Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05B4263
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: OLIVEIRA BARROS
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
CASA DE PORTEIRO
FRACÇÃO AUTÓNOMA
PARTE COMUM
TÍTULO CONSTITUTIVO
LICENÇA DE CONSTRUÇÃO
NULIDADE
Nº do Documento: SJ200602210042637
Data do Acordão: 02/21/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 3082/05
Data: 06/27/2005
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - Para efeitos do disposto no art.1418º, nº3º, C.Civ.( redacção do DL 276/94, de 25/10 ), tem-se entendido que, não havendo discrepância entre o fim ou destino que o projecto aprovado prevê para o espaço construído e o constante do título constitutivo da propriedade horizontal, resulta indiferente que constitua fracção autónoma ou se integre nas partes comuns. No entanto :

II - A independência e autonomia ( hoc sensu ) de uma fracção predial depende em larga medida do fim a que essa fracção se acha adstrita.

III - A fracção destinada a habitação do porteiro tem por finalidade o interesse e serventia do conjunto dos condóminos do prédio e das respectivas fracções.

IV - Não podendo, dada essa afectação, ser usada e fruída de forma plena e exclusiva, livre e incondicionalmente, por determinado condómino, essa fracção não constitui, por isso mesmo, uma unidade predial autónoma e independente, a que corresponderiam proporcionais encargos.

V - Assim, em compreensão consentânea com o princípio da boa fé subjacente a toda a civilística nacional e com a incindibilidade estabelecida no art.1420º, nº2º, a indicação no projecto aprovado e, respeitando-o, no próprio título constitutivo da propriedade horizontal do destino previsto no art. 1421º, nº2º, al.c), também do C.Civ., mais não faz que confirmar a presunção aí estabelecida em relação à habitação do porteiro, o que inviabiliza a consideração dessa dependência como fracção autónoma.

VI - O título constitutivo da propriedade horizontal que, subtraindo a fracção do porteiro ao elenco das zonas comuns, a indicou como fracção autónoma que, na falta de outra indicação, ficou inscrita residualmente a favor de um titular individual - no caso, o construtor do prédio - é nulo na parte em que procedeu a essa autonomização, por violação dos arts.1415º e 1416º, nº1º, e sempre consubstanciaria um negócio jurídico contrário à lei e legalmente impossível, e por isso nulo, nos termos do art.280º, nº1º, todos do C.Civ.

VII - A nulidade parcial desse título na parte em que importa a autonomização da fracção aludida não o afecta no mais, que permanece válido - art.292º C.Civ.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça :


Em 14/4/2000, o Condomínio do prédio da Av.da Boavista, ...a ...., e Rua Santa Isabel, ... a ..., na cidade do Porto, representado pelo administrador, instaurou acção declarativa com processo comum na forma ordinária contra a A, Lda, que foi distribuída à 2ª Secção da 2ª Vara Cível da comarca do Porto.

Pediu a declaração da nulidade parcial da escritura de constituição da propriedade horizontal quanto à autonomização da dependência do porteiro, designada por fracção H, do prédio em causa, passando a mesma a integrar as zonas comuns do prédio, e de que essa dependência constitui parte comum destinada a habitação do porteiro, pertença em compropriedade de todos os condóminos, como as demais partes comuns, e a condenação da Ré a reconhecer esse direito e a entregar a fracção referida, livre e devoluta, à Administração do condomínio em funções. Pediu, finalmente, que se ordenasse o cancelamento do registo no que respeita à fracção H, bem como a inscrição da mesma a favor da Ré.

Invocando o disposto nos arts.280º, 294°, 1415º, 1416º, 1418º, 1420º, e 1421° C. Civ. e Ac.STJ. de 7/7/74, BMJ 238/226, alegou para tanto, em resumo, o seguinte :

- A construção foi licenciada para um prédio em regime de propriedade horizontal, com 29 habitações, 3 apartamentos e casa do porteiro.

- Posteriormente, em 1979, a Ré requereu à Câmara autorização para constituição de propriedade horizontal no prédio, tendo a fracção H, com autonomia em relação às demais, ficado destinada no título constitutivo da propriedade horizontal ao uso do porteiro e aí descrita como sendo do tipo T1 ( Porteiro ), sendo por isso parte comum do prédio, por todos considerada parte comum, designadamente pela Ré.

