Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02A3954
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PONCE DE LEÃO
Nº do Documento: SJ200212120039546
Data do Acordão: 12/12/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 588/01
Data: 04/16/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

A e B vieram propor a presente acção declarativa contra a C e contra D, peticionando:
a) Que antes do enchimento da Albufeira existia um caminho de pé posto de acesso ao poço, sito na extrema Norte da propriedade das Autoras, vindo do Chão da Conheira, referenciado na planta usada pelos Serviços Hidráulicos em 1974;
b) Que existia na extrema Norte do local onde hoje é o prédio das Autoras um caminho de pé que a partir daí (e sem chegar à casa) inflectia para Nascente e que servia prédios vizinhos;
c) Que esse caminho servia prédios determinados, o seu início é determinável, não imemorial;
d) Que não havia, antes do enchimento da barragem, qualquer caminho - público ou privado - que viesse de Chão da Conheira, passasse junto à casa das Autoras e seguisse na mesma direcção até ao local onde hoje é a margem da Albufeira;
e) Que não houve até ao enchimento da Albufeira qualquer acto da Freguesia ou de qualquer entidade púbica, de produção conservação ou regulação de caminho que passasse pelo prédio hoje das Autoras, excluindo o de acesso ao poço;
f) Que com o enchimento da Albufeira, os prédios servidos pelo caminho a jusante dos prédio das Autoras e do E ficaram submersos, cessando a função do caminho;
g) Para o caso de se entender que o caminho, qualquer que fosse a sua localização, era público, que houve relativamente a ele desafectação tácita e aquisição, por usucapião pelas Autoras e seus pais.
h) Também para o caso de se entender que o caminho era público e de pé posto, qualquer que fosse a sua localização, que terceiros só poderão impor a sua passagem a pé e não também com veículos.
Para tanto, e muito em síntese, alegaram, que:
"1. São comproprietárias e possuidoras de um prédio misto situado na margem direita do rio Zêzere, junto da Albufeira do Castelo de Bode, Tomar;
2. O pai das AA. construiu aí, no ano de 1961, uma casa e murou o prédio;
3. Existiu na extrema Norte do prédio um poço de água ao qual ia ter um caminho de pé posto vindo de Chão de Conheira, mas que tapado pelo pai dos AA. há mais de 20 anos;
4. Aquando da construção da casa, o pai das AA. mandou abrir um caminho até às traseiras da casa, para a passagem de materiais, pedindo autorização aos titulares dos prédios adjacentes, caminho esse que passa pelo prédio do E;
5. Em 1961, o pai das AA. colocou dois pilares, com uma corrente, no acesso à casa;
6. Tendo prolongado o caminho, em 1974, até ao lado da casa, colocou outros dois pilares com corrente mais acima;
7. A existência das vedações foi respeitada por todos até 1992, ano em que alguns populares, não respeitando aquelas vedações entraram e atravessaram o prédio dos AA. com os seus carros, atrelados, motos de água e reboques, afim de poderem aceder com os veículos até ao areal junto da Albufeira;
8. Consta ter existido, antes do enchimento de Albufeira, um caminho, vereda ou servidão, de pé para acesso aos prédios vizinhos do rio Zêzere, que ficava situada entre os prédios das AA. e do E;
9. Mas essa vereda de pé posto tinha um percurso que não coincide com o caminho que hoje acede ao prédio dos AA., antes inflectindo para Nascente antes de chegar ao prédio;
10. Até ao enchimento da Albufeira, quer a Freguesia ou qualquer outra entidade pública jamais praticou acto de produção do caminho, sua conservação, regulação de trânsito ou definição de percurso;
11. Mas com o enchimento da Albufeira a dita vereda de pé que constituía servidão para os prédios vizinhos deixou de ter objecto, devido a submersão dos prédios, e perdeu o seu carácter público, se alguma vez o teve;
12. Até 1991/1992, as AA. por si e antecessores, fruíram de forma pacífica e pública a totalidade do prédio, compreendendo, pois, a parcela de terreno onde foi aberto o caminho." ( acórdão recorrido)
Devidamente citados, apenas a Ré Freguesia veio contestar, onde concluiu por dever ser a acção julgada improcedente, tendo ainda deduzido reconvenção, onde peticionou que viesse a ser declarado que o caminho em causa, "saindo do Casalinho, passando por Chãs de Conheira, e junto, por Nascente, à casa das AA., até às águas da Albufeira do Castelo do Bode, é público, e simultaneamente, tal caminho, na parte que atravessa o prédio das AA., constitui uma servidão administrativa de acesso do público à dita Albufeira.".
As AA. apresentaram réplica, pugnando pela tese exposta na petição inicial, impugnando ainda que alguma vez existido caminho, público ou privado, tal como a Ré o configura, que atravessando o prédio das AA., a Nascente da sua casa, seguisse até às águas da Albufeira.
Os autos prosseguiram a sua normal tramitação processual, tendo-se realizado o respectivo julgamento e sido proferida sentença, que julgou a acção parcialmente procedente e a reconvenção totalmente improcedente, tendo-se declarado e decidido que:
"a) Que antes do enchimento da Albufeira existia um caminho de pé posto de acesso ao poço, sito na extrema Norte da propriedade das Autoras, vindo do Chão da Conheira, referenciado na planta usada pelos Serviços Hidráulicos em 1974;
b) Que existia na extrema Norte do local onde hoje é o prédio das Autoras um caminho de pé que a partir daí ( e sem chegar à casa ) inflectia para Nascente e terminava no rio.
c) Que não havia, antes do enchimento da barragem, qualquer caminho - público ou privado - que viesse de Chão da Conheira, passasse junto à casa das Autoras e seguisse na mesma direcção até ao local onde hoje é a margem da Albufeira;
d) Que não houve até ao enchimento da Albufeira qualquer acto da Freguesia ou de qualquer entidade púbica, de produção conservação ou regulação de caminho que passasse pelo prédio hoje das Autoras, excluindo o de acesso ao poço;
e) Que com o enchimento da Albufeira, os prédios servidos pelo caminho a jusante dos prédio das Autoras e do E ficaram submersos, cessando a função do caminho.".

