Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
552/13.5TTVIS.C1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: PINTO HESPANHOL
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
REJEIÇÃO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 06/06/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA EM PARTE
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / VÍCIOS E REFORMA DA SENTENÇA / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 615.º, N.º1, 640.º, N.º 1 E 655.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 07-07-2016, PROCESSO N.º 220/13.8TTBCL.G1.S1;
- DE 27-10-2016, PROCESSO N.º 3176/11.8TBBCL.G1.S1;
- DE 22-02-2017, PROCESSO N.º 5384/15.3T8GMR.G1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 18-05-2017, PROCESSO N.º 2537/15.8T8VNG.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 16-05-2018, PROCESSO N.º 2833/16.7T8VFX.L1.S1.
Sumário :
I.  A rejeição da impugnação da decisão sobre a matéria de facto prevista no n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil não está dependente da observância prévia do princípio do contraditório.

II.  Para que a Relação conheça da impugnação da matéria de facto é imperioso que o recorrente, nas conclusões da sua alegação, indique os concretos pontos de facto incorretamente julgados, bem como a decisão a proferir sobre tais pontos de facto.

III.  Porém, o cumprimento dos ónus previstos no artigo 640.º do Código de Processo Civil não pode «redundar na adoção de entendimentos formais do processo por parte dos Tribunais da Relação».

IV.  Tendo a recorrente indicado os factos provados que considerava incorretamente julgados, sustentando que é manifesto o erro na sua apreciação e que houve erro na resposta dada a esses pontos da base instrutória, concluindo, depois, que «dos depoimentos prestados em audiência de julgamento e da restante prova constante dos autos impõe-se uma decisão diversa da proferida relativamente aos mesmos», tal só pode significar que requereu a reapreciação da decisão da matéria de facto sobre os pontos indicados, no sentido de ser substituída a decisão de «provado» por «não provado», tal como decorre do corpo da pertinente alegação de recurso.
Decisão Texto Integral:
 

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

                                                    I

1. Em 6 de julho de 2015, na Comarca de Viseu, Juízo do Trabalho de Viseu — Juiz 1, AA veio instaurar a fase contenciosa da presente ação especial emergente de acidente de trabalho, o qual foi participado em juízo, no dia 1 de agosto de 2013, data em que se iniciou a instância (cf. artigo 26.º, n.º 4, do Código de Processo do Trabalho), contra a empregadora BB, S.A., e a seguradora CC – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., pedindo a condenação das rés, conforme a sua responsabilidade, a pagar-lhe as pensões, indemnizações e subsídios a que tem direito, com fundamento em acidente de trabalho, ocorrido em 5 de outubro de 2012, quando desempenhava a atividade de trabalhadora avícola ao serviço da primeira ré, cuja responsabilidade infortunística estava transferida para a ré entidade seguradora.

Citadas, ambas as rés contestaram.

A empregadora sustentou não ter violado qualquer regra sobre segurança, higiene e saúde no trabalho e, bem assim, a descaracterização do acidente como de trabalho, pois o mesmo resultou de negligência grosseira da autora, tendo aditado que a retribuição anual invocada pela autora não corresponde à legalmente determinada.

A seguradora, por sua vez, aduziu que o acidente ocorreu por violação, pela ré empregadora, de regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho, pelo que devia ser esta ré a responsável pela reparação dos danos emergentes do acidente, assistindo-lhe o direito a ser reembolsada das quantias que venha a pagar.
Realizado o julgamento, proferiu-se sentença, que julgou a ação procedente, condenando a seguradora, sem prejuízo do direito de regresso sobre a empregadora, a pagar à autora AA as seguintes quantias: a) pela IPP de 90%, com IPATH de que ficou a padecer, uma pensão anual e vitalícia de € 6.015,42, devida desde 01-02-2012 [o acidente ocorreu em 5 de outubro de 2012, pelo que há lapso na data indicada], sendo tal pensão atualizável, passando a ser de € 6.189,97, a partir de 01/01/2013, de € 6.214,63, a partir de 01/01/2014, e de € 6.239,49, a partir de 01/01/2016, acrescida de juros à taxa legal de 4% desde a data do vencimento de cada uma das prestações mensais até integral pagamento — a pensão anual deve ser paga, adiantada e mensalmente, até ao 3.º dia de cada mês, correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão anual, sendo que os subsídios de férias e de Natal, cada um no valor de 1/14 da pensão anual, são, respetivamente, pagos nos meses de junho e novembro; b) € 5.367,69, a título de subsídio por situação de elevada incapacidade permanente, acrescida de juros à taxa legal de 4% desde 01-02-2012 [sic] até integral pagamento; c) a quantia mensal de € 345,86, devida desde 09-10-2012, a título de prestação suplementar para assistência de terceira pessoa, anualmente atualizável na mesma percentagem em que o for o IAS, passando a mesma a ser de € 347,59, a partir de 01-01-2017, acrescida de juros à taxa legal de 4% desde a data do vencimento de cada uma das prestações mensais até integral pagamento — o pagamento de tal prestação suplementar para assistência de terceira pessoa acompanha o pagamento mensal da pensão anual e dos subsídios de férias e de Natal; d) a atribuição de prótese cosmética, bem como a respetiva renovação e reparação, sempre que necessário; e) a conceder a assistência médica geral ou especializada, incluindo todos os elementos de diagnóstico e tratamento e toda a assistência medicamentosa de que a autora necessite em consequência da lesões e sequelas de que a mesma ficou a padecer em consequência do acidente dos autos, incluindo acompanhamento psicológico e psiquiátrico caso o mesmo se revele necessário. Condenou, doutro passo, a ré empregadora a pagar à autora: a) € 788,88, a título de diferenças de indemnização agravada por incapacidades temporárias, acrescida de juros à taxa legal de 4% desde o vencimento de cada prestação mensal, nos termos supra expostos e até integral pagamento; b) pela IPP de 90%, com IPATH de que ficou a padecer, pela responsabilidade agravada, uma pensão anual e vitalícia de € 2.565,39, devida desde 01/02/2012 [sic], passando a mesma a ser de € 2.639,78, a partir de 01/01/2013, de € 2.650,34, a partir de 01/01/2014, e de € 2.660,94, a partir de 01/01/2016, acrescida de juros à taxa legal de 4% desde a data do vencimento de cada uma das prestações mensais até integral pagamento — a pensão anual deve ser paga, adiantada e mensalmente, até ao 3.º dia de cada mês, correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão anual, sendo que os subsídios de férias e de Natal, cada um no valor de 1/14 da pensão anual, são, respetivamente, pagos nos meses de junho e novembro; c) € 10.000, a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora desde a data da sentença até integral pagamento.

