Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
132/15.0YFLSB
Nº Convencional: SECÇÃO DO CONTENCIOSO
Relator: MARTINS DE SOUSA
Descritores: PROVIMENTO
INTERESSE EM AGIR
ACTO ADMINISTRATIVO
ATO ADMINISTRATIVO
REGULAMENTO
JUIZ PRESIDENTE
JUIZ
CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA
DELIBERAÇÃO DO PLENÁRIO
REJEIÇÃO DO RECURSO
Data do Acordão: 06/23/2016
Votação: MAIORIA COM * VOTOS DE VENCIDO
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO CONTENCIOSO
Decisão: ANULADA A DELIBERAÇÃO IMPUGNADA
Área Temática:
DIREITO ADMINISTRATIVO - REGULAMENTO ADMINISTRATIVO - ACTO ADMINISTRATIVO ( ATO ADMINISTRATIVO ) - PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO.
ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA - TRIBUNAIS JUDICIAIS DE PRIMEIRA INSTÂNCIA / PRESIDENTE DO TRIBUNAL DE COMARCA / ACTOS ADMINISTRATIVOS PRATICADOS PELO PRESIDENTE ( ATOS ADMINISTRATIVOS PRATICADOS PELO PRESIDENTE ) / RECURSO PARA O CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA.
Doutrina:
- AFONSO RODRIGUES QUEIRÓ, Direito Administrativo, Vol. I, Coimbra, 1976, 414.
- ANTUNES VARELA e outros, Manual de Processo Civil, 2.ª ed, 19 e ss..
- MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Teoria Geral do Direito Administrativo: temas nucleares, Almedina, 80 a 84.
- FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, Ed. Almedina, 154 e 227.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC): - ARTIGO 6.º.
CÓDIGO DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO (CPA): - ARTIGOS 95.º, N.º1, 135.º, 148.º.
ESTATUTO DOS MAGISTRADOS JUDICIAIS (EMJ): - ARTIGO 164.º, N.º1.
LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO (LOSJ): - ARTIGO 98.º.
Legislação Comunitária: DE 22 DE ABRIL DE 2004, PROFERIDO NO PROC. 0933/02 E ACESSÍVEL IN WWW.DGSI.PT.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO:

-DE 22 DE ABRIL DE 2004, PROC. 0933/02 E ACESSÍVEL IN WWW.DGSI.PT .
-DE 19 DE MAIO DE 2011, PROC. N.º 0113/10, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
-DE 12 DE JANEIRO DE 2012, PROC. N.º 0714/10, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
-DE 24 DE JANEIRO DE 2012, PROC. N.º 0851/11, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .

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ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 26 DE JUNHO DE 2013, PROCESSO N.º 132/12.2YFLSB, SUMARIADO EM HTTP://WWW.STJ.PT/FICHEIROS/JURISP-SUMARIOS/CONTENCIOSO/CONTENCIOSO-2013.PDF .
-DE 31 DE MARÇO DE 2016, PROCESSOS N.º 127/15.2YFLSB, 128/15.2YFLSB E 149/15. 5YFLSB, TODOS ACESSÍVEIS EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
Decisão Texto Integral:

     ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

AA, juíza ..., a exercer funções na instância criminal ... do Tribunal Judicial da Comarca de ..., veio recorrer da deliberação do Conselho Superior da Magistratura de ....2015 que lhe rejeitou o recurso hierárquico que havia interposto de despacho de 28.11.2014, proferido pela Ex.ma Juíza Presidente da aludida comarca.

Seus fundamentos são, em síntese, os seguintes:
(i) A qualificação de determinado comando como ato ou regulamento depende de se saber se, numa análise casuística, aquele assume natureza geral e abstrata ou uma natureza individual e concreta, ou seja, reconduz-se à questão de se saber se os destinatários dos comandos normativos são (individual) ou não (gerais) determinados ou determináveis, enquanto que os conceitos de abstrato e concreto traduzem a possibilidade de esgotamentos dos efeitos das situações da vida que se pretende regular (se o efeito do comando normativo se esgota com a produção do comando diremos que se trata de um ato; se o comando subsiste no mundo jurídico e não se esgota para e na situação de determinados sujeitos, então assume a forma de regulamento);


