o seguinte:

a) reconhece-se e confirmam a sentença condenatória do requerido proferida pelo Juzgado de lo Penal n.º 3 de Pontevedra, Espanha - executória 221/18, sentença n.º 33/17 (PA 467/14).

b) ) E porque a sentença a confirmar e a executar em conformidade com a lei se apresenta com duração que excede “a pena máxima prevista para infrações semelhantes” visto que a lei espanhola é alheia ao regime de cúmulo jurídico de penas previsto pela lei portuguesa, nos termos previstos no art.º 16, n.º 3 da Lei 158/2015, de 17/09, então, a pena de prisão de 3 anos e 9 meses deverá ser adaptada ao regime português, procedendo-se à realização de cúmulo jurídico das penas parcelares em que o requerido foi condenado, cumprindo-se, assim, o disposto no art.º 77 do Código Penal, vai o mesmo condenado na pena única de prisão que se fixa em dois anos. Recusa-se a entrega do mencionado requerido por se achar verificada a causa de recusa facultativa prevista na alínea g) do n.º 1 do art.º 12 da Lei 65/2003, de 23/08 em face da sua comprovada inserção social, profissional e familiar do requerido, cidadão português. (…). Improcede a pretensão do requerente de suspensão da pena face ao já decidido neste processo pelo STJ”

3 - Ora, é, pois, esta decisão que julga improcedente a pretensão do requerente de suspensão da pena face ao já decidido pelo STJ, que constitui objeto do recurso.

4 - Com efeito, no Acórdão proferido pelo STJ em 12/01/2022, que julgou verificada uma nulidade processual resultante da falta de promoção do Ministério Público, abrangeu os acórdãos de 24.05.2021 e de 25.10.2021 e demais atos subsequentes, vem expressamente referido que: “A verificação desta nulidade processual abrangendo os acórdãos de 24.5.2021 e de 25.10.2021 e demais atos subsequentes, que deve ser oficiosamente declarada, obsta ao conhecimento das questões que constituem o objecto do recurso.”

5 - Constata-se que quanto ao pugnado pelo arguido nas suas alegações de recurso quanto à suspensão da execução da pena única de prisão determinada em função da realização do cúmulo jurídico, tal não veio a ser apreciado pelo STJ em virtude da verificação da citada nulidade processual.

6 - Ou seja o STJ, por força da verificação da nulidade processual, não veio a apreciar a seguinte questão: - A pena de prisão pode ser suspensa na sua execução, nos termos do disposto no artigo 50º do Código penal, segundo o qual “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir-se que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente à finalidades de punição.?

7 - Pelo que, entende o aqui recorrente, que não poderia ter considerado o douto acórdão proferido por esta relação, e do qual aqui se recorre, que tal questão já havia sido decidida anteriormente pelo STJ, porque objectivamente e pelas razões acima expostas, aquele venerando Tribunal não apreciou tal questão.

8 - Pelo que, entende o aqui recorrente, que ocorreu uma omissão de pronúncia por parte do Tribunal a quo, pelo que nesse segmento da decisão proferida pelo Tribunal a quo, ocorreu uma nulidade processual, nos termos do previsto no artigo 379º, n.º 1, alínea c) do CPP.

9 - Com efeito, e conforme suscitado nas alegações de recurso, apresentadas, entende o aqui recorrente que poderia ser decretada a suspensão da execução da pena, já que o Tribunal da Relação de Guimarães, enquanto órgão de soberania a que lei defere competência para comprometer o Estado Português na execução da sentença em Portugal, ainda que deva aceitar a condenação nos seus precisos termos, tem o direito de executar a pena de acordo com a lei nacional.

10 - E assim, a aplicação da suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do art. 50.º do CP, apresenta-se como suficiente no caso dos autos, ao ser conveniente e adequado à realização das finalidades da punição.

11 - Verdadeiramente, não é inédita a suspensão da pena de prisão no âmbito de um MDE, senão vejamos o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, relativo ao processo n.º 1916/09.4YRLSB-9, datado de 20 Maio 2010, ficou asseverado que: “tendo sido tais penas cumuladas materialmente no Estado emissor do MDE, impõe-se que, antes do seu cumprimento e em vista deste, sejam juridicamente cumuladas em Portugal, nada obstando a que a pena única assim obtida, se em medida não superior a cinco anos de prisão, seja suspensa na sua execução, verificados que sejam em concreto os demais requisitos do art. 50º do Cód. Penal, mormente um juízo de prognose favorável.”

12 - Com efetividade, assim entendeu aquele Tribunal, em sede de MDE, assegurando que: «Tendo o arguido sido condenado em pena efectiva de prisão inferior a 5 anos de prisão […] impor-se-á verificar, nos termos do art. 50.º nº 1 do Cód. Penal, se é de proceder ou não à suspensão da sua execução.

Mais dispõe aquele preceito que "o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada (...) se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

E enquadrando jurisprudencialmente o instituto da suspensão de execução da pena dir-se-á ainda que “sendo a suspensão da execução da pena uma medida pedagógica e reeducativa, sempre que se verificarem os pressupostos formais estipulados no art. 50° do CP deve ser decretada, se se mostrar adequada para afastar o delinquente da criminalidade, ainda que ele, anteriormente, já tenha sido condenado em penas de prisão”. (ac. STJ de 30 de Setembro de 1999, proc. 578/99-5; SASTI, n.° 33, 95);

Não são considerações de culpa que interferem na decisão sobre a execução da pena, mas apenas razões ligadas às finalidades preventivas da punição, sejam as de prevenção geral positiva ou de integração, sejam as de prevenção especial de socialização, estas acentuadamente tidas em conta no instituto da suspensão, desde que satisfeitas as exigências de prevenção geral, ligadas à necessidade de correspondência às expectativas da comunidade na manutenção da validade das normas violadas. (ac. STJ de 10 de Novembro de 1999, proc. 82.3/99-3; SASTJ, 35, 74)».

Desta forma, outra não poderia ser a decisão que não a aplicação da suspensão da execução da pena única de prisão de 2 anos ao Requerido.

13 - Pelo que mal andou o Tribunal a quo ao entender que tal questão já havia sido decidida pelo STJ, o que constitui uma nulidade do douto acórdão, neste segmento.

14 - Devendo por isso a decisão ser revogada e substituída por outra que decrete a suspensão da pena.”

3. Respondeu o Ministério Público, pelo Senhor Procurador-Geral Adjunto no Tribunal do Relação, defendendo a improcedência do recurso. Conclui dizendo:

“1. Tendo o Tribunal da Relação de Guimarães realizado o cúmulo jurídico das concretas penas de prisão cuja execução a autoridade judicial espanhola         emitente do MDE pretendia que o arguido recorrente cumprisse, fixando, então, a pena única de 2 anos desta forma realizando o ordenado pelo STJ pelo seu acórdão de 23/06/2021, a decisão colegial agora posta sob apreciação encontra-se fora de qualquer censura ao nela não ordenar a suspensão da execução da referida pena de prisão, como  é pretensão do recorrente, decretando, ao invés, o seu efectivo cumprimento, todavia em regime de permanência na habitação, sob vigilância electrónica;

2. Com efeito, a decisão de adaptação da condenação do arguido ao ordenamento jurídico-penal português, a sua concreta adaptação não pode modificar a natureza da pena a executar, tendo em vista o estabelecido no art.º 8, n.ºs 2 e 3 da Decisão–Quadro 2008/909/JAI que determina que a pena adaptada “deve corresponder tão exactamente quanto possível à condenação imposta no Estado de emissão o tribunal de execução”;

3. Tal não aconteceria, representando até um excesso de pronúncia, se, como é pretensão do recorrente, a nova pena de prisão decorrente da realização do cúmulo jurídico fosse suspensa na sua execução, pois que esta nova pena deixaria de ser uma pena detentiva, seria uma pena autónoma de substituição, afastando-se, notoriamente, da natureza da original e que é visada no MDE, uma pena detentiva;

