Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
501/10. 2TVLSB.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: SEBASTIÃO PÓVOAS
Descritores: INSOLVÊNCIA
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
INTERESSE EM AGIR
Data do Acordão: 03/15/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :

1) A alínea e) do artigo 287.º do Código de Processo Civil prende-se com o princípio da estabilidade da instância que se inicia com a formulação de um pedido consistente numa pretensão material com solicitação da sua tutela judicial (pretensão processual) aquele de corrente de um facto jurídico causal (essencial ou instrumental) da qual procede (causa de pedir).
2) A lide torna-se impossível quando sobrevêm circunstâncias que inviabilizam o pedido, não em termos de procedência/mérito mas por razões conectadas com o mesmo já ter sido atingido por outro meio não podendo sê-lo na causa pendente.
3) Torna-se inútil se ocorre um facto, ou uma situação, posterior à sua instauração que implique a desnecessidade se sobre ela recair pronúncia judicial por falta de efeito.
4) A desnecessidade deve ser aferida em termos objectivos não se confundido com uma situação fronteira, então já um pressuposto processual, que é o interesse em agir.
5) Situações há em que, embora a parte insista na continuação da lide, o desenrolar da mesma aponta para uma decisão que será inócua, ou indiferente, em termos de não modificar a situação posta em juízo.
6) Cabe, então, ao julgador optar ou pela extinção da instância por inutilidade da lide (como se disse, a apreciar objectivamente) ou pela excepção dilatória inominada (conceito de relação entre a parte e o objecto do processo) que perfilando-se, em regra, “ab initio” pode vir a revelar-se no decurso da causa.
7) O interesse processual determina-se perante a necessidade de tutela judicial através dos meios pelos quais o autor unilateralmente optou.
8) A alínea c) do n.º 2 do artigo 449.º do Código de Processo Civil não contém uma hipótese de falta de interesse em agir mas de extinção da instância, com tributação a cargo do demandante, por indiciar uma litigância não necessária.
9) O Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas não contém para as acções declarativas uma norma homóloga à das execuções – artigo 88.º – que não é aplicável àquelas.
10) Às acções declarativas intentadas contra o insolvente, ou por este intentados (quer por via principal, quer por via cruzada) é aplicável o regime do artigo 81.º daquele diploma.
11) Cumprindo ao administrador gerir e zelar pela massa insolvente fica, nos termos do n.º 3 daquele preceito, habilitado para em seu nome prosseguir os ulteriores termos das lides declarativas em que o insolvente seja autor ou réu aí juntando procuração e prova da declaração de insolvência.
12) A apensação desses processos à insolvência não é oficiosa (automática) antes dependendo do requerimento motivado do administrador.
13) O princípio “par conditio creditorum” não é afastado pelo prosseguimento dessas acções na conjugação com a imposição de reclamação dos créditos no processo de insolvência para aí poderem obter satisfação, já que a sentença que venha a ser proferida apenas pode valer com o documento da respectiva reclamação.
14) O administrador habilitado nos termos do n.º 3 do artigo 85.º do CIRE não pode impor ao Autor de acção intentada contra o insolvente que venha reclamar o crédito nos termos do artigo 128.º por isso pedindo a extinção da instância por inutilidade da lide, já que o Autor é livre de o fazer ou renunciar à reclamação do mapa/lista (optando, ou não, pela insinuação tardia) e o administrador pode pedir a apensação da acção declarativa( e ponderar o crédito pedido em termos de o considerar, ou não, reconhecido) se o entender conveniente.
15) Além do mais, e atendendo ao artigo 184º do CIRE, a dispor que se, após a liquidação, existir um saldo a exceder o necessário para o pagamento integral das dívidas da massa, o mesmo deve ser entregue ao devedor, sempre o demandante (munido de um título executivo) pode obter o pagamento do seu crédito, tal como o poderá fazer se o devedor lograr obter bens após o encerramento do processo.

SP
Decisão Texto Integral:


Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça.


“AA – Instalações Técnicas Especiais, SA” intentou acção, com processo ordinário, contra “I... – Sociedade de Construção, SA”, pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de 66.430,90 euros.

A Ré contestou e deduziu o pedido reconvencional de condenação da Autora a pagar-lhe as quantias de 220262,48 euros acrescida de juros moratórios, à taxa legal, e a que se liquidasse em execução de sentença, a titulo de indemnização pelos danos sofridos, também com juros vincendos a igual taxa.

