Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
122702/13.5YIPRT.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: DIREITO AO RECURSO
RECURSO DE REVISTA
VALOR DA ALÇADA
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 05/19/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / ADMISSIBILIDADE DO RECURSO.
Doutrina:
- Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8.ª ed., 72 a 76.
- Lebre de Freitas e Cristina Máximo dos Santos, O Processo Civil na Constituição, 167 e ss..
- Lopes do Rego, Comentários ao CPC, 453; e em “O direito fundamental do acesso aos tribunais e a reforma do processo civil”, em Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, 763 e ss..
- Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, 99 a 101.
- Teixeira de Sousa, em comentário ao Ac. do STJ, de 2-6-15, que pode ser consultado em blogippc.blogspot.pt, datado de 24-6-15 (reforçado no comentário ao Ac. do STJ, de 16-6-15, datado de 15-7-15); Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2.ª ed., 377, 378.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 629.º, N.ºS 1 E 2, 671.º, N.ºS 2 E 4.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 11-11-2014, E DE 2-6-2015, AMBOS EM WWW.DGSI.PT .
-DE 24-9-2015, E DE 22-4-2015 EM WWW.DGSI.PT .
-DE 26-3-2015, EM WWW.DGSI.PT .

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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

-DE 6-4-1999, BMJ 486º/44; DE 11-2-98, BMJ 474º/85.
Sumário :
1. Com excepção dos casos previstos no art. 629º, nº 2, do CPC (ressalvado pelo art. 671º, nº 2, al. a)), a interposição de recurso de revista pressupõe que o valor da acção seja superior à alçada da Relação e que o valor da sucumbência seja superior a metade dessa alçada.

2. O direito ao recurso e designadamente o de interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça pode ser limitado pelo legislador ordinário.

3. A norma do art. 629º, nº 1, do CPC, que limita o direito ao recurso em função do valor do processo e do valor da sucumbência não sofre de inconstitucionalidade material.

Decisão Texto Integral:
1. Numa acção declarativa de condenação no pagamento da quantia de € 18.450,00, o R. foi condenado no pagamento dessa quantia e juros de mora desde a citação.

Interposto pelo R. recurso de apelação, a Relação declarou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.

A A. veio interpor recurso de revista de tal acórdão, invocando para o efeito a existência de uma contradição jurisprudencial com outro acórdão deste Supremo.

A R. arguiu a inadmissibilidade do recurso, uma vez que o valor da causa se inscreve na alçada da Relação.

Por despacho do ora relator o recurso de revista foi rejeitado com esse fundamento.

A A. vem reclamar para a conferência, alegando que o recurso de revista foi interposto ao abrigo do art. 671º, nº 4, do CPC, e que o facto de o valor da causa se inserir na alçada da Relação não interfere na sua admissibilidade, sendo inconstitucional uma interpretação do regime jurídico que vede o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça.

Cumpre decidir.


2. Atento o valor que foi peticionado e que, aliás, foi acolhido na sentença da 1ª instância, o valor processual enquadra-se nos limites da alçada da Relação que está fixada em € 30.000,00.

Por esse motivo, não sendo aplicável ao caso o disposto no nº 2 do art. 671º, em conjugação com o nº 2 do art. 629º do CPC, não é admissível recurso de revista, o qual depende do preenchimento dos requisitos objectivos previstos no art. 629º, nº 1:

a) Valor do processo superior à alçada da Relação e

b) Valor da sucumbência superior a metade dessa alçada.

À pretensão impugnatória do recorrente não serve de conforto nem o que dispõe o art. 671º, nº 4, do CPC (que não prescinde daquele valor), nem a alegada contradição jurisprudencial (art. 629º, nº 2, al. d), do CPC). Menos ainda o pretenso interesse jurídico da questão que independentemente da sua verificação, é manifestamente insuficiente para superar o obstáculo formal colocado pelo nº 1 do art. 629º.


3. É por demais evidente que a admissibilidade da revista prevista no nº 4 do art. 671º do CPC não prescinde da verificação daqueles requisitos de ordem objectiva. Mais duvidosa poderia ser a invocação da norma excepcional do art. 629º, nº 2, al. d), relativamente aos casos em que seja invocada uma contradição jurisprudencial, mas também aí persiste a mesma exigência.

A admissibilidade de recurso de revista, em face de contradição jurisprudencial entre o acórdão da Relação e outro acórdão da Relação (ou do Supremo), está prevista apenas para os casos em que o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça é vedado por razões diversas da alçada da Relação.