2. Inconformada, a ré empregadora apelou para o Tribunal da Relação de Coimbra, que julgou o recurso de apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida, tendo rejeitado a impugnação da decisão sobre a matéria de facto deduzida na apelação, com o fundamento de que a apelante não indicara «a decisão fáctica alternativa que deveria ser tomada no confronto da proferida pelo tribunal recorrido».

É contra esta deliberação que a ré empregadora agora se insurge, mediante a interposição de recurso de revista, no qual formulou as conclusões seguintes:

          «1.   Nos presentes autos de ação especial emergente de acidente de trabalho, foi proferida decisão que, em suma, considerou existir responsabilidade agravada da ré empregadora na produção do acidente em causa.
                 2. A ré, ora recorrente, inconformada com a decisão, interpôs o competente recurso de apelação, no âmbito do qual impugnou a decisão dada a determinados pontos da matéria de facto, tendo o recurso como objeto, além da matéria de direito, a reapreciação da prova gravada.
                  3. Admitido o recurso, o Tribunal da Relação delimitou a análise do mesmo a quatro questões, a saber: “1.ª) saber se o tribunal recorrido considerou indevidamente como assente, por ocasião do despacho saneador e da seleção da matéria de facto assente, aquela que se anunciou na alínea G) dos factos assentes e que depois foi reproduzida no ponto 8.º) dos factos descritos como provados na sentença recorrida; 2.ª) saber se deve conhecer-se do recurso da apelante relativo à matéria de facto; 3.ª) saber se a matéria de facto se encontra incorretamente julgada nos termos sustentados pela apelante; 4.ª) se o acidente a que os autos se reportam deve imputar-se causalmente a violação pela ré empregadora de regras de segurança e saúde no trabalho, com a consequente responsabilidade agravada dessa ré.”
                    4. Analisada a primeira questão, alterou a redação da alínea G) e ponto 8.º) dos factos descritos como provados e ainda, por razões de compatibilização, a redação do ponto 26.º dos factos provados.
                   5. Passando à segunda questão o tribunal recorrido, rejeitou imediatamente o recurso fáctico por entender que “a recorrente não preencheu nas conclusões, onde estava obrigado a fazê-lo, um dos requisitos da impugnação da decisão sobre a matéria de facto legalmente enunciados, qual seja o da rigorosa delimitação do objetivo recursório”.
                  6. O recurso relativo à matéria de facto impugnada foi imediatamente rejeitado em clara violação do princípio do contraditório, conforme previsto no n.º 1 do artigo 655.º do Código de Processo Civil, porquanto antes de proferir decisão, o Relator deveria ter ouvido as partes.
                  7. Decorrente da omissão de tal ato/formalidade que a lei prescreve, o Tribunal da Relação cometeu uma irregularidade que influi no exame e decisão da causa, consubstanciando uma nulidade, nos termos do disposto no artigo 195.º do Código de Processo Civil.
                    8. Nulidade que expressamente se invoca e que se pretende seja declarada, devendo anular-se ainda todos os atos posteriores, ou seja a análise das restantes questões decididas pelo Tribunal recorrido, mantendo-se apenas a resposta dada à primeira questão.
                  9. Não obstante e por mera cautela, dir-se-á ainda que, mesmo que a nulidade invocada não se verificasse, a rejeição pelo Tribunal da Relação de Coimbra do recurso interposto pela ré empregadora quanto à reapreciação da prova gravada não pode ser mantida, porquanto a recorrente cumpriu o comando legal, pelo que o Tribunal da Relação de Coimbra deveria ter procedido à reapreciação da decisão de facto.
                  10. Conforme resulta do acórdão recorrido, a recorrente cumpriu a exigência legal de delimitação do âmbito fáctico do recurso.
                  11. A recorrente, quer na motivação quer nas conclusões identificou expressamente os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, pontos 36, 37, 39, 40, 58, 41 e 57 dos factos provados.
                  12. A recorrente, na respetiva motivação, cumpriu o requisito de especificar os concretos meios probatórios constantes do processo e da gravação que impunham decisão diversa relativamente aos factos impugnados, tendo procedido à indicação, por referência à gravação, do dia e minutos em que cada um dos depoimentos invocados havia sido prestado e à transcrição dos excertos que considera relevantes.
                  13. A recorrente, na respetiva motivação, cumpriu o requisito de especificar a decisão alternativa que propõe.
                  14. Relativamente aos pontos 36, 37 e 39 dos factos provados, impugnados, a recorrente após ter indicado os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa, refere, além do mais que a matéria constante dos pontos 36, 37 e 39 da sentença resulta de uma errada apreciação da prova, pelo que não podem tais factos constar dos factos provados, devendo antes dar-se como provado que a roda dentada tinha proteção que impedia o contacto da autora com a parte móvel e só pela atitude indesculpável e inexplicável e grosseira da autora é que o acidente ocorreu.
                   15. Relativamente aos pontos 40 e 58 dos factos provados, impugnados, a recorrente após ter indicado os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa, refere que os factos constantes dos pontos 40 e 50 não poderiam ter sido dados como provados.
                  16. No que respeita aos pontos 41 e 57 dos factos provados, impugnados, a recorrente após ter indicado os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa, refere que não poderia o Tribunal a quo dar os factos constantes dos pontos 41 e 57 como provados, devendo antes concluir-se pela descaracterização do acidente, uma vez que o mesmo ficou a dever-se única e exclusivamente a negligência grosseira da autora.
                   17. De todo o exposto decorre que a recorrente cumpriu as especificações enunciadas no artigo 640.º do Código de Processo Civil, pelo que carece de fundamento a decisão do Tribunal da Relação em rejeitar o recurso sobre a matéria de facto.
                  18. Sem prescindir, dir-se-á ainda o seguinte, que mesmo que faltasse ou estivesse deficientemente enunciada a decisão que no entender do recorrente deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, o que só por mera hipótese se admite, não poderia, sem mais, o Tribunal recorrido rejeitar o recurso.
                   19. Desde logo, porquanto quer o Tribunal da Relação quer as partes contrárias conseguem apreender as questões que foram suscitadas pelos recorrentes.
                  20. Tanto assim é que quer a autora, quer a ré seguradora apresentaram contra-alegações e indicaram excertos de depoimentos que, no seu entender, infirmam a posição da recorrente.
                   21. Mas mesmo que assim não fosse, deveria o Tribunal da Relação convidar a recorrente ao aperfeiçoamento das alegações, em obediência ao disposto nos artigos 640.º, n.os 1 e 2, e 639.º, n.os 1, 2 e 3 do Código de Processo Civil.
                  22. A decisão recorrida é nula por omissão de uma formalidade prevista na lei que influi no exame e decisão da causa, nulidade que expressamente se invoca.
                  23. Devendo a nulidade arguida ser declarada, devendo o acórdão recorrido ser declarado nulo na parte respeitante à análise das três questões supra referidas (mantendo-se apenas a solução dada à primeira) devendo o processo baixar ao Tribunal da Relação de Coimbra e ser respeitado o princípio do contraditório caso se continue a entender que o recurso quanto à reapreciação da matéria de facto impugnada deve ser rejeitado.
                  24. Não obstante e caso assim não se entenda, a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 640.º e 639.º do Código de Processo Civil, pelo que,
                  25. Deve ser dado provimento ao presente recurso anulando-se a decisão recorrida na parte em que rejeita o recurso relativo à decisão fáctica e bem assim no que respeita as restantes questões analisadas (à exceção da primeira), porquanto a decisão quanto à matéria de facto impugnada implica necessariamente uma nova apreciação das restantes questões, devendo o recurso baixar ao Tribunal da Relação de Coimbra a fim de ser analisado o recurso quanto à matéria de facto impugnada e demais questões.»

