Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
19827/15.2T8LSB-B.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: SOUSA LAMEIRA
Descritores: PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE FACTO
FORÇA PROBATÓRIA
MEIOS DE PROVA
Data do Acordão: 09/27/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO / RECURSO DE REVISTA.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 662.º, N.º 4, 674.º, N.º 3 E 682.º, N.º 2.
Sumário :
I - Em princípio o STJ não pode interferir na decisão da matéria de facto por ser da exclusiva competência das instâncias.

II - Essa regra não é absoluta, sendo de admitir uma intervenção correctora do STJ quando o acórdão recorrido tiver afrontado disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

III - Nesses casos estaremos perante “erros de direito” que permitem a intervenção do STJ.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




I – RELATÓRIO

  

l. AA - Reparações Auto, Lda deduziu embargos de terceiro por apenso ao procedimento cautelar intentado pelo Banco BB, S.A., contra CC, S.A., no qual se determinou a apreensão e entrega judicial ao banco requerente, entre outros imóveis, das fracções designadas pelas letras “D” e “B” do prédio sito na Estrada …, n.ºs … a … E, em Lisboa alegando, em síntese:

Dedica-se à actividade de Comércio e Reparação de Veículos tendo sede e desenvolvendo a sua actividade na Estrada …, nº …, B/C e nº …, …-A, …-D e …-E da freguesia de São Domingos de Benfica.

Tendo por objecto os imóveis referidos foi celebrado um contrato de locação financeira no qual os embargados tomaram a designação de locador e locatário, respectivamente, e a embargante tomou a posição de “Contratante Aderente”.

O aqui embargado locador intentou procedimento cautelar tendo por objecto a entrega dos referidos imóveis em que é requerida a aqui 2ª embargada.

No contrato de locação em causa, a embargante era afinal a verdadeira locatária, de tal estando ciente o Banco embargado, sabendo, designadamente, que a aquisição e locação do imóvel se destinava à sede e actividade da embargante.


A embargante aí instalou a sua sede e desenvolveu a sua actividade, com o conhecimento do Banco, à vista de todos, de forma pública e pacífica.

Nunca a embargante foi confrontada com qualquer falta de pagamento das rendas e nunca foi confrontada com a resolução do contrato.

Foi a embargante quem pagou a 1ª renda e quem efectivamente suportou o encargo de todas as rendas.

No contrato ficou acautelado que se se verificasse o incumprimento do contrato por parte da locatária 2ª embargada, se operaria a cessão da posição contratual para a ora embargante.

O Banco nada comunicou à embargante, designadamente para pagar as rendas em falta, não permitindo que a cessão da posição operasse.

A entrega do espaço ao Banco acarretaria o encerramento da sua actividade, com prejuízos incalculáveis.


2. O senhor Juiz do Tribunal de 1.ª Instância proferiu despacho de rejeição dos embargos, que foi objecto de recurso para o Tribunal da Relação de …, ali se decidindo pela revogação da decisão de rejeição dos embargos, ordenando-se o seu recebimento e o prosseguimento dos autos.

Interposto recurso desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça, pelo mesmo foi decidido não conhecer do objecto do recurso.


3. No cumprimento da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de …, o Banco embargado apresentou contestação alegando, em síntese:

A ilegitimidade da ora embargante, pois que do contrato não resultavam quaisquer obrigações para a mesma, não tendo, nomeadamente, de conhecer da falta de pagamento das rendas ou ser interpelada para o seu pagamento.

Por outro lado, nunca autorizou expressamente que a cessão da posição contratual entre locatária e contratante aderente produzisse efeitos.

Mesmo que a cessão se tivesse operado, o locatário é um mero detentor da coisa sendo um possuidor precário.

Admite ter apenas “tolerado” que a embargante usasse os imóveis.


4. Também a CC, segunda embargada, deduziu contestação alegando, em síntese:

Alegou que interveio como locatária no contrato em causa, tendo a embargante intervindo no mesmo na qualidade de “contratante aderente”, posição essa que na economia do que foi negociado entre as três contratantes se reconduzia à posição de verdadeira locatária.

A embargada CC, apenas interveio na qualidade de locatária em tal contrato porquanto, mantendo com a embargante uma relação de grupo e dispunha de uma melhor situação (financeira), tendo sido o próprio BB quem sugeriu a concretização do contrato com a intervenção da CC.