Foi oferecida réplica, com contestação do pedido reconvencional.

Na pendência da lide foi declarada a insolvência da Ré, sendo que a “Massa Insolvente” veio prestar essa informação aos autos, juntando cópia da publicação  no Diário da República da respectiva sentença e pedindo a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, por Autora dever reclamar o seu crédito no processo de insolvência.

A M.ª Juiz da 5.ª Vara Cível da Comarca de Lisboa proferiu o seguinte despacho:

“Dispõe o artigo 88.º n.º1 do CIRE que a declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores de insolvência que atinjam bens integrantes da massa insolvente e obsta à instauração ou prosseguimento de qualquer acção executiva intentada pelos credores da insolvência.

Ora, obter o pagamento da quantia peticionada, a Autora terá forçosamente que reclamar o seu crédito no processo de falência, de nada servindo a sentença eventualmente proferida nestes autos.

Com efeito, ainda que na presente causa venha a ser proferida sentença favorável à pretensão da Autora a mesma já não poderá obter da Ré o seu cumprimento voluntário ou coercivo.

Conforme se decidiu no Acórdão da Relação de Lisboa de 9 de Junho de 2011, ‘aberto o incidente de qualificação da insolvência com carácter pleno e fixado o prazo para reclamação de créditos deixa de ter utilidade o prosseguimento da acção declarativa tendente ao reconhecimento de crédito contra a instituição de crédito insolvente, já que o mesmo terá de ser objecto de reclamação no processo de liquidação judicial da instituição, a que são aplicáveis, com as necessárias adaptações, as disposições do CIRE, pelo que transitado em julgado o despacho que determinou o prosseguimento do processo de liquidação da instituição de crédito, a instância pertinente àquela acção declarativa deve ser declarada extinta, nos termos da alínea e) do artigo 287.º do Código de Processo Civil. (…).’

Termos em que se julga extinta por impossibilidade superveniente da lide.

Custas pela massa insolvente.”

A Autora vem recorrer “per saltum”, para este Supremo Tribunal, assim concluindo a sua alegação:

“A) Ao julgar extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide, a sentença recorrida errou na determinação da norma aplicável, pois, de acordo com o Código da Insolvência e da Recuperação das Empresas (CIRE), os autos deveriam ter continuado a sua tramitação não obstante a superveniência da declaração de insolvência da Recorrida.

B) O administrador da insolvência deve substituir a Recorrida nos presentes autos, nos termos do artigo 85.º, n.º 3, CIRE.

C) Não há, por natureza, impossibilidade ou inutilidade superveniente da presente lide, porquanto a par da substituição da Recorrida pelo administrador da insolvência (artigo 85.º, n.º 3, CIRE), nem sequer foi ainda proferida, nos processos de insolvência, sentença de verificação de créditos.

D) A sentença recorrida aplicou mal o artigo 287.º, alínea e), do Código de Processo Civil.”.

Não foram oferecidas contra alegações.

Para além dos factos acima referidos está provado que:

- A Ré foi declarada insolvente por sentença do 2.º Juízo do Tribunal do Comércio de Lisboa, de 15 de Julho de 2011, publicada no Diário da República, 2.ª Série, n.º 147, de 2 de Agosto de 2011 (Anúncio n.º 11122/2011);

- A acção deu entrada em 5 de Março de 2010;

- A administradora da insolvência mandatou Advogado que veio aos autos pedir a extinção da instância em 19 de Setembro de 2011;

- Não requereu a apensação da acção ao processo de insolvência.

Foram colhidos os vistos.

Conhecendo.

1. Inutilidade da lide; Interesse em agir.

2. Acção declarativa e insolvência.

3. Efeitos processuais da declaração de insolvência nas acções.

4. Conclusões.

1 Inutilidade da lide; Interesse em agir.

1.1 Tratando-se de recurso “per saltum”, tal implica que a recorrente não possa impugnar qualquer decisão interlocutória e se limite a suscitar apenas questões de direito, tal como resulta do disposto no artigo 725.º do Código de Processo Civil.

Ora, considerando a data da instauração da acção é-lhe aplicável o regime recursório introduzido pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto.

Outrossim, e quanto aos preceitos relativos à insolvência, com estreita conexão com a matéria dos autos aplica-se o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, com as alterações dos Decretos-Lei n.ºs 282/2007, de 7 de Agosto; 76-A/2006, de 29 de Março; 116/2008, de 4 de Julho; e 185/2009, de 12 de Agosto, adiante sempre designado por CIRE.

