Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3165/15.3T8LRS.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
ARRENDAMENTO PARA COMÉRCIO OU INDÚSTRIA
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
RESOLUÇÃO
ACÇÃO DE DESPEJO
AÇÃO DE DESPEJO
Data do Acordão: 11/15/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL / LOCAÇÃO / ARRENDAMENTO DE PRÉDIOS URBANOS / DIREITOS E OBRIGAÇÕES DAS PARTES / OBRIGAÇÕES NÃO PECUNIÁRIAS / CESSAÇÃO / RESOLUÇÃO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO EM GERAL / CUSTAS, MULTAS E INDEMNIZAÇÃO – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / APELAÇÃO / JULGAMENTO DO RECURSO.
Doutrina:
-ANTUNES VARELA, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 116.º, 1983, 192;
-J. ARAGÃO SEIA, Arrendamento Urbano, 6.ª Edição, 2002, 430;
-M. OLINDA GARCIA, A Nova Disciplina do Arrendamento Urbano, 2.ª Eição, 2006, 19.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1072.º, N.ºS 1 E 2 E 1083.º, N.º 2, ALÍNEA D).
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 527.º, N.ºS 1 E 2 E 662.º, N.º 1.
REGIME DE ARRENDAMENTO URBANO, APROVADO PELO D.L. N.º 321/90, DE 15 DE OUTUBRO: - ARTIGO 64.º, N.º 1, ALÍNEA H).
Sumário :
I. O uso efetivo do locado pelo arrendatário destina-se a proteger o interesse do senhorio, de modo a evitar a desvalorização do locado, associada ao seu não uso, e o aproveitamento económico dos recursos materiais existentes.

II. Atendendo às circunstâncias do local arrendado ser um armazém, do fim comercial do arrendamento, da redução da atividade da arrendatária, prevista como temporária, e do locado servir ainda de parqueamento de três camiões e empilhadores e guarda de mercadoria de terceiros, a locatária não incorre em incumprimento do contrato por não uso do locado.

III. A redução da atividade no armazém, ainda que possa ser significativa, não se equipara ao não uso, quando a arrendatária, além do mais, continua ali a desenvolver a atividade de transitário e intermediário em transportes de mercadorias.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I – RELATÓRIO


AA - Transportes de Carga, SA., instaurou, em 5 de março de 2015, no Juízo Cível Local de …, Comarca de Lisboa Norte, contra BB - Lda., ação declarativa, sob a forma de processo comum, pedindo que fosse declarado resolvido o contrato de arrendamento comercial, tendo por objeto o armazém integrado em prédio urbano, sito na Quinta …, freguesia de …, concelho de Loures, e a Ré condenada a entregar-lhe, livre de pessoas e bens, o armazém e a pagar-lhe a renda relativa a mês de dezembro de 2014 e as rendas vincendas e, ainda, na correspondente indemnização até à entrega do armazém.

Para tanto, alegou, em síntese, que, tendo celebrado com a R., em 1 de janeiro de 2004, um contrato de arrendamento comercial do armazém, com a área de 600 m2, a R. não se encontra a exercer, nele, há mais de um ano, qualquer atividade, subarrendou-o a outras empresas e não pagou também a renda referida, no valor de € 1 230,00.

Contestou a R., por exceção, alegando o pagamento da renda referida, e por impugnação, e concluiu pela improcedência da ação.

Prosseguindo o processo e realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida, em 27 de junho de 2016, a sentença, que, julgando a ação procedente, declarou resolvido o contrato de arrendamento e condenou ainda a R. no despejo imediato do armazém, com a entrega livre de pessoas e bens, no pagamento à A. da quantia de € 1 230,00, no pagamento da renda até ao trânsito da sentença, e no pagamento da indemnização mensal equivalente à renda, desde o trânsito da sentença até ao efetivo despejo.

Inconformada, a Ré apelou para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão de 7 de março de 2017, revogou a sentença e absolveu a Ré do pedido.