A solução agora contida naquele normativo já esteve prevista no art. 678º, nº 4, do anterior CPC, tendo sido inexplicavelmente afastada na revisão do regime dos recursos de 2007.[1]

Com a sua reintrodução na reforma de 2013, reabriu-se a possibilidade de acesso ao 3º grau de jurisdição em casos em que tal estaria vedado por razões estranhas à alçada da Relação, ou seja, em que o impedimento ao recurso não reside no facto de o valor da acção ou o da sucumbência ser inferior aos limites mínimos resultantes do nº 1 do art. 629º, mas noutro motivo de ordem legal.

Desta forma, ampliaram-se as possibilidades de serem dirimidas pelo Supremo Tribunal de Justiça contradições jurisprudenciais que, de outro modo, poderiam persistir, pelo facto de, em regra, surgirem em acções em que, apesar de apresentarem valor processual superior à alçada da Relação, não se admite recurso de revista nos termos gerais, como ocorre nos procedimentos cautelares (art. 370º, nº 2)[2] ou, como regra, nos processos de jurisdição voluntária (art. 988º, nº 2).[3]

Mas ao invés do que faria supor a integração da alínea no proémio do nº 2, a admissibilidade do recurso, por esta via especial, não prescinde da verificação dos pressupostos gerais da recorribilidade em função do valor da causa ou da sucumbência, pois só assim se compreende o segmento normativo referente ao “motivo estranho à alçada do tribunal”.[4]


4. Invoca o recorrente a inconstitucionalidade do regime jurídico assim interpretado, na medida em que veda o acesso ao 3º grau de jurisdição.

Tal não merece acolhimento.

Atenta a natural escassez dos meios disponibilizados para administrar a Justiça, a necessidade da sua racionalização contende com a admissibilidade ilimitada de recursos que, aliás, não encontra sustentação no texto constitucional.

Por isso a jurisprudência constitucional vem expressando o entendimento de que, em matéria cível, o direito de acesso aos tribunais não integra forçosamente o direito ao recurso ou o chamado duplo grau de jurisdição.[5] Também tem sido assumido que tal direito não é necessariamente decorrente do que se dispõe na Declaração Universal dos Direitos do Homem ou na Convenção Europeia dos Direitos do Homem.[6]

Em suma, o direito ao recurso, como na generalidade dos ordenamentos jurídicos contemporâneos, não se apresenta com natureza absoluta, convivendo sempre com preceitos que fazem depender a multiplicidade de graus de jurisdição de determinadas condições objectivas ou subjectivas.[7]

Seguramente que a previsão da existência de três graus de jurisdição no ordenamento jurídico-constitucional implica que a lei ordinária admita a possibilidade de serem interpostos recursos para a Relação ou desta para o Supremo Tribunal de Justiça. Nessa medida, seria inconstitucional a exclusão arbitrária do direito de recorrer em determinados processos ou a elevação do valor das alçadas a tal ponto que vedasse a interposição de recursos relativamente a acções de valor significativo, contrariando o princípio da proporcionalidade.

Sendo permitido afirmar que está vedado ao legislador suprimir em bloco a recorribilidade ou fazê-la depender de circunstâncias que traduzam a violação do princípio da proporcionalidade,[8] tal não determina, porém, que toda e qualquer restrição a um ou mais graus de jurisdição traduza violação de regras ou de princípios constitucionais.

Como refere Lopes do Rego, as “limitações derivam, em última análise, da própria natureza das coisas, da necessidade imposta por razões de serviço e pela própria estrutura da organização judiciária de não sobrecarregar os Tribunais Superiores com a eventual reapreciação de todas as decisões proferidas pelos restantes tribunais”.[9]

Embora a este respeito não se identifique um critério formal delimitador dos poderes do legislador ordinário, pode concluir-se, com Ribeiro Mendes, que, dentro dos princípios enunciados, o legislador “poderá ampliar ou restringir os recursos civis, quer através da alteração dos pressupostos de admissibilidade, quer através da mera actualização dos valores das alçadas”.[10]

O critério adoptado pelo legislador ordinário assenta essencialmente no valor do processo e da sucumbência, conexo com o valor da alçada da 1ª instância ou da Relação, consoante o recurso seja interposto para a Relação ou para o Supremo Tribunal de Justiça.

É, pois, o valor da alçada o factor que é determinante para a recorribilidade, sendo relativamente a esse referencial que se poderá aferir se a norma que o fixa está ou não está afectada pela violação do princípio da proporcionalidade.


5. No caso concreto, nenhuma circunstância valida a invocada inconstitucionalidade.

No que respeita ao acesso ao STJ, os recursos de revista ficam limitados, em regra, às decisões proferidas em processos cujo valor exceda a alçada da Relação: € 30.000,00.

