Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1016/12.0T4AVR.C1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: MÁRIO BELO MORGADO
Descritores: JUSTA CAUSA DE DESPEDIMENTO
DEVER DE ZELO E DILIGÊNCIA
EDUCADORA DE INFÂNCIA
DIREITO DE CORREÇÃO
Data do Acordão: 09/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DA FAMÍLIA / EFEITOS DA FILIAÇÃO / RESPONSABILIDADES PARENTAIS / MEIOS DE SUPRIR O PODER PATERNAL.
DIREITO CONSTITUCIONAL - DIREITOS E DEVERES ECONÓMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS / DIREITOS E DEVERES SOCIAIS.
DIREITO DO TRABALHO - CONTRATO DE TRABALHO / DEVERES DO TRABALHADOR / INCUMPRIMENTO DO CONTRATO / PODER DISCIPLINAR / CESSAÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO / DESPEDIMENTO POR INICIATIVA DO EMPREGADOR.
Doutrina:
- Bernardo da Gama Lobo Xavier, Direito do Trabalho, Verbo, 2011, p. 738 – 739.
- Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, pp. 506 – 507.
- Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, II, 4ª edição, p. 821.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1878.º, 1885.º, N.º1, 1935.º.
CÓDIGO DO TRABALHO (CT) / 2009: - ARTIGO 128.º, N.º 1, C), 330.º, N.º1, 351.º, N.ºS1 E 3.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 69.º, N.º1.
Referências Internacionais:
CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA: - ARTIGOS 19.º, N.º1.
Sumário :
I - Constitui justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho, devendo a culpa e a gravidade dos factos ser apreciadas em função dos padrões comportamentais e de exigência respetivamente correspondentes a um trabalhador médio e a um empregador normal, nas mesmas circunstâncias.

II - A conduta do trabalhador deve ser apreciada globalmente, tendo em vista captar uma imagem global dos factos; e deve verificar-se um nexo de causalidade entre a conduta do trabalhador e a impossibilidade (prática e imediata) de subsistência do contrato de trabalho.

III -   Na decisão de despedimento são suscetíveis de relevar fatores: (i) de índole objetiva, como sejam os bens/interesses jurídicos lesados, a gravidade dos danos/lesões decorrentes da conduta do trabalhador, a publicidade e repercussão social dos factos, o tempo e lugar dos factos, a reiteração da conduta do trabalhador, as advertências do empregador, a antiguidade e percurso anterior, as funções exercidas pelo trabalhador e seu enquadramento na estrutura da empresa, as relações entre o trabalhador e a empresa, as relações entre o trabalhador e colegas de trabalho, o carácter público ou privado do comportamento do trabalhador e as práticas disciplinares na empresa; e (ii) de índole subjetiva, como sejam a intencionalidade e o estado psicológico.

IV - Bater “com as costas da mão na cara” de uma criança na faixa etária dos 3 aos 5 anos de idade não se reconduz à categoria dos castigos “moderados”, sendo que o direito de correção, como justificação do facto, coloca-se hoje, entre nós, praticamente e apenas – e cada vez de forma mais restritiva - relativamente a pais (arts. 1878.º e 1885.º, n.º 1, do CC) e tutores (art. 1935.º, do CC), pelo que, na ausência de qualquer lei que o admita, um direito de correção do professor sobre os seus alunos que implique a prática, por aquele, de factos criminalmente típicos não parece poder hoje sufragar-se.

V - Carecendo de justificação os métodos educativos irregulares utilizados pela trabalhadora, e tendo ainda presente que nada na factualidade provada permite supor que tais métodos tenham sido autorizados pela entidade empregadora, não pode deixar de concluir-se que aquela infringiu os deveres de zelo e diligência a que se encontrava adstrita, em termos que impossibilitam prática e imediatamente a subsistência da relação laboral. 

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

I.

1. AA intentou ação com processo especial de impugnação da regularidade e licitude do despedimento contra o Centro Comunitário da Paróquia de BB, ambas as partes com os sinais nos autos.