A questão principal que aqui se coloca consiste em saber se as acções pendentes contra o insolvente aquando da declaração de insolvência devem ver a instância extinta por inutilidade, ou impossibilidade da lide, e se tal ocorre “ope legis”.

1.2 Antes de entrar na “pulcra quaestio” entendem-se curiais algumas considerações sobre a dogmática do instituto consagrado na alínea e) do artigo 287.º do Código de Processo Civil.

Situamo-nos ao nível da estabilidade da instância que se inicia com a formulação de um pedido, estribado em factos causais (quer fundamentais – ou essenciais – quer instrumentais) tendo por objectivo a obtenção de uma tutela judicial.

A instância não pode manter-se indefinidamente extinguindo-se perante qualquer das situações elencadas no artigo 287.º do maior diploma adjectivo.

A alínea e) do preceito – e é a única que releva na economia desta deliberação – declara a extinção quando ocorre um caso de impossibilidade ou de inutilidade da lide.

A lide torna-se impossível quando sobrevêm circunstâncias que, de todo o modo, inviabilizariam o pedido, não em termos de procedência, pois então estar-se-ia no âmbito do mérito mas por razões conectadas com a não possibilidade adjectiva de lograr o objectivo pretendido com aquela acção, por já ter sido atingido por outro meio ou já não poder sê-lo (cfr., Prof. Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado” III, 367, 373; Prof. Lebre de Freitas, in “Código de Processo Civil Anotado”, 1.º, 1999, 510 e ss.).

A lide fica inútil se ocorreu um facto ou uma situação posterior à sua inauguração que implique a impertinência, ou seja a desnecessidade, de sobre ela recair pronúncia judicial, por ausência de efeito útil.

Desnecessidade que deve ser aferida em termos objectivos, sob pena de se confundir com uma situação fronteira, mas, então, já um pressuposto processual, que é o interesse em agir.

1.3  Este constitui uma excepção dilatória inominada, de conhecimento oficioso (artigos 494.º e 495.º do Código de Processo Civil), conducente à absolvição da instância.

Há situações em que embora a parte insista na continuação da lide, manifestando, assim, o seu interesse, em obter uma decisão, o desenrolar da mesma aponta para um desfecho que sempre será inócuo, ou indiferente, em termos de não modificar, a situação que existia antes de ser posta em juízo.

Então, cabe ao julgador optar ou pela extinção da instância por inutilidade da lide (facto a apreciar objectivamente por constatar a falta de efeito útil) ou pela excepção dilatória acima referida (conceito de relação entre a parte e o objecto do processo).

Como regra a excepção perfila-se “ab initio”, embora possa ser verificada posteriormente; já a inutilidade da lide acontece, tal como a terminologia legal o dispõe, por superveniência de uma situação não presente aquando do início da controvérsia.

1.3.1 O interesse processual tem duas facetas: o interesse em demandar e o interesse em contradizer.

Aquele é aferido pelas vantagens na obtenção de tutela judicial para o impetrante, sendo que o  de contradizer é a não concessão daquela tutela o que é avaliado pelas desvantagens impostas ao réu quando o interesse da contraparte é defendido.

E tal como acima se acenou – e é defendido pelo Prof. Miguel Teixeira de Sousa, in “O Interesse Processual na Acção Declarativa”, 1989, p. 6 – “a vantagem do autor e a desvantagem do réu são necessariamente apreciadas em relação à situação das partes no momento da propositura da acção; só conhecendo esta situação se pode saber se o autor vai obter algum beneficio com a atribuição da tutela requerida ou se o réu vai sofrer algum prejuízo com a concessão dessa tutela. O interesse processual não pode ser afirmado ou negado em abstracto: apenas comparando a situação em que a parte (activa ou passiva) se encontra antes da propositura da acção com aquela que existirá se a tutela for concedida, se pode saber se isso representa um benefício para o autor e uma desvantagem para o réu. Se a situação relativa entre as partes não se alterar com a concessão dessa tutela judiciária, então falta o interesse processual.”

Em suma, o interesse processual determina-se perante a necessidade de tutela judicial através do meio pelo qual o autor, unilateralmente, optou.