(ii) Resulta do conteúdo do despacho da Exma. Senhora Presidente da Comarca de ... e que foi alvo de recurso para o CSM, que se trata de um comando decisório, na medida em que impõe uma prescrição, ou seja, uma ordem precisa sobre os critérios a considerar naquela comarca quanto à prolação de provimentos, decisão essa que foi proferida no âmbito dos poderes deveres dos presidentes da comarca, ao abrigo das competências que lhes são próprias, e que regulou, nos termos definidos na LOSJ, a situação jurídica dos juízes da comarca de Porto Este;


(iii) De resto, é uma decisão (com o sentido e alcance acima evidenciados) que produz efeitos jurídicos na esfera de terceiros que com o seu autor mantêm uma relação jurídica administrativa nos termos da LOSJ, nomeadamente na esfera jurídica dos juízes da comarca de ... que a Exma. Senhora Juiz Presidente encabeça;


(iv) Por outro lado, é indubitável que a decisão incide sobre uma situação individual, pois os destinatários daquela decisão ainda que não estejam concretamente determinados, são efectivamente determináveis, isto é, destinatários do despacho são efectivamente os senhores juízes que se encontravam à data da sua prolação a exercer funções no tribunal da comarca de Lisboa Norte (e que sobre o despacho reclamado se pronunciaram) e não qualquer magistrado que aí viesse a ser colocado e/ou que prestasse as suas funções noutra comarca;


(v) Por fim, sobressai o carácter concreto da situação regulada, na medida em que o comando proferido (regulação da forma de emissão de provimentos) se esgota com a sua prolação e notificação aos seus destinatários, uma vez que a consequente produção de efeitos modifica, de forma imediata, os poderes deveres dos juízes daquela comarca;


(vi) Aliás, mesmo que se considerasse que o comando em questão não assumiria uma natureza concreta mas sim abstracta (o que não se concede), certo é que, face ao que se deixou exposto, o mesmo tem uma inequívoca natureza individual, pelo que, e como se afirma na douta deliberação do R. de 29 de setembro de 2015, proc. nº 2014-478/OU, o mesmo não deveria ser “assimilado à figura do regulamento, mas do acto administrativo, (…) [pois] não reún[e], cumulativamente, as características de generalidade e da abstracção”;


(vii) Na verdade, a natureza de ato administrativo é ainda mais evidente se se verificar que o comando normativo proferido pela Exma. Senhora Presidente da Comarca de ... está sujeito a uma condição (a definição da forma de emissão de provimentos por parte do CSM, enquanto evento futuro mas incerto), o que, como se sabe, é uma característica própria, típica e exclusiva dos atos administrativos;


(viii) A douta deliberação impugnada padece, por isso, de manifesto erro de julgamento, em clara violação do disposto nos artigos 98º do LOSJ, e 148º e 193º, nº 1, do novo CPA, motivo pelo qual deve ser anulada, nos termos do disposto no artigo 163º, nº 1, do CPA, e substituída por outra que aprecie o objecto do recurso submetido à apreciação do R., por efectivamente estarmos na presença de uma impugnação administrativa de um ato administrativo proferido por um presidente de comarca, sendo entendimento contrário inconstitucional, por clara violação do direito ao recurso (judicial e administrativo), instituído nos artigos 20º, nº 1, e 268º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Respondeu o C.S.M., enunciando no têrmo de sua alegação, as seguintes conclusões:

1.º Face ao que estabelecia o artigo 120.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), aprovado pelo DL n.º 442/91, de 15.11, vigente aquando a prolação do despacho objecto de reclamação, seria pressuposto, para que um qualquer comando emitido pelo juiz presidente do tribunal revestisse a natureza de ato administrativo, que, ademais do conteúdo decisório, tivesse uma natureza individual e concreta.

2.º Já se esse comando revestir os caracteres da generalidade e da abstracção e for susceptível de execução permanente (vigência sucessiva), assumirá então natureza normativa, não podendo assim ser qualificado como um acto administrativo, mas eventualmente como um regulamento.

3.º O comando da Exma. Sra. Juíza Presidente colocado em causa não identifica os seus destinatários de forma nominativa, mas por referência à respectiva qualidade funcional, assim todos os juízes que aí exerciam funções mas também a quaisquer outros que na sua vigência aí fossem colocados, não se verificando assim a característica da «determinabilidade» invocada pela Recorrente e assumindo antes uma natureza geral.