2. A ação foi julgada parcialmente procedente na 1.ª Instância, tendo o tribunal, para além do mais, declarado ilícito o despedimento da A.

3. Interposto recurso de apelação pela R., foi o mesmo julgado procedente pelo Tribunal da Relação de Coimbra (TRC), “na verificação da licitude do despedimento”.

4. Deste acórdão, agora de revista, recorre a A., sustentando, em síntese, nas conclusões das suas alegações:

- Os factos provados não constituem justa causa de despedimento;

- A atuação da A., enquanto educadora de infância, inseriu-se no contexto do respetivo poder corretivo;

- Na educação justifica-se uma “correção moderada”, a qual pode incluir alguns castigos corporais ou outros.

- Os castigos moderados aplicados a menor por quem de direito, com fim exclusivamente educacional e adequados/proporcionados à situação, não são ilícitos, estando postas de parte, no plano científico, as teorias que defendem a abstenção total deste tipo de corretivos.

5. A R. contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.

6. A Ex.m.ª Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se no sentido de ser negada a revista, em parecer a que as partes não responderam.

7. Inexistindo quaisquer outras de que se deva conhecer oficiosamente (art. 608.º, n.º 2, in fine, do CPC[1]), em face das conclusões da alegação de recurso, a única questão a decidir é, pois, a de saber se os factos provados não constituem justa causa de despedimento. [2]

8. Cumpre decidir, sendo aplicável à revista o regime processual que no CPC foi introduzido pela Lei 41/2013, de 26 de Junho, nos termos do art. 5.º, n.º 1, deste diploma[3].

E decidindo.

II.

9. A matéria de facto fixada na decisão recorrida é a seguinte (transcrição expurgada dos factos destituídos de relevância para a decisão):

1. No dia 31.5.2012, a R. recebeu o fax inserto a fls. 39 e 40 dos autos, no qual os Srs CC e esposa DD e EE, pais dos menores FF e GG, que frequentavam a creche da R. e estavam a cargo da A., referiam ter tido conhecimento da existência de maus tratos na sala dos seus filhos e pediam a mudança dos mesmos para outra sala, bem como a tomada de medidas por parte da Direção da R.

2. A Direção da R. respondeu no mesmo dia através do fax inserto a fls. 41, solicitando a concretização dos referidos maus tratos a fim de instaurar o processo de averiguações e consequente processo disciplinar, se se justificasse.

3. Em resposta recebeu o fax inserto a fls. 43 e 44 dos autos datado de 1.6.2012.

4. Na sequência desta troca de correspondência, a R. transferiu os filhos dos pais queixosos para outras educadoras e abriu um processo de averiguações/inquérito com vista ao apuramento dos factos.

5. A A. quando teve conhecimento das comunicações referidas em 1 e 3, convocou uma reunião de pais que teve lugar no dia 5.6.2012 na qual não estiveram presentes os pais queixosos e os membros da Direção estiveram presentes apenas para ouvir, sendo da referida lavrada a ata que se mostra inserta a fls. 154 e 155 dos autos, que se dá aqui por integralmente reproduzida, na sua literalidade.

6. (…)

7. (…)

8. (…)

9. (…)

10. Em 11.10.2012, foi proferida e remetida à A. a decisão disciplinar inserta de fls. 120 a 130 dos autos, recebida por esta no dia 12.10. 2012.

11. O Centro Comunitário da Paróquia de BB é uma Instituição Particular de Solidariedade Social que no âmbito das suas competências tem a valência de creche.

12. A A. trabalha de forma contínua para a R. desde 1.9.2006, desempenhando sempre as funções de educadora de infância.

13. O último contrato celebrado entre a R. e a A. foi o contrato de trabalho a termo incerto, que se mostra junto a fls. 134 dos autos, datado de 1.9.2008, mas já anteriormente, desde Dezembro de 2003, a A. trabalhava para a R. em substituição de funcionárias que se encontravam de baixa por parto ou por doença (…)

14. A A. desenvolvia a sua atividade na área para que foi contratada, sendo da sua competência, além do mais, organizar e aplicar os meios educativos adequados ao desenvolvimento integral das crianças, acompanhar a sua evolução e estabelecer os contactos com os pais.