5. Realizada Audiência de Julgamento, foi proferida decisão que julgou os embargos de terceiro procedentes e que, em consequência, determinou a entrega dos dois imóveis identificados nos autos à embargante.


6. Inconformadas, apelou o embargado Banco BB, S.A., para o Tribunal da Relação de …, que, por Acórdão de 17 de Abril de 2018, decidiu julgar «procedente a Apelação, procede-se à alteração da matéria de Facto Provada e Não Provada, nos termos que acima se deixaram expressos e revoga-se a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância nos presentes Embargos de Terceiro, mantendo-se, assim, a sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância no âmbito do Procedimento Cautelar a que os presentes Embargos estão Apensos em que se determinou a entrega dos bens locados ao aqui 1.º Embargado, proprietário dos mesmos».


7. Inconformada veio agora a Embargante AA – Reparações Auto, Lda., recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça e, tendo alegado, formulou as seguintes conclusões:

I – Incorreu o douto Tribunal Recorrido num erro processual na valoração da prova dado que, revogou a sentença proferida em 1.ª instância com base na força probatória de um documento particular reconhecido notarialmente, negligenciando toda a demais prova produzida nos autos.

II – No nosso ordenamento jurídico vigoram os princípios da livre apreciação da prova e da prova legal. De acordo com este último, o julgador tem de sujeitar a apreciação das provas às regras ditadas pela lei, que lhes designam o valor e a força probatória.

III – In casu, estamos perante um documento particular reconhecido notarialmente que constitui prova legal e, ao qual o artigo 376.º do C.C confere força probatória plena.

IV – A prova plena corresponde à prova legal que só cede perante prova do contrário, tornando o facto não verdadeiro. Neste sentido, é possível a produção de prova em sentido contrário àquela, prova esta que deve ser produzida conforme os princípios da livre apreciação e da livre admissibilidade da prova.

V – Deste modo, a força probatória conferida ao documento particular reconhecido

notarialmente, denominado in casu de Contrato de Locação Financeira, não acarreta que o seu conteúdo represente uma verdade absoluta e que, não seja possível a sua prova em contrário.

VI - Uma vez que a Recorrida logrou fazer prova em contrário ao longo do processo, com sucesso dada a sentença proferida em 1.ª instância, andou mal o douto Tribunal Recorrido quando, apreciou e valorou exclusivamente o denominado Contrato de Locação Financeira ao considerar processualmente de forma inadequada que tal meio de prova afastava sem mais qualquer outra prova ou meio de prova produzidos.

VII – Erro este que, impediu o douto Tribunal Recorrido de apreciar toda a prova produzida, limitando a sua valoração a uma prova, o que consequentemente o levou a alterar, erradamente, os factos dados como provados e a revogar a sentença proferida em 1ª instância. O que, não teria sucedido caso não ocorresse o erro na valoração da prova pelo Tribunal Recorrido, confirmando-se a sentença proferida em 1ª instância.

VIII - Destarte, uma vez que a adopção do regime da prova livre privilegia a obtenção da verdade material dos factos, em detrimento da certeza do resultado da prova que preside ao sistema da prova legal, dúvidas não persistem que, a uma correta e devida valoração da prova produzida nos autos, a sentença proferida em 1ª instância e, consequentemente os factos por esta dados como provados, seriam reproduzidos e confirmados integralmente pelo douto Tribunal Recorrido.

IX - Devendo o Venerando Supremo Tribunal de Justiça pronunciar-se nesse sentido, suprindo o erro processual cometido pelo douto Tribunal Recorrido, que confere (sem mais) valor processual superior à prova documental em detrimento da demais prova.

 

8. Contra-alegou o embargado Banco BB, S.A. formulando as seguintes conclusões:

a. Não concorda a Apelada com o teor do recurso apresentada pela Apelante uma vez que não existe qualquer erro processual na valoração da prova, e em consequência, decidiu bem o Digníssimo Tribunal da Relação de ….

b. O Acórdão agora proferido é claro quando conclui que o contrato de locação financeira, com assinaturas reconhecidas notarialmente, faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor.

c. Não pode a Recorrida aceitar o argumento utilizado no Recurso agora apresentado, uma vez que no ponto III do Acórdão o Digníssimo Tribunal da Relação de … é explícito que a análise da factualidade em questão seria feita através da análise da prova documental existente, assim como à reapreciação da prova testemunhal produzida em audiência, necessária à alteração da decisão da 1.ª instância.