Inconformada, a C interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Coimbra, que no douto acórdão recorrido julgou improcedente a dita apelação e, em consequência confirmou, integralmente, a sentença da 1ª instância.

Continuando inconformada, a mencionada Freguesia recorreu de revista para este Supremo Tribunal de Justiça, tendo, atempadamente, apresentado as respectivas alegações, que concluiu pela forma seguinte:
1ª) À Ré ora recorrente, C, devia ter sido reconhecido o pedido reconvencional de reconhecimento duma servidão administrativa de acesso à água da albufeira de Castelo de Bode, pelo caminho existente no prédio dos A.A., e numa extensão de 50 metros a partir da zona de plano enchimento da referida albufeira.
2ª) O douto acórdão da Relação de Coimbra, ao confirmar a decisão da 1ª instância que o julgou improcedente, violou o disposto no artº 12 nº 1 do DL nº 468/71 de 05/11.
3ª) Ao não reconhecer este direito à C, ora apelante, o acórdão violou o Princípio da Confiança no Estado de Direito plasmado no artº 2º da Constituição, violação que expressamente se argui, atento o disposto nos artºs 204º e 280º da Constituição.
Foram apresentadas contra-alegações, onde se defendeu a bondade e manutenção do Julgado pelo Tribunal da Relação de Coimbra.

Foram dados como provados os factos seguintes:
1) No lugar de chão da Conheira, Casalinho, C, situa-se o prédio misto, composto de casa destinada a habitação de rés-do-chão, com área de 85 m2, logradouro com área de 1715 m2 e terra de mato com área de 3.120 m2, a confrontar a norte com E, do sul com a albufeira do Castelo de Bode, de nascente com Albufeira e E e do poente com F, estando descrito na Conservatória do registo Predial de Tomar sob o nº01309/220591 (A/Esp.).
2) Este prédio está inscrito sob os artºs. 1328 urbano e 90 Secção AA rústico, em nome de G, A e B, sem determinação de parte ou direito, por dissolução de comunhão conjugal e sucessão legítima de H (B/Esp. ).
3) O prédio foi formado pela anexação dos prédios descritos sob os nº55453, 56875 e 59297 ( C/Esp. ).
4) Em 1961, o pai das Autoras fez construir uma casa e um muro no prédio ( descrito em A/ ), nos termos da licença nº 144 da Direcção Geral dos Serviços Hidráulicos ( E/Esp.).
5) A casa foi rodeada por um jardim com saibro e árvores, o qual passou a ser usado apenas pelo dono e seus familiares ou convidados ( r.q.1º e 2º).
6) O muro circunda o prédio e foi sendo ampliado e completado, mediante a emissão das respectivas licenças, tendo sido concluído em 1974 (r. aos q. 3º, 4º e 5º).
7) Desde 1974 que todo o terreno que integra o prédio (descrito em A/) se encontra delimitado por muros, tendo como únicas aberturas de saída rampas e escadas de acesso entre o jardim e a barragem ( r. aos q. 6º e 7º).
8) No interior do prédio, perto da extrema norte, havia um poço de água, ao qual ia ter um caminho de pé posto, vindo do Chão da Conheira e se prolongava para sul, pelo terreno, hoje pertencente ao Sr. E, até ao local onde actualmente se situam as traseiras da casa, hoje pertencente às Autoras, para acesso a diversas propriedades ali existentes ( r. aos q. 8º e 9º).
9) O pai das Autoras tapou o poço, há mais de vinte anos, por não ser utilizado pela população há muitos anos, por falta de água ( r. aos q. 10º, 11º e 12º).
10) O pai das Autoras alargou o caminho ( referido na resposta ao quesito 9º), com autorização dos titulares dos prédios adjacentes, destinando-se o alargamento ao acesso do empreiteiro que construiu a casa, ao respectivo local da implantação, com materiais e mão de obra ( r. aos q.13º e 14º).
11) Esse caminho passa pelo prédio que actualmente pertence a E e desembocava nas traseiras da casa ( referida em E/ ) ( r. aos q. 15º e 16º).
12) Entre 1961 e 1974, o pai das Autoras construiu um novo troço do caminho pelo lado nascente da casa, dentro da sua propriedade, a partir do caminho referido na resposta ao quesito 13º, para facilitar cargas e descargas ( r. aos q. 17º e 18º).
13) Após construir a casa, o pai das Autoras colocou dois pilares, com respectiva corrente, no acesso perto da casa ( r. ao q. 21º).
14) Depois de 11 de Junho de 1968, o pai das Autoras colocou no prédio e mais acima outros dois pilares com corrente, para servirem de entrada /saída ( r. aos q. 22º, 23º).
15) Em 1961, o pai das Autoras colocou dois pilares de ferro para redes de descanso na zona onde existem arbustos e árvores, entre a casa e a albufeira, que é a zona onde a Assembleia de C alega que passa o caminho público ( r. aos q. 27º e 28º).