As recorridas contra-alegaram, defendendo a improcedência do recurso.

Entretanto, o Tribunal da Relação exarou aresto em que apreciou a primeira nulidade arguida, julgando-a improcedente, não se pronunciando quanto à segunda nulidade invocada por inobservância do preceituado no n.º 1 do artigo 77.º do Código de Processo do Trabalho.

Neste Supremo Tribunal, entendendo-se, no exame preliminar do processo, que se verificava circunstância que obstava ao conhecimento do recurso de revista, na parte em que era arguida a nulidade do acórdão recorrido, com o fundamento de que a recorrente não tinha sido convidada a aperfeiçoar as alegações de recurso de apelação, em obediência ao disposto nos artigos 640.º, n.os 1 e 2, e 639.º, n.os 1, 2 e 3, do Código de Processo Civil, foi determinada a audição das partes para que se pronunciassem, querendo, acerca dessa questão prévia, nos termos do n.º 1 do artigo 655.º do Código de Processo Civil, sendo que as partes não responderam.

Por despacho de 28 de fevereiro de 2018, o relator decidiu «não conhecer do recurso de revista, na parte em que vem arguida a nulidade do acórdão recorrido, com o fundamento de que a recorrente não foi convidada a aperfeiçoar as alegações de recurso de apelação produzidas», o qual, notificado às partes, não foi objeto de impugnação. Assim, não se conhecerá da nulidade que é imputada diretamente ao acórdão recorrido nas conclusões 21) a 23) da alegação do recurso de revista.

Subsequentemente, a Ex.ma Procuradora-Geral-Adjunta emitiu parecer no sentido de que se devia conceder a revista, pois «resulta do conteúdo das conclusões e das alegações de recurso que a recorrente identificou os pontos da matéria de facto que em concreto impugna, enumerando-os e indicando (nas alegações), o que, em sua opinião, deveria ser considerado provado (mais precisamente sustentando que os pontos da matéria de facto impugnados deveriam ter sido considerados não provados)», parecer que, notificado às partes, suscitou resposta da recorrida/autora, no qual reiterou o entendimento já aduzido na respetiva contra-alegação.