4. Se assim se decidisse no acto de “reconhecimento” daquela condenação, estaria o Estado de execução a proceder a um novo julgamento dos factos, a executar uma pena diversa da fixada pela autoridade judicial emitente do MDE, estaria a afastar-se do previsto na alínea a) do art.º 26 da Lei 158/2015, de 17/09, e a arredar-se do seu expresso e assumido compromisso em “executar essa pena”, e não uma qualquer outra pena não detentiva;

5. O acórdão recorrido não violou qualquer normativo, devendo ser integralmente confirmado.”

4. Foram os autos a vistos e à conferência (artigo 25.º da Lei n.º 65/2003).

II. Fundamentação

     Factos

5. O Juzgado de lo Penal n.º 3 de Pontevedra, Reino de Espanha, emitiu, em 15 de março de 2021, um mandado de detenção europeu (MDE) contra AA, de nacionalidade portuguesa, nascido em .../.../1975, em ..., com os demais sinais dos autos, para efeitos de cumprimento de uma pena de 3 anos e 9 meses de prisão e 253 dias de prisão “por responsabilidade criminal subsidiária”, que lhe foi aplicada pela prática de “dois crimes contra a fazenda pública” e “um crime de falsificação de documento”.

6. Por acórdão de 24.05.2021, o Tribunal da Relação de Guimarães recusou a execução do MDE para cumprimento das penas de multa substituídas por penas de prisão, por considerar estarem em causa penas pecuniárias, e para cumprimento da pena de 3 anos e 9 meses de prisão, com fundamento no facto de a pessoa procurada ter nacionalidade portuguesa, o que constitui motivo de recusa de execução facultativa do MDE nas condições previstas na alínea g) do n.º 1 do art.º 12.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto.

Para além disso, pelo mesmo acórdão, o Tribunal da Relação decidiu “reconhecer” e confirmar a sentença condenatória na pena de prisão, do Juzgado de lo Penal n.º 3 de Pontevedra, Espanha – executória 221/18, sentença n.º 33/17 –, que originou a emissão do MDE, para efeitos da execução desta pena em Portugal.

7. Discordando do decidido “relativamente à realização do cúmulo jurídico que importa realizar no âmbito da conversão ou redução da pena de prisão constante da sentença”, o Ministério Público interpôs recurso desse acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça, por entender que competia ao Tribunal da Relação e não ao tribunal da 1.ª instância “proceder à conversão ou redução da pena de prisão constante da sentença revidenda e que importa efectivar a coberto do previsto no art.º 16, n.ºs 3 a 5 da Lei 158/2015”.

8. Por acórdão de 23.06.2021, transitado em julgado em 08.07.2021, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) declarou nulo o acórdão proferido, “por omissão de pronúncia quanto ao cúmulo da pena a ser cumprida pelo requerido AA”, e determinou que o Tribunal da Relação de Guimarães procedesse à realização do cúmulo jurídico das penas aplicadas no Estado de emissão.

Neste acórdão, considerou o Supremo Tribunal de Justiça impor-se proceder à adaptação da duração da pena aplicada pela autoridade judiciária do Estado de emissão, “na medida em que de acordo com o disposto no artigo 77.º, n.º 2, do CP, em caso de concurso de crimes, a pena de prisão aplicável não pode ultrapassar essa medida” (pena máxima prevista para infrações semelhantes).

9. Em cumprimento do decidido pelo STJ, o Tribunal da Relação de Guimarães proferiu novo acórdão, em 13.09.2021, procedendo à elaboração do cúmulo jurídico nos termos do artigo 77.º do Código Penal, e decidiu aplicar ao requerido AA a pena única de dois anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo.

Invocando “excesso de pronúncia” [artigo 379.º, n.º 1, al. c), do CPP], com a alegação de que o Tribunal da Relação “inovou decretando a suspensão da execução” da pena, o Ministério Público arguiu a nulidade do acórdão, pedindo que fosse proferido “novo acórdão que nele exclua a decretada suspensão da execução da pena de prisão aplicada”.

Por acórdão de 25.10.2021, o Tribunal da Relação reconheceu a nulidade do anterior acórdão de 13.09.2021 e, na procedência da arguição, procedendo ao cúmulo jurídico das penas aplicadas, condenou o arguido AA na pena única de dois anos de prisão.

10. Em discordância com o decidido, pugnando pela suspensão da execução da pena, o requerido AA apresentou recurso do acórdão de 25.10.2021 para o Supremo Tribunal de Justiça.

Por acórdão de 12.1.2022, o STJ decidiu:

a) Declarar, oficiosamente, nos termos do artigo 119.º, alínea b), do CPP, a nulidade resultante da falta de promoção, pelo Ministério Público, do processo de reconhecimento da sentença condenatória nos termos da Lei n.º 158/2015, imposta pelo artigo 12.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 65/2003 e pelo artigo 16.º, n.º 1, daquele diploma;

b) Consequentemente, nos termos do n.º 2 do artigo 122.º do CPP, declarar inválidos os atos processuais praticados a partir da omissão dessa promoção, que deveria ter ocorrido em momento imediatamente anterior ao do acórdão de 24.5.2021, incluindo a invalidade desse acórdão e do acórdão recorrido, nos termos do disposto no artigo 122.º, n.º 1, do CPP, salvando-se os efeitos do acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 23.6.2021, que, na adaptação da condenação a que haja lugar, deverá ser observado na operação de realização do cúmulo jurídico, para efeitos do disposto no artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal;

c) Devendo, em consequência, ser solicitada à autoridade de emissão a transmissão da sentença condenatória, acompanhada de certidão elaborada em conformidade com a Decisão-Quadro 2008/909/JAI do Conselho, de 27 de novembro de 2008, e com o formulário-tipo reproduzido no respetivo anexo I, para que, recebida a sentença e a certidão, o Ministério Público possa promover o procedimento de reconhecimento, a ter lugar com observância da Lei n.º 158/2015, de 17 de setembro, suprindo-se a nulidade verificada,

d) Sendo, a final, proferido novo acórdão (artigo 122.º, n.º 2, do CPP) que incorpore a decisão relativa ao reconhecimento da sentença condenatória proferida no Estado de emissão e a decisão relativa à execução do mandado de detenção europeu, com conhecimento e decisão sobre o motivo de recusa previsto na al. g) do n.º 1 do artigo 12.º da Lei n.º 65/2003, nos termos dos n.ºs 3 e 4 deste preceito, decorrente da nacionalidade portuguesa da pessoa procurada.

11. Na sequência e em cumprimento do decidido pelo STJ, suprida a nulidade que afetou o anterior, o Tribunal da Relação proferiu novo acórdão, em 9.5.2022, em que, para além do mais, reconhece a sentença proferida no Estado de emissão, realiza o cúmulo jurídico das penas em que o requerido foi condenado, aplica a pena única de 2 anos de prisão e julga improcedente a pretensão de suspensão de execução da pena, decidindo nos seguintes termos:

“a) reconhece-se e confirmam a sentença condenatória do requerido proferida pelo Juzgado de lo Penal n.º 3 de Pontevedra, Espanha - executória 221/18, sentença n.º 33/17 (PA 467/14).

b) E porque a sentença a confirmar e a executar em conformidade com a lei portuguesa se apresenta com duração que excede “a pena máxima prevista para infrações semelhantes” visto que a lei espanhola é alheia ao regime de cúmulo jurídico de penas previsto pela lei portuguesa, nos termos previstos no art.º 16, n.º 3 da Lei 158/2015, de 17/09, então, a pena de prisão de 3 anos e 9 meses deverá ser adaptada ao regime português, procedendo-se à realização de cúmulo jurídico das penas parcelares em que o requerido foi condenado, cumprindo-se, assim, o disposto no art.º 77 do Código Penal, vai o mesmo condenado na pena única de prisão que se fixa em dois anos. Recusa-se a entrega do mencionado requerido por se achar verificada a causa de recusa facultativa prevista no alínea g) do n.º1 do art.º 12 da Lei 65/2003, de 23/08 em face da sua comprovada inserção social, profissional e familiar do requerido, cidadão português. (…)

Improcede a pretensão do requerente de suspensão da pena face ao já decidido neste processo pelo STJ”.