16) Pelo menos desde 1960, quanto ao terreno descrito em A/, onde foi implantada a casa (referida em E/) e, desde 1964 a 1968 quanto aos prédios a que se alude em C/, que o pai das Autoras e seus sucessores, sua mulher e as próprias Autoras e até 1991/92 praticaram os factos referidos nos quesitos 1º, 2º, 4º, 5º, 12º, 13º, 14º, 17º, 19º, 21º, 22º, 23º, 25º e 27º, bem como usaram o prédio, sem oposição de ninguém, ininterruptamente, convencidos de que o faziam o exercício de direito que lhes assistia ( r. aos q. 29º, 30º, 31º e 32º).
17) O prédio (descrito em A/) era usado por familiares e amigos dos pais das Autoras e destas, só com o seu consentimento expresso ( r. ao q. 33º).
18) Algumas vezes, forasteiros que se transportavam em carro, ao depararem com as correntes, não podiam fazer qualquer manobra, para recuar, por falta de espaço ( r. ao q. 24º).
19) Por isso, em 1989, a mãe das Autoras, com autorização de E, colocou um portão, para além da extrema do prédio identificado em A/ e perto do portão do vizinho, E ( r. aos q. 25º e 26º).
20) A existência das vedações foi respeitada por todos, durante vários anos ( r. ao q. 34º).
21) Em 1991, com autorização de E, no que se refere à parte que se encontra dentro do seu prédio, as Autoras cimentaram tal caminho ( r. ao q. 19º e 20º).
22) Em 1992, alguns populares derrubaram o portão (referido no quesito 25º) (r. ao q. 35º).
23) Em data não apurada do ano de 1994, alguns populares entraram nos jardins do prédio (referido em A/) com carros, atrelados, motas de água e reboques, destruíram parte do muro de suporte, construído pelo pai das Autoras em zona já próxima da Albufeira, para poderem acederem com veículos até ao areal e manobrarem os automóveis e os reboques para darem a volta ( r. aos q. 36º, 37º, 38º e 39º).
24) Entre o prédio descrito em A) e aquele que hoje é de E, antes do enchimento da albufeira, existiu um caminho de pé para dar acesso aos prédios vizinhos, até ao rio, sem que o percurso deste caminho coincida na totalidade com o caminho mencionado nas respostas aos quesitos 9º e 13º ( r. aos q. 40º e 41º).
25) Esse caminho (respostas aos quesitos 40º e 41º), entre o poço (referido em 8º) e os pilares (indicados no quesito 21º), inflectia para nascente, antes de chegar ao prédio descrito em A) e terminava no rio (r. ao q. 42º).
26) Até ao enchimento da albufeira, a Freguesia ou qualquer entidade pública nunca praticou acto de produção do caminho, conservação com obras, regulação de trânsito ou definição do seu percurso ( r. ao q. 43º).
27) Alguns habitantes da C, em especial os do Casalinho e Alverangel, sempre conheceram o caminho existente naquela freguesia que, saindo do lugar do ......, passa pelo Chão da Conheira até ao Poço (referido nos quesitos 8º e 9º), a partir do qual inflectia para nascente, para acesso aos prédios vizinhos, conforme respostas aos quesitos 40º, 41º e 42º, sempre por ali passaram, desde tempos que já ninguém se recorda (r. aos q. 49º, 50º e 51º).
28) Por esse caminho eram transportados cereais para serem moídos numa azenha então existente ma margem esquerda do rio Zêzere ( r. aos q. 53º e 54º).
29) Por esse caminho também passavam pessoas que viviam ou trabalhavam nas terras, hoje cobertas pelas águas da albufeira, e por esse caminho os donos das terras transportavam em burros as colheitas e os estrumes (r. q. 55º e 56º).
30) Antes do enchimento da albufeira de Castelo do Bode, algumas mulheres iam lavar a roupa ao rio utilizando, para o efeito, quer pelo caminho referido na respostas ao quesito 42º, quer pelo caminho referido em 9º ( r. ao q. 52º).
31) Com o enchimento da albufeira, o caminho (referido nas respostas aos quesitos 40º, 41º e 42º) deixou de ser usado, uma vez que tais prédios ficaram submersos (r. aos q. 44º e 45º).
32) Após o enchimento da albufeira, foram construídas diversas rampas para o público, existindo caminhos de acesso a essas rampas, de utilização para automóveis e reboques, estando dois desses caminhos situados junto ao Casalinho ( r. aos q. 46º, 47º e 48º).
33) O marco da freguesia situava-se no cimo de um pequeno monte, que hoje é uma ilhota, a sul do prédio descrito em A), o qual foi arrancado, tendo até então separado as Freguesias de ..... e da ...... (r. aos q. 58º, 59º e 60º).
34) Após o arrancamento do marco, a separação das Freguesias de ..... e da ...... passou a seguir a partir do marco 36 pela extrema norte do prédio, descrito em A), continuando depois para SW pela linha média da Albufeira ( r. ao q. 67º).
35) No dia 3 de Fevereiro de 1994, no 21º Cartório Notarial de Lisboa, I, J e L declararam que, no dia 31 de Agosto de 1993 faleceu G, no estado de viúva de H, sem deixar testamento ou qualquer disposição de última vontade, tendo-lhe sucedido, como únicas herdeiras, as suas filhas A e B ( D/Esp.).
36) Em sessão de 6 de Abril de 1995, a Assembleia de C tomou as seguintes deliberações:
"1. Incumbir a Junta de Freguesia de envidar todos os esforços no sentido de manter público o caminho que liga o lugar de Casalinho até à água e que passa por Chão da Conheira entre as propriedades do Advogado E e a do H; 1.1. Informar o proprietário o herdeiro de que o caminho que passa ao lado da sua casa é de domínio público conforme legislação em vigor, assim como atestam também os mapas do Plano de Ordenamento e testemunhos recolhidos e ainda uma visita ao local feita pelos membros desta Assembleia de Freguesia; 1.2. enviar ofício às forças de autoridade, nomeadamente à Guarda Nacional Republicana, a informá-las que o caminho é público até à água, como reconhece a Assembleia desta Freguesia de acordo com a legislação e outros documentos que tem em seu poder. 2. Dado que o caminho é público até à agua, deve a Junta de Freguesia informar o proprietário da casa a proceder ao arranque dos arbustos no espaço público, onde foram postos indevidamente.