3. Excluído o segmento julgado inadmissível do recurso de revista, a que se reportam as conclusões 21) a 23) da alegação de recurso, as questões suscitadas são as que se passam a enunciar, segundo a ordem lógica que entre as mesmas intercede:

               Se o aresto recorrido padece de nulidade, porquanto rejeitou conhecer do objeto do recurso de apelação relativo à impugnação da decisão sobre a matéria de facto sem antes ter ouvido as partes (conclusões 6.ª a 8.ª da alegação do recurso de revista);
               Se a recorrente, na apelação, cumpriu os ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto (conclusões 1.ª a 5.ª, 9.ª a 20.ª, 24.ª e 25.ª da alegação do recurso de revista).

Preparada a deliberação, cumpre julgar o objeto do recurso interposto.

                                              II

1. Em primeira linha, a recorrente invoca que «[o] recurso relativo à matéria de facto impugnada foi imediatamente rejeitado em clara violação do princípio do contraditório, conforme previsto no n.º 1 do artigo 655.º do Código de Processo Civil, porque antes de proferir decisão, o Relator deveria ter ouvido as partes», daí que «o Tribunal da Relação cometeu uma irregularidade que influi no exame e decisão da causa, consubstanciando uma nulidade, nos termos do disposto no artigo 195.º do Código de Processo Civil», que pretende seja declarada, «devendo anular-se ainda todos os atos posteriores, ou seja a análise das restantes questões decididas pelo Tribunal recorrido, mantendo-se apenas a resposta dada à primeira questão».

Em tais situações, tem sido doutrinal e jurisprudencialmente sustentado que, embora a decisão judicial em causa não tenha, em rigor, incorrido em nenhuma das nulidades intrínsecas da decisão estabelecidas no n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, o facto é que a violação da lei lhe é diretamente imputável, por ter sancionado uma nulidade processual não sanada, dando cobertura a esse desvio processual e assumindo-o como seu, passando aquela nulidade processual a inquinar a decisão judicial como vício próprio desta e causa da sua nulidade (a este propósito, cf. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22 de fevereiro de 2017, Processo n.º 5384/15.3T8GMR.G1.S1 da 4.ª Secção, disponível em www.dgsi.pt).

O Tribunal da Relação de Coimbra apreciou a invocada nulidade do acórdão recorrido, conforme o estatuído nos artigos 666.º, 615.º e 617.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, julgando-a improcedente, nos termos seguintes:

              «Salvo o devido respeito, não se verifica essa primeira causa de nulidade.
                  Na verdade, o princípio do contraditório consagrado nos arts. 3.º e 655.º do NCPC não se aplica à decisão de rejeição do recurso da matéria de facto.
                   “Tais normas regem para o não conhecimento do objeto do recurso (que por isso não é levado a julgamento) e não para a rejeição da impugnação da matéria de facto. Neste último caso o recurso não deixa de ser conhecido (é levado a julgamento), apenas acontece que a impugnação (e não o recurso) é indeferida (rejeitada, nas palavras da lei).” — acórdão do STJ de 27/10/2016, proferido no processo 3176/11.8TBBCL.G1.S1.
                  Como assim, não tinha que ser cumprido, como não foi, o art. 655º/1 do NCPC.»

Tudo ponderado, sufragam-se as considerações transcritas e confirma-se o julgado, neste preciso segmento decisório.

Com efeito, tal como vem sendo decidido uniformemente por este Supremo Tribunal, a rejeição da impugnação da decisão sobre a matéria de facto prevista no n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil não está dependente da observância prévia do princípio do contraditório estabelecido nos artigos 655.º, n.º 1, e 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (cf., por todos, o acórdão de 27 de outubro de 2016, Processo n.º 3176/11.8TBBCL.G1.S1, já acima citado).

Não se configura, pois, a nulidade arguida, pelo que improcedem, na parte atinente, as conclusões 6.ª a 8.ª da alegação do recurso de revista.