1.3.2 Certo, porém, que a questão não pode ser visto em termos tão apertados.

O legislador previu determinadas situações na “border line” da falta de interesse em agir, tratando-as em sede de tributação.

Assim acontece com o disposto na alínea c) do n.º 2 do artigo 449.º do Código de Processo Civil (“Quando o autor, munido de um titulo de manifesta força executiva, use sem necessidade o processo de declaração” suportará as custas “ex vi” do n.º 1 do preceito).

Porém, não se trata de um típico caso de falta de interesse em agir já que o autor pode pretender um título executivo com maior força (no sentido de maior dificuldade de oposição) como v.g., uma sentença condenatória) embora dispondo de um título mais “frágil” (como v.g., um documento com força executiva).

Então não poderá dizer-se que o demandante não tenha interesse em agir, numa ponderação subjectiva do que o leva a litigar, embora com sujeição a critérios cumulativos de apreciação objectiva da necessidade de tutela e de adequação do meio processual.

Será, pois, não um caso de ausência de pressuposto processual, por falta de interesse a não implicar a absolvição do réu da instância, mas apenas a respectiva extinção, com encargos pelo demandante, quando se apura que só quer enfatizar o seu direito. (Prof. Castro Mendes, in “Direito Processual Civil”, II, 234).

1.4 No caso em apreço a questão foi vista em sede de inutilidade superveniente da lide e assim tem sido tratada na doutrina e na jurisprudência, quando o demandado em acção declarativa é declarado insolvente.

Mas se este é, e é-o, simultaneamente demandante por Autor de pedido cruzado (reconvenção) poderá a apreciação ser feita nos mesmos termos?

Analisaremos, então, separadamente as duas situações.

2 Acção declarativa e insolvência.

 

2.1. Tratando-se de lide intentada contra a insolvente, antes da declaração de insolvência, não se encontra no CIRE qualquer disposição que apodicticamente disponha que as acções pendentes à data da declaração de insolvência em que seja demandado o devedor tenham de ver a instância extinta por impossibilidade, ou inutilidade, superveniente da lide.

O processo de insolvência tem a abrangência de uma “execução universal” destinada a liquidar o património de um devedor incumpridor para, depois, o dividir pelos credores, ou pagar a estes de acordo com um plano de insolvência, que “nomeadamente se baseie na recuperação” de uma empresa apreendida para a massa insolvente.

É esta a conceptualização do artigo 1.º do CIRE.

Logo que declarada a insolvência, o devedor relapso, fica inibido, por si ou pelos seus mandatários, de gerir ou dispor dos bens que integram o acervo insolvente, sendo que tais poderes passam a competir ao administrador da insolvência (n.º 1 do artigo 81.º do diploma acima citado), que deverá assegurar a gestão com rigor e parcimónia.

Outrossim, e em coerência, o n.º 1 do artigo 85.º do CIRE dispõe que, uma vez “declarada a insolvência, todas as acções em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, intentadas contra o devedor, ou mesmo contra terceiros, mas cujo resultado possa influenciar o valor da massa, e todas as acções de natureza exclusivamente patrimonial intentadas pelo devedor são apensados ao processo de insolvência, desde que a apensação seja requerida pelo administrador da insolvência, com fundamento na conveniência para os fins do processo.”.

O n.º 2 do mesmo preceito determina que a requisição oficiosa para apensação à insolvência de todos os processos “nas quais se tenha efectuado qualquer acto de apreensão ou detenção de bens compreendidos na massa insolvente”.

Finalmente, dispõe o n.º 3 que “o administrador da insolvência substitui o insolvente ‘em todas aquelas acções’ independentemente da apensação ao processo de insolvência e do acordo da parte contrária.”

Nos termos deste preceito há que proceder à seguinte explanação:

2.2. Trata-se uma norma que abrange, tão-somente, as acções declarativas, já que as execuções estão reguladas no artigo 88.º do mesmo diploma.

E quanto às acções declarativas deve proceder-se ao “distinguo” entre as reais e as obrigacionais e, de entre estas últimas, as que o insolvente intentou.

2.3. A montante, importa clarificar que a massa insolvente (conceito constante do artigo 46.º, n.º 1 do CIRE) consiste em todo o património do devedor à data da declaração da insolvência, tal como os bens e os direitos que venha a adquirir na pendência do processo, e que não sejam absolutamente impenhoráveis (cfr. o n.º 2 do preceito e Doutor Luís Carvalho Fernandes e Mestre João Labareda in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2009, 222).