Nesta informação será dado um prazo de 15 (quinze) dias para repor a legalidade" ( F/Esp.).
37) Em sessão de 13 de Julho de 1995, a Assembleia de C, tomou as seguintes deliberações:
"1. Reiterar a deliberação tomada por unanimidade desta Assembleia, no dia 6 de Abril de 1995 e que consta da acta, em defender a continuidade do domínio público do caminho de Chão da Conheira que dá acesso à Albufeira e que passa entre a propriedade do Sr. E e a do Sr.H
2. Considerar ilegais todos os actos que estejam contra o deliberado no ponto 1º, quer seja a nível de pessoas quer a nível de placas indicativas de caminho privado ou particular, de viaturas atravessadas no caminho, de correntes ou outros impedimentos.
3. Esta Assembleia deliberou ainda que a Junta de Freguesia mande colocar placas indicativas nos caminhos públicos de Alverangel, Zorro e Chão da Conheira, com os seguintes dizeres: "Acesso à Albufeira".
4. A Assembleia de Freguesia deliberou enviar fotocópias da acta desta reunião extraordinária às seguintes entidades: Guarda Nacional Republicana, Presidente da Câmara Municipal de Tomar, Presidente da Assembleia Municipal, proprietários da casa situada junto ao caminho público do Chão da Conheira".( G/Esp.).
38) A Autora, A interpôs recurso contencioso contra as deliberações a que aludem F/ e G/ ( H/Esp.).
39) O Tribunal Administrativo do Círculo de Coimbra ordenou a suspensão daquele processo em ordem à resolução da questão de saber do carácter dominial ou privado do caminho ( I/Esp.).
Os autos correram os vistos legais. Cumpre decidir.
Decidindo:
Como é sabido são as conclusões das alegações do recorrente que delimitam o objecto do recurso, pelo que o Tribunal ad quem, exceptuadas as que lhe cabem ex-officio, só pode conhecer as questões contidas nessas mesmas conclusões- artigos 684º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Processo Civil e jurisprudência corrente (por todos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23.1.91, 31.1.91 e 21.10.93 in Boletins do Ministério da Justiça números 403º, páginas 192 e 382 e Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, Ano I, Tomo III, página 84, respectivamente).
Antecipando, embora, uma decisão, diremos, desde já, que o douto acórdão recorrido é absolutamente claro, por bem elaborado, sendo certo que nele se fez um adequado enquadramento jurídico dos factos dados como assentes- de resto na linha do sentenciado na 1ª instância- encontrando-se suficientemente fundamentado.
Nenhuma censura entendemos dever ser-lhe feito, porquanto com o mesmo nos identificamos na plenitude, não só no que concerne à decisão stricto sensu, mas também quanto aos respectivos fundamentos, razão por que poderá - e deverá - ser integralmente confirmado, mesmo fazendo uso do prescrito no nº 5 do artigo 713º do Código de Processo Civil.
Por assim ser, e sem prejuízo de se virem a fazer alguns - poucos - comentários às conclusões das alegações de recurso apresentadas pela Recorrente, por razões de natureza metodológica, passa-se a transcrever o mencionado acórdão recorrido:
"...a Ré autarquia local coloca a julgamento deste Tribunal a questão de saber se o caminho de que trata os autos é de natureza pública, de pé e carro, ou, então, o prédio das AA. está onerado por servidão administrativa de acesso público às águas da Albufeira do Castelo de Bode.
III-1)- Como vimos, o núcleo essencial dos vários pedidos formulados pelas AA. acima transcritos, consiste na declaração de que o caminho que caracterizam na p.i. não é de natureza pública, defendendo, diversamente, a Ré Freguesia que o dito caminho constitui coisa do domínio público, e, assim, pedindo, em reconvenção, tal reconhecimento e estando, também, o prédio das AA. onerado por servidão administrativa na parte em que o mesmo caminho atravessa o prédio.
E nas acções de simples apreciação ou declaração negativa, compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga (nº1 do art. 343º do C. Civil), nada obstando, antes sendo de exigir, que o réu nessas acções deduza pedido reconvencional a fim de ver reconhecido e respeitado o seu direito ou a existência de um facto (cfr. acórdão do STJ, publicado na CJ 2001, 1º, p. 77).
Mas a Ré, ora Apelante, logrou tal desiderato?
Na sentença da 1ª instância foi entendido que não, após produção de prova que incluiu inspecção judicial ao local (cfr. fls. 219).
Doutamente aí se discorreu sobre o conceito de dominialidade pública dos caminhos, pelo que nos abstemos de mais amplas considerações, citando-se, a propósito, o Assento do STJ, proferido em 19.04.89, publicado no DR- I Série, de 02.06.89, com o seguinte teor:
"São públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público".
Afastou-se, assim, a tese jurisprudencial que exigia para a caracterização de natureza pública do caminho, a sua apropriação, produção, administração ou jurisdição por pessoa colectiva de direito público, bastando o uso directo e imediato pelo público desde tempos imemoriais.