- Por intermédio do sócio falecido B, a Ré sempre admitiu que essa fracção seria parte comum do prédio e, como tal, assinou os Estatutos do Condomínio.

- Durante o período de tempo que demoraram as vendas, esse sócio da Ré dizia aos pretendentes a compradores que a fracção H se destinava ao condomínio, o que invocava para valorizar as fracções habitacionais.

- No entanto, a Ré foi protelando a transferência da propriedade dessa fracção para o condomínio.

- A fracção referida não reveste características que permitam a sua autonomia jurídica em relação às demais fracções em que o prédio está constituído.

Contestando, a Ré excepcionou a ilegitimidade do A. em virtude de não terem sido alegados factos constitutivos dessa legitimidade e de o artigo 1436º C.Civ. não atribuir legitimidade ao administrador para propor esta acção.

No mais, e em síntese, alegou dispor de registo em seu nome da propriedade da fracção aludida, de que sempre reclamou a posse e propriedade, adquirida por usucapião ; ter pago sempre as despesas que o condomínio lhe apresentou relativamente a esta fracção e a contribuição predial à mesma referente ; ter, no exercício do seu direito de propriedade, proposto acção de reivindicação desta fracção, abusivamente detida por C, que tinha cessado funções de porteira - Proc n° 797/98 que correu termos pelo 6° Juízo Cível, 2ª Secção, da comarca do Porto, que a julgou procedente ; ter proposto execução da sentença proferida naquela acção de reivindicação ; e ter contactado autoridades camarárias para a remoção de cães que se encontravam na fracção referida e que impediam a entrega judicial.

Houve réplica e tréplica, a que se seguiu audiência preliminar.

A excepção dilatória referida foi, no saneador, julgada improcedente, tendo sido então indicados os factos assentes e organizada a base instrutória. A reclamação do A. a esse respeito veio a ser parcialmente atendida na audiência de julgamento, conforme acta a fls.376-377.

Após julgamento, foi, em 15/11/2004, proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu a Ré do pedido.

Por acórdão de 27/6/2005, a Relação do Porto julgou procedente o recurso de apelação que o condomínio A. interpôs dessa sentença, que revogou, substituindo-a por decisão que julgou a acção procedente, declarou a nulidade parcial da escritura de constituição da propriedade horizontal do prédio em causa quanto à autonomização da dependência do porteiro designada por Fracção H, determinou que a mesma passasse a integrar as zonas comuns do prédio, declarou parte comum a referida dependência destinada a habitação do porteiro, pertença, em compropriedade, de todos os condóminos, como as demais partes comuns, condenou a Ré a reconhecer esse direito e a entregar a fracção referida, livre e devoluta, à administração do condomínio em funções, e ordenou o cancelamento do registo no que respeita à fracção H, bem como da inscrição da mesma a favor da Ré.

É dessa decisão que esta pede agora revista, deduzindo, em fecho da alegação respectiva, as conclusões que seguem :

1ª - O projecto de construção do Edifício ... previu a constituição duma fracção ( Porteiro ).

2ª - A Câmara Municipal do Porto autorizou essa construção.

3ª - Foi constituída, de seguida, a propriedade horizontal, tendo a recorrente dado a essa fracção a letra H, seguida da palavra " Porteiro " e com a permilagem de 1/32.

4ª e 5ª - O acto constitutivo da propriedade horizontal é lícito e válido, por ter respeitado o RGEU e ter sido constituído por escritura pública, encontrando-se a propriedade da fracção aludida registada desde então a favor da recorrente.

6ª - Essa fracção esteve sempre na posse jurídica da recorrente.

7ª - Por sentença proferida na acção ordinária nº779/98 do 6º Juízo Cível do Porto, a recorrente foi declarada proprietária dessa fracção.

8ª - Tendo sido sempre a recorrente que pagou a contribuição autárquica.

9ª - E que pagou as despesas de água e de taxa de resíduos sólidos.

10ª - A recorrente nunca praticou qualquer acto susceptível de transmitir a propriedade desta fracção para o Condomínio.