Inconformada, a Autora recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo formulado essencialmente as seguintes conclusões:


a) A prova da efetiva desvalorização do local arrendado não consta da lei como requisito fundamental para a resolução do contrato, por não uso do mesmo.

b) O fundamento primordial será sempre o não uso do locado por mais de um ano, tratando-se a desvalorização de mera consequência decorrente desse não uso.

c) Os casos elencados no n.º 2 do art. 1083.º constituem, por si só, causas de resolução.

d) O acórdão recorrido contraria a imposição legal do art. 1072.º, n.º 1.

e) O escopo do art. 1083.º, n.º 2, alínea d), é evitar a desvalorização do local arrendado.

f) Não poderá dizer-se que um exercício diminuto, esporádico e residual de uma qualquer atividade justifica a manutenção do contrato de arrendamento.

g) Sendo tal ideia contrária a todos os princípios de ordem económico-social.

h) Mais que a deterioração do imóvel, importa proteger o interesse do senhorio em manter o valor comercial do local.

i) Estando o uso do locado reduzido, há mais de um ano, a meras utilizações esporádicas, ocorre uma redução de atividade que se equipara ao não uso do mesmo, sendo causa de resolução.

j) O acórdão recorrido fez errada interpretação e aplicação dos artigos 1083.º, n.º 2, alínea d), e 1072.º, ambos do Código Civil.


A Recorrente pretende, com a revista, a revogação do acórdão recorrido, com todas as consequências.


A A. contra-alegou, no sentido da manutenção do acórdão proferido.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


Neste recurso, está essencialmente em discussão a resolução do contrato de arrendamento comercial, por falta do uso do locado por mais de um ano.


II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1. No acórdão recorrido, foram dados como provados os seguintes factos:


1. Em 1 de janeiro de 2004, a A. acordou com a R. um arrendamento comercial, pelo prazo de seis meses, com início naquela data, relativo a um armazém com 600 m2, que faz parte do prédio urbano, sito na Quinta …, freguesia de …, concelho de Loures.

2. A renda mensal para o mencionado arrendamento é, atualmente, de € 1 230,00, a pagar nos primeiros oito dias úteis do mês a que respeita, na sede da A. ou na de quem a legalmente representar.

3. Mais acordaram que “o arrendamento destinar-se-á à exploração e gestão de um centro de cargas de importação e exportação, integrando os serviços de manuseamento e consolidação de cargas contentorizadas e camiões, bem como outros serviços compreendidos no objeto social do arrendatário.”

4. Desde há mais de um ano que a única atividade exercida pela R. é a de transitário ou intermediário em transportes de mercadorias.

5. Desde então, não tem quaisquer funcionários ao seu serviço.

6. Os três veículos pesados de que é proprietária não circulam há mais de um ano, mantendo-se parqueados no locado, atento o propósito da R. de voltarem a circular, quando a conjuntura económica permitir (alterado pela Relação).

7. Para além dos veículos, existem também, no locado, empilhadores e, esporadicamente, a R. guarda mercadoria não perecível de terceiros, designadamente cargas em paletes, cargas em caixas e bagagens (alterado pela Relação).

8. O locado não beneficia do fornecimento de energia elétrica.

9. Por carta de 8 de agosto de 2014, recebida, a R. informou a A. de que os recibos referentes ao pagamento das rendas passariam a ser emitidos à ordem de BB, Lda.



***



2.2. Delimitada a matéria de facto, com a alteração decidida pela Relação, importa conhecer do objeto do recurso, definido pelas suas conclusões, nomeadamente sobre a resolução do contrato de arrendamento comercial, por falta de uso do locado por mais de um ano.

A Recorrente, impugnando o acórdão recorrido, alega essencialmente que, estando o uso do locado reduzido, há mais de um ano, a utilizações esporádicas, ocorre uma redução da atividade, equiparada ao não uso, e constitui causa de resolução do contrato de arrendamento, nomeadamente nos termos do disposto no art. 1083.º, n.º 2, alínea d), do Código Civil (CC).