15. Quer o almoço, quer o lanche regiam-se por procedimentos e regras impostos pela A.

16. A A. no ano letivo de 2011/2012 tinha a seu cargo crianças na faixa etária dos 3 aos 5 anos.

17. Durante o almoço quando alguma criança punha fora os alimentos depois de os ter levado à boca, a A. substituía-lhe o prato, trocando os alimentos por outros iguais e insistia para que comesse.

18. E quando alguma criança no decurso do almoço não comia e estava a perturbar as outras punha-a de pé à mesa.

19. A A. incentivava as crianças a iniciarem a refeição pelos alimentos mais próximas delas no prato e depois os restantes até ao extremo.

20. Quando a fruta era servida antes da sopa, se as crianças não a comiam ou demoravam muito tempo a comê-la, a A. cortava-a e colocava-lha dentro da sopa.

21. A mãe da criança HH, II, teve conhecimento que a A. colocava a fruta na sopa da filha e concordou, sendo dessa forma que a mesma deixou de ter problemas em ingerir alimentos sólidos.

22. Na hora do lanche, quando as crianças demoravam muito a comer o pão, a A., por vezes, colocava-as a comer de pé viradas para a parede.

23. Um dia ao lanche, estando uma criança a comer o pão em pé, por ordem da A., esta vendo que comia vagarosamente, depois de a ter chamado à atenção para comer mais depressa, como a criança continuava a comer devagar, bateu-lhe com as costas da mão na cara.

24. A A., às vezes, quando as crianças não acatavam as suas ordens dava-lhes palmadas leves para as chamar à atenção e manter a ordem na sala.

25. Em Setembro/Outubro de 2011, uma mãe viu a A. a dar palmadas numa criança que não era seu filho e comunicou à diretora técnica.

26. Na altura, a diretora técnica interpelou a educadora e esta teve uma conversa com a mãe da criança para explicar o que havia sucedido, ficando a situação assim resolvida. Posteriormente, essa mãe pediu para que o seu filho saísse do grupo da educadora AA, o que veio a acontecer.

27. A direção da R. só teve conhecimento dos factos imputados à A. com a comunicação referida em 1.

28. A A. tem uma personalidade forte e ideias próprias, bem como alguma dificuldade em aceitar perspetivas diferentes da sua, mas acatava as ordens da diretora técnica e o que era decidido pela maioria nas reuniões de educadoras.

29. A A. era rigorosa com as crianças, impondo-lhes regras e, por vezes, pouco flexível, mas também manifestava afeto para com elas.

30. (…)

31. (…)

32. (…)

33. (…).

34. (…)

35. (…)

36. (…)

37. (…)

38. A R. é uma instituição reputada não só na freguesia de A... mas também na cidade de Aveiro, que acolhe crianças de vários estratos sociais e se preocupa com o são desenvolvimento físico e psíquico das mesmas.

39. A situação em apreço nos autos tornou-se conhecida em A... e V… e a R. teve que dar explicações sobre o sucedido aos pais das crianças a seu cargo, mas alguns preferiram mudar os filhos de escola, tendo, por isso, saído 5 ou 6 crianças da instituição.

40. A A. era uma profissional competente e nunca tinha sido sujeita a qualquer procedimento disciplinar.

41. Já após ao início do procedimento disciplinar contra a A., a direção da R. numa reunião comunicou às educadoras que não deviam em caso algum dar palmadas às crianças, sendo que até então nada lhes tinha sido comunicado a esse respeito.

42. Esporadicamente, quer as educadoras, quer as auxiliares davam palmadas leves no rabo às crianças.

43. (…)

44. A A. é tida por aqueles que a conhecem no seu meio como uma pessoa trabalhadora, honesta e carinhosa com as crianças.

45. E mantém boas relações com a maioria dos pais das crianças e das colegas de trabalho.

46. Já depois da suspensão, a A. foi convidada pelos pais da JJ, uma criança a seu cargo, para o aniversário desta.

47. (…)

48. (…)

49. (…)

III.