11ª - Não se encontra, por isso, violada qualquer norma jurídica, nem relativa ao RGEU, nem ao regime da propriedade horizontal.

12ª - Pelo contrário, o acórdão recorrido violou o disposto nos arts.1418º e 1420º C.Civ.

Houve contra-alegação, e, corridos os vistos legais, cumpre decidir sobre se o acórdão recorrido
incorreu efectivamente, ou não, na violação da lei substantiva arguida, relativa ao regime jurídico da constituição da propriedade horizontal.

Convenientemente ordenada (1), a matéria de facto fixada pelas instâncias é como segue ( indicando-se entre parênteses as alíneas e quesitos correspondentes ) :

( 1 ) - A construção do prédio urbano composto de cave, r/c e 5 andares, sito no ângulo da Av. da Boavista, n°s 25 a 41, e Rua de Santa Isabel, n°s 119 a 151, foi licenciada através da licença de obras n° 336/71 - doc. a fls. 93 a 107 ( G ).

( 2 ) - Esse licenciamento foi objecto do aditamento n° 296/75, que autorizou a edificação conforme projectado - doc.a fls. 93 a 107 ( H ).

( 3 ) - Como resulta do requerimento apresentado em 13/9/73, sob o n°19.289, foi projectada e assim licenciada a construção de um prédio destinado à venda " em regime de propriedade horizontal, com 29 habitações, 3 apartamentos e casa do porteiro " - doc. a fls. 93 a 107 (I) .

( 4 ) - Depois de construído o prédio, a aqui Ré veio a requerer a autorização para a constituição do prédio em propriedade horizontal, nos termos constantes do requerimento n°11.146, de 7/6/79, dirigido ao presidente da Câmara Municipal do Porto - doc.a fls. 93 a 107 ( J ).

( 5 ) - Por escritura pública outorgada em 11/8/81 no 7° Cartório Notarial do Porto, foi constituída a propriedade horizontal do prédio referido, inscrito na matriz predial da freguesia da Cedofeita sob o artigo 10.323 e descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n° 28.155, a fls.25 do Livro B-91 (doc. a fls. 16 a 42 ) ( A ).

( 6 ) - A escritura foi outorgada por B, na qualidade de sócio-gerente e em representação da sociedade ora Ré, então proprietária do prédio (B) .

( 7 ) - O mesmo declarou então que o prédio em causa satisfazia os requisitos legais necessários para que fosse constituída a propriedade horizontal, " visto que é composta de 44 fracções autónomas, independentes e distintas entre si ", descrevendo-se em seguida as fracções em que foi dividido o prédio ( C ).

( 8 ) - De entre as mesmas ficou a constar a seguinte: " Fracção H - primeiro andar, centro, traseiras, destinado a uma habitação do tipo T1 (porteiro), com entrada pelo n°29 da Av. da Boavista, constituída por sala comum, cozinha, quarto de banho, um quarto e marquise, com a área de ocupação de 63 m2, com o valor matricial de seiscentos e quatro mil e oitocentos escudos, à qual atribuiu o valor de novecentos e cinco mil trezentos e vinte e oito escudos, correspondente a 1,5% do valor total do prédio " ( D ).

( 9 ) - A propriedade horizontal foi inscrita na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n° 15. 209, a fls.120 v° do Livro B-23 e fls.127 e seguintes do Livro B-778 - doc. a fls. 44 a 92 ( E ).

( 10 ) - Dada a natureza que lhe foi atribuída na escritura, a fracção H figura no registo predial como fracção autónoma e, não tendo outro titular inscrito, daí resultou a sua propriedade ter ficado do titular inscrito anterior, ou seja, a sociedade Ré ( F ).

( 11 ) - Seguidamente à constituição da propriedade horizontal, a sociedade Ré começou a vender as fracções do prédio em causa ( L ).

( 12 ) - Essas transacções foram sempre efectuadas na pressuposição de que a referida habitação do porteiro seria pertença de todos os condóminos ( 1º).