12. O acórdão recorrido encontra-se fundamentado nos seguintes termos (transcrição):

“Factos provados

- O mandado de detenção europeu que deu origem a este processo foi emitido em 15/03/2021 pelo Jusgado de lo Penal, n.º 3 de Pontevedra, Espanha, e inserido no Sistema de Informação de Shengen, com vista a detenção e entrega àquele País do requerido AA, para cumprimento integral de uma pena total de 3 anos e 9 meses de prisão e 253 dias de prisão por responsabilidade criminal subsidiária, que lhe foi aplicada pela prática de dois crimes contra a fazenda pública e um crime de falsificação de documento.

- O requerido, detido em 29/039/2021, em ..., e ouvido no dia seguinte, declarou não renunciar à regra da especialidade e não consentir na sua entrega à autoridade judicial emitente do mandado:

O requerido tem nacionalidade portuguesa.

De forma permanente, reside em Portugal

Reside em Portugal com a sua família constituída por mulher e dois filhos, bem como os pais e irmãos, e exerce a sua atividade profissional em Portugal, desempenhando as funções de ... na empresa O... e na empresa C.... (…).

Fundamentação de direito

0 mandado de detenção europeu (MDE) é um instrumento de cooperação judiciária entre os Estados Membros da UE, sendo um procedimento que se faz diretamente entre as autoridades judiciarias desses Estados, com base no princípio do reconhecimento e confiança mútuos, em conformidade com a Decisão-Quadro 2002/584/JAI do Conselho (…) de 13/06/2002, implementada no nosso País pela L. 65/2003, de 23/08, esta alterada pela L. 35/2015, de 4/05.

No caso dos autos, o MDE visa o cumprimento de pena aplicada por decisão proferida em Espanha, pelo que, a questão essencial e única a decidir e saber se se mostram preenchidos os pressupostos de recusa facultativa prevista no art.º 12.º n.ºs 1 alínea g) e 3 da citada L. 63/85” [referência que resulta de lapso manifesto na identificação do diploma legal, devendo, por conseguinte, em vez de “L. 63/85”. ler-se “L. 65/2003”], “na redação introduzida pela alteração supra referida.

De acordo com aquele normativo legal, a execução do MDE pode ser recusada "quando a pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal, desde que o mandado de detenção europeu tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa".

Acrescentando aquele n.º 3 que "A recusa de execução nos termos da alínea g) do n. º1 depende de decisão do tribunal da relação, no processo de execução de mandado de detenção europeu, a requerimento do Ministério Público, que declare a sentença exequível em Portugal, confirmando a pena aplicada".

Para efeito de reconhecimento, este tribunal da Relação, enquanto autoridade de execução, e conforme ordenado pelo STJ, solicitou, mediante requerimento do PGR, à autoridade de emissão que lhe seja transmitida a sentença, acompanhada da certidão (artigo 12.º, n.º 4, da Lei n.º 65/2003, na redação da Lei n.º115/2019, artigo 4.º, n.º 5, da Decisão-Quadro 2008/909/JAI e artigo 9.º, n.º 5, da Lei n.º 158/2015, aplicável na falta de disposição própria do capítulo II, em interpretação conforme à Decisão-Quadro)” - O reconhecimento e execução da sentença penal de condenação em causa no presente MDE, tem em vista o disposto no art.º 12, n.º 3 da Lei 65/2003 – “A recusa de execução nos termos da alínea g) do n.º 1 depende de decisão do tribunal da relação, no processo de execução do mandado de detenção europeu, a requerimento do Ministério Público, que declare a sentença exequível em Portugal, confirmando a pena aplicada”.

Ora, no caso em apreço, o requerido possui nacionalidade portuguesa, reside em Portugal, país onde tem centrada e organizada a sua vida, vivendo com a esposa e dois filhos, aqui se encontrando integrado social e familiarmente, exercendo ainda a sua atividade profissional em Portugal. Sendo assim, o cumprimento da pena, no nosso País, é, não só a mais ajustada como a menos penosa para o mesmo (art.º 40.º n.º 1 do CP).

Quanto ao pressuposto de o Estado Português se comprometer a executar a pena ou medida de segurança de acordo com a lei portuguesa, com a entrada em vigor da lei 35/2015, que alterou o art.º 12° da L. 65/2003, introduzindo-lhe, designadamente, os n.ºs 3 e 4, que prevê que a decisão de recusa de cumprimento do MDE, depende da decisão do Tribunal da Relação, no processo de execução de mesmo, a requerimento do M.P., que declare a sentença exequível, confirmando a pena aplicada, decisão que é incluída na decisão de recusa da execução do MDE, sendo-lhe aplicável, com as devidas adaptações, o regime relativo a revisão e confirmação de sentenças condenatórias estrangeiras.

No caso sub judice, face a prova produzida, verificam-se todos aqueles pressupostos, integrando, na lei portuguesa, os crimes perpetrados pelo requerido, não se verificando nenhuma das causas de exclusão de exequibilidade previstas no art.º 238° do CPP.

O referido arguido foi condenado nos seguintes termos:

- pela decisão executória 221/18, com a referência ...7, datada de 26 de janeiro de 2017, foi o Requerido condenado, pelo Juzgado de lo Penal n.º 3 de Pontevedra, Espanha, pela prática de dois crimes contra a Fazenda Pública Espanhola e um crime de falsificação de documento, as penas de:

- pela prática de dois crimes contra a Fazenda Pública, à pena de um ano de prisão por cada um dos crimes (2 anos);

- pela prática de um crime continuado de falsificação de documento comercial, à penas de 1 ano e nove meses de prisão (1 ano e nove meses).

E desta sentença ditada pelo Juzgado de lo Penal, o Requerido, interpôs Recurso de Apelação, que foi remetido para a Audiencia Provincial de Pontevedra, cuja Secção Quarta ditou a sentença n.º 193/2017, em 11 de dezembro de 2017, mediante a qual se negou provimento ao referido Recurso de Apelação, que assim veio confirmar a sentença ditada pelo Juzgado de lo Penal, que transitou em 08/05/2018, por crimes praticados em 2005 e 2006.

Cumpre proceder à realização do cúmulo.

O artigo 77.º, n.º 1, do C.P., estatui que “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto os factos e a personalidade do agente.

O pressuposto essencial para a efetivação do cúmulo jurídico de duas (ou mais) penas é a prática das diversas infrações pelo mesmo arguido antes de transitar em julgado a condenação por qualquer delas, ou seja, antes do trânsito em julgado da primeira condenação (cfr. o Dr. Paulo Dá Mesquita, in Concurso de Penas, página 41).

O n.º 2 do artigo 78.º do C.P. estabelece que “o disposto no número anterior só é aplicável relativamente aos crimes cuja condenação transitou em julgado.”.

Em termos práticos, depois de fixada a competência do Tribunal para a realização do cúmulo, o raciocínio a fazer é:

1) Em primeiro lugar, determinar qual foi a última condenação sofrida pelo arguido, independentemente da data do trânsito;

2)Depois, verificar a data da prática dos factos nela julgados;

3)A seguir, selecionar as condenações (o seu trânsito e não as próprias decisões) que sejam posteriores à prática daqueles factos;

4)Por fim, verificar se nenhuma dessas condenações é, por sua vez, anterior (o seu trânsito e não a própria decisão) a factos entretanto praticados antes da última condenação (o seu trânsito e não a própria decisão).

As penas parcelares aplicadas no âmbito dos processos supra identificados estão numa situação de concurso entre si, impondo-se, assim, proceder à determinação de uma pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números 1 e 2 do artigo 77.º do C.P.