d. Aliás, da leitura atenta do referido Acórdão se retira várias passagens da prova testemunhal ouvida no Tribunal de l.a instância e a qual a aqui Recorrente não pode negar.

e. Pelo que, face ao exposto resulta claramente que o alegado pela Recorrente não corresponde de todo à verdade, ou seja, o Tribunal de 2.ª instância aprecia a prova testemunhal prestada mas numa óptica de reapreciação do conjunto da prova.

f. Sendo falso quando é alegado que o Tribunal Recorrido apreciou e valorou exclusivamente o denominado contrato de locação financeira, dando a entender que tal meio de prova afastava sem mais qualquer outra prova ou meio de prova produzidos.

g. Mais uma vez se diga que, a prova testemunhal foi valorada em conjunto com a prova documental como resulta de forma inequívoca do Acórdão aqui em crise.

h. É assim notório que o Acórdão recorrido não merece qualquer reparo, não restando dúvidas da forma correcta como foi valorada a prova, uma vez que apreciou todos os meios de prova apresentados, nomeadamente testemunhal e documental, não valorando uma em detrimento da outra mas sim apreciando-a no sei conjunto.

i. Até porque na sua fundamentação, o Digníssimo Tribunal da Relação de … conjugou a prova documental com a testemunhal, fazendo referência a factos que se encontravam previstos contratualmente e corroborados com os depoimentos das testemunhas apresentadas, nomeadamente pela aqui Recorrente.

j. Não podendo aceitar que a credibilidade do documento em crise fosse abalado por certo depoimento, tendo em conta o valor probatório do primeiro.

k. Concluindo-se uma vez mais, que o referido Acórdão não merece qualquer reparo, não restando qualquer dúvida da forma como foi apreciada a prova testemunhal e documental na decisão.

Conclui pedindo que seja o presente recurso julgado totalmente improcedente, mantendo-se o Acórdão recorrido.


9 - O Tribunal da Relação de … proferiu despacho a admitir o recurso.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.



II – FUNDAMENTAÇÃO


A Factualidade que importa ponderar é a seguinte, após ter sido alterada pela Relação

1. Com data de 29 de Dezembro de 2008 foi celebrado o acordo escrito constante de fls. 7 a 10 dos autos, intitulado “Contrato de locação financeira imobiliário nº 45…33” tendo por objecto as seguintes fracções autónomas:

- Fracção autónoma designada pela letra “D” correspondente ao rés-do-chão direito para comércio, pelo valor de € 413.000,00;

- Fracção autónoma designada pela letra “B”, correspondente a 31 lugares de estacionamento na 1ª cave, pelo valor de € 387.000,00;

2. Nos termos do ponto 1 do acordo referido em 1, “Estas fracções pertencem ao prédio urbano sito em Estrada …, nºs …, ..-A, …-B, …-C, …-D, …-E …, freguesia de S. Domingos de Benfica, concelho de Lisboa, descrito na 5ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o nº 1…2 da dita freguesia e inscrito na matriz predial urbana sob o art. 2182 da referida freguesia.”

3. Intervieram no referido acordo “Banco BB, S.A.- Sociedade Aberta, com sede na Praça …, …, Porto na qualidade de “locador”; “CC, S.A.”, na qualidade de “locatário” e, “AA-Reparações Auto, Lda.” designado por “Contratante Aderente”;

4. No ponto 10 das condições particulares do referido acordo, sob a epígrafe “Cessão da Posição Contratual, sujeita a condição suspensiva” consta:

“10.1. Nos termos e ao abrigo do Art.6º das Condições Gerais, o locatário desde já e irrevogavelmente declara que cede a sua posição no presente contrato a favor do contratante aderente, que do mesmo modo declara aceitar a cessão, ficando esta, porém, sujeita à condição suspensiva de se verificar o incumprimento por parte do locatário, de qualquer das obrigações que para este emergem do presente contrato;

10.2. A cessão fica igualmente dependente da verificação da condição de o Locador autorizar expressamente a cessão, no prazo de quinze dias, após produzir efeito o incumprimento definitivo do presente contrato por parte do locatário, por meio de carta registada com aviso de recepção, entendendo-se que a não comunicação de tal autorização será sempre entendida como negação do assentimento da mesma, não se operando, assim, a cessão.