( 13 ) - Conforme documento a fls.108 a 122, os estatutos do condomínio foram aprovados em assembleia de condóminos em que esteve presente o Sr. B, em representação da Ré, e que, nessa qualidade, os aprovou e subscreveu, deles resultando, para além do mais, que "como a fracção H e algumas partes do prédio são comuns apenas ao conjunto dos condóminos das fracções de habitação 2 a 33, consideram-se para efeitos contabilísticos de administração ordinária as percentagens PH obtidas pela expressão PH = P x 100/79, 3 ", que " serão suportados por todos os proprietários das habitações proporcionalmente às quotas PH os encargos de seguro, saneamento, água, luz e outras despesas relativas à casa do porteiro ( também conhecida por fracção H comum ) " ( M ).

( 14 ) - Consoante acta de assembleia de condóminos de 11/12/83 a fls.126/127, foi então deliberado, com o voto favorável da sociedade Ré, que " o presidente da nova administração representará o condomínio na escritura de transferência da fracção comum H da A, Lda, para o condomínio " ( N ).

( 15 ) - Por carta de 29/3/83, a Ré declarou ter comunicado ao porteiro os estatutos aprovados para o edifício e anexou a essa carta cópia da dirigida à porteira ( docs. a fls.161 e 162 ) ( O e P ).

( 16 ) - Possuindo apenas janelas para o pátio das traseiras, a fracção H não tem janelas para a via pública, dispõe de uma extensão com guichet envidraçado para atendimento dos condóminos, e existe na respectiva caixa do correio e na campainha correspondente uma indicação impressa de que se trata da casa do porteiro ( 2º, 3º, 4º, e 5º).

( 17 ) - Desde sempre e até há cerca de um ano sempre ali residiu a porteira do prédio, primeiro uma tal D, e depois, C, embora a partir de determinada altura dispensada de tais funções pela então administração do A., que até então sempre suportou as despesas de água e luz com a dependência correspondente à fracção H ( 6º, 7º, e 8º).

( 18 ) - Desde a constituição do condomínio, em Março de 1983, e até prescindir dos serviços da porteira, sempre foi o A. quem pagou as remunerações daquela ( 9º).

( 19 ) - A fracção "H" foi desde sempre considerada por todos os condóminos, incluindo a sociedade Ré, zona comum do prédio (10º).

( 20 ) - A sociedade Ré nunca comparticipou nas despesas comuns do prédio proporcionais à aludida fracção H ( 11º).

( 21 ) - Todas as despesas - seguro, saneamento, água, luz e outras - relativas à fracção H são repartidas pelos proprietários das habitações proporcionalmente e de harmonia com o referido nos estatutos do condomínio ( cfr. ( 13 ), supra - al.M ) ) ( 12º).

( 22 ) - O condomínio nunca desenvolveu qualquer acção no sentido de reivindicar a fracção da posse da dita C, e nunca pagou qualquer imposto relacionado com essa fracção, designadamente a contribuição autárquica, que sempre foi paga pela Ré ( 17º, 20º, 21º).

( 23 ) - A referida C era pessoa das relações de um dos sócios-gerentes da Ré, B ( 25º).

( 24 ) - Depois de dispensados os serviços da C, esta não deixou as instalações (30º).

( 25 ) - Entre a administração do A. e a porteira foi outorgado o contrato junto a fls.163 ( 34º).

( 26 ) - Desde então, foi sempre o condomínio A. quem suportou todas as despesas com os serviços de limpeza e comparticipação nas despesas de água e luz da fracção pagos pela mesma porteira, até que o A deliberou, por carta de 13/6/90, aplicar à dita porteira " a sanção de despedimento com justa causa " ( doc. a fls.175/176 ), tendo a mesma, por razões humanitárias, sido autorizada a residir na aludida habitação até ter condições para a entregar, o que se veio protelando ao longo dos tempos ( 35º, 36º, 37º, e 38º).

( 27 ) - Só em 1996 é que a Ré invocou ser sua pertença a habitação do porteiro e propôs a revogação de deliberações anteriormente tomadas com a diluição da permilagem da fracção H nas restantes ( 39º).