4.º Porque esse comando valia para todos os (aí designados) «provimentos» que durante a respectiva vigência viessem a ser proferidos e não apenas para um concreto «provimento», tal permite afirmar que, para além de geral, o comando é abstracto e tem vigência sucessiva.

5.º Não se considera que seja «uma decisão que foi proferida no âmbito dos poderes deveres dos presidentes da comarca, ao abrigo das competências que são próprias dos presidentes da comarca, e que regulou, nos termos definidos na LOSJ, a situação jurídica dos juízes daquela comarca no que à matéria de provimentos diz respeito».

6.º Noutros termos, afastando-o, basta ter presente a referência expressa à decisão que viesse a ser tomada pelo CSM, não assumindo assim o seu autor essa competência como própria, remetendo antes esta expressamente para este Conselho.

7.º Mencionando ainda expressamente a possibilidade de os Juízes poderem apresentar as respectivas propostas de «provimento», não se vê como possa ter sido modificado e muito menos limitado, e designadamente em algum caso concreto – que de resto a Recorrente não indica –, o poder de qualquer dos Juízes em exercício de funções na Comarca quanto à sua concreta emissão.

8.º Não se considera, assim, que a deliberação recorrida padeça de erro de julgamento, muito menos manifesto, com violação dos normativos referenciados pela Recorrente, designadamente o disposto no artigo 98.º da LOSJ, como, ainda, que esteja em causa qualquer entendimento inconstitucional, por violação do direito ao recurso (judicial e administrativo), instituído nos artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.

9.º A deliberação recorrida fez assim uma adequada integração do comando da Juíza Presidente quando concluiu que esse não assumia a natureza de um acto administrativo e sim, diversamente, regulamentar.

10.º Os actos provisórios, até pela sua própria natureza – precisamente a provisoriedade que lhes está intrinsecamente associada –, devem ser considerados por referência à decisão que posteriormente, essa sim definitiva, venha a ser proferida.

11.º Visto o comando em causa, ainda que se entendesse que esse não assume a natureza de regulamento, sempre se imporia considerar que tem clara natureza provisória.

12.º Pelo que, precisamente por decorrência da provisoriedade que lhe está intrinsecamente associada, teria de ser considerado por referência à decisão que posteriormente, essa sim definitiva, viesse a ser proferida pelo CSM.

13.º Porque o CSM, na sessão do Plenário de 14 de Julho de 2015, proferiu deliberação sobre a matéria da emissão de «provimentos» ou «ordens de serviço», definindo então com definitividade a situação, sempre se imporá considerar os efeitos que desta decisão decorreram para a posição anterior assumida pela Presidente da Comarca, precisamente o cessar da sua vigência, daí decorrendo uma situação de inutilidade superveniente, quer do procedimento quer ainda do presente recurso (artigos 287º, al. e) do Código de Processo Civil).

E finda pedindo a improcedência do recurso.

 Notificados para os termos do artº176º do EMJ, Recorrente e Recorrido reafirmaram, no essencial, as posições já assumidas.

Por sua vez, a Digna Magistrada do Mº Pº emitiu douto parecer no qual sustenta que o despacho em apreço já caducou bem como a ilegitimidade da Recorrente e no tocante à questão de fundo defende que em tal despacho se não configura um acto administrativo, sendo por isso, irrecorrível.

Aqui chegados e corridos os vistos, cumpre apreciar.

A - Antes de sua abordagem, passa a enunciar-se o enquadramento fáctico que lhes preside:

1 - Em 28 de Novembro de 2014, a Senhora Presidente do Tribunal Judicial da Comarca de ... fez exarar o despacho seguinte:

"Na sequência da visita do Conselho Superior de Magistratura, ocorrida em 27/11/2014, foi pelo Conselho Superior de Magistratura veiculada a informação de que o Conselho se encontra a estudar a interpretação correta relativa à emissão de provimentos.

Assim e até que o Conselho Superior de Magistratura tome posição formal sobre o assunto, todos os provimentos serão dados por mim.

Nas situações em que os Senhores Juízes pretendam formular alguma proposta de provimento, deverão dirigir uma proposta escrita para mim, através do gabinete de apoio" .

2 - Em 30 de Dezembro de 2014, a Recorrente apresentou junto do Conselho Superior de Magistratura, recurso hierárquico do citado despacho, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 98º da Lei nº 62/2013, de 26 de agosto (LOSJ).