Ora, a Ré, na sua contestação, alegou que é público ou dominial o caminho versado nos autos, ou seja, o caminho existente na C e que saindo do lugar do Casalinho, passa por Chãs da Conheira, atravessa o prédio dos AA., a nascente da casa, até findar junto às águas da Albufeira do Castelo de Bode. Toda a factualidade alegada pela Ré, visando a caracterização do uso directo e imediato pelo público do referido caminho, e desde tempos imemoriais, recolheu as respostas vazadas nos itens nºs 27 a 34 (inclusive).
Aí se explicita que alguns habitantes da C, em especial os do Casalinho e Alverangel, sempre conheceram o caminho existente naquela freguesia que, saindo, do lugar do Casalinho, passa pelo Chão da Conheira até ao poço referido no item 8, a partir do qual inflectia para Nascente, para acesso aos prédios vizinhos, e sempre por ali passaram desde tempos que ninguém se recorda.
Antes do enchimento da Albufeira, esse caminho, situado entre o prédio dos AA. e o prédio do E, era um caminho de pé para dar acesso aos prédios vizinhos, até ao rio, sem que o percurso deste coincida na totalidade com o caminho mencionado nos itens 8º e 10º. Esse caminho entre o poço e os pilares indicados no item nº 13, inflectia para Nascente, antes de chegar ao prédio dos AA. e terminava no rio.
Por esse caminho eram transportados cereais para serem moídos numa azenha então existente na margem esquerda do rio Zêzere. Por esse caminho também passavam pessoas que viviam ou trabalhavam nas terras, hoje cobertas pelas águas da Albufeira, e por esse caminho os donos das terras transportavam em burros as colheitas e estrumes. Antes do enchimento da Albufeira, algumas mulheres iam lavar a roupa ao rio utilizando, para o efeito, quer o referido caminho, quer o caminho referido no item 8. Tal caminho, com o enchimento da Albufeira, deixou de ser usado, uma vez que os prédios ficaram submersos.
Portanto, a factualidade assente apenas revela a existência, desde tempos imemoriais, e antes do enchimento da Albufeira, de um caminho de pé posto, situado entre o prédio dos AA. e o prédio do E, para dar acesso aos prédios vizinhos, até ao rio Zêzere, mas não coincidindo o seu percurso na sua totalidade com o caminho referido no item nº 8, que o pai dos AA. alargou com vista à construção da casa e as AA. cimentaram, em 1991. Por esse caminho de pé posto transitavam pessoas que cultivavam os prédios que acabaram por ficar submersos com o enchimento da albufeira, mulheres que se dirigiam ao rio para lavar a roupa ou, então, para levar os cereais a uma azenha que existia na margem do rio. Com o enchimento da albufeira, o caminho deixou de ser usado, uma vez que os prédios ficaram submersos e o poço foi até tapado por falta de água e uma vez que não era utilizado pela população. Isto é, desapareceu a utilidade pública do caminho de pé posto que é causa da cessação da dominialidade ou cessou o carácter público por desafectação tácita (vide "Manual de Direito Administrativo", vol. 2º, 9ª edição, p. 957, do Prof. Marcelo Caetano e o Parecer do Prof. Freitas do Amaral e João Caupers, publicado na CJ 1989, 1º, p. 11 e segs. versando curiosamente uma hipótese algo semelhante à presente, em que, também, é interessada a Apelante, e aparece um outro prédio, sito no Casalinho, atravessado por caminho que conduz à mesma Albufeira, e o dono pretende mudar o traçado desse caminho para que o público possa aceder às águas com fins de mera recreação). Repare-se que desde 1974 todo o prédio das AA. foi vedado com muros, a vedação foi respeitada por todos durante vários anos, e o direito de propriedade sobre o caminho que atravessa o prédio nunca foi posto em causa até 1991/1992. E foi no ano de 1994, que alguns populares, certamente numa manifestação de força, entraram nos jardins do prédio das AA., com carros, atrelados, motos de água e reboques, destruindo parte do muro de suporte, construído pelo pai das AA. junto da albufeira, para poderem aceder com veículos até ao areal e manobrarem os automóveis e os reboques para darem a volta. Portanto, o uso do caminho que fora alargado pelo pai dos AA., em 1961, e cimentado pelas AA., no ano de 1991, tornou-se, agora apetecível, para o público aceder às águas da albufeira para fins recreativas, quando em tempos recuados, e com a simples configuração de caminho de pé posto, era destinado a outros fins de utilidade pública mas que tinham cessado com a submersão dos prédios e da azenha devido ao enchimento da dita Albufeira. E como caminho com aquele perfil estreito certamente não permitia a passagem dos veículos para os ditos fins recreativos.
Mas, se bem se notar, o citado caminho de pé posto não atravessava sequer o prédio das AA., como a Ré preconiza na sua contestação, ou seja, na direcção do marco da Freguesia e coincidente com o traçado do caminho que, em hoje em dia, existe dentro do prédio das AA., do lado Nascente da casa aí construída. Como se provou, esse caminho entre o poço, existente no interior do prédio dos AA. e perto da extrema Norte, e os pilares colocados no acesso perto da casa, inflectia para Nascente, antes de chegar ao prédio das AA.. O caminho existente dentro do prédio das AA. foi construído, entre 1961 e 1974, pelo pai das AA., a partir do caminho referido de pé posto que foi alargado, alargamento esse feito, no ano de 1961, sobre terreno pertencente hoje em dia ao E.
Defende, porém, a Apelante, na conclusão 2ª, que o documento junto aos autos e certificado pelo Instituto Português de Cartografia e Cadastro prova que, afinal, o dito caminho ao chegar ao limite do prédio das AA. não flecte para Nascente, como o Tribunal "a quo" deu como provado, mas, antes, continuava em frente entrando no prédio pertencente às AA.. De forma alguma, dir-se-á, poderia este Tribunal alterar a decisão sobre a matéria de facto a esse respeito, porque tal documento, só por si, não contém a virtualidade probatória almejada pela Apelante e definir trajectória para o caminho diversa daquela a que chegou a 1ª instância.