O acórdão recorrido fundou, em último termo, a declaração, que fez, da nulidade parcial da escritura de constituição da propriedade horizontal no tocante à autonomização, que julgou ilícita, da dependência destinada ao uso e habitação do porteiro, designada por fracção H do prédio em causa, em que, referida essa destinação naquele título constitutivo da propriedade horizontal, sempre foi para tal utilizada, e sempre foi por todos considerada parte comum, mesmo pela própria recorrida, comungando os demais condóminos nas despesas comuns respectivas - cfr. ( 13 ), ( 14 ) e ( 17 ), supra.


A questão a resolver antes de mais, é, em todo o caso, ainda, a da validade ou, antes, nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal na parte em que autonomiza a dependência do prédio destinada ao uso e habitação do porteiro, destinação essa que consta desse mesmo título.

São do C.Civ. todas as disposições citadas ao diante sem outra indicação.

O Assento de 10/5/89, BMJ 387/79 (2) , estabeleceu doutrina transposta para o actual nº3º do art. 1418º ( redacção do DL 276/94, de 25/10 ), em que se determina que o titulo constitutivo ou modificativo da propriedade horizontal é parcialmente nulo, nos termos do art.294º, quando atribua à parte comum ou fracção autónoma do edifício destino ou utilização diferentes dos constantes do respectivo projecto aprovado pela câmara municipal.

Como reconhecido no acórdão sob revista, no caso dos autos há coincidência entre o fim ou utilização constante do projecto aprovado pela Câmara Municipal e o fim ou utilização indicado no título constitutivo da propriedade horizontal : uso e habitação do porteiro.

Inexistente discrepância entre a composição do prédio constante do título constitutivo da propriedade horizontal e o respectivo licenciamento camarário - irregularidade, como referido, geradora da nulidade parcial do título, a pretensão submetida a juízo vinha, afinal, assente em desconformidade concretamente consistente em que, licenciado o espaço em causa para casa de porteiro, e essa a destinação mencionada no título constitutivo da propriedade horizontal, todavia surge na escritura de constituição da propriedade horizontal como fracção autónoma.

A sentença apelada, adoptando a doutrina, que transcreveu, de acórdão deste Tribunal de 19/1/ 2004, CJSTJ, XII, 1º, 33 ( 4.1.1. ) e 34 ( 4.1.3. ) ( relativo a sala de convívio dos condóminos ), que segue a de Ac.STJ de 13/2/2001, CJSTJ, IX, 1º, 116 ( relativo a cave destinada a parqueamento (3) , em que, por sua vez, se cobra apoio em Ac.STJ de 12/6/91, BMJ 408/552, negou que tal consubstanciasse qualquer incompatibilidade. É no mesmo sentido, ainda, Ac.STJ de 4/11/2003, CJSTJ, XI, 3º, 129. Ora :

Sendo, de facto, no título constitutivo da propriedade horizontal que se define o estatuto jurídico-real do condomínio, permanece exacto que, bem que por razões de natureza técnica ligadas à segurança do edifício, o Regulamento Geral das Edificações Urbanas aprovado pelo DL 38.382, de 7/ 8/51, então vigente, submetendo a construção de edifícios ( e outras obras e trabalhos ) a prévia obtenção de licença das câmaras municipais, determinava, mais, que nos projectos de construção, reconstrução ou ampliação de construções existentes seriam sempre indicados o destino da edificação e a utilização prevista para os diferentes compartimentos ( cfr. seus arts.2º, 6º e 8º).

Paradigmático, no sentido dos arestos referidos, o sumário do acórdão deste Tribunal de 23/11/ 2004, proferido no Proc.nº3538/04-6ª publicado na pág.60 ( 2ª col.) do nº 85 dos Sumários de Acórdãos organizado pelo Gabinete dos Juízes Assessores do mesmo, não havendo discrepância entre o fim ou destino que o projecto aprovado prevê para o espaço construído e o constante do título constitutivo da propriedade horizontal, resulta indiferente que constitua fracção autónoma ou se integre nas partes comuns.

Tal assim uma vez que a imposição no art.6º RGEU da indicação no projecto da utilização prevista para os diversos compartimentos obedeceu a " uma motivação de natureza estritamente técnica relacionada com as condições de segurança exigidas na construção de edifícios, (...) que variam em função do tipo de utilização previsto " (4) .