De seguida distinguir entre acções relativas a bens integrados naquela massa, em que o insolvente é o Réu, cujo resultado possa influenciar o respectivo valor, e as lides de natureza puramente patrimonial em que o insolvente é Autor.

Em qualquer delas pode ter sido efectuado um acto de apreensão ou detenção de bens da massa.

No tocante a estas, o juiz, oficiosamente, requisitou-as para apensação ao Tribunal onde correm termos.

Quanto às primeiras são apensados ao processo de insolvência a requerimento do Administrador, fundamentando a conveniência dessa apensação.

Porém, se este nada requerer e, por isso, não ocorrer a apensação, ou as mesmas não forem apensadas, o Administrador substitui o insolvente em todas elas.

A apensação não é, pois, automática, “antes depende de requerimento do administrador da insolvência e da verificação de certos requisitos” (CIRE – Anotado, ob. cit. 355).

Finalmente, como também anotam os mesmos Ilustres Mestres (ob. cit. 355) e no tocante ao n.º 3 do mesmo artigo 85, “quer haja apensação, quer não, o administrador da insolvência substitui nelas (todas as acções contempladas nos n.ºs 1 e 2) o insolvente” (…) “tem naturalmente, quando não haja apensação, o administrador da insolvência de fazer prova da declaração de insolvência e da sua qualidade e de invocar no processo a sua substituição” (o Prof. Menezes Leitão refere que “o administrador da insolvência substitui automaticamente o insolvente nas referidas acções” – Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas – Anotado”, 4.ª ed., 128).

2.3. Tal como acima se referiu o regime exposto reporta-se, apenas, às acções declarativas.

Quanto às executivas vale o artigo 88.º do CIRE a determinar “a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes na massa insolvente e obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção executiva intentada pelos credores da insolvência; porém, se houver outros executados a execução prossegue contra eles.”

O preceito impede não só o seguimento de execuções pendentes como a instauração de novas execuções., não sendo aplicável à situação em apreço ao contrário do que fez a decisão recorrida.

3 Efeitos processuais da declaração de insolvência nas acções.

Os efeitos processuais da declaração da insolvência têm ínsita a regra “par conditio creditorum” que, aliás, inspira o artigo 1.º do CIRE ( cfr. a propósito da dogmática da insolvência, e para além dos Autores citados, o Prof. Lebre de Freitas in “Pressupostos Objectivos e Subjectivos da Insolvência”, Themis, 2005, 11-23; e Dr.ª Catarina Serra, in “As Novas Tendências do Direito Português da Insolvência sobre o Devedor no Projecto do Código da Insolvência”, MJ, 2004, p. 40, 41) que a Prof. Ana Prata define como o “principio segundo o qual todos os credores – que não gozem de nenhuma causa de preferência relativamente aos outros credores – se encontram em igualdade de situação, concorrendo paritariamente ao património do devedor, para obter a satisfação dos respectivos créditos” (apud “Dicionário Jurídico”, 2006, 4.ª ed., 848).

Busca-se, no processo de insolvência, a satisfação de todos os créditos, através das estritas formas de liquidação do património ou, no limite, da recuperação da empresa (cfr., Dr. Osório de Castro, in “Preambulo não publicado do Decreto-Lei que aprova o CIRE”, MJ, “Gabinete de Politica Legislativa e de Planeamento”, 2004, 200).

Mas, e como já se disse, o acima descrito regime das execuções (artigo 88.º CIRE) não pode em nome do princípio afirmado ser colocado em paralelo com o que o legislador dispôs para as lides declarativas.

Assim também entende, embora mais cautelosamente, o Dr. Artur Dionísio Oliveira (in “Os Efeitos Externos da Insolvência nas Acções Pendentes contra o Insolvente”, apud “Julgar”, n.º 9-9-Setembro-Dezembro de 2009, 173 e ss.) ao escrever:

“O CIRE não regula de forma sistematizada os efeitos da declaração de insolvência sobre as acções declarativas intentadas contra o insolvente, o que se compreende, porque estas acções não colocam em crise, pelo menos de forma imediata o princípio par conditio creditorum, ao contrário do que pode suceder com as acções executivas.”

Mas, de seguida, chama a atenção para o n.º 3 do artigo 128.º daquele Código a dispor que “ (…) mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele se quiser obter pagamento.”