Mesmo que sugerisse tal trajectória, sempre a sua força probatória poderia ser destruída por quaisquer outras provas. E este Tribunal só pode alterar a decisão sobre a matéria de facto no estrito condicionalismo previsto nas alíneas do nº1 do artº 712º do CPC. É, pois, incontroverso, tal como se perfilhou na 1ª instância, que o caminho existente dentro do prédio dos AA. e que fora construído pelo pai, a Nascente da casa, na continuação do caminho de pé posto que fora alargado, é um caminho particular.
Improcedem, em consequência, as conclusões 1ª e 2ª.
III-2)- Na conclusão 3ª defende a Apelante que o caminho na parte em que atravessa o prédio dos AA., e até à distância de 50 metros da linha de pleno enchimento da Albufeira, constitui uma servidão administrativa de acesso do público às águas da albufeira.
Como vimos, o pedido reconvencional visava, em segunda linha, tal declaração, figurando, em primeiro lugar, a declaração de domínio público do caminho. Portanto, a Ré pugna, subsidiariamente, pela declaração do caminho, e na parte que atravessa o prédio dos AA., como abrangido pela servidão de margem.
A servidão administrativa de margem sobre parcelas privadas de leitos e margens públicos está prevista no artº 12º do Dec-Lei nº 468/71, de 05.11. Ai se prescreve que "todas as parcelas privadas de leitos ou margens públicos estão sujeitos às servidões estabelecidas por lei e, nomeadamente, a uma servidão de uso público no interesse geral do acesso às águas e da passagem ao longo das águas, da pesca, da navegação ou da flutuação, quando se trate de águas navegáveis ou flutuáveis,, e ainda da fiscalização e polícia das águas pelas autoridades competentes.". E nos nº1 e 2 do art. 3º do mesmo diploma define-se a margem como "uma faixa de terreno contínua ou sobranceira à linha de água que limita o leito", tendo "a margem das águas do mar, bem como das águas navegáveis e flutuáveis sujeitas à jurisdição das autoridades marítimas ou portuárias, uma largura de 50 metros.". Porém, e como observa Marcelo Caetano no "Manual de Direito Administrativo", vol. 2º, 9ª edição, pg. 1057, os termos em que o público poderá usar o direito de acesso às águas e da passagem ao longo das águas, conjugados com as necessárias garantias dos proprietários, serão naturalmente objecto de regulamento.
O Dec. Lei nº 502/71, de 18.11, estabeleceu o regime jurídico relativo à classificação, protecção e exploração das albufeiras de águas públicas, mas não faz qualquer referência a servidão de margem, apenas prevendo zonas de protecção com largura variável até 500 metros (nº1 do artº 1º e nº 1 do art. 3º). Nos termos do nº 1 do art. 2º, os projectos das albufeiras de águas públicas devem indicar:
a) Os limites das zonas de protecção e os condicionalismos a observar na construção de edifícios, no estabelecimento de indústrias e no exercício de actividades nessas zonas;
b) As utilizações secundárias com as finalidades principais das albufeiras e as condições em que podem ser exercidas.
E de acordo com o nº 3 desse artigo, a aprovação, por despacho do Ministro das Obras Públicas, dos projectos ou propostas referidas no presente artigo torna obrigatória a observância dos condicionalismos estabelecidos e importa a declaração de utilidade pública para as expropriações que se tornarem necessárias.
Foi tal diploma regulamentado pelo Dec. Regulamentar nº 2/88, de 20.01, sendo a Albufeira em apreço classificado como protegida, pelo que, e vista a definição do nº 2 do art. 1º, a sua água é utilizada para abastecimento de populações ou cuja protecção é ditada por razões de defesa ecológica. No art. 7º estão previstas zonas de protecção das albufeiras, com a largura de 500 metros, contada a partir da linha do nível de pleno armazenamento (NPA) e medida no horizontal, sendo definida como zona reservada a área da zona de protecção com a largura de 50 metros a partir da linha do nível de pleno enchimento. E de acordo com o disposto no nº 1 do art. 9º, cada albufeira classificada será objecto de um ordenamento territorial da respectiva zona de protecção, no qual serão especificados os locais de proibição ou de condicionamento de construção habitacional, industrial ou recreativo. Foi esse Dec. Regulamentar alterado, posteriormente, pelo Dec. Regulamentar nº 37/91, de 23.07, e este foi, também, e por seu turno, alterado pelo Dec. Regulamentar nº 33/92, de 02.12.