Concretizando, diz-se no acórdão deste Tribunal de 19/1/2004 primeiro mencionado ( loc. cit., 34, 2ª col., 2º e 3º par.) :

" O andar destinado segundo o projecto aprovado a sala de convívio dos condóminos mantém esse destino, quer venha a constituir uma fracção autónoma, quer se mantenha ou seja incluído nas partes comuns.

Não se vê que de uma ou outra situação do andar relativamente ao estatuto da propriedade horizontal resulte incompatibilidade. O que acontece é que enquanto no segundo caso o andar com sala de convívio e seus anexos entraria imediatamente na compropriedade do condomínio, já no segundo teria de ser adquirido pelos condóminos, o que nada tem de anormal em termos de mercado imobiliário " ( destaque nosso ).

No acórdão recorrido, que se louvou em Acs.STJ de 7/6/74, BMJ 238/226, e de 17/2/98, CJSTJ, VI, 1º, 86 ( - II ) (5) , entendeu-se que a doutrina do falado acórdão de 19/1/2004, que a sentença apelada seguiu, não se adequa " às particularidades do caso concreto ".

Também relativos a dependências destinadas, como neste caso, ao uso e habitação de porteiro, tem por si Acs.STJ de 3/11/93, BMJ 431/472 (-VI e VII ) e de 8/3/94, CJSTJ, II, 1º, 144 ( -II ),

O primeiro destes últimos apela, nomeadamente, para o princípio da boa fé ( arts.227º, nº1º, e 762º, nº2º), que, subjacente a toda a civilística portuguesa, implica probidade e correcta conduta no meio negocial ( idem, 479-VII ) (6), e para a incindibilidade estabelecida no art.1420º ( nº2º), de que decorre que, ao adquirir a sua fracção, cada condómino ia adquirindo também a sua quota de comproprietário das partes comuns ( ibidem, 480 ) ; e manifesta o entendimento de que a indicação do destino referido no projecto aprovado e, respeitando-o, no próprio título constitutivo da propriedade horizontal, mais não faz que confirmar a presunção constante do art.1421º, nº2º, al.c), o que inviabiliza a consideração da dependência em questão como fracção autónoma.

O segundo desses arestos abonatórios do ora em recurso salienta, por sua vez, que, dispondo o nº1º do art.1416º que a falta dos requisitos legalmente exigidos importa a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal, o Assento referido veio esclarecer ser um desses requisitos o respeito pelo projecto aprovado, concluindo ocorrer nulidade desse título na parte em que, contrariando o aprovado pela câmara municipal, se passou espaço comum destinado a porteiro para fracção autónoma.

Na apelação vitoriosa, o condomínio A. (7) salientou, citando Pires de Lima e Antunes Varela, " C. Civ. Anotado ", III, 2ª ed., 399 (nota 2. ao art.1415º) que a independência (8) e autonomia ( hoc sensu ) de uma fracção predial depende em larga medida do fim a que essa fracção se acha adstrita.

Sustentou, nessa base, que, destinada a habitação do porteiro, a fracção em causa tem por finalidade o interesse e serventia do conjunto dos condóminos do prédio e das respectivas fracções, não podendo, dada essa afectação, ser usada e fruída de forma plena e exclusiva, livre e incondicionalmente, por determinado condómino. Concluiu não constituir a fracção aludida, por isso mesmo, uma unidade predial autónoma e independente - a que corresponderiam proporcionais encargos.

O título que, subtraindo a fracção do porteiro ao elenco das zonas comuns, a indicou como fracção autónoma que, na falta de outra indicação, ficou inscrita residualmente a favor de um titular individual - no caso, o construtor do prédio - é, sempre nessa tese, nulo na parte em que procedeu a essa autonomização, por violação dos arts.1415º e 1416º, nº1º, e sempre consubstanciaria um negócio jurídico contrário à lei e legalmente impossível, e por isso nulo, nos termos do art.280º, nº1º (9).

A nulidade parcial do título constitutivo na parte em que importa a autonomização da fracção H não afecta no mais o título que permanece válido - art.292º.