Trata-se de um valor que parece a todos os títulos equilibrado e que não está eivado de arbitrariedade, constituindo uma regra instrumental que o legislador ordinário adoptou dentro das medidas de gestão dos meios humanos e materiais que visam assegurar não apenas o direito de acção e do direito de recurso, como ainda o interesse na formação de caso julgado dentro de prazos razoáveis e a necessidade de racionalizar o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça.

Ora, considerando que valor da acção é inferior ao da alçada da Relação e que não se verifica nenhuma circunstância excepcional que determine a admissão do recurso de revista, atento o disposto no art. 629º, nº 2, do CPC, não existe motivo algum para acolher a pretensão recursória da reclamante.

6. Face ao exposto, acorda-se em confirmar a decisão do ora relator que rejeitou o recurso de revista.

Custas a cargo da reclamante, com taxa de justiça de 2 UC.

Notifique.

Lisboa, 19-5-16


Abrantes Geraldes (Relator)

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo

_______________
[1] A norma que se encontrava em vigor nessa data prescrevia que “é sempre admissível recurso do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, sobre a mesma questão fundamental de direito e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se a orientação nele perfilhada estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça”.
[2] Cfr. o Ac. do STJ, de 11-11-14, relatado pelo ora relator, e o Ac. do STJ, de 2-6-15, ambos em www.dgsi.pt.
[3] Cfr. sobre o regime da revista nos processos de jurisdição voluntária os Acs. do STJ, de 24-9-15, e de 22-4-15 (www.dgsi.pt), fazendo a distinção entre as resoluções assentes em juízos de conveniência e outras decisões afectadas por erro de aplicação ou de interpretação da lei substantiva ou adjectiva.
[4] Assim era também em face do art. 678º, nº 4, na versão anterior à Reforma de 2007. Por isso, o preceito apenas é aplicável quando, malgrado o valor da acção exceder a alçada da Relação, se verifique uma exclusão do recurso por outro motivo de ordem legal. Cfr. neste mesmo sentido, o Ac. do STJ, de 26-3-15, em www.dgsi.pt, entendimento também acolhido por Teixeira de Sousa, em comentário ao Ac. do STJ, de 2-6-15, que pode ser consultado em blogippc.blogspot.pt, datado de 24-6-15 (reforçado no comentário ao Ac. do STJ, de 16-6-15, datado de 15-7-15), onde refere, além do mais, que “o regime instituído no art. 629º, nº 2, al. d), do CPC, não se basta com uma mera contradição entre acórdãos das Relações, pelo que o preceito só é aplicável nos casos em que, apesar de a revista ser admissível nos termos gerais, se verifica uma irrecorribilidade estabelecida na lei”, concluindo que “este preceito estabelece uma recorribilidade para acórdãos que são recorríveis nos termos gerais e irrecorríveis por exclusão legal”.
[5] Cfr. Lopes do Rego, Comentários ao CPC, pág. 453, e “O direito fundamental do acesso aos tribunais e a reforma do processo civil”, em Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, págs. 763 e segs., citando jurisprudência do Tribunal Constitucional, segundo a qual o que existe é um “genérico direito ao recurso de actos jurisdicionais, cujo conteúdo pode ser traçado pelo legislador ordinário, com maior ou menor amplitude”, ainda que seja vedada “a redução intolerável ou arbitrária” desse direito. Cfr. ainda diversa jurisprudência citada por Lebre de Freitas e Cristina Máximo dos Santos em O Processo Civil na Constituição, págs. 167 e segs.
Sobre o princípio do duplo grau de jurisdição e sua conexão com a CRP cfr. ainda Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª ed., págs. 72 a 76.
[6] Cfr. Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, págs. 99 e 100.
[7] Cfr. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª ed., pág. 75.
[8] Cfr. Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, pág. 101, Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., pág. 377, e Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª ed., pág. 75.
[9] Em “O direito fundamental do acesso aos tribunais e a reforma do processo civil”, inserido em Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, pág. 764.
[10] Recursos em Processo Civil, pág. 101. Cfr. ainda Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., pág. 378, ou o Ac. do Trib. Const., de 6-4-99, BMJ 486º/44. Noutro acórdão, de 11-2-98, BMJ 474º/85, refere-se que os limites do direito de recorrer decorrentes da articulação entre o valor da causa e as alçadas não consubstanciam restrições a um direito fundamental – o direito ao recurso – incompatível com a Constituição, já que desta não resulta a existência de um direito irrestrito a impugnar todas as decisões judiciais, não podendo inferir-se dos princípios constitucionais a existência de um triplo grau de jurisdição.