Apela ainda para os artigos 149.º e seguintes e chama a atenção para que “o prosseguimento das acções individualmente intentadas contra o insolvente, pedindo o cumprimento de obrigações pecuniárias pode revelar-se inútil. Tal sucederá quando no processo de insolvência se procede à liquidação do património do insolvente e ao pagamento dos créditos verificados.”

É nesta linha que o Doutor Luís Carvalho Fernandes e o Mestre João Labareda (ob. cit. 448) defendem que “da articulação do n.º 1 com o n.º 3, primeira parte, com o artigo 128.º resulta que todos os credores da insolvência, qualquer que seja a natureza e fundamento do seu crédito devem reclamá-lo no processo de insolvência, para aí poderem obter satisfação.

Por integral adesão a este entendimento é que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Setembro de 2011 – 2435/09. 4TBMTS.P1.S1. julgou que “transitada em julgado a sentença que declara a insolvência da demandada, a acção que visa o reconhecimento de um direito de crédito sobre o insolvente, deve ser declarada extinta, por inutilidade superveniente da lide, de harmonia com o disposto no artigo 287.º, alínea e) do Código de Processo Civil.” (cfr., ainda, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Março de 2010 – 2532/05.5TTLSB.L1.S1 e de 229/04.TBFUN.L1.S1 e, na vigência da lei anterior, de 20 de Maio de 2003, 03 A1380),embora todos tenham feito apelo ao artigo 88º do CIRE.

Com o muito, e merecido respeito, não se adere a esta argumentação numa lide, quando o Administrador vem declarar a insolvência da Ré na acção, constitui mandatário, e junta documento a comprovar a sentença que declarou a insolvência, e não requeira a apensação dos autos ao processo de insolvência, alegando conveniência para os fins do processo.

Tratando-se de uma acção de natureza exclusivamente patrimonial em que se cruzam pedidos intentados contra o insolvente e intentadas pelo insolvente (reconvenção), a acção teria de prosseguir, valendo, assim, o n.º 3 do artigo 85.º do CIRE que não contende com a utilidade da lide ao admitir substituição/habilitação do insolvente pelo administrador da insolvência, e cuja procedência não afecta o princípio da paridade dos credores, que, como se insinuou, cumpre ser garantida pelo administrador e que este não viu que o fim do processo só fosse convenientemente garantido com a apensação.

3.2. Do exposto resultaria que não fora o pedido feito pelo administrador que a instância fosse extinta por inutilidade superveniente da lide, esta iria prosseguir nos termos do n.º 3 do artigo 85.º do CIRE.

 Mas ainda assim esse prosseguimento não contenderia com o n.º 3 do artigo 128.º daquele Código pois o facto de as reclamações dos créditos da insolvência terem de ser feitos no respectivo processo não as impede de serem instruídas com as sentenças proferidas em lides cuja instancia não se extinguiu, como “meros documentos probatórios” a que se refere o n.º 1 do último preceito citado.

O que importa é que por essa via não se privilegiem quaisquer credores, e aí estará o administrador, no seu prudente arbítrio a evitar que tal aconteça, designadamente contestando as acções em que represente a insolvência.

Ademais, a afirmação, no artigo 85.º do CIRE, da irrelevância do acordo da parte contrária convence da plena disponibilidade do administrador em aceitar a manutenção da lide (pedindo a respectiva apensação, ou não questionando a sua utilidade).

Mas, mesmo que o administrador não requeira a apensação, ou esta não seja deferida, nem assim a lide a prosseguir irá desequilibrar os interesses dos credores pois, ou o administrador reconhece o crédito e o inclui no mapa ou o impugna podendo o credor responder a essa impugnação (artigos 129º e 131ª CIRE).

Daí que o credor que detenha uma sentença condenatória não surja privilegiado na insolvência.

Pode até acontecer que não reclamando na fase a tal destinada, confiando na pendencia da acção declarativa, acabe por ver precludidos os seus direitos (artigos 129º e 146º,nº2,alinea a) CIRE) apenas podendo utilizar esse título executivo para obter o pagamento no momento e nos termos do artigo 184ºCIRE.

O pedir a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide é que não é curial pois o administrador da insolvência não pode “forçar” o autor a reclamar o seu crédito na insolvência quando teve oportunidade de pedir a apensação dos autos e tem a faculdade de se manter na lide em representação da massa.