Invocou os arts.9º, nºs 1º e 3º, 280º, 1415º, 1416º, 1418º, nº3º (anterior nº2º ), e 1421º, nº2º, al.c), todos do C.Civ. Acompanhando agora o discurso do acórdão sob revista :

Apesar de no projecto licenciado pela Câmara Municipal e no título constitutivo da propriedade horizontal constar destinar-se o espaço do prédio em questão ao uso e habitação do porteiro, esse espaço foi autonomizado naquele título como fracção autónoma designada pela letra H, tendo-lhe sido atribuído valor matricial próprio e permilagem percentual relativamente ao valor total do prédio.

Na sequência disso, o espaço em causa - logo no projecto afectado àquele destino, em conformidade com a presunção do art.1421º, nº2º, al.c) ( v., a propósito, também a al.e) ) - foi sempre utilizado para os fins do uso, fruição e habitação da porteira do prédio, tendo a fracção sido sem-pre considerada pelos condóminos e pela própria Ré como parte comum do prédio - o que teve expressão no facto de serem os condóminos a suportar as despesas inerentes a esse espaço.

O art.1415º prescreve só poderem ser objecto de propriedade horizontal as fracções autónomas que constituam unidades independentes.

Em comentário a essa norma, Pires de Lima e Antunes Varela, " C.Civ. Anotado ", III , 2ª ed., 399, elucidam que o requisito da separação e do isolamento das várias fracções não se confunde com a exigência da sua autonomia.

A questão de saber se cada uma das fracções constitui, ou não, uma unidade independente depende, em larga medida, do fim a que se encontra adstrita.

No caso, o espaço em questão tem por finalidade o uso e habitação do porteiro do prédio, tendo sido sempre esse o uso que efectivamente lhe foi dado.

Como observa Rui Miller, "A Propriedade Horizontal no Código Civil ", 3ª ed. ( 1998 ), 160 ( -VII ) e 161, nos edifícios cuja construção preveja uma parte destinada a instalações de porteiro, essa parte tem de se revestir das condições inerentes a esse destino. Não pode, por isso, deixar de ter todos os requisitos de uma fracção autónoma. Mas as fracções autónomas existem para ser objecto de um direito de propriedade, que o porteiro não tem. Por outro lado, atento o fim a que se destina, que envolve o interesse de todos os condóminos e a satisfação das exigências inerentes ao gozo da fracção respectiva com repartição dos correspondentes encargos, a parte do edifício reservada ao uso e habitação do porteiro não deve, logicamente, ser objecto da propriedade singular de qualquer condómino, que, então, suportaria encargos em benefício dos restantes. Acrescenta que "mesmo que figure no título constitutivo como fracção autónoma, com especificação do seu valor relativo, isso não basta, atento o fim a que se destina e que não pode ser iludido enquanto aquele título não for modificado nessa parte, para ilidir a presunção da alínea c) do nº 2º do art.1421º : será, então, coisa comum, não relevando para os efeitos previstos na lei a especificação do seu valor relativo e nela comungando os condóminos na proporção do valor relativo da respectiva fracção autónoma.".

Essa doutrina, notou-se, vai de encontro à realidade que sempre vigorou para todos os condóminos, incluindo a própria Ré, que reconheceu expressamente a natureza comum do espaço destinado ao porteiro.

Concluiu-se daí que o espaço aludido não reveste a natureza de unidade independente.

À luz do disposto no nº 1º do artº 1416º, a falta desse requisito importa a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal, nulidade parcial conforme art.292º, respeitante apenas à qualificação do espaço do porteiro como fracção autónoma e à sua não inclusão nas partes do prédio consideradas comuns.

A própria Ré, desde a constituição da propriedade horizontal, em 11/8/81, até 1996 sempre aceitou a natureza comum do espaço destinado ao porteiro, beneficiando, aliás, dessa situação, na medida em que, coerentemente, as despesas relativas àquele espaço sempre foram pagas pelos condóminos.

Pretendendo agora ser proprietária exclusiva de tal espaço, dispõe-se a transferir para o ora recorrido a propriedade da fracção destinada ao porteiro mediante o pagamento de um preço - v. pág. 7 da alegação respectiva, segundo e último período do penúltimo par., a fls.594 dos autos.