10. Preliminarmente, refira-se que na sequência do juízo de caducidade levado a cabo na decisão recorrida, e nos termos expressamente constantes da mesma, “os factos 30. a 33. não podem ser considerados”, ou seja, “esses factos devem-se considerar excluídos da apreciação da justa causa do despedimento.

Posto isto.

11. As instâncias coincidiram no tocante à relevância disciplinar dos factos em causa.

Todavia, a 1ª instância considerou “o despedimento uma sanção desproporcional para a situação em apreço valorada na sua globalidade”, ao contrário do acórdão do TRC, que julgou verificada justa causa de despedimento, com base na seguinte argumentação:

“(…)

[N]ão podemos deixar de entender que o exercício contido dum poder corretivo das crianças que passe por imposições de constrangimentos físicos (castigos físicos) ou psicológicos com finalidades educativas é quando muito aceitável no exercício do poder paternal.

Quando os pais confiam a terceiros, como a ré e os seus educadores, a guarda dos seus filhos crianças e a prestação de serviços na educação daqueles, dificilmente se pode conceber que possam delegar naqueles métodos que passem por punições físicas ou psicológicas ainda que com finalidades educativas.

No caso, é evidente que os pais das crianças utentes da ré não deram o seu consentimento expresso a tais métodos (nem tal foi alegado ou provado).

Também não vemos que a ré tenha tido contribuição de algum modo no incentivo às suas trabalhadoras de educação nesses métodos. Se é certo que após ao início do procedimento disciplinar, a direção da ré numa reunião comunicou às educadoras que não deviam em caso algum dar palmadas às crianças, sendo que até então nada lhes tinha sido comunicado a esse respeito, a verdade é que não se vê que antes disso tivesse tido necessidade de o fazer por serem correntes no seu estabelecimento educativo as práticas que os factos apontam serem as da autora.

No caso também, as crianças com as quais a autora lidava eram crianças dos dois aos cinco anos, portanto especialmente vulneráveis, requerendo especial atenção e métodos educativos adequados, mas de feição estimuladora pelo carinho, pela persistente paciência afetiva.

Quer isto dizer que facilmente podemos intuir que as práticas da autora não são regulares e são suscetíveis de causar forte desconforto, indignação e revolta por parte dos pais das crianças quando tomam conhecimento de tais práticas em estabelecimento a quem confiam os filhos crianças.

Uma trabalhadora de educação, no exercício da sua atividade não pode desconhecer isso mesmo. Os pais são afinal os clientes do seu empregador e a prática de métodos educativos irregulares não pode deixar de ser uma violação do dever de zelo e diligência (art. 128.º n.º 1 al. c) do Código do Trabalho), a menos que em cumprimento de ordens ou instruções expressas do mesmo empregador.

Significa isto que os factos recortados na sentença recorrida como constituindo infrações disciplinares (os dois episódios em que a autora bateu em crianças ao seu cargo: o ocorrido em Setembro/Outubro de 2011 e o “episódio do lanche”) são suficientemente graves para suscitar a atenção disciplinar da ré, uma vez que colocam em causa a imagem do seu estabelecimento educativo, imagem essa necessária para manter a confiança dos seus clientes – os pais das crianças utentes do estabelecimento.

Mas também entendemos que outros factos se provaram que demonstram o exercício irregular de práticas punitivas e humilhatórias consistentes com a quebra do dever de zelo, sendo que este obrigaria a adotar outros métodos de persuasão educativa mais adequados e menos baseados numa educação pelo medo da punição física ou psicologicamente humilhatória. A resposta a desobediência com “palmadas leves” é uma delas – uma “palmada” é uma agressão física, a demonstração de um poder de agressão físico, e o que é hoje uma “palmada leve” poderá ser amanhã uma palmada “mais forte”, uma demonstração também de irritação inadequada. A prática de responder a situações de demora em ingerir alimentos por parte das crianças com a punição de comer em pé viradas para a parede é outra das situações que nos parece desajustada, desnecessária e desproporcionadamente humilhatória.