3 -  Por deliberação de 29 de Setembro de 2015, decidiu o Plenário do CSM rejeitar esse mesmo recurso hierárquico, após ter concluído em síntese “que o que é objecto de impugnação não é um acto administrativo, assumindo antes a natureza de um regulamento, razão pela qual, por decorrência, não é susceptível de recurso hierárquico, o que constitui, nos termos do disposto no artigo 173º, alínea b), do Código de Procedimento Administrativo (redacção então vigente), causa de rejeição do recurso”.

B – Vejamos, então:

B1 – Suscitam o Recorrido e a Digna Magistrada do MºPº, aparentemente, como questão prévia, a da inutilidade superveniente do procedimento, ou,  noutra formulação, a da sua caducidade face à circunstância de o despacho sobre o qual incidia o recurso hierárquico se não encontrar em vigor uma vez que, entretanto, o CSM traçou orientação regulamentadora da matéria nele versada ( provimentos).

Salvo o devido respeito, suscitar esta questão nestes autos não será o mais apropriado.

Na verdade, o objecto do recurso que nos ocupa restringe-se à questão da admissibilidade ou não de recurso hierárquico que a Recorrente interpôs do despacho de Senhora Juíza Presidente da Comarca de .... Foi esse, também, o objecto da deliberação impugnada que, como se viu, tão pouco se pronunciou sobre o conteúdo substantivo daquele mesmo despacho, ignorando-se, também, o que com ele veio a ocorrer, posteriormente.

E se é certo que foi esta questão da admissibilidade do recurso que, preliminarmente, obstou à apreciação da “questão de fundo” ali tratada, a relação entre ambos ficou-se por aqui.

Ora, sabendo-se, como se sabe que o recurso contencioso das deliberações do Conselho Superior da Magistratura deve considerar-se como de mera anulação, ou seja, que a decisão a proferir se limitará a declarar a inexistência ou nulidade da deliberação recorrida ou à sua anulação[1], afigura-se-nos que sempre seria prematuro considerar que a finalidade deste procedimento ou o esgotamento daquele seu objecto se tornaram inúteis (artº95º,1 do CPA). Daí que se deva prosseguir no conhecimento deste último.

B2 – No douto parecer da Digna Magistrada do Mº Pº coloca-se ainda em dúvida a legitimidade da Recorrente, no recurso, por não se lhe reconhecer interesse em agir na sua impugnação.

Nos termos do n.º 1 do artigo 164.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais a legitimidade activa para o presente meio impugnatório depende da titularidade de um “interesse directo, pessoal e legítimo na anulação da deliberação”.

Próximo da legitimidade e embora a lei lhe não faça qualquer referência, entre os pressupostos processuais inclui-se ainda,  o interesse processual ou interesse em agir que se traduz na necessidade fundamentada e razoável, da tutela judiciária, lançando mão de processo ou de fazer prossegui-lo por forma a obter pronunciamento judicial (cfr A. Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2ª ed, 19 e ss).

 Também neste âmbito se tem de repetir que o objecto do presente recurso se restringe à questão da admissibilidade ou não do recurso hierárquico em causa a qual, como já se referiu, se não sobrepõe à questão subjacente da matéria do despacho que por aquele recurso se pretendia impugnar.

E no que contende com esta matéria do despacho o que importa salientar é que a sua autora reclamou, exclusivamente, para si,  no âmbito da comarca, o poder de dar provimentos enquanto essa matéria não fosse objecto de apreciação e decisão pelo CSM.

Ora, os provimentos são uma espécie de instruções de cariz administrativo, tradicionalmente, utilizados nos tribunais, grosso modo,  como veículo para agilizar e simplificar procedimentos no âmbito da gestão do tribunal   ou da própria gestão processual. E se naquela não se pode por em dúvida que ela cai na alçada do presidente da comarca, nesta não se pode retirar ao juiz dos processos, tendo em conta o artº6º do NCPC, o poder para elaborar instrumentos daquele tipo.

Assim sendo, parece não restar dúvida que, intentando a Recorrente discutir a legalidade de tal despacho que não distinguiu as duas situações demarcadas, não oferece dúvida – por ser sua destinatária - o seu interesse processual em tentar repor através deste recurso contencioso aquela mesma discussão e dela obter ganho de causa.

Deste modo assegura o seu interesse em agir.