Eis, na verdade, o que, quanto mais não fosse, integraria abuso de direito prevenido no art.334º C.Civ., por constituir manifesto " venire contra factum proprium ", invocado na réplica, e, aliás, de conhecimento oficioso,

Por força da aplicação da doutrina assim defendida, julgou-se impor-se a declaração de nulidade parcial do título constitutivo da propriedade horizontal, nos termos reclamados pelo A. na petição inicial, com a consequente declaração de que a dependência do porteiro é parte comum do prédio e condenação da Ré no seu reconhecimento, com cancelamento do registo da fracção H a seu favor.

É, por fim, claro que, em vista do registo, sempre teria de ser a ora recorrente a propor a acção de reivindicação e subsequente execução e a pagar a contribuição e taxa a que alude.

Tudo assim ponderado, não se vê que o acórdão recorrido efectivamente sofra censura. Daí a decisão que segue :

Nega-se a revista.

Custas pela recorrente.


Lisboa, 21 de Fevereiro de 2006
Oliveira Barros, relator
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
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(1) V., a propósito, Antunes Varela, RLJ, 129º/51.
(2) Com natureza interpretativa. São-lhe anteriores os arestos citados na pág.4, 3º e 4º par., da alegação da recorrente, a fls.591 dos autos, tanto o publicado no BMJ 274/233, com data, que não indicou, de 17/4/81, relativo a habitação da porteira ( tem voto de vencido ), como o publicado no BMJ 315/270, de 23/3/82, de que também não indicou a data, e, aliás, só na parte citada aproximável do caso dos autos.
(3) Como, ainda, o de 21/5/96, BMJ 457/356.
(4) Sendo o título constitutivo o acto modelador do estatuto da propriedade horizontal, em que, consoante art.1418º, se individualizam as fracções, como nesses arestos se salienta, carece, então, de sentido a proposição da recorrente na pág.3, 2º par., da alegação respectiva , a fls.590 dos autos, de que a parte destinada a habitação do porteiro, que consta da escritura de constituição propriedade horizontal como fracção autónoma, " assim consta do projecto de construção e assim, com autonomia, foi aprovada pela Câmara Municipal ".
(5) Ao contrário do que sucede no caso destes autos, nos versados neste aresto e no de 8/3/94 adiante referido em texto omitiu-se esse destino no título constitutivo da propriedade horizontal.
(6) Mormente, adita-se agora, em tempo em que se confere especial relevo à defesa dos consumidores, designadamente no sobredito mercado ( imobiliário ).
(7) Relevando : - ter a construção do prédio sido licenciada com uma dependência para uso e habitação do porteiro, designada por fracção H, com condicionantes físicas adequadas a esse fim, não tendo janelas para a rua pública, mas apenas para o pátio das traseiras, com uma extensão com guichet envidraçado para atendimento dos condóminos, e com indicação expressa na respectiva caixa do correio e na campainha correspondente de que se trata da casa do porteiro ; - constar expressamente do título constitutivo da propriedade horizontal a afectação da Fracção H a porteiro ; -ter essa fracção sido sempre considerada por todos, incluindo a Ré, até 1996, como zona comum, sendo as correspondentes despesas com água, luz, etc, suportadas pelo condomínio, e a sua permilagem nas despesas das demais zonas comuns proporcionalmente diluída pelos condóminos ; - e ter nela habitado a porteira do condomínio, desde a constituição do mesmo.
(8) Cfr. arts.1414º e 1415º, incisos " em condições de constituírem unidades independentes " e " além de constituírem unidades independentes ", respectivamente.
(9) Ainda segundo o condomínio apelante, mesmo se autorizada como fracção autónoma, a dependência destinada ao uso e habitação do porteiro presume-se zona comum, presunção que só é ilidida a partir do momento em que se seja alterado o título constitutivo de propriedade horizontal de modo a alterar-lhe a finalidade. Tem-se, em contrário, entendido que as presunções referidas no nº2º do art.1420º podem ser afastadas naquele título - v., com a doutrina aí referida, ARE de 22/10/92, CJ, XVII, 5º, 274, na esteira de ARL de 30/5/80, CJ, V, 3º, 173, que cita.