Da pena única concreta

A moldura do concurso, nos termos do disposto no artigo 77.º, n.º 2, ex vi art. 78.º, n.ºs 1 e 2, ambos do C.P., tem os seguintes limites:

limite mínimo: 01 (um) ano e 09 (nove) meses de prisão;

limite máximo: três anos e nove meses de prisão.

Cabe agora proceder à determinação concreta da pena única do concurso, nos termos do artigo 77.º, n.º 1, do C.P...

Nesta operação, tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique.

Na avaliação da personalidade – unitária - do agente relevará a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência criminosa ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade.

Importa ponderar no caso concreto:

Os factos praticados no presente processo ocorreram em 2005 e 2006, o que releva para o decurso de tempo ocorrido desde a prática dos mesmos;

O contexto pessoal do arguido, com um contexto familiar e social relevante, enquadrado, apresentando uma atividade profissional consistente, pois já há vários anos que exerce atividade profissional de forma estruturada;

Não lhe são conhecidos outros antecedentes criminais;

A atual situação do arguido, apresentando projeto de vida consistente,

Serve tudo isto para dizer que a natureza dos factos no seu conjunto considerados, as circunstâncias que presidiram à prática dos mesmos, revelam uma situação pontual não influente de forma negativa aos bens jurídicos protegidos, o que constitui efeito atenuante na moldura penal conjunta,

Acresce ainda que o arguido, tal como é sinalizado no relatório social elaborado, manifesta um juízo de prognose favorável quanto ao seu processo de reinserção,

Ora, tomando como base o número e o tipo de crimes praticados, as suas consequências, bem como a personalidade do arguido e as necessidades de prevenção geral e especial que no presente caso se fazem sentir, entende-se adequado fixar a pena única de 02 (dois) anos de prisão.”

13. Como se vê do texto acabado de transcrever, o acórdão recorrido, tal como o anterior acórdão de 24.5.2021, e não obstante o consignado no anterior acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 12.1.2022, fundamentou a decisão de recusa de entrega na alínea g) do n.º 1 do artigo 12.º da Lei n.º 65/2003 e no n.º 3 do mesmo preceito, aditado pela Lei n.º 35/2015, de 4 de maio, ignorando o n.º 4 do mesmo artigo 12.º (também aditado pela Lei n.º 35/2015), na parte em que, pela alteração introduzida pela Lei n.º 115/2019, de 12 de setembro, passou a remeter para o regime de reconhecimento de sentenças penais que imponham penas de prisão ou medidas privativas da liberdade no âmbito da União Europeia (em vez de remeter para o regime de revisão e confirmação da sentença estrangeira, em consequência da transposição da Decisão-Quadro 2008/909/JAI do Conselho, pela Lei n.º 158/2015, de 17 de setembro), por julgar não verificada “nenhuma das causas de exclusão de exequibilidade previstas no art.º 238° do CPP” (que, por virtude da alteração ao n.º 4 do artigo 12.º pela Lei n.º 158/2015, como adiante se verá, deixou de ser aplicável).

O acórdão procede à realização do cúmulo jurídico, justificando esta operação na alínea b) do dispositivo, ao mencionar que “porque a sentença a confirmar e a executar em conformidade com a lei portuguesa se apresenta com duração que excede “a pena máxima prevista para infrações semelhantes” visto que a lei espanhola é alheia ao regime de cúmulo jurídico de penas previsto pela lei portuguesa, nos termos previstos no art.º 16, n.º 3 da Lei 158/2015, de 17/09, então, a pena de prisão de 3 anos e 9 meses deverá ser adaptada ao regime português, procedendo-se à realização de cúmulo jurídico das penas parcelares em que o requerido foi condenado, cumprindo-se, assim, o disposto no art.º 77 do Código Penal, vai o mesmo condenado na pena única de prisão que se fixa em dois anos”.

A realização do cúmulo jurídico vem, pois, justificada pela necessidade de se proceder à adaptação da pena aplicada no Estado de emissão do MDE porque a duração da pena aplicada excede a pena máxima prevista pela lei portuguesa para infrações semelhantes, tendo em conta o disposto no artigo 16.º, n.º 3, da Lei n.º 158/2015, de 17 de setembro, que estabelece o regime jurídico da transmissão, do reconhecimento e da execução, em Portugal, das sentenças em matéria penal que imponham penas de prisão ou outras medidas privativas da liberdade tomadas pelas autoridades competentes dos outros Estados membros da União Europeia.

Objeto e âmbito do recurso

14. O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso.

O recurso tem por objeto um acórdão proferido, em primeira instância, pelo Tribunal da Relação, que é o competente para o processo judicial de execução do mandado de detenção europeu (artigo 15.º da Lei n.º 65/2003). Nos termos do artigo 432.º, n.º 1, al. a), do CPP (redação da Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro), pode recorrer-se para o Supremo Tribunal de Justiça com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 (vícios da decisão recorrida) e 3 (nulidades não sanadas) do artigo 410.º.

Pugnando o recorrente pela suspensão da execução da pena única de 2 anos de prisão, determinada pela realização do cúmulo jurídico, nos termos do artigo 77.º do Código Penal, e arguindo, a esse propósito, nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia nesta parte, a questão agora colocada em recurso é a de apreciar e decidir se, suprindo a nulidade invocada, esta pena de prisão pode e deve ser suspensa na sua execução, nos termos do disposto no artigo 50.º do mesmo diploma, segundo o qual “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição” (n.º 1).

Tendo em conta que a realização do cúmulo jurídico, pelo tribunal recorrido, decorre do anterior acórdão de 23.06.2021 deste Supremo Tribunal de Justiça, transitado em julgado em 08.07.2021, salvado nos seus efeitos, por exclusão do âmbito da nulidade dos atos processuais declarada no anterior acórdão de 12.1.2022, e que não vem impugnada a medida da pena única aplicada, não há que apreciar, agora, destas matérias.

Quanto a este ponto, importa, todavia, precisar que a afirmação, que fundamenta a decisão recorrida, de que “a lei espanhola é alheia ao regime de cúmulo jurídico de penas previsto pela lei portuguesa”, carece de ser lida em confronto com os artigos 75.º a 77.º do Código Penal espanhol (de 1995), com as alterações posteriores introduzidas pelas “Leyes Orgánicas” 7/2003 e 1/2015 (em www.boe.es), que acolhem regras próprias de cúmulo jurídico (“acumulación jurídica”), refletindo princípios de absorção e exasperação na determinação e na execução das penas, não projetados no Código Penal português, assim se evidenciando a diferença de regimes.

Quadro normativo

15. O mandado de detenção europeu (MDE), instituído pela Decisão-Quadro 202/584/JAI do Conselho, de 13.6.2002, que constitui a primeira concretização do princípio do reconhecimento mútuo no âmbito da cooperação judiciária em matéria penal na União Europeia, teve como objetivo substituir o sistema formal de extradição multilateral (de “entrega recíproca”) baseado na Convenção Europeia de Extradição de 13.12.1957, do Conselho da Europa (artigo 1.º: “As Partes Contratantes comprometem-se a entregar reciprocamente, segundo as regras e condições determinadas pelos artigos seguintes, as pessoas perseguidas em resultado de uma infracção ou procuradas para o cumprimento de uma pena ou medida de segurança pelas autoridades judiciárias da Parte requerente), nas relações entre os Estados-membros da União Europeia, por um regime simplificado de entrega, entre autoridades judiciárias, de pessoas condenadas ou suspeitas, para efeitos de execução de sentenças que apliquem uma pena de prisão ou uma medida de segurança de duração não inferior a quatro meses ou de procedimento penal por factos puníveis, pela lei do Estado-Membro de emissão, com pena ou medida de segurança privativas de liberdade de duração máxima não inferior a 12 meses (preâmbulo, n.ºs 5, 6 e 7, e artigo 2.º).