A conduta da autora é assim grave, no confronto com os seus deveres de boa trabalhadora educativa. Mas também grave pelas suas consequências, na medida em que é suscetível de afetar irremediavelmente a imagem da ré junto dos seus clientes, atuais e potenciais. Os factos mostram mesmo que a imagem da ré foi afetada. Por causa da sua conduta educativa, houve queixas de pais, alguns pediram a mudança dos seus filhos para outras educadoras, a ré teve que dar explicações sobre o sucedido aos pais das crianças a seu cargo, mas alguns preferiram até mudar os filhos de escola, tendo por isso, saído 5 ou 6 crianças da instituição.

Do nosso ponto de vista, as condutas da autora, na sua materialidade, podem ser integradores de justa causa para despedimento. Não podem deixar de ser consideradas culposas e reveladores de desinteresse pelo cumprimento escrupuloso das suas obrigações contratuais, o qual passava pela adoção de outros métodos de condução dos assuntos educativos a seu cargo.

A nosso ver, a conduta da autora, foi apta a quebrar a confiança que um empregador normal tem de ter nos seus trabalhadores, para prosseguir os interesses da empresa. É de considerar que a mesma, pela sua gravidade e consequências, torna imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho (…). O quadro do incumprimento revela a inviabilidade da relação laboral, atendendo ao quadro apontado do artigo 351.º n.º 3 do Código do Trabalho. Seguindo o que a doutrina e a jurisprudência vêm afirmando, quanto à inexigibilidade de manutenção da relação laboral, neste caso ele confirma-se, porque é de concluir que deixaram de existir as condições mínimas para sustentar uma vinculação duradoura e que não é razoável exigir do empregador a subsistência da relação.

(…)”

12. Concorda-se, no essencial, com esta linha argumentativa.

Com efeito:

 

“Constitui justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho” (art. 351.º, n.º 1, CT[4]), devendo a culpa e a gravidade dos factos ser apreciadas em função dos padrões comportamentais e de exigência respetivamente correspondentes a um trabalhador médio e a um empregador normal, nas mesmas circunstâncias.

“Na apreciação da justa causa, deve atender-se, no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso sejam relevantes” (n.º 3 do mesmo artigo).

Vale por dizer que este juízo deve pautar-se por critérios de razoabilidade e exigibilidade e ainda, como expressamente dispõe o art. 330.º, n.º 1, de proporcionalidade (em relação à gravidade da infração e, por outro lado, à culpabilidade do infrator).

Deste modo, na decisão de despedimento são suscetíveis de relevar fatores como:

(i) – De índole objetiva:

- Bens/interesses jurídicos lesados;

- Gravidade dos danos lesões decorrentes da conduta do trabalhador;

- Publicidade e repercussão social dos factos;

- Tempo e lugar dos factos; 

- Reiteração da conduta do trabalhador;

- Advertências do empregador;

- Antiguidade e percurso anterior;

- Funções exercidas pelo trabalhador e seu enquadramento na estrutura da empresa;

- Relações entre o trabalhador e a empresa;

- Relações entre o trabalhador e colegas de trabalho;

- Carácter público ou privado do comportamento do trabalhador;

- Práticas disciplinares na empresa.

(ii) – De índole subjetiva:

- Intencionalidade;

- Estado psicológico.

Dois aspetos ainda a realçar: a conduta do trabalhador deve ser apreciada globalmente, tendo em vista captar uma imagem global dos factos; e deve verificar-‑se um nexo de causalidade entre a conduta do trabalhador e a impossibilidade (prática e imediata) de subsistência do contrato de trabalho.[5]

13. Sendo certo que a integridade física (e psicológica) se encontra no núcleo da tutela jurídico-penal, é patente que as agressões físicas ilicitamente perpetradas pela A. não têm justificação e assumem relevância disciplinar, como bem decidiram ambas as instâncias.

Na verdade:

Consagra o art. 69.º, n.º1, da CRP, que “as crianças têm direito à proteção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições”.