10.3. Na data do envio da comunicação de autorização do Locador ao Contratante Aderente, referida no ponto anterior, a cessão produz, imediata e automaticamente todos os efeitos.”

5. Do art.6° das Condições Gerais consta, sob a epígrafe:

“Transmissão da posição contratual e sublocação”: “1. A transmissão da posição contratual do locatário, ou a cedência de utilização do imóvel locado, por qualquer forma, total ou parcial, depende da prévia e expressa autorização do locador. Nem a cessão nem a cedência prejudicam quaisquer das disposições constantes do presente contrato, nomeadamente a faculdade de resolução do mesmo pelo Locador no caso de incumprimento de alguma das obrigações dele emergentes para a entidade que vier a ocupar a posição do locatário, nem prejudicam a oponibilidade ao cessionário de eventuais exceções e meios de defesa que o locador pudesse opor ao locatário, provenientes de relações estranhas a este contrato. A Cessão implica, ainda, que o cedente e o cessionário, sejam os únicos e exclusivos responsáveis por todos os aspetos relacionados com a utilização do bem locado, nomeadamente pela entrega do mesmo, correndo por conta de ambos o risco de perda e deterioração (...)”;

6. No art. 11°, n° 1 das condições gerais e sob a epígrafe “Incumprimento Contratual e Caducidade” dispõe-se: “Para além dos demais casos de resolução decorrentes da lei e do presente contrato, este poderá ser resolvido em caso de incumprimento de qualquer umas das obrigações do locatário, se este, interpelado para o efeito, por escrito, não suprir a sua falta no prazo de trinta dias a contar da data da emissão daquela notificação.” (...); nº 3 A resolução far-se-á por simples declaração escrita do locador dirigida ao locatário”;

7. A embargante dedica-se com fins lucrativos ao comércio e reparação de automóveis e tem a sua sede, aí desenvolvendo a sua actividade, nos imóveis referenciados em 1;

8. O embargado BB intentou procedimento cautelar de entrega dos imóveis contra a segunda embargada, CC, por falta de pagamento de rendas, que veio a ser julgado procedente, nos termos da decisão constante de fls. 43 e ss do apenso A;

9. As fracções vieram a ser entregues à requerente, cumprindo-se a decisão exarada nos autos de procedimento cautelar, em 23 de Junho de 2015, conforme melhor consta do auto de entrega de fls. 73 e ss. do apenso A;

10. As embargadas têm conhecimento que os imóveis a que se refere o ponto 1 da matéria de facto seriam entregues à ora requerente para que aí exercesse a sua actividade comercial... (tema da prova 1);

11. Actividade comercial essa que exerceu nos imóveis, à vista de todos e sem oposição;

12. Nunca a CC, utilizou os referidos imóveis;

13. A inclusão da embargante como contratante aderente foi acordada pelas partes apenas para efeitos da cláusula 6ª e 10ª do contrato de locação, se operada e aceite a cessão da posição contratual. Alterado pela Relação

14. Provado apenas o que consta dos Pontos 4 e 5 dos Factos Provados. Alterado pela Relação.

15. Provado apenas que a 1.ª Embargada não comunicou à ora embargante a falta de pagamento das rendas geradora do incumprimento e resolução do contrato. Alterado pela Relação

16. Nunca a primeira embargada instou a embargante ao pagamento das rendas em falta;

17.

18. A entrega dos imóveis implicou a retirada dos veículos para venda que aí se encontravam e a impossibilidade da embargante aí laborar. (Tema da prova 4);

19. A embargante não interveio no procedimento cautelar que constitui o apenso A, a estes apenso;

20. A propriedade dos bens a que se refere o ponto 1 da matéria de facto encontra-se registada a favor da 1ª embargada; (cfr. docs. De fls.18 e ss. do apenso A).


Factos Não Provados


Não logrou provar-se o tema da prova nº 5, ou seja:

- A inclusão da embargante como contratante aderente foi acordada pelas partes apenas para efeitos da cláusula 6ª e 10ª do contrato de locação, se operada e aceite a cessão da posição contratual.