A Decisão-Quadro 2008/909/JAI do Conselho, de 27.11.2008, relativa à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às sentenças em matéria penal que imponham penas ou outras medidas privativas de liberdade para efeitos da execução dessas sentenças na União Europeia, é aplicável à execução de condenações no Estado de que a pessoa condenada é nacional, em caso de não execução de um MDE e de consequente recusa de entrega da pessoa condenada para cumprimento de pena de prisão, para facilitar a sua reinserção social (artigos 3.º, 4.º e 25.º).

16. De acordo com o artigo 34.º, n.º 2, al. c), do Tratado da União Europeia (TUE), na redação do Tratado de Amesterdão (1997), a decisão-quadro constitui uma “medida” que visa a “aproximação das disposições legislativas dos Estados-membros”, e, tal como a diretiva (artigo 288.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia – TFUE, ex-artigo 249.º TCE), vincula os Estados-membros quando aos resultados a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios.

Cabendo aos juízes nacionais aplicar o direito da União, incorporado no direito interno por ato legislativo nacional (no caso das decisões-quadro e das diretivas), compete, todavia, ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) decidir, em recurso prejudicial, sobre a interpretação dos Tratados e dos atos adotados pelas instituições da União (artigo 267 TFUE), sempre que uma questão desta natureza se coloque ao juiz nacional, que não possa ser adequadamente resolvida por recurso a jurisprudência anterior, por força do primado do direito da União (acórdão Costa, processo 6/64, de 15.7.1964, e Declaração 17 ao TFUE), que impede os Estados-membros de darem primazia ao direito nacional sobre o direito da União, ou por via da aplicação do princípio da interpretação conforme. Constitui jurisprudência assente do TJUE que, ao aplicar o direito interno, os órgãos jurisdicionais nacionais são obrigados a interpretá-lo, na medida do possível, à luz do texto e da finalidade da diretiva em causa para atingir o resultado por ela prosseguido. Esta obrigação de interpretação conforme do direito nacional é inerente ao sistema dos Tratados, na medida em que permite aos órgãos jurisdicionais nacionais assegurar, no âmbito das suas competências, a plena eficácia do direito da União quando decidem dos litígios que lhe são submetidos (como se lê, de entre outros, no acórdão Dominguez, de 24.1.2012, processo C-282/10, § 24, citando abundante jurisprudência).

17. Neste quadro, importa, antes de mais, convocar, na parte relevante, o essencial do regime de execução do mandado de detenção europeu (MDE) decorrente da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, que transpõe a Decisão-Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13.6.2002, para a ordem jurídica interna, posteriormente alterada pela Decisão-Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26.2.2009 (reforçando os direitos processuais em caso de julgamento na ausência), transposta pela Lei n.º 35/2015, de 4 de maio, bem como do regime de reconhecimento de sentenças condenatórias em penas de prisão no espaço da União Europeia constante da Lei n.º 158/2015, de 17 de setembro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 115/2019, de 12 de setembro, que transpõe a Decisão-Quadro 2008/909/JAI do Conselho, de 27 de novembro de 2008, também alterada pela Decisão-Quadro 2009/299/JAI, para que remete o artigo 12.º, n.º 4, do regime do MDE. Reproduzindo-se, a este propósito, parte da fundamentação do anterior acórdão de 12.1.2022.

18. Como resulta do artigo 1.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto (a que pertencem as disposições seguidamente citadas sem indicação do respetivo diploma legal) e tem sido repetidamente afirmado, o mandado de detenção europeu (MDE) é uma decisão judiciária emitida pela autoridade judiciária competente de um Estado-Membro da União Europeia (UE) – autoridade judiciária de emissão –, com vista à detenção e entrega, pela autoridade judiciária competente de outro Estado-Membro – autoridade judiciária de execução –, de uma pessoa procurada para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou de uma medida de segurança privativas da liberdade.

O MDE é executado com base no princípio do reconhecimento mútuo (artigo 1.º, n.º 2), em que assenta a cooperação judiciária em matéria penal na União Europeia (artigo 82.º, n.º 1, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia – TFUE), cujo sentido, conteúdo e extensão, na falta de definição legal, devem ser preenchidos por recurso ao direito da UE e à jurisprudência do Tribunal de Justiça da UE (TJUE, em https://curia.europa.eu) relativa à interpretação das respetivas disposições, nos termos da alínea b) do artigo 267.º do TFUE.

De acordo com este princípio, uma decisão definitiva proferida por uma autoridade judiciária competente de um Estado-Membro (Estado de emissão), em conformidade com o direito interno desse Estado, tem um efeito pleno e direto no território dos demais Estados-Membros, concretamente no Estado em que deva ser executada (Estado de execução), como se de uma decisão de uma autoridade judiciária deste Estado se tratasse, desde que não se verifique motivo obrigatório ou facultativo de não execução.

O princípio do reconhecimento mútuo, como tem sido sublinhado na jurisprudência do TJUE, assenta em noções de equivalência e de elevado grau de confiança mútua nos sistemas jurídicos dos Estados-Membros da UE, com respeito pelos direitos fundamentais consagrados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (JOUE C 364 de 18.12.2000), que tem o mesmo valor jurídico que os Tratados (artigo 6.º, n.º 1, do Tratado da União Europeia). Nesta base, a autoridade judiciária do Estado de execução encontra-se obrigada a executar o MDE que, emitido de acordo com o formulário anexo à decisão-quadro 2002/584/JAI (com a alteração introduzida pela Decisão-Quadro 2009/299/JAI), preencha os requisitos legais, estando limitado e reservado à autoridade judiciária de execução um papel de controlo da execução e de emissão da decisão de entrega, a qual só pode ser negada em caso de procedência de motivo de não execução ou de falta de prestação de garantias que possam ser exigidas (cfr. os acórdãos do TJUE proferidos nos processos C-388/08, de 1.12.2008, C-123/08, de 6-10-2009, C-261/09, de 16.11.2010, C-42/11, de 5.9.2012, e C-396/11, de 29.1.2013 e, entre muitos outros, mais recentemente, o acórdão de 11.3.2020, no processo C-314/18 e o acórdão de 26.10.2021, nos processos apensos C-428/21 PPU e C-429/21 PPU. Sobre estes pontos, v. «Reconhecimento mútuo de decisões judiciais em matéria penal no espaço da União Europeia», in Comentário da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, Vol. II, Pinto de Albuquerque (org.), Católica Editora, 2019, pp. 1142ss). Os motivos de não execução do MDE (obrigatória e facultativa) são apenas os que constam dos artigos 3.º, 4.º e 4.º-A da Decisão-Quadro (a que correspondem os artigos 11.º, 12.º e 12.º-A da Lei n.º 65/2003), entre os quais se inclui a nacionalidade da pessoa procurada, desde que o Estado de execução se comprometa a executar a pena em que se funda a emissão do MDE (n.º 6 do artigo 4.º da Decisão-Quadro).

Como tem afirmado o TJUE, em jurisprudência reiterada, “o direito da União assenta na premissa fundamental segundo a qual cada Estado-Membro partilha com todos os outros Estados-Membros, e reconhece que estes partilham com ele, uma série de valores comuns nos quais a União se funda, como precisado no artigo 2.º TUE. Esta premissa implica e justifica a existência da confiança mútua entre os Estados-Membros no reconhecimento desses valores e, portanto, no respeito do direito da União que os aplica (Acórdãos de 25 de julho de 2018, Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário), C-216/18 PPU, EU:C:2018:586, n.º 35; e de 15 de outubro de 2019, Dorobantu, C-128/18, EU:C:2019:857, n.º 45). (…)

19. Dispõe o artigo 12.º, n.º 1, al. g), transpondo o n.º 6 do artigo 4.º da Decisão-Quadro, que a execução do mandado de detenção europeu pode ser recusada quando “a pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal, desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa”.