Relativamente à Albufeira do Castelo de Bode foi o respectivo Plano de Ordenamento definido e aprovado através do Despacho Conjunto dos Ministros do Planeamento e da Administração do Território e do Ambiente e Recursos Naturais, de 12.04.93, publicado no Diário da República nº 133, II Série, de 08.06.93. No art. 8º prevêem-se, nas águas da albufeira, zonas de infra-estruturas e equipamentos para barcos, sendo público o acesso à água. Aliás, a planta de síntese que integra o plano de ordenamento da zona de protecção da albufeira deve delimitar, além do mais, a estrutura viária, conforme resulta da alínea b) do art. 2º do Dec. Regulamentar nº 37/91, de 23.07, e certamente na definição daquelas infra-estruturas vai suposta já a existência de acesso público. Veja-se que no nº 3 do art. 19º do Despacho que aprovou o Plano de Ordenamento, alerta-se para a necessidade de nova via pública para acesso à infra-estrutura junto ao aglomerado urbano de Chás da Conheira, a qual incluirá a construção de um parque de estacionamento automóvel junto da referida zona. E referimo-nos a tal infra-estrutura porque o problema que deu origem à presente demanda tem justamente a ver com a passagem de carros, atrelados, motos de água e reboques através do caminho que atravessa o prédio das AA. e que, na sua óptica, a prejudicaria fortemente (cfr. fls. 233). Aliás, a Apelante, na sua contestação, sugere que tal infra-estrutura, junto ao aglomerado urbano de Chãs da Conheira, seria servida pelo caminho em causa, vindo o caminho dominial assinalado no anexo desse Despacho Conjunto. Mas o acesso a essa infra-estrutura através do prédio das AA. nem sequer foi confirmado pela Direcção Regional de Lisboa e Vele do Tejo, do Ministério do Ambiente e Recursos Naturais, conforme se vê do oficio junto a fls. 234, com a data de 24.01.95.
Mas não existindo no terreno o acesso público às infra-estruturas identificadas no art. 8º, então justifica-se que o acesso seja obtido mediante processo de expropriação por utilidade pública. E as servidões administrativas darão lugar a indemnização nos casos previstos no art. 8º do Código das Expropriações (Lei nº 169/99, de 18.09). Aliás, já no nº 3 do art. 4º do Dec. Lei nº 502/71, de 18.11, se determina que os proprietários poderão ser indemnizados pelos prejuízos causados, e a aprovação dos projectos das albufeiras importa a declaração de utilidade pública para as expropriações que se tornem necessárias ( nº 3 do art. 2º).
A servidão que a Apelante defende caracteriza-se como uma servidão permanente de caminho ou acesso público às águas da albufeira através do prédio murado das AA., e pelo caminho que foi construído pelo pai das AA.. E a vedação desse prédio foi respeitada durante vários anos pelo público. Portanto, uma servidão administrativa de caminho que não se identifica, no seu conteúdo, com a servidão de margem prevista no art. 12º do Dec. Lei nº 468/71, de 05.11, carecendo esta de regulamentação, como já se referiu, visando acautelar as necessárias garantias dos donos das parcelas privadas. No caso presente, a existência do caminho para passagem do público implica a completa devassa do prédio e da casa das AA., como se vê dos fotografias juntas aos autos.
Não poderão, porém, as AA. obstar à livre fruição pedestre pelas margens do Albufeira, como decorre da alínea c) do nº 5 do art. 3º do Despacho que aprovou o Plano de Ordenamento e conforme percursos pedestres estabelecidos ao abrigo do art. 20º.
Em suma, improcedem as conclusões da alegação da Apelante autarquia que vão no sentido do dominialidade do caminho na parte em que atravessa o prédio das AA., ou então no sentido de tal caminho constituir uma servidão administrativa de acesso público às águas da Albufeira do Castelo de Bode. Não se mostram, pois, violadas, na sentença recorrida, as normas referidas pela Apelante ou mesmo quaisquer outras.
Nos termos e pelos motivos expostos, acorda-se em:
1. Julgar improcedente a Apelação.
2. Confirmar a sentença impugnada.".
Feita que foi a transcrição do douto acórdão recorrido, que, como se deixou já dito, nos não merece qualquer reparo, far-se-ão umas breves notas às, de resto bem sucintas, alegações de recurso da Recorrente, apenas com o intuito de reforçar a bem estruturada decisão tomada pelo Tribunal da Relação de Coimbra.
Como se pode constatar, a Recorrente restringiu o âmbito do recurso para este Supremo Tribunal de Justiça de forma bem notória.
Enquanto no recurso de apelação havia colocado a julgamento a questão de saber se o caminho em questão era de natureza pública, de pé e carro, ou, então- segunda hipótese- era o prédio das AA. onerado por servidão administrativa de acesso público às águas da Albufeira (como se vê, situações bem distintas), agora, em sede de revista "basta-se" por esgrimir com o facto do prédio das AA. estar, eventualmente, onerado com a aludida servidão administrativa.
Assim terá sido, já que, atenta a materialidade factual dada como provado, como que terá desistido de argumentar no sentido de considerar de natureza pública, o mencionado caminho.
Porém, mesmo no que concerne a essa eventual oneração do prédio das AA. com tal servidão administrativa de acesso público (e para tal se socorrendo do prescrito no artigo 12º nº 1 do Decreto-Lei nº 468/71 de 5/11), sem razão.
Tal comando determina, efectivamente, o seguinte: "todas as parcelas privadas de leitos ou margens públicos estão sujeitos às servidões estabelecidas por lei e, nomeadamente, a uma servidão de uso público no interesse geral do acesso às águas e da passagem ao longo das águas, da pesca, da navegação ou da flutuação, quando se trate de águas navegáveis ou flutuáveis,, e ainda da fiscalização e polícia das águas pelas autoridades competentes.".
Só que tal diploma não poderá ter aplicação enquanto não for objecto de regulamentação, o que, de facto, jamais aconteceu.
A este propósito e referenciando a servidão administrativa de margem, escreveu Marcelo Caetano, no seu Manual de Direito Administrativo, a pg. 1056 a 1058:
"Em princípio, incluem-se no domínio público do Estado, além dos leitos, as margens das águas do mar e de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, sempre que lhe pertençam, e bem assim os leitos e margens das águas não navegáveis nem flutuáveis que atravessem terrenos públicos do Estado (Dec.- Lei cit., art. 5º, nº 1). Mas a lei considera, e bem, objecto de propriedade privada, sujeitos a servidões administrativas, não apenas os leitos e margens das águas não navegáveis nem flutuáveis que atravessem terrenos particulares, mas também as parcelas dos leitos e margens das águas do mar e de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis que forem objecto de desafectação ou que forem reconhecidas como privadas nos termos legais (art. 5º, nº 2).