B3 - O que nos remete para diferenciação entre acto administrativo e regulamento administrativo cuja definição se encontra nos artº135º e 148º do actual Código do Procedimento Administrativo[2], aqui, exclusivamente, aplicável.

A partir da consideração destas definições, extrai-se que o legislador identificou o regulamento com generalidade e abstracção do alcance dos respectivos preceitos e o acto administrativo com a individualização e concretização do seu comando, esquivando-se, porém, a densificar os conceitos integrantes destes binómios.

Ensina FREITAS DO AMARAL[3] que “(…) A característica da generalidade significa que o comando regulamentar se aplica a uma pluralidade de destinatários, definidos através de conceitos ou categorias universais; por seu turno, a característica da abstracção traduz-se na circunstância de o comando regulamentar se aplicar a uma ou mais situações definidas pelos elementos típicos constantes da previsão normativas, isto é, também por conceitos ou categorias universais. Enquanto comando abstracto que é o regulamento não se esgota normalmente numa aplicação; pelo contrário, aplicar-se-á sempre que em concreto se verificarem as situações típicas que nele se encontram previstas.

Diferentemente se passam as coisas com o acto administrativo. É que o acto administrativo está, em princípio, vocacionado para se aplicar a único destinatário – um indivíduo, uma pessoa colectiva, uma empresa – e para resolver uma situação concreta, consumindo nela os seus efeitos jurídicos. (…)”. É que, por norma (…) o acto administrativo versa sobre uma situação individual e concreta: por isso, um pretenso acto administrativo que não contenha em si mesmo a individualização do destinatário a que se aplica e do caso sobre que versa não pode valer, perante a ordem jurídica, como acto administrativo (…)”.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo tem perfilhado este entendimento[4].

Esta Secção teve já, recentemente, ocasião de traçar, nos seguintes moldes, as linhas de fronteira entre aquelas duas formas paradigmáticas de exercício da actividade administrativa, tendo logrado vencimento a posição segundo a qual “(…) a diferenciação entre acto administrativo e regulamento administrativo assenta e manifesta-se na constatação de que o acto, ao contrário do regulamento (norma administrativa), não inova o ordenamento jurídico, antes o aplica. Por outro lado, o acto administrativo destina-se a regular uma situação individual e concreta, enquanto o regulamento administrativo (norma administrativa) tem uma dimensão de abstracção e generalidade. (…)”[5].

Colhidos estes contributos, parece ser de assentar que o cerne da distinção entre um regulamento e um acto administrativo reside nos traços de generalidade e de abstracção de que o primeiro se reveste.

Apelida-se de generalidade a indeterminação dos seus destinatários e a sua definição por intermédio de conceitos ou categorias universais sem individualização de pessoas, ainda que, porventura, determináveis.

Por seu turno, pode-se conceber como abstracção a previsão hipotética de uma situação objectiva que não se esgota numa única aplicação, ou, se quisermos, a susceptibilidade de aplicação da hipótese a um número indefinível de casos. Disciplina-se não um caso mas uma pluralidade de hipóteses reais que venham a verificar-se no futuro[6].

Ao invés, o acto administrativo é sempre uma decisão individual (em face da definição legal constante do artigo 148° do Código do Procedimento Administrativo a individualização do destinatário é um elemento essencial do acto administrativo) e concreta (a decisão esgota os seus efeitos com uma única aplicação e irrepetível).

Na fronteira desta distinção surgem, no entanto, dificuldades de caracterização como sucede com os denominados actos administrativos gerais, i.e. comandos de aplicação concreta que têm como destinatários um grupo circunscrito de pessoas não concretamente individualizados mas individualizáveis[7].

A este respeito, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA[8] dá-nos a conhecer que “(…) Já no que diz respeito aos comandos de aplicação concreta, mas que têm por destinatários um grupo circunscrito de pessoas, que, embora não sejam por eles individualizadas, são determinadas ou determináveis, parecem perfilar-se dois entendimentos diferentes na doutrina. Para um desses entendimentos, a generalidade das normas decorre do facto de os seus destinatários não serem individualizados, mas nelas apenas surgirem definidos por referência a conceitos ou categorias universais. Portanto, desde que um comando unilateral produzido pela Administração Pública, no exercício da função administrativa, não individualize os seus destinatários, mas os defina por referência a conceitos ou categorias universais, tal comando deve ser qualificado como geral. Ora, como os actos administrativos são, não apenas concretos, mas também individuais, este tipo de comandos deve ser reconduzido à figura do regulamento, e não do ato administrativo.