Sendo o regime de execução do MDE inteiramente jurisdicionalizado, não comportando, por isso, intervenção de outros órgãos do poder político, o compromisso do Estado Português em executar a pena ou medida de segurança em Portugal deve expressar-se e resultar de uma decisão judicial.

Assim, veio o n.º 3 do mesmo preceito, aditado pela Lei n.º 35/2015, de 4 de maio, estabelecer que a recusa de execução nos termos desta alínea g) depende de decisão do tribunal da relação, que é o competente para a execução do MDE (artigo 15.º), no processo de execução do mandado de detenção europeu, a requerimento do Ministério Público, que declare a sentença exequível em Portugal, confirmando a pena aplicada. Acrescentando o n.º 4, aditado pela mesma Lei n.º 35/2015, que “a decisão a que se refere o número anterior é incluída na decisão de recusa de execução, sendo-lhe aplicável, com as devidas adaptações, o regime relativo à revisão e confirmação de sentenças condenatórias estrangeiras”.

Porém, por virtude da entrada em vigor da Lei n.º 158/2015, de 17 de setembro – que substituiu a revisão e confirmação de sentença estrangeira por um regime de reconhecimento de sentenças penais nas relações ente os Estados-membros da UE –, este n.º 4 do artigo 12.º, foi posteriormente alterado pela Lei n.º 115/2019, de 12 de setembro, enxertando o procedimento de reconhecimento da sentença condenatória no procedimento de execução do MDE. Passou este n.º 4 a dispor que “[a] decisão a que se refere o número anterior é incluída na decisão de recusa de execução, sendo-lhe aplicável, com as devidas adaptações, o regime relativo ao reconhecimento de sentenças penais que imponham penas de prisão ou medidas privativas da liberdade no âmbito da União Europeia, devendo a autoridade judiciária de execução, para este efeito, solicitar a transmissão da sentença”.

20. O artigo 26.º, al. a), da Lei n.º 158/2015, sob a epígrafe “execução de condenações na sequência de um mandado de detenção europeu”, que transpõe o artigo 25.º da Decisão-Quadro 2008/909/JAI, dispõe que esta lei se aplica à execução de condenações na sequência de um mandado de detenção europeu, se o mandado de detenção europeu tiver sido emitido para efeitos de cumprimento de uma pena de prisão ou medida de segurança privativa de liberdade, quando a pessoa procurada se encontrar no Estado de execução, for sua nacional ou sua residente e este Estado se comprometa a executar essa pena ou medida de segurança nos termos do seu direito nacional, ou seja, à situação prevista na al. g) do n.º 1 da Lei n.º 65/2003, que transpõe o n.º 6 do artigo 4.º da Decisão-Quadro 2002/584/JAI.

O artigo 25.º da Decisão-Quadro 2008/909/JAI estabelece a articulação entre a Decisão‑Quadro 2002/584 (regime do MDE) e a Decisão-Quadro 2008/909 (regime de reconhecimento das sentenças condenatórias em penas de prisão), com a finalidade de contribuir para alcançar o objetivo de facilitar a reinserção social da pessoa em causa (assim, o acórdão do TJUE de 11.3.2020, processo C-314/18), ao dispor que “sem prejuízo da Decisão-Quadro 2002/584/JAI, o disposto na presente decisão-quadro deve aplicar-se, mutatis mutandis, na medida em que seja compatível com as disposições dessa mesma decisão-quadro, à execução de condenações, se um Estado-Membro tiver decidido executar a condenação nos casos abrangidos pelo n.º 6 do artigo 4.º daquela decisão-quadro (…) de forma a evitar a impunidade da pessoa em causa”.

21. A Decisão-Quadro 2008/909/JAI do Conselho, de 27.11.2008, tem por objetivo estabelecer as regras segundo as quais um Estado-Membro, tendo em vista facilitar a reinserção social da pessoa condenada, reconhece uma sentença que aplica uma pena de prisão e executa a pena de prisão imposta no Estado da condenação (no caso, o Estado de emissão do MDE destinado ao cumprimento da pena de prisão).

Esta Decisão-Quadro substituiu as disposições correspondentes da Convenção Europeia Relativa à Transferência de Pessoas Condenadas, de 21 de março de 1983 (aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 8/93 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 8/93, ambos de 20 de abril), e do respetivo Protocolo Adicional, de 18 de Dezembro de 1997 (assinado por Portugal em 8.6.2000, mas ainda não ratificado – cfr https://www.coe.int/en/web/conventions/full-list?module=signatures-by-treaty&treatynum=167) e da Convenção Europeia sobre o Valor Internacional das Sentenças Penais, de 28 de maio de 1970 (que Portugal assinou em 10.5.1979, mas nunca ratificou – cfr. https://www.coe.int/en/web/conventions/full-list?module=signatures-by-treaty&treatynum=070), aplicáveis nas relações entre Estados-Membros da UE (artigos 26.º da Decisão-Quadro e 45.º da Lei n.º 158/2015).

22. O regime de reconhecimento de sentenças condenatórias no âmbito da UE, estabelecido nesta Decisão-Quadro, inova substancialmente relativamente ao tradicional regime de revisão e confirmação, que, agora, apenas se aplica a decisões condenatórias proferidas fora do espaço da UE. Ao proceder à revisão e confirmação, o tribunal segue o regime estabelecido nos artigos 234.º a 240.º do CPP e 95.º a 103.º da Lei 144/99, que, aplicando-se nos casos de falta ou insuficiência de tratado, acordo ou convenção (artigo 3.º), se inspira nestes instrumentos internacionais do Conselho da Europa.

De acordo com o essencial do regime de revisão e confirmação, o tribunal dispõe de uma larga margem de decisão (no sistema da Convenção sobre o Valor Internacional das Sentenças Penais, o Estado é, em regra, livre de substituir a sanção por uma sanção prevista na sua própria lei – cfr. relatório explicativo em https://rm.coe.int/16800ca435). Estando vinculado pela matéria de facto considerada provada na sentença estrangeira, no caso de ter sido aplicada pena prevista na lei portuguesa, mas em medida superior ao máximo legal admissível, o tribunal deve converter a pena aplicada na pena que ao caso caberia segundo a lei portuguesa ou reduzida até ao limite adequado (artigo 237.º, n.º 3, do CPP).

No caso da Convenção sobre Transferência de Pessoas Condenadas, o Estado de execução pode continuar a execução da pena, ficando vinculado pela natureza jurídica e pela duração da sanção, tal como resultam da condenação, podendo, no caso de a pena ser incompatível com a sua legislação, “adaptá-la” à pena prevista na sua própria lei para infrações da mesma natureza, a qual deverá, no entanto, corresponder, tanto quanto possível, à imposta pela condenação, sem agravar a sanção imposta no Estado da condenação, nem exceder o máximo previsto na sua lei interna; ou, então, pode “converter” a condenação numa decisão desse Estado (procedimento de “exequatur”), substituindo a sanção proferida no Estado da condenação por uma sanção prevista na sua lei interna para a mesma infração e “adaptá-la” à pena ou medida previstas na sua própria lei para infrações da mesma natureza, devendo, também neste caso, a pena corresponder, tanto quanto possível, à imposta pela condenação, sem agravar a sanção imposta no Estado da condenação, nem exceder o máximo previsto pela lei desse Estado (artigos 9.º, 10.º e 11.º).

23. Diferentemente, a Decisão-Quadro 2008/909/JAI assenta, como já se afirmou, no princípio do reconhecimento mútuo, que constitui, em conformidade com o seu considerando 1, lido à luz do artigo 82.°, n.º 1, TFUE, a «pedra angular» da cooperação judiciária em matéria penal na União Europeia, a qual, segundo o considerando 5, se baseia numa especial confiança mútua dos Estados‑Membros nos respetivos sistemas judiciários (v., neste sentido, os acórdãos do TJUE de 8.11.2016, C‑554/14 e de 11.3.2020, processo C‑314/18).