2. O tribunal recorrido deu como provados os factos seguintes:
1) A Autora AA nasceu em … de … de 19… (cfr. doc. de fls. 196);
2) A Ré empregadora BB é uma sociedade comercial, que, além de outras, se dedica à atividade de produção de ovos, explorando, para o efeito, entre outros, três aviários, identificados como aviário 1, 2 e 3, em ..., ..., ..., ...;
3) A Autora, desde novembro de 2011, começou a trabalhar, continuadamente, no âmbito da organização empresarial da Ré BB e sob a sua autoridade e direção, mediante retribuição;
4) A Autora exerceu sempre as funções de trabalhadora avícola, que consistiam, nomeadamente, na alimentação das galinhas, recolha dos ovos e limpeza dos aviários;
5) A Autora auferia a retribuição mensal de € 485,00, acrescido do subsídio de férias e de Natal de igual montante cada, bem como a quantia diária € 4,20, a título de subsídio de alimentação;
6) A Ré BB pagou ainda à Autora mensalmente uma quantia variável que denominava nas declarações à segurança social como “subsídios de carácter regular não mensal”, com os seguintes valores: em novembro de 2011 € 19,60; em dezembro de 2011 € 156,80; em janeiro de 2012 € 98,00, em fevereiro de 2012 € 39,20; em março de 2012 € 58,80; em abril de 2012 € 137,20, em maio de 2012 € 98,00; em junho de 2012 € 98,00; em julho 2012 € 78,40, em agosto de 2012 € 58,80; em setembro de 2012, € 81,00; em outubro de 2012, € 29,40, conforme documento de fls. 132 verso a 133 que aqui se dá por reproduzido;
7) A responsabilidade emergente de acidentes de trabalho sofridos pela Autora ao serviço da BB encontrava-se transferida para a Ré seguradora pela retribuição de € 485,00 x 14, acrescida de € 197,87 x 12 de outras remunerações, através de contrato de seguro titulado pela apólice n.º ….;
8) No dia 05-10-2012, pelas 12 horas, em ..., quando se encontrava ao serviço da empregadora BB, a autora sofreu um acidente que se consubstanciou no contacto físico entre o membro superior direito da autora, que era o seu membro funcional ou ativo, e a roda dentada de uma linha de alimentação, esfacelando-o gravemente, com a consequente amputação do membro superior direito da autora pelo 1/3 proximal do antebraço [redação alterada pelo Tribunal da Relação];
9) Cada linha de alimentação existente no aviário 3 da Ré BB era constituída por uma calha metálica fixa, com uma largura de cerca de 9 centímetros e paredes laterais com altura idêntica, dentro da qual funcionava, na sua parte inferior, uma corrente metálica constituída por vários elos, ligados entre si, corrente esta que transportava as rações para alimentar as galinhas, da tulha existente no espaço de armazém, para o espaço destinado às galinhas;
10) A corrente aludida no n.º 9 era movimentada por uma roda dentada metálica, que funcionava através de um motor existente junto à mesma, o qual era ligado num quadro elétrico colocado no espaço de armazém;
11) Neste quadro elétrico existia, para cada um dos espaços destinados às galinhas, um interruptor para a ligação automática e outro, para a ligação manual dos motores que acionavam a roda dentada, a qual movimentava as respetivas correntes transportadoras das rações;
12) O interrutor para ligar e desligar o motor que acionava a roda dentada encontrava-se no quadro elétrico existente no espaço de armazém;
13) A Ré seguradora pagou à Autora o montante global de € 2.110,71, a título de indemnização por ITA no período de 06/10/2012 a 31-01-2013;
14) A Autora exercia a sua atividade profissional indistintamente nos aviários 1, 2 e 3;
15) Por ordem da Ré empregadora, na data do acidente aludido no n.º 8 a Autora estava a trabalhar no aviário 3;
16) O aviário 3 funcionava num pavilhão constituído por três espaços: dois destinados especificadamente às galinhas, onde eram alimentadas e punham os ovos, os quais eram separados por um outro espaço, que servia de armazém e onde, além do mais, se encontrava a tulha com as rações e se fazia a embalagem de ovos;
17) Cada um dos espaços destinados às galinhas tinha duas linhas de alimentação que estavam colocadas a cerca de 25 cm uma delas do chão e outra a 25 cm de um estrado colocado a cerca de 70 cm do chão, constituídas nos termos aludidos no n.º 9;
18) O sistema automático aludido no n.º 11 era programado para funcionar durante a noite, quando não estava ao serviço qualquer trabalhador e o sistema manual era utilizado durante o período normal de trabalho, que era entre as 8 horas e as 17 horas de cada dia da semana;
19) A Autora, como qualquer outra trabalhadora, quando terminava o seu período normal de trabalho, pelas 17 horas, ligava o sistema automático de funcionamento das linhas de alimentação e quando entrava ao serviço, pela manhã, passava a fazer as ligações manuais, o que normalmente acontecia de três em três horas;
20) No dia 5 de outubro de 2012, a Autora iniciou o seu período de trabalho pelas 8 horas;
21) No aviário 3, fez a ligação manual das linhas de alimentação de um dos espaços destinados às galinhas;
22) No período da manhã, a Autora apercebeu-se que a corrente de uma das linhas de alimentação estava partida;
23) A Autora depois de ter verificado que a corrente de uma das linhas de alimentação se tinha partido, cerca das 11 horas, dirigiu-se a um outro aviário da Ré empregadora, situado a cerca de 300 metros e daí telefonou ao responsável Sr. DD, para vir compor a linha;
24) Tal responsável deslocou-se para o local, com uma engenheira, tendo terminado a necessária reparação, por volta das 12 horas;
25) Após a reparação, a Autora foi proceder à limpeza da linha de alimentação que tinha avariado e foi reparada;
26) Quando se encontrava a retirar as penas que se encontravam junto à roda dentada, esta no momento estava em funcionamento e prendeu a manga da camisola da autora, na sequência do que ocorreu o descrito no n.º 8 [redação alterada pelo Tribunal da Relação];
27) Em face do aludido no n.º 8 e face às dores insuportáveis que estava a sofrer, a Autora começou a queixar-se em altos gritos [a sequência da enunciação da matéria de facto provada passa do ponto 27) para o ponto 29)];
29) O responsável DD, que pouco antes havia terminado os trabalhos de reparação da linha em causa, regressou ao local e ao ouvir os gritos da Autora, de imediato parou o motor que acionou a roda dentada causadora do acidente e foi socorrer a Autora;
30) A Autora foi logo transportada para o Hospital de Viseu onde foi assistida às lesões sofridas do esfacelo do antebraço, punho e mão direita, com a consequente amputação traumática do membro superior direito, pelo 1/3 proximal do antebraço;