O requerido BB impôs como condição para a celebração do acordo referido em 1, que no mesmo interviesse a ora embargante, na figura de “contratante aderente”, tomando a 2ª embargada a posição de locatária, invocando que pertencendo ambas ao mesmo grupo, tinha uma situação financeira mais estável desta (tema da prova 2); aditado pela Relação

Deste a data da celebração do acordo, quem pagou as rendas foi a ora embargante, ainda que através da segunda embargada que recebia da mesma o valor para proceder a tal liquidação, o que era do conhecimento do primeiro embargado; (Tema da prova 3), aditado pela Relação



III – DA SUBSUNÇÃO – APRECIAÇÃO


Verificados que estão os pressupostos de actuação deste tribunal, corridos os vistos, cumpre decidir.


A) O objecto do recurso é definido pelas conclusões da alegação do Recorrente, artigo 635 do Código de Processo Civil.

Lendo as alegações de recurso bem como as conclusões formuladas pela Recorrente a questão concreta de que cumpre conhecer é apenas a seguinte:


1ª- O Acórdão recorrido incorreu num erro processual na valoração prova?


B) Vejamos


1 - A recorrente insurge-se contra o Acórdão recorrido afirmando que revogou a sentença da primeira instância com base na força probatória de um documento notarial reconhecido notarialmente, negligenciando toda a demais prova e, por isso, o Acórdão teria incorrido num erro de valoração da prova.

Importa desde já afirmar-se que quanto às decisões do Tribunal da Relação sobre a matéria de facto não pode, em princípio, o Supremo Tribunal de Justiça, alterar tais decisões.

Na verdade, salvo situações excepcionais, o Supremo Tribunal de Justiça só conhece matéria de direito, sendo as decisões proferidas pela Relação quanto à matéria de facto, em regra, irrecorríveis.

Dispõe o n.º 4 do artigo 662.º, do Código de Processo Civil que «das decisões da Relação previstas nos n.ºs 1 e 2 não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça».

E, nos termos do n.º 3 do artigo 674º, do Código de Processo Civil «o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova».

Por último estatui o n.º 2 do artigo 682º, do Código de Processo Civil que a «decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excepcional previsto no n.º 3 do artigo 674.º».


2 - Dos preceitos legais enunciados resulta claramente que o Supremo Tribunal de Justiça não pode sindicar o modo como a Relação apreciou a impugnação da decisão da matéria de facto sustentada em meios de prova sujeitos a livre apreciação.

O Supremo Tribunal de Justiça no que à matéria de facto respeita apenas pode intervir nos casos em que seja invocada a violação de lei adjectiva ou a ofensa a disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova (v.g. prova documental ou por confissão) ou que fixe o valor de determinado meio de prova (v.g. acordo das partes, confissão ou documento com força probatória plena).

Significa isto que, em princípio, o Supremo Tribunal de Justiça não pode interferir na decisão da matéria de facto, por ser da exclusiva competência das instâncias.

É certo que, como já se referiu, essa regra não é absoluta, sendo de admitir uma intervenção correctora do STJ quando o acórdão recorrido tiver afrontado disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

Aqui estaríamos perante «erros de direito» que permitiriam a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça.

Esta é a jurisprudência unânime deste Supremo Tribunal de Justiça (pelo que nos dispensamos de a citar).


3 - No caso em apreço a recorrente insurge-se contra a alteração da matéria de facto efectuada pela Relação no âmbito da impugnação do julgamento de facto, afirmando que estamos perante um «erro na valoração da prova que, revogou a sentença proferida em 1.ª instância com base na força probatória de um documento particular reconhecido notarialmente, negligenciando toda a demais prova produzida nos autos».

A recorrente não imputa ao Acórdão a violação de lei adjectiva ou a ofensa a disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova ou que fixe o valor de determinado meio de prova, pelo que entendemos estar afastada a intervenção deste Supremo Tribunal de Justiça que, como já se deixou dito não pode interferir na decisão da matéria de facto, por ser da exclusiva competência das instâncias.

A Recorrente apenas afirma que a Relação não valorou devidamente a prova oferecida, pois que apesar de estarmos perante «um documento particular reconhecido notarialmente que constitui prova legal e, ao qual o artigo 376.º do C.C confere força probatória plena» «é possível a produção de prova em sentido contrário àquela, prova esta que deve ser produzida conforme os princípios da livre apreciação e da livre admissibilidade da prova», tendo sido feito prova em contrário ao longo do processo, pelo que «andou mal o douto Tribunal Recorrido quando, apreciou e valorou exclusivamente o denominado Contrato de Locação Financeira ao considerar processualmente de forma inadequada que tal meio de prova afastava sem mais qualquer outra prova ou meio de prova produzidos».