Como se afirma neste acórdão de 11.3.2020, “o princípio do reconhecimento mútuo implica, por força do artigo 8.º, n.º 1, da Decisão-Quadro 2008/909, que, em princípio, a autoridade competente do Estado de execução reconhece a sentença que lhe foi enviada e toma imediatamente todas as medidas necessárias à execução da condenação” (acórdão TJUE de 11.1.2017, Grundza, proc. C-289/15, §§ 41 e 42). O artigo 8.ª, n.º 2, da Decisão-Quadro 2008/909 permite à autoridade competente do Estado-Membro de execução adaptar a condenação pronunciada no Estado-Membro de emissão, se a duração desta for incompatível com o direito do Estado-Membro de execução. No entanto, essa autoridade só pode decidir adaptar essa condenação quando esta for superior à pena máxima prevista pelo seu direito nacional para infrações da mesma natureza, não podendo a duração da condenação adaptada ser inferior à da pena máxima prevista pelo direito nacional do Estado-Membro de execução para infrações da mesma natureza. (…) Por conseguinte, o artigo 8.º da Decisão-Quadro 2008/909 prevê requisitos estritos para a adaptação (…) da condenação proferida no Estado-Membro de emissão, que constituem as únicas exceções à obrigação de princípio que impende sobre a referida autoridade, em virtude do artigo 8.º, n.º 1, desta decisão-quadro, de reconhecer a sentença que lhe foi transmitida e de executar a condenação cuja duração e natureza correspondem às previstas na sentença proferida no Estado-Membro de emissão (v. Acórdão de 8 de novembro de 2016, Ognyanov, C-554/14, EU:C:2016:835, n.º 36). Daqui resulta que a interpretação (…) segundo a qual o artigo 25.º da Decisão-Quadro 2008/909 autoriza (…) uma adaptação da pena pelo Estado-Membro de execução fora das hipóteses previstas no artigo 8.º da referida decisão-quadro, não pode ser acolhida, sob pena de privar esta disposição e, nomeadamente, o princípio do reconhecimento da sentença e da execução da condenação, consagrado no seu n.º 1, de qualquer efeito útil”. (…) O artigo 25.º da Decisão-Quadro 2008/909 deve ser interpretado no sentido de que (…) o Estado-Membro de execução, para executar a pena ou a medida de segurança privativas de liberdade pronunciada no Estado-Membro de emissão contra a pessoa em causa, só pode adaptar a duração dessa condenação nos requisitos estritos previstos no artigo 8.º, n.º 2, da Decisão-Quadro 2008/909”.

24. Dispõe o artigo 1.º, n.º 4, da Lei n.º 158/2015 que a transmissão, reconhecimento e execução de sentenças, em conformidade com o disposto na presente lei e nas decisões-quadro referidas nos números anteriores (em que se inclui a Decisão-Quadro 2008/909/JAI), se efetua com base no princípio do reconhecimento mútuo das sentenças e decisões judiciais em matéria penal.

Nos termos dos respetivo artigo 8.º, n.º 1, da Decisão-Quadro, a autoridade competente do Estado de execução deve: (a) reconhecer a sentença enviada pelo Estado de emissão ao Estado de execução, onde a pessoa condenada vive e de que é nacional, acompanhada da certidão cujo formulário se reproduz no anexo I e (b) tomar imediatamente todas as medidas necessárias à execução da condenação, exceto se decidir invocar um dos motivos de recusa do reconhecimento e da execução previstos no artigo 9.º (a que corresponde o artigo 17.º da Lei n.º 158/2015).

Se a pena privativa da liberdade aplicada (“condenação” – artigo 1.º, al. b), da Decisão-Quadro) for, pela sua duração ou natureza, incompatível com a legislação nacional do Estado de execução, o Estado de execução pode adaptá-la à sua legislação nacional para infrações semelhantes (artigo 8.º, n.ºs 2 e 3, da Decisão-Quadro e artigo 16.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 158/2015).

Estabelece o artigo 16.º da Lei n.º 158/2015 (com a alteração introduzida pela Lei n.º 115/2019):

“1 - Recebida a sentença, devidamente transmitida pela autoridade competente do Estado de emissão e acompanhada da certidão emitida de acordo com modelo que consta do anexo I à presente lei, o Ministério Público promove o procedimento de reconhecimento, observando-se o disposto no artigo seguinte. (…)

3 - Caso a duração da condenação seja incompatível com a lei interna, a autoridade judiciária competente para o reconhecimento da sentença só pode adaptá-la se essa condenação exceder a pena máxima prevista para infrações semelhantes, não podendo a condenação adaptada ser inferior à pena máxima prevista na lei interna para infrações semelhantes.

4 - Caso a natureza da condenação seja incompatível com a lei interna, a autoridade judiciária competente para o reconhecimento da sentença pode adaptá-la à pena ou medida prevista na lei interna para infrações semelhantes, devendo essa pena ou medida corresponder tão exatamente quanto possível à condenação imposta no Estado de emissão, e não podendo ser convertida em sanção pecuniária.

5 - A condenação adaptada não pode agravar, pela sua natureza ou duração, a condenação imposta no Estado de emissão. (…)”

25. Do que vem de se expor extrai-se, em síntese, que:

A recusa facultativa de entrega da pessoa condenada ao Estado de emissão no processo de execução de um MDE emitido para cumprimento de pena de prisão aplicada no Estado de emissão, prevista na al. g) do n.º 1 do artigo 12.º da Lei n.º 65/2003, requer a verificação de dois requisitos cumulativos: a nacionalidade portuguesa da pessoa procurada e o compromisso do Estado Português em executar a pena em Portugal.

Sendo o processo de execução do MDE inteiramente jurisdicionalizado, o compromisso de execução da pena de prisão em Portugal satisfaz-se mediante decisão do tribunal da relação competente para a execução do MDE que, no processo de execução, reconheça a sentença condenatória proferida no Estado de emissão, confirmando a pena aplicada, assim lhe conferindo força executiva (artigo 12.º, n.º 3, da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, na redação da Lei n.º 35/2015, de 4 de maio, e n.º 4, na redação da Lei n.º 115/2019, de 12 de setembro).

Caso a duração da pena de prisão que deu origem à emissão do MDE seja incompatível com a lei interna, por exceder a pena máxima prevista para infrações semelhantes, o tribunal da relação pode adaptá-la ao direito interno, reduzindo-a de acordo com os limites legalmente previstos (n.º 3 do artigo 16.º e artigo 26.º da Lei n.º 158/2015).

A decisão que procede à adaptação da condenação não pode aplicar pena de diferente natureza, em substituição da pena de prisão, por a isso se oporem o regime de reconhecimento de decisões condenatórias que aplicam penas de prisão estabelecido na Decisão‑Quadro 2008/909, o princípio do reconhecimento mútuo em que este regime baseia e as finalidades desta decisão-quadro, que visa contribuir para alcançar o objetivo de facilitar a reinserção social da pessoa na execução da pena de prisão, devendo ser executada a pena de prisão que deu origem à emissão do MDE, sem prejuízo da sua adaptação, em condições excecionais, nos termos anteriormente referidos.

Apreciação

26. Apreciando a questão suscitada na situação descrita, em conformidade com o anteriormente exposto, formulam-se as conclusões que se seguem.

A decisão recorrida, que, realizando o cúmulo jurídico determinado pelo anterior acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 23.06.2021 (supra, 8), “condenou” o recorrente na pena de 2 anos de prisão, apesar das deficiências de formulação, pois que tal decisão não constitui uma sentença condenatória, na aceção do artigo 375.º do Código de Processo Penal, visou, reduzindo-a, proceder à “adaptação” da condenação proferida pelo tribunal de Pontevedra, Reino de Espanha, que aplicou ao recorrente 3 penas de prisão, com a duração total de 3 anos e 9 meses de prisão, nos termos e com fundamento no artigo 16.º, n.º 3, da Lei 158/2015, de 17 de setembro, aplicável por força do disposto no artigo 26.º do mesmo diploma.