31) Esteve aí internada durante 4 dias, passando a ser acompanhada em consulta externa no Hospital de Viseu e posteriormente na Casa de Saúde de ... onde realizou várias sessões de fisioterapia;
32) Por indicação médica do Hospital, foi acompanhada em consulta de psiquiatria;
33) Como consequência direta e necessária das lesões sofridas, a Autora ficou afetada de uma incapacidade temporária absoluta, desde a data do acidente, em 05/10/2012, até 31-1-2013, data da alta;
34) Como consequência direta e necessária das lesões sofridas a Autora necessita de ajuda permanente de terceira pessoa para a execução de um conjunto de atividades básicas da vida diária, durante um período de seis horas diárias;
35) Em consequência da gravidade das sequelas causadas pelo acidente a Autora necessita de prótese cosmética;
36) A roda dentada, em que a Autora se acidentou, não tinha proteção adequada que impedisse o contacto do corpo da Autora com a parte móvel do equipamento;
37) E só por falta desta proteção é que Autora ficou com a roupa manietada, sofrendo, em consequência, as lesões aludidas no n.º 8;
38) Junto à aludida roda dentada não havia qualquer botão de paragem de emergência do motor que acionava a roda dentada;
39) A Ré empregadora tinha perfeito conhecimento dos factos referidos nos n.os 36 e 38;
40) A Ré empregadora nunca deu qualquer formação específica e adequada à Autora relativamente aos riscos que a mesma corria no ambiente de trabalho com a utilização da linha de alimentação das galinhas;
41) O acidente sofrido pela Autora ocorreu em consequência do aludido nos n.os 36, 37, 38 e 40;
42) Antes do acidente, a Autora era uma pessoa normal, saudável, alegre e comunicativa;
43) As lesões sofridas pela Autora em consequência do acidente, particularmente graves, implicaram um período de cura longa, determinaram uma intervenção cirúrgica e subsequentes tratamentos dolorosos;
44) Mesmo na ausência da parte perdida do membro superior direito, a Autora continua a sentir dores mesmo em relação à parte que já não tem, tipo «dores fantasmas», dada a representação permanente do cérebro;
45) A Autora perdeu a alegria de viver e passou a ter grandes preocupações com a sua vida, refugiando-se no isolamento e furtando-se ao convívio social;
46) A alimentação das galinhas no pavilhão onde ocorreu o acidente é assegurada por uma calha em ferro zincado, em forma de U, com uma largura de cerca de 9 cm e paredes laterais da mesma altura, que atravessa todo o pavilhão;
47) E ao longo da qual corre, na sua parte inferior, uma corrente, constituída por vários elos ligados entre si, que é movida por uma roda dentada metálica;
48) Que, por sua vez, é alimentada por um motor que se encontrava localizado junto à mesma;
49) A calha em causa está ligada a um silo de ração localizado no armazém do referido pavilhão;
50) A corrente aludida no n.º 47 ao passar pelo referido silo transporta para fora do mesmo, e por entre os seus elos, a ração das galinhas, distribuindo-a por toda a calha;
51) O sistema de distribuição de ração em causa está ligado a um quadro elétrico localizado, também ele, no referido armazém;
52) O qual contém, para cada um dos espaços do pavilhão em causa destinado às galinhas, um interrutor para a ligação automática e outro para a ligação manual do motor que aciona a roda dentada e, consequentemente, todo o sistema de alimentação das galinhas;
53) O sistema automático ficava acionado, funcionando automaticamente em ciclos regulares, durante a noite quando não se encontrava no espaço qualquer trabalhador;
54) Durante o dia e durante o período de trabalho, pelo que entre as 8h e as 17h, que por vezes se prolongava até às 18h, era utilizado o sistema manual o qual era ativado pelos próprios funcionários;
55) O equipamento em causa, nomeadamente o motor, não possuía, também, qualquer dispositivo de emergência que permitisse parar, rapidamente, a laboração do mesmo;
56) O interrutor para ligar e desligar o motor encontrava-se no quadro elétrico localizado a cerca de 4 metros, e em espaço físico distinto do motor e da roda dentada;
57) Tendo sido este, também um dos fatores decisivos para a produção do acidente;
58) A Autora não recebeu qualquer formação sobre higiene e segurança no trabalho, nem mesmo para funcionar com o equipamento em causa;
59) Os aviários 1, 2 e 3 têm todos o mesmo sistema de alimentação;
60) A colega da Autora, EE, no dia do acidente esteve a trabalhar;
61) O sistema manual funciona entre as 8h e as 17h, sendo manualmente alterado para automático terminado o período normal de trabalho, ou seja, às 17h, o que era feito também pela Autora;
62) No dia do acidente, o responsável pela manutenção/reparação dos sistemas de alimentação das galinhas foi chamado para reparar uma das linhas do aviário 3;
63) Chegou ao local acompanhado da Engenheira e reparou a corrente da linha de alimentação que se encontrava partida;
64) Terminada a reparação, o responsável pela reparação colocou a linha em funcionamento e dirigiu-se à Autora, dizendo-lhe para deixar a linha rodar até encher;
65) O referido responsável e a Engenheira saíram do pavilhão, tendo o primeiro passado uns minutos regressado porque se esquecera de uma peça;
66) E, estava a pegar na peça, quando ouve gritar e vê pela janela as galinhas em alvoroço, tendo de imediato desligado o motor de linha de alimentação e entrado no espaço onde se encontrava a Autora;
67) Qualquer pessoa de sensatez média não colocaria a mão junto de uma linha de alimentação com esta em funcionamento;
68) E qualquer pessoa, colocada perante um sistema motorizado, composto por corrente metálica, puxado por dente metálico não coloca a mão ou qualquer outra parte do corpo próximo, sem desligar previamente o motor;
69) A roda dentada onde ocorreu o acidente estava coberta com uma chapa metálica, que não tapava totalmente a roda dentada, existindo uma abertura junto à calha por onde passava a corrente, sendo nessa abertura que a Autora colocou a mão;
70) A Ré empregadora dá formação profissional a todos os seus trabalhadores, incluindo a Autora, quer quando iniciam a relação laboral, quer no decurso da mesma, relativa à forma de execução das tarefas a realizar;
71) O equipamento em causa trabalha manualmente quando existem trabalhadores ao serviço, pelo que deve o mesmo ser desligado para proceder à limpeza de modo a não ocorrerem acidentes;
72) A linha de alimentação das galinhas trabalha no sistema manual quando há trabalhadores ao serviço;
73) A autora tem vários anos de experiência no ramo, sabendo como funciona o sistema de alimentação das galinhas;
74) As quantias aludidas no n.º 6 correspondem ao pagamento de trabalho prestado pela Autora aos domingos.