Para o segundo dos entendimentos referidos, pelo contrário, a generalidade das normas não decorre apenas do facto de os seus destinatários não serem por elas individualizados, mas também do facto de eles não serem determináveis à face do que nelas se dispõe. Portanto, os comandos que, embora não individualizem os seus destinatários, permitam que se proceda à respectiva determinação devem ser reconduzidos à figura do ato administrativo, e não do regulamento. (…)

Concordamos com o segundo, na parte em que assume que o ato concreto com destinatários determináveis não possui conteúdo normativo e, portanto, não deve ser assimilado à figura do regulamento, mas do ato administrativo. Era este, de resto, o entendimento tradicional. Mas, precisamente em conformidade com o entendimento tradicional, cumpre acrescentar que, para nós, não deixa de existir generalidade num ato jurídico pelo facto de os destinatários desse ato serem determináveis à face dele: para que exista generalidade, basta, a nosso ver, que os destinatários não sejam concretamente identificados pelo ato, mas nele apenas surjam definidos por referência a conceitos ou categorias universais. Neste entendimento assenta, aliás, a tradicional recondução das situações do tipo em análise ao conceito de ato administrativo geral, cuja pertinência, no vigente direito português, se afigura inquestionável: de outro modo, sempre se deveria ter, na verdade, assumido, pura e simplesmente, que os comandos cujos destinatários não eram individualizados pelo ato, mas que eram determináveis à face dele, não afinal, actos gerais, mas actos individuais.  (…)”.

Presentes estes ensinamentos cabe reter, atento o teor do despacho impugnado que neste a sua autora reclamou, exclusivamente, para si,  no âmbito da comarca, o poder de dar provimentos enquanto essa matéria não fosse objecto de apreciação e decisão pelo CSM.

Resulta, desde logo, do conteúdo de tal despacho que foi alvo de recurso para o CSM, que se trata de um comando decisório, na medida em que impõe uma prescrição.

Trata-se, também, de uma decisão que foi proferida no âmbito dos poderes deveres dos presidentes da comarca, ao abrigo das competências que lhes são próprias.

Depois, como é manifesto, dela evolam efeitos jurídicos na esfera de terceiros que com a sua autora mantém uma relação jurídica administrativa nos termos da LOSJ.

Acresce que dúvidas não se suscitarão quanto à repercussão da mesma decisão sobre a situação individual de qualquer dos juízes seus destinatários já que estes, embora não estejam concretamente determinados, são efectivamente determináveis: são os juízes que à data do despacho integravam a comarca a que a autora daquele despacho presidia.

Por fim, deve deixar-se expresso que a natureza de acto administrativo do despacho recorrido é ainda mais evidente se considerarmos que o mesmo traduz a aplicação a uma situação individual e concreta de uma orientação genérica, por certo, na sequência dos contactos e das orientações fornecidas pelo R. a esse respeito.

É, por isso, manifesto que o despacho objecto de recurso hierárquico, nos termos do disposto no artigo 98.º da LOSJ, assume a natureza de acto administrativo e não de regulamento como defendido pela deliberação impugnada, enquanto comando que define uma situação individual e concreta.

Procede, pois, o recurso.

III

Termos em que, sem necessidade de outras considerações, se anula a deliberação impugnada.

Custas pelo Conselho Superior da Magistratura, sendo o valor da acção o de € 30.000,01 e a taxa de justiça de 6 UC.

                Lisboa, 23 de Junho de 2016

Martins de Sousa (relator)

João Trindade (Vencido de acordo com a declaração do Exmo. Conselheiro António da Silva Gonçalves)


Oliveira Mendes

Ana Luisa Geraldes

Pinto de Almeida

Silva Gonçalves (Vencido; estou convicto de quea deliberação impugnada assume a natureza de um «regulamento» conforme entendimento do C.S.M)

Isabel Pais Martins (Vencida nos termos da declaração anterior)


Sebastião Póvoas (Presidente da Secção)

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[1] Neste sentido, v., entre outros, o Acórdão da Secção de Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Junho de 2013, proferido no processo n.º 132/12.2YFLSB, sumariado em http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-sumarios/contencioso/contencioso-2013.pdf.
[2] Cfr. n.º 1 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de Janeiro.
Artº135º “Para efeitos do disposto no presente Código, consideram-se atos administrativos as decisões que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta”.
 Artº148º: Para efeitos do disposto no presente Código, consideram-se regulamentos administrativos as normas jurídicas gerais e abstractas que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos

[3]Curso de Direito Administrativo”, Vol. II, Ed. Almedina, págs. 154 e 227.
[4] Assim, entre outros, v. os arestos:
· de 24 de Janeiro de 2012 – proferido no proc. n.º 0851/11 e acessível em www.dgsi.pt –, onde se ponderou que “(…) como resulta do preceituado no art. 120.º do CPA, «consideram-se actos administrativos as decisões dos órgãos da Administração que ao abrigo de normas de direito público visem produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta». No caso, para além do decidido quanto ao beneficiário A.., o despacho referido nada pretendeu decidir relativamente à situação concreta de qualquer outro beneficiário, mas apenas visou, como decidiu o Tribunal Central Administrativo Norte no âmbito dos seus poderes de cognição, «definir procedimentos de actuação e de interpretação a serem de futuro seguidos pelos serviços em relação aos pedidos de actualização de pensão formulados». Assim, não sendo o despacho referido um acto administrativo quanto ao decidido para além do que respeita àquele beneficiário identificado, por não ter visado configurar, só por si, qualquer outra situação individual e concreta, está afastada a possibilidade de se estar, na parte que não se refere àquele beneficiário, perante um acto administrativo constitutivo de direitos para efeitos das restrições à revogabilidade de actos deste tipo (…)”;
· de 12 de Janeiro de 2012 – proferido no proc. n.º 0714/10 e acessível em www.dgsi.pt –, em que se escreveu que: “O facto do acto administrativo ter um destinatário concreto, perfeitamente identificado, cuja situação individual visa regular é, assim, um dos seus elementos essenciais, característica que o distingue dos actos normativos já que estes se destinam a regulamentar a situação de um universo geral e abstracto de destinatários.  A generalidade e abstracção dos seus destinatários funciona, assim, como elemento distintivo do acto normativo, essencial na construção deste conceito, e, se assim é, podemos afirmar que se a imposição se dirige a um grupo genérico e indeterminado de pessoas, ainda que determináveis, mas sem definição das suas situações individuais, ter-se-á de concluir que a mesma tem características de acto normativo e não de acto administrativo (…)”.
· De 19 de Maio de 2011 – proferido no proc. n.º 0113/10 e acessível em www.dgsi.pt –, em que se decidiu que “(…) Com efeito, segundo a doutrina e a jurisprudência maioritárias, o acto administrativo visa sempre a produção de efeitos jurídicos numa situação individual e concreta, exigindo, portanto, a identificação ou individualização do(s) seu(s) destinatário(s), assim se distinguindo do acto normativo, que se caracteriza pela generalidade e abstracção, pelo que os seus destinatários integram-se em conceitos ou categorias abstractas e, portanto, sem individualização de pessoas (…). E como já decidiu este STA, em casos de actos mistos de difícil qualificação (actos gerais e concretos), a dúvida deve ser resolvida a favor da normatividade. (Cf. os já citados acórdãos do Pleno de 07.06.2006, 1257/05 e da 1ª Secção do STA de 03.11.2004, rec. 678/04)”.

[5] V. os acórdãos proferidos na sessão do dia 31 de Março de 2016 nos processos n.º 127/15.2YFLSB, 128/15.2YFLSB e 149/15. 5YFLSB, todos acessíveis em www.dgsi.pt.

[6] Assim AFONSO RODRIGUES QUEIRÓ “Direito Administrativo”, Vol. I, Coimbra, 1976, pág. 414 segundo o qual abstracção significa que os regulamentos disciplinam não um caso ou hipótese determinada, concreta ou particular, mas um número indeterminado de casos, uma pluralidade de hipóteses reais que venham a verificar-se no futuro. Possuem “uma pretensão imanente de duração” (Forsthoff) e não se consomem na sua primeira aplicação, voltando a aplicar-se de cada vez que a situação abstractamente prevista se verifique”.
[7] Veja-se, neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 22 de Abril de 2004, proferido no proc. 0933/02 e acessível in www.dgsi.pt.
[8] “Teoria Geral do Direito Administrativo: temas nucleares”, Almedina, págs. 80 a 84.