Teria sido este «Erro» que levou a alterar, erradamente, os factos dados como provados e a revogar a sentença proferida em 1ª instância.

O facto de o Tribunal da Relação ter dado mais valor a um meio de prova do que a outro não integra um erro processual, um erro de direito, que permita a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, como já se disse.

Mas a verdade é que nem esse «erro» se descortina.

Basta ler o Acórdão recorrido na parte relativa à reapreciação da matéria de facto e verificamos que o Acórdão afirma claramente «vamos iniciar a análise da factualidade dada como provada e não provada pelo Tribunal de 1.ª Instância procedendo, para o efeito, à análise da prova documental existente nos autos e à reapreciação da prova testemunhal produzida em Audiência…»

De seguida, e antes de transcrever os pontos controvertidos definiu os termos do contrato em causa escrevendo:

«Assim, temos que no dia 28 de Dezembro de 2008 foi celebrado um contrato de locação financeira imobiliária respeitante aos dois imóveis cuja entrega foi pedida pela aqui Requerente/Apelada, nos presentes embargos de terceiro, e que figura naquele contrato na qualidade de contratante aderente.


Nesse contrato escrito, composto de Condições Particulares e de Condições Gerais, as assinaturas de todos os seus subscritores (locador, locatária e contraente aderente) foram reconhecidas notarialmente.

Como também consta desse mesmo contrato, a autorização de débito correspondente às rendas respetivas deveria ser realizadas pela aqui 2.ª Embargada/Apelada, a CC - Gestão Global de Negócios, S.A, que se obrigou a manter a respetiva conta bancária devidamente aprovisionada para esse efeito. 

Estando, como estamos, perante um contrato particular reduzido a escrito, e com as assinaturas reconhecidas por Notário - nos termos do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho -, toda a prova em contrário do que ali se afirma e é subscrita com a assinatura dos respetivos intervenientes, deve ser realizada através de prova com força probatória em sintonia com o disposto no artigo 376.º, do Código Civil».

De seguida escreveu «Do que decorre ainda que todas as convenções que alterem o conteúdo deste documento, quer as mesmas sejam anteriores, contemporâneas e/ou posteriores à sua celebração, devem respeitar a forma legal prescrita para aquele Contrato, sendo insuscetíveis de prova testemunhal – artigos 221.º, n.º 2 e 394.º do Código Civil.

Como exceção a esta regra temos as estipulações adicionais que não estejam sujeitas à forma escrita, por não lhe serem aplicáveis a razão determinante da forma, e desde que tais estipulações não contrariem nenhuma das estipulações escritas constantes do contrato, limitando-se a completá-lo e/ou a adicioná-lo (neste sentido, entre outros, Ac. do STJ de 29.Junho.2017, Proc. 2977/13.7TBCSC.L1.S1, relatado pelo Sr. Conselheiro Salazar Casanova, in www.dgsi.pt/jstj)».

Nada há a censurar nesta análise.

De seguida o Acórdão passa a analisar sobre a prova (testemunhal) que a ora Recorrente pretende fazer quanto ao conteúdo do próprio contrato e, apesar de afirmar que a mesma é inadmissível (pois que o documento aqui em apreciação [contrato de locação imobiliária] “faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova de falsidade do documento” que não foi arguida) também afirma (analisando a prova testemunhal) que «Diga-se, aliás, que a prova testemunhal realizada – prova essa que não interfere e/ou integra o conteúdo do Contrato, como já acima deixamos expresso -, também não altera essa realidade antes, se reconduz à sua afirmação».


De seguida analisa detalhadamente a prova testemunhal para de seguida concluir «deve ser alterada a matéria de facto dada como Provada e Não Provada, nos termos que se seguem…».

Assim, podemos concluir que não se vislumbra qualquer erro na valoração da prova, pelo que nenhuma censura merece o Acórdão recorrido.

Em suma, impõe-se a improcedência das conclusões do recurso da Recorrente e, consequentemente, impõe-se a improcedência da revista.


III – DECISÃO


Pelo exposto, e pelos fundamentos apontados decide-se negar a revista, confirmando-se a decisão recorrida.  


Lisboa, 27 de Setembro de 2018


José Sousa Lameira (Relator)

Hélder Almeida

Oliveira Abreu