Além do mais, e como acima se insinuou, atendendo ao disposto no artigo 184º do CIRE estabelecendo que, se após a liquidação, existir um saldo a exceder o necessário para o pagamento integral das dívidas da massa, o mesmo deve ser entregue ao devedor, sempre o demandante (munido de um título executivo) pode obter o pagamento do seu crédito, tal como o poderá fazer após o encerramento dos autos através de bens que o devedor venha a adquirir.

4. Conclusões.

É tempo de concluir para afirmar que:

         a) A alínea e) do artigo 287.º do Código de Processo Civil prende-se com o princípio da estabilidade da instância que se inicia com a formulação de um pedido consistente numa pretensão material com solicitação da sua tutela judicial (pretensão processual) aquele decorrente de um facto jurídico causal (essencial ou instrumental) da qual procede (causa de pedir).

b) A lide torna-se impossível quando sobrevêm circunstâncias que inviabilizam o pedido, não em termos de procedência/mérito mas por razões conectadas com o mesmo já ter sido atingido por outro meio já não podendo sê-lo na causa pendente.

c) Torna-se inútil se ocorre um facto, ou uma situação, posterior à sua instauração que implique a desnecessidade se sobre ela recair pronúncia judicial por falta de efeito.

d) A desnecessidade deve ser aferida em termos objectivos não se confundido com uma situação fronteira, então já um pressuposto processual, que é o interesse em agir.

e) Situações há em que embora a parte insista na continuação da lide, o desenrolar da mesma aponta para uma decisão que será inócua, ou indiferente, em termos de não modificar a situação posta em juízo.

f) Cabe, então, ao julgador optar ou pela extinção da instância por inutilidade da lide (como se disse, a apreciar objectivamente) ou pela excepção dilatória inominada (conceito de relação entre a parte e o objecto do processo) que perfilando-se, em regra, “ab initio” pode vir a revelar-se no decurso da causa.

g) O interesse processual determina-se perante a necessidade de tutela judicial através dos meios pelos quais o autor unilateralmente optou.

h) A alínea c) do n.º 2 do artigo 449.º do Código de Processo Civil não contém uma hipótese de falta de interesse em agir mas de extinção da instância, com tributação a cargo do demandante, por indiciar uma litigância não necessária.

i) O Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas não contém para as acções declarativas uma norma homóloga à das execuções – artigo 88.º – que não é aplicável àquelas.

j) Às acções declarativas intentadas contra o insolvente, ou por este intentadas (quer por via principal, quer por via cruzada) é aplicável o regime do artigo 81.º daquele diploma.

k) Cumprindo ao administrador gerir e zelar pela massa insolvente fica, nos termos do n.º 3 daquele preceito, habilitado para em seu nome prosseguir os ulteriores termos das lides declarativas em que o insolvente seja autor ou réu aí juntando procuração e prova da declaração de insolvência.

l) A apensação desses processos à insolvência não é oficiosa (automática) antes dependendo do requerimento motivado do administrador.

m) O princípio “par conditio creditorum” não é afastado pelo prosseguimento dessas acções na conjugação com a imposição de reclamação dos créditos no processo de insolvência para aí poderem obter satisfação, já que a sentença que venha a ser proferida apenas pode valer com o documento da respectiva reclamação.

n) O administrador habilitado nos termos do n.º 3 do artigo 85.º do CIRE não pode impor ao Autor de acção intentada contra o insolvente que venha reclamar o crédito nos termos do artigo 128.º por isso pedindo a extinção da instância por inutilidade da lide, já que o Autor é livre de o fazer ou renunciar à reclamação do mapa/lista (optando, ou não, pela insinuação tardia) e o administrador pode pedir a apensação da acção declarativa ( e ponderar o crédito pedido em termos de o considerar, ou não, reconhecido) se o entender conveniente.

o) Além do mais, e atendendo ao artigo 184º do CIRE, a dispor que se, após a liquidação, existir um saldo a exceder o necessário para o pagamento integral das dívidas da massa, o mesmo deve ser entregue ao devedor, sempre o demandante (munido de um título executivo) pode obter o pagamento do seu crédito, tal como o poderá fazer se o devedor lograr obter bens após o encerramento do processo.

Nos termos expostos, acordam conceder revista e, revogando o despacho recorrido, determinar o prosseguimento da acção.

Custas pela massa insolvente.

Supremo Tribunal de Justiça, 15 de Março de 2012

Sebastião Póvoas (Relator)

Moreira Alves

Alves Velho