No acórdão recorrido, no qual a Recorrida se ampara, por sua vez, entendeu-se que, tendo presente a finalidade do arrendamento e uma vez que a arrendatária mantinha a sua atividade, as utilizações esporádicas de depósito de cargas e a não utilização dos camiões próprios no transporte, não permitiam caracterizar o conceito de não uso do locado, que justificasse a resolução do contrato de arrendamento, divergindo, desse modo, da sentença, que havia declarado a resolução do contrato, baseada no não uso do locado há mais de um ano.

Delineada, sumariamente, a controvérsia emergente dos autos, interessa agora definir o direito aplicável, considerando nomeadamente a matéria de facto assente, em definitivo, no acórdão da Relação, por efeito do disposto no art. 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC).

 

Nos termos do art. 1083.º, n.º 2, alínea d), do Código Civil, o contrato de arrendamento pode ser resolvido pelo senhorio quando se verifique o não uso do locado por mais de um ano.

Face aos termos da lei, esta norma corresponde a um caso especificado de incumprimento do contrato de arrendamento que, pelas suas consequências, torna inexigível ao senhorio a manutenção do contrato de arrendamento, abrindo espaço à sua resolução.

Esta norma segue, de perto, a que se encontrava anteriormente prevista no art. 64.º, n.º 1, alínea h), do Regime de Arrendamento Urbano, aprovado pelo DL n.º 321/90, de 15 de outubro.

A resolução do contrato de arrendamento, pelo motivo referido, está relacionada com a violação do dever pelo arrendatário, nomeadamente do uso efetivo da coisa, sem deixar de a utilizar por mais de um ano (art. 1072.º, n.º 1, do CC). Para certos autores, porém, trata-se antes de um ónus jurídico do arrendatário (J. ARAGÃO SEIA, Arrendamento Urbano, 6.ª edição, 2002, pág. 430, e M. OLINDA GARCIA, A Nova Disciplina do Arrendamento Urbano, 2.ª edição, 2006, pág. 19). Todavia, independentemente do conceito, a consequência em caso de incumprimento é sempre a mesma.

O não uso pelo arrendatário, porém, poderá ser lícito em certas situações, nomeadamente em casos de força maior ou de doença, ausência para cumprimento de deveres militares ou profissionais e utilização mantida por quem, tendo direito a usar o locado, o fizer há mais de um ano (art. 1072.º, n.º 2, do CC).

O uso efetivo do locado pelo arrendatário destina-se, desde logo, a proteger o interesse do senhorio, de modo a evitar a desvalorização do locado associada ao seu não uso. Por outro lado, por efeito da dimensão social conferida à propriedade, pretende-se também o seu aproveitamento económico, numa perspetiva de otimização dos recursos materiais existentes (ANTUNES VARELA, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 116.º, 1983, pág. 192).

Para se ajuizar do não uso do locado há que atender às circunstâncias do caso concreto, designadamente a natureza do local arrendado, o fim do arrendamento, o grau de redução da atividade, as suas causas e o seu caráter temporário ou definitivo.


Feito o enquadramento normativo, vejamos, então, considerando os factos provados, se há justificação legal para a resolução do contrato de arrendamento comercial, que tem por objeto um armazém, com 600 m2, integrado em prédio urbano sito em Camarate, no concelho de Loures.

O arrendamento, com início em 1 de janeiro de 2004, foi destinado à “exploração e gestão de um centro de cargas de importação e exportação, integrando os serviços de manuseamento e consolidação de cargas contentorizadas e camiões, bem como outros serviços compreendidos no objeto social do arrendatário”, mediante o pagamento da renda mensal de € 1 230,00.

Desde há mais de um ano, porém, a única atividade desenvolvida pela Recorrida, no locado, é a de transitário ou intermediário em transporte de mercadorias, não tendo quaisquer funcionários ao seu serviço.

Trata-se, com efeito, de uma redução substancial da atividade comercial, porquanto a Recorrida deixou de fazer a exploração e gestão de um centro de cargas e importação e exportação.