3. No recurso de apelação que interpôs, a ré recorrente impugnou, para além do mais, a decisão proferida sobre a matéria de facto considerada provada pelo tribunal de 1.ª instância no respeitante aos pontos n.os 36, 37, 38, 39, 40, 41, 58 e 59.

A esse propósito, o Tribunal da Relação considerou que a ré recorrente não cumpriu o ónus de especificação estabelecido no n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, na medida em que não indicou nas conclusões da alegação do recurso de apelação a decisão fáctica alternativa que, no seu entender, devia ter sido tomada no confronto com a decisão proferida pelo tribunal de 1.ª instância.

A ré recorrente discorda, aduzindo, no recurso de revista, que a rejeição do recurso interposto quanto à reapreciação da prova gravada não pode ser mantida.

Especificamente, a ré recorrente invoca que, «quer na motivação quer nas conclusões identificou expressamente os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, pontos 36, 37, 39, 40, 58, 41 e 57 dos factos provados», que «na respetiva motivação, cumpriu o requisito de especificar os concretos meios probatórios constantes do processo e da gravação que impunham decisão diversa relativamente aos factos impugnados, tendo procedido à indicação, por referência à gravação, do dia e minutos em que cada um dos depoimentos invocados havia sido prestado e à transcrição dos excertos que considera relevantes» e que, «na respetiva motivação, cumpriu o requisito de especificar a decisão alternativa que propõe», sendo que, «[r]elativamente aos pontos 36, 37 e 39 dos factos provados, impugnados, a recorrente após ter indicado os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa, refere, além do mais que a matéria constante dos pontos 36, 37 e 39 da sentença resulta de uma errada apreciação da prova, pelo que não podem tais factos constar dos factos provados, devendo antes dar-se como provado que a roda dentada tinha proteção que impedia o contacto da autora com a parte móvel e só pela atitude indesculpável e inexplicável e grosseira da autora é que o acidente ocorreu», quanto «aos pontos 40 e 58 dos factos provados, impugnados, a recorrente após ter indicado os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa, refere que os factos constantes dos pontos 40 e 5[8] não poderiam ter sido dados como provados» e no que respeita «aos pontos 41 e 57 dos factos provados, impugnados, a recorrente após ter indicado os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa, refere que não poderia o Tribunal a quo dar os factos constantes dos pontos 41 e 57 como provados, devendo antes concluir-se pela descaracterização do acidente, uma vez que o mesmo ficou a dever-se única e exclusivamente a negligência grosseira da autora».

Em derradeiro termo, a ré recorrente conclui que «cumpriu as especificações enunciadas no artigo 640.º do Código de Processo Civil, pelo que carece de fundamento a decisão do Tribunal da Relação em rejeitar o recurso sobre a matéria de facto», acrescentando que, quer o Tribunal da Relação, quer as partes contrárias conseguiram apreender as questões que foram suscitadas pela recorrente.
Os pontos da matéria de facto impugnados na apelação são os seguintes:

            «36)               A roda dentada em que a Autora se acidentou não tinha proteção adequada que impedisse o contacto do corpo da Autora com a parte móvel do equipamento;
                37)                E só por falta desta proteção é que Autora ficou com a roupa manietada, sofrendo, em consequência, as lesões aludidas no n.º 8;
                38)                Junto à aludida roda dentada não havia qualquer botão de paragem de emergência do motor que acionava a roda dentada;
                 39)                A Ré empregadora tinha perfeito conhecimento dos factos referidos nos n.os 36 e 38;
                 40)               A Ré empregadora nunca deu qualquer formação específica e adequada à Autora relativamente aos riscos que a mesma corria no ambiente de trabalho com a utilização da linha de alimentação das galinhas;
                  41)               O acidente sofrido pela Autora ocorreu em consequência do aludido nos n.os 36, 37, 38 e 40;
                  58)               A Autora não recebeu qualquer formação sobre higiene e segurança no trabalho, nem mesmo para funcionar com o equipamento em causa;
                  59)               Os aviários 1, 2 e 3 têm todos o mesmo sistema de alimentação.»