Também a Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral nas Nações Unidas e ratificada por Portugal, estabelece que ”os Estados Partes tomam todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educativas adequadas à proteção da criança contra todas as formas de violência física ou mental, exploração, incluindo a violência sexual, enquanto se encontrar sob a guarda dos seus pais ou de um deles, dos representantes legais ou de qualquer outra pessoa a cuja guarda haja sido confiada” (art. 19.º, n.º 1).

Invoca a recorrente que agiu no contexto do poder corretivo, o qual incluiria castigos corporais moderados.

Para além de não ser certo que bater “com as costas da mão na cara” de uma criança na faixa etária dos 3 aos 5 anos (cfr. n.ºs 16 e 23 dos factos provados) se reconduza à categoria dos castigos “moderados”, acontece que “um direito de correção, como justificação do facto, coloca-se hoje, entre nós, praticamente e apenas – e cada vez de forma mais restritiva - relativamente a pais (arts. 1878.º e 1885.º, n.º 1, do CC) e tutores (art. 1935.º, do CC)”, pelo que, por exemplo, na ausência de qualquer lei que o admita, “um direito de correção do professor sobre os seus alunos que implique a prática, por aquele, de factos criminalmente típicos não parece poder hoje sufragar-se”.[6]

 

Assim, carecendo de justificação os métodos educativos irregulares utilizados pela A., e tendo ainda presente que nada na factualidade provada permite supor que tais métodos tenham sido autorizados pela entidade empregadora, não pode deixar de concluir-se que aquela infringiu os deveres de zelo e diligência a que se encontrava adstrita [cfr. art. 128.º, n.º 1, c)].

14. Como bem explica a decisão em análise, a (grave e culposa) conduta da A. impossibilitou prática e imediatamente a subsistência da relação laboral.

Além da gravidade intrínseca dos factos, a situação em apreço nos autos tornou-se conhecida em A... e V… e a R. teve que dar explicações sobre o sucedido aos pais das crianças a seu cargo, mas alguns preferiram mudar os filhos de escola, tendo, por isso, saído 5 ou 6 crianças da instituição (n.º 39 dos factos provados).

Além de afetar a imagem do estabelecimento educativo em que trabalhava, a A. comprometeu, pois, a confiança que os respetivos clientes – os pais das crianças – nele depositavam.

Consabidamente, os danos na imagem, prestígio e bom nome de uma empresa revestem sempre grande relevância, uma vez que qualquer empresa vive em importante medida deste tipo de ativos.

Neste contexto, compreende-se que se tenham irreversivelmente quebrado os elos que no plano da confiança ligavam a A. à sua empregadora, em termos que - prática e imediatamente – inviabilizam a manutenção do vínculo laboral.

Nenhuma censura merece, pois, a decisão recorrida.

IV.

15. Em face do exposto, negando a revista, acorda-se em confirmar o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Anexa-se sumário do acórdão.

Lisboa, 10 de Setembro de 2014

Mário Belo Morgado (Relator)

Pinto Hespanhol

Fernandes da Silva

___________________
[1] Todas as referências ao CPC são reportadas à versão mencionada no ponto n.º 8 do presente acórdão.
[2] O tribunal deve conhecer de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução entretanto dada a outra(s) [cfr. arts. 608.º, n.º 2, 635.º e 639.º, n.º 1, e 679º, CPC], questões (a resolver) que, como é sabido,  não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, os quais nem sequer vinculam o tribunal, como decorre do disposto no art. 5.º, n.º 3, do mesmo diploma.
[3] Os autos tiveram início em 16 de Outubro de 2012, tendo o acórdão recorrido sido proferido em 27 de Março de 2014.
[4] Ao litígio é aplicável o Código do Trabalho de 2009. Referem-se a este diploma todas as disposições legais citadas sem menção em contrário.
[5] Quanto à densificação do requisito “impossibilidade de subsistência da relação de trabalho”, cfr. Bernardo da Gama Lobo Xavier, Direito do Trabalho, Verbo, 2011, p. 738 – 739, e Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, II, 4ª edição, p. 821.
[6] Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, pp. 506 - 507.