No entanto, a redução da atividade comercial, para além de poder não ser definitiva, não permite qualificá-la como equivalente a uma situação de não uso do locado. A Recorrida, desenvolvendo, no locado, a atividade de transitário ou intermediário em transporte de mercadorias, continua a fazer uso do locado, conforme a finalidade do contrato, sendo certo ainda que, da materialidade apurada, não resulta que tal atividade seja esporádica. Será uma atividade menos intensa do que era antes, mas não deixa de corresponder a uma atividade permanente.

Por outro lado, a Recorrida guarda no armazém locado três camiões, de que é proprietária, com a expetativa de melhoria da conjuntura económica, para os voltar a pôr a circular, como também empilhadores e, esporadicamente, mercadoria não perecível de terceiros, designadamente cargas em paletes, cargas em caixa e bagagens.

Esta circunstância, para além de demonstrar o uso do local arrendado, para parqueamento de equipamentos e depósito de mercadorias, revela também que a diminuição da atividade comercial pode vir a ser meramente conjuntural. Na verdade, mantendo-se a intenção da Recorrida em pôr a circular os três camiões de que é proprietária, tal significa que projeta a retoma da atividade anteriormente desenvolvida, logo que a conjuntura económica seja favorável. Se assim não fosse, certamente, já teria alienado os equipamentos conservados no armazém arrendado.

Além disso, tendo em conta a natureza do locado, um armazém, e a utilização atual que lhe é dada, designadamente de guarda de equipamentos e mercadorias, não se antevê que, com este uso, possa diminuir o seu valor comercial. Apesar do uso menos intenso, resultante da diminuição da atividade comercial da arrendatária, o locado não deixa de manter o seu valor comercial, não prejudicando o interesse económico do senhorio. Sendo o local um armazém, a sua maior ou menor utilização não afeta, com relevância, o seu valor comercial.

Assim, atendendo às referidas circunstâncias, nomeadamente o local arrendado ser um armazém, o fim comercial do arrendamento, a redução da atividade da arrendatária, prevista como temporária, e o locado servir ainda de parqueamento de três camiões e empilhadores e guarda de mercadoria de terceiros, conclui-se que a situação não corresponde ao não uso do locado pelo arrendatário.

Por outro lado, a redução da atividade no armazém, ainda que possa ser significativa, não é de molde a equipará-la ao não uso, porquanto a arrendatária continua ali a desenvolver a atividade de transitário e intermediário em transportes de mercadorias, as quais, esporadicamente, guarda no armazém, assim como guarda ainda três camiões e empilhadores.

Neste contexto, não tendo a locatária deixado de usar o locado, ainda que de uma forma menos intensa, não incorreu em incumprimento do contrato, por violação da norma consagrada no n.º 1 do art. 1072.º do CC.

Por isso, carece de fundamento a resolução do contrato de arrendamento, invocada pela Recorrente ao abrigo do disposto na alínea d) do n.º 2 do art. 1083.º do CC.


Nestes termos, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.


2.3. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:


I. O uso efetivo do locado pelo arrendatário destina-se a proteger o interesse do senhorio, de modo a evitar a desvalorização do locado, associada ao seu não uso, e o aproveitamento económico dos recursos materiais existentes.

II. Atendendo às circunstâncias do local arrendado ser um armazém, do fim comercial do arrendamento, da redução da atividade da arrendatária, prevista como temporária, e do locado servir ainda de parqueamento de três camiões e empilhadores e guarda de mercadoria de terceiros, a locatária não incorre em incumprimento do contrato por não uso do locado.

III. A redução da atividade no armazém, ainda que possa ser significativa, não se equipara ao não uso, quando a arrendatária, além do mais, continua ali a desenvolver a atividade de transitário e intermediário em transportes de mercadorias.


2.4. A Recorrente, ao ficar vencida por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, por efeito do princípio da causalidade – art. 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC.


III – DECISÃO


Pelo exposto, decide-se:


1)  Negar a revista.


2)  Condenar a Recorrente (Autora) no pagamento das custas.


Lisboa, 15 de novembro de 2017


Olindo Geraldes (Relator)

Maria do Rosário Morgado

Sousa Lameira