Quer isto dizer, portanto, que as margens podem em concreto pertencer ao Estado ou aos particulares: na primeira hipótese, incluem-se no domínio público; na segunda, têm natureza privada e acham-se sujeitas a servidão administrativa.
Em que consiste tal servidão? É o artigo 12º do Decreto--Lei nº 468/71 que no-lo diz, dele se concluindo ser complexo e muito rico o conteúdo da servidão.
Assim, e em primeiro lugar, ela constitui uma "servidão de uso público", isto é, os proprietários particulares são obrigados a consentir o uso comum e geral destes seus terrenos por parte do público- com fundamento no interesse geral do acesso às águas e da passagem ao longo das águas, da pesca, e da navegação ou flutuação quando se trate de águas navegáveis ou flutuáveis.
Sublinhámos o acesso às águas e a passagem ao longo das águas porque neste texto se garante expressamente ao público em geral o direito de passagem pelas parcelas privadas dos leitos e margens públicos com aquela finalidade. Fica pois assente que aos proprietários particulares de parcelas situadas na faixa dos leitos ou margens dominiais - nomeadamente os donos das "praias privadas"- não é lícito impedir a passagem do público para acesso às águas ou a sua passagem ao longo das águas (v. adiante, a servidão de atravessadouro). Os termos em que o público poderá usar deste direito, conjugados com as necessárias garantias dos proprietários, serão naturalmente objecto de regulamento. (sublinhado nosso).
Em segundo lugar, a servidão existe no interesse geral da fiscalização e polícia das águas pelas autoridades competentes - que são as autoridades marítimas ou portuárias, hidráulicas e alfandegárias (art.,12º, nº 1).
Em terceiro lugar, nestas parcelas privadas de leitos ou margens públicos não é permitida a execução de quaisquer obras, permanentes ou temporárias, sem licença dos serviços hidráulicos (art. 12º, nº 2).
Por último, os proprietários marginais estão sujeitos a toda uma série de obrigações legais no que respeita à execução, ou à colaboração na execução, de obras hidráulicas, nomeada-mente de correcção, regularização, conservação, desobstrução e limpeza (art. 12º, nºs 3 e 4).".
De toda esta transcrição feita da obra do Mestre em Direito Administrativo a propósito da servidão de margem, algo de muito importante ressalta: é que se, e enquanto, não houver regulamentação do diploma que institui tal servidão administrativa, o mesmo não pode ter aplicação. Tal regulamentação será, assim, imprescindível na definição dos termos em que dela (servidão) pode fazer uso o público em geral, em termos tais que fiquem devidamente garantidos os interesses dos particulares.
Acresce ainda, e tal é manifestamente importante, que o diploma em causa não tem a virtualidade de, só por si, criar a dita servidão; tão só admite que sobre certos prédios ela venha a ser constituída, isto por via da intervenção dos órgãos da Administração Pública, através da regulamentação da lei ou da prática de actos administrativos. Necessário se torna no entanto que haja uma definição, uma determinação concreta, de modo a que se saiba quais os prédios que estão onerados.
A não ser assim, todas as propriedades privadas sitas nas proximidades de águas públicas estariam, de todo, e a qualquer momento, à mercê de qualquer intruso, o que seria completamente injustificável.
Por outro lado ainda - e tal igualmente é defendido no douto acórdão recorrido - o artigo 8º do Código das Expropriações (justamente o que se refere à constituição de servidões administrativas), no seu nº 1, prescreve que: "Podem constituir-se sobre imóveis as servidões necessárias à realização de fins de interesse Público.", e no seu nº 2, determina-se que: "As servidões, resultantes ou não de expropriações, dão lugar a indemnização quando:
a) inviabilizem a utilização que vinha sendo dada ao bem, considerado globalmente;
b) inviabilizem qualquer utilização do bem, nos casos em que estes não estejam a ser utilizados; ou
c) anulem completamente o seu valor económico."
Assim sendo, importará concluir que a constituição de uma servidão administrativa sobre o prédio das AA., atento o condicionalismo factual assente, sempre daria lugar a uma indemnização, o que nunca aconteceu.
Já no domínio do anterior Código das Expropriações, a situação era distinta, já que nele se fazia a destrinça entre servidões administrativas fixadas directamente pela lei e as que eram constituídas por actos administrativos, sendo que nos termos do nº 2 do artigo 8º do Decreto-Lei nº 438/91 de 9/11 (anterior Código) só estas últimas davam lugar a uma indemnização, e apenas quando envolvessem diminuição efectiva do valor ou do rendimento dos prédios servientes.
Hoje, a situação é totalmente diferente, como se demonstrou.
Por todo o referido, afigura-se-nos que todas as conclusões das alegações de recurso deverão ser julgadas improcedentes, nomeadamente também a terceira e última, em que se defende que a decisão recorrida ofende o princípio da Confiança do Estado de Direito plasmado no artigo 2º da Constituição da República, alegação esta de todo injustificável, já que se não entende em que é que tal comando se possa ter como ofendido, e violado, com o decidido no acórdão recorrido, que ora se confirma integralmente.

Termos em que ACORDAM os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento à revista e, fazendo também uso do prescrito no nº 5 do artigo 713º do Código Processo Civil, decidem confirmar in totum o acórdão recorrido.
Sem custas, dado que delas está isenta a Recorrente.

Lisboa, 12 de Dezembro de 2002.
Ponce de Leão
Afonso de Melo
Afonso Correia