Tendo o recorrente nacionalidade portuguesa e vivendo em Portugal, a decisão visa assegurar o compromisso de execução, em Portugal, da pena de prisão aplicada pelo tribunal de Pontevedra, adaptada à lei portuguesa, assim justificando a não execução do MDE emitido por esse tribunal para efeitos de cumprimento da pena e a recusa de entrega do recorrente à autoridade judiciária de emissão (artigo 12.º, n.º 1, al. g), da Lei n.º 65/2003).

Esta decisão contribui para a finalidade, inscrita na Decisão-Quadro 2008/909 e na Lei n.º 158/2015, de reinserção social do recorrente na execução, em Portugal, da pena de prisão que lhe foi imposta, não sendo admissível aplicação de pena de diferente natureza, de substituição da pena de prisão, na decisão de “adaptação”. O que impede o tribunal a quo de ponderar a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50.º do Código Penal.

27. Assim sendo, não tendo o tribunal que se pronunciar pela suspensão de execução da pena, não ocorre a invocada nulidade por omissão de pronúncia, prevista na al. c) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP (conclusões 8 e 13).

Também não ocorre violação da lei de que este tribunal deva conhecer, pela não suspensão da execução da pena de prisão que possa justificar a revogação do acórdão recorrido e sua substituição por outro “que decrete a suspensão da pena”, como pretendido pelo recorrente (conclusão 14).

Pelo que o recurso não merece provimento.

Quanto a custas

28. Dispõe o artigo 73.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, que os processos de extradição são gratuitos, sem prejuízo do disposto nas alíneas b) a d) do n.º 2 e no n.º 4 do artigo 26.º. Tendo em conta a natureza e as finalidades do processo de execução do MDE, que substitui o sistema formal de extradição multilateral (de “entrega recíproca”) baseado na Convenção Europeia de Extradição de 13.12.1957, do Conselho da Europa (artigo 1.º - supra, 15), nas relações entre os Estados-membros da União Europeia, por um regime simplificado de entrega, e não havendo norma idêntica na Lei n.º 65/2003, deverá, por analogia e identidade de razão, aplicar-se esta disposição.

III. Decisão

29. Pelo exposto, acordam os juízes da 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o recurso interposto pelo requerido AA.

Sem custas, por não serem devidas.


Supremo Tribunal de Justiça, 22 de junho de 2022.


José Luís Lopes da Mota (relator)

Maria da Conceição Simão Gomes

Nuno António Gonçalves (com declaração de voto que segue, apenas quanto à tributação)



Declaração de voto:

*



Voto a decisão de improcedência do recurso, comungando da motivação em que doutamente se fundamenta.

Discordo da decisão unicamente no segmento em que isenta de custas o recorrente, arguido nos autos, com a seguinte declaração:

Improcedendo como improcedeu o recurso, condenava-o, nas custas, incluindo taxa de justiça, conforme decorre do art.º 513º n.º 1 do CPP, art.º 8º n.º 9 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais.

A decisão, neste segmento, que fez vencimento socorre-se de uma interpretação primeiramente extensiva e, seguidamente analógica.

Extensiva, na medida em que parece considerar que o artigo 73º n.º 1 da Lei n.º 144/99 de 31 de agosto se aplica a todos os procedimentos que a mesma regula.

Por analogia, porque considera idênticos ou equivalentes, o procedimento de execução do Mandado de Detenção Europeu e ao processo de extradição.

Com respeito por diferente entendimento, não é assim, nem por uma, nem pela outra via interpretativa.

Desde logo, a disposição do art.º 73º n.º 1 citado vale exclusivamente para o procedimento de extradição.

Na citada Lei estão regulados outros procedimentos, aos quais aquela isenção não só não se aplica, - como decorre, desde logo e muito claramente -, da sua inserção sistemática, como relativamente aos mesmos prevê expressamente tributação com custas.

De entre as normas em que tal se estabelece, sobressai, imediatamente, a que se reporta ao procedimento de transmissão de processos penais regulado no título III. No art.º 94º estatui-se, textualmente, que “as custas devidas no processo estrangeiro, anteriormente á aceitação do pedido de delegação em Portugal acrescem às devidas no processo português e são neste cobradas”.

Estabelece-se ainda que Portugal informa o Estado estrangeiro das custas devidas no processo, anteriormente à aceitação, por aquela, do pedido de delegação do procedimento.

Também nos restantes procedimentos aí regulados não consagrou a gratuitidade ou sequer isenção como a estabelecida no art.º 73º n.º 1 citado.

Acresce que o que é gratuito é o procedimento de extradição. Já não assim, o processo penal no qual se pede a extradição ativa.

E outro tanto vale, seguramente, para a tributação do processo penal no país estrangeiro, onde se pretende julgar o extraditando ou onde o mesmo já foi sentenciado e se pretende executar a sua condenação.

Ou seja, a decisão parece-nos, com todo o respeito, assentar em alguma confusão entre o processo de extradição e o processo de reconhecimento de sentença no âmbito da União Europeia, na medida em que não atenta em que da extradição, em si mesmo, não resulta o cumprimento de qualquer condenação. Ao invés do reconhecimento, visa obter unicamente a entrega ou entregar o extraditando para que no nosso país (extradição ativa) ou no país estrangeiro (extradição passiva) seja submetido a um procedimento criminal normal onde será ou não condenado em custas ou para executar a condenação decretada num processo penal onde foi (ou não) também já condenado em custas.

É essa, cremos, a razão da isenção do procedimento de extradição.

É essa a razão pela qual a mesma isenção não foi aplicada pelo legislador ao processo de transmissão de sentenças condenatórias penais, que, conforme vimos, expressamente se tributa, por imposição do citado art.º 94º.

Por outro lado, a Lei do Mandado de Detenção Europeu, não só não prevê qualquer isenção de custas ou gratuitidade do procedimento, como nem sequer tem como regime subsidiário a Lei da cooperação judiciária internacional em matéria penal.

Ao invés é taxativo ao estatuir que o regime supletivo do processo de execução do MDE é o do CPP – art. 34º da lei n.º 35/2003 de 23 de agosto.

E, como inicialmente se notou, no processo penal, o arguido paga custas nas situações tipificadas no art.º 513º do CPP.

Finalmente e decisivamente porque a interpretação que fez vencimento, concede tratamento diferenciado ao arguido ou coautor material do mesmo crime, simplesmente em função do país onde é julgado e condenado. Quando condenado em Portugal não está isento de custas, aplicando-se o disposto no art.º 513º n.º 1 do CPP. Quando condenado em outro Estado membro da União Europeia e a decisão seja reconhecida em Portugal, como é o caso dos autos, estaria isento de custas.

A decisão que fez vencimento concede, pois, um privilégio aos arguidos que, sendo julgados em Estado membro da União Europeia, queiram, depois, cumprir a condenação em Portugal, deste modo afrontando, intoleravelmente, o princípio da igualdade consagrado no art.º 13º n.º 1 da Constituição da República, sem que exista qualquer diversidade substancial que possa justificar essa diferenciação de tratamento.

Seguramente que nem os legisladores, constituinte, da lei do MDE e do CPP não quiseram, o primeiro consagrar e os segundos dar-lhe forma expressão normativa, a tão infundada diversidade de tratamento legal e judicial.

Assim e em conformidade com o exposto, sempre entendi e continuo a entender que o processo de reconhecimento de sentença condenatória proferida em Estado membro da União Europeia, tal como o procedimento de reconhecimento de condenação decretada em pais com o qual Portugal tem convenção, são tributáveis com custas, assim como na fase de recurso, sempre que o arguido recorrente decair totalmente.

Lx. 22.06.2022

O Presidente da 3ª secção criminal

Nuno Gonçalves

(assinado digitalmente)