Neste plano de consideração, a ré recorrente alinhou, na alegação de recurso de apelação, as proposições conclusivas subsequentes:

                 «[…]
                     12.  Também no que respeita à matéria constante da base instrutória é manifesto o erro na sua apreciação, no que respeita aos pontos 36, 37, 38, 39, 40, 41, 58 e 59 dos factos provados.
                  13.  Aliás existe até manifesta contradição com a prova produzida e com a restante prova dada como provada.
                     14.  Para se apreender factos sobre o acidente é manifesto que o Tribunal terá de se socorrer dos depoimentos das únicas duas testemunhas que estiveram junto da autora imediatamente antes e após o acidente.
                  15.  Ora da apreciação de tais depoimentos resulta desde logo que houve erro na resposta dada aos pontos da base instrutória, nomeadamente aos pontos 36, 37, 38, 39, 40, 41, 58 e 59 dos factos provados.
                  16.  Pois que dos depoimentos prestados em audiência de julgamento e da restante prova constante dos autos, impõe-se uma decisão diversa da proferida relativamente aos mesmos.
                 17.  Como se referiu, o processo contém todos os elementos de prova que serviram de base à decisão em apreço, pelo que pode este Venerando Tribunal reexaminar os elementos constantes do processo com vista a ser alterada a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância sobre a matéria de facto assente constante dos pontos 36, 37, 38, 39, 40, 41, 58 e 59 dos factos provados, o que se requer.

Tal como vem sendo deliberado pela Secção Social deste Supremo Tribunal, «[p]ara que a Relação conheça da impugnação da matéria de facto é imperioso que o recorrente, nas conclusões da sua alegação, indique os concretos pontos de facto incorretamente julgados, bem como a decisão a proferir sobre aqueles concretos pontos de facto, conforme impõe o artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) e c) do CPC» (cf., por todos, o acórdão de 7 de julho de 2016, Processo n.º 220/13.8TTBCL.G1.S1).

O certo é, porém, que o cumprimento dos ónus previstos no artigo 640.º do Código de Processo Civil não pode «redundar na adoção de entendimentos formais do processo por parte dos Tribunais da Relação e que, na prática, se traduzem na recusa de reapreciação da matéria de facto, maxime da audição dos depoimentos prestados em audiência, coartando à parte Recorrente o direito de ver apreciada e, quiçá, modificada a decisão da matéria de facto, com a eventual alteração da subsunção jurídica» (cf. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18 de maio de 2017, Processo n.º 2537/15.8T8VNG.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt), sendo de considerar, nessa parametrização, como precisa fronteira, «a possibilidade do tribunal de recurso conhecer, sem esforço acrescido, a pretensão do recorrente, ou seja, de apreender o objeto do recurso sem ter que se substituir ao recorrente nessa tarefa que sobre si impende (cf. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16 de maio de 2018, Processo n.º 2833/16.7T8VFX.L1.S1).

Nas conclusões da alegação do recurso de apelação, a recorrente identifica os factos provados sob os pontos 36), 37), 38), 39), 40), 41), 58) e 59) como tendo sido incorretamente julgados, sustentando que «é manifesto o erro na sua apreciação» (conclusão 12.ª) e que «houve erro na resposta dada aos pontos da base instrutória, nomeadamente aos pontos 36, 37, 38, 39, 40, 41, 58 e 59 dos factos provados» (conclusão 15.ª), realçando, depois, que «dos depoimentos prestados em audiência de julgamento e da restante prova constante dos autos impõe-se uma decisão diversa da proferida relativamente aos mesmos» (conclusão 16.ª), concluindo com o pedido de alteração da «decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância sobre a matéria de facto assente constante dos pontos 36, 37, 38, 39, 40, 41, 58 e 59 dos factos provados» (conclusão 17.ª), o que só pode significar, se tudo devidamente conjugado, que se pretende que os pontos da matéria de facto impugnados deviam ter sido considerados não provados, tal como defende a Ex.ma Procuradora-Geral-Adjunta no seu parecer.

Em suma: a recorrente requereu a reapreciação da decisão da matéria de facto sobre os pontos indicados, no sentido de ser substituída a decisão de «provado» por «não provado».

Isso mesmo decorre do corpo da pertinente alegação de recurso, quando a recorrente afirma, relativamente aos factos dados como provados sob os n.os 36, 37 e 39, que «resulta de uma errada apreciação da prova, pelo que não podem tais factos constar dos factos provados, devendo antes dar-se como provado que a roda dentada tinha proteção que impedia o contacto da autora com a parte móvel e só pela atitude indesculpável e inexplicável e grosseira da autora é que o acidente ocorreu».

Também quanto aos pontos 40) e 58), depois de fazer uma apreciação crítica da prova, a apelante conclui que «não poderiam ter sido dados como provados» e, no tocante aos factos provados sob os n.os 41 e 57, a apelante afirma que «não poderia o Tribunal a quo dar os factos constantes dos pontos 41 e 57 como provados».

Tudo para concluir que a rejeição da apelação no tocante à reapreciação do julgamento da matéria de facto não pode ser sufragada, termos em que procedem as conclusões 1.ª a 5.ª, 9.ª a 20.ª, 24.ª e 25.ª da alegação do recurso de revista.

                                             III

Pelo exposto, delibera-se conceder parcialmente a revista e revogar o aresto recorrido na parte em que rejeitou o recurso de apelação sobre a decisão relativa à matéria de facto, determinando-se a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Coimbra, a fim de conhecer o recurso de apelação quanto à reapreciação da decisão da matéria de facto oportunamente impugnada e serem apreciadas, em conformidade, as demais questões jurídicas suscitadas no âmbito do interposto recurso de apelação.

Custas, nas instâncias e no recurso de revista, de harmonia com o que for decidido a final.

Anexa-se o sumário do acórdão.

                       Lisboa, 6 de junho de 2018

Pinto Hespanhol (Relator)

Gonçalves Rocha

Leones Dantas