Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2974/04.3TVPRT-B.P2.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
LIVRANÇA
AVAL
ASSINATURA
AVALISTA
FORMA LEGAL
PRESUNÇÕES LEGAIS
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 03/15/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário : I - A simples assinatura aposta no verso de uma livrança, sem qualquer indicação, não tem valor como aval.

II - O aval pode ser completo ou incompleto (aval em branco): completo quando se exprime pelas palavras “bom para aval” ou por uma fórmula equivalente e é assinado pelo dador de aval; em branco ou incompleto quando resulta da simples assinatura do dador, aposta na face anterior da livrança, desde que tal assinatura não seja do sacado, nem do sacador.

III - Se na face anterior da letra surgir uma assinatura, que não seja nem a do sacador nem a do sacado, presume-se – presunção legal – que é de um avalista.

IV - Se a assinatura foi aposta, não na face anterior da livrança, mas no verso, do ponto de vista do direito cambiário é de todo irrelevante o facto de o recorrido aí a ter aposto com a intenção de se obrigar ao pagamento da livrança nos mesmos termos que a subscritora; irrelevante porque, no local onde foi aposta, cambiariamente, nada vale, nada significa, é como se lá não estivesse, como se não existisse; não tem valor jurídico algum, designadamente para o efeito de se concluir que o opoente se obrigou como avalista da subscritora.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

O Banco AA SA, com sede em Lisboa, moveu uma execução para pagamento de quantia certa contra BB - Indústria de Etiquetas, Ldª, CC e DD, com base numa livrança no valor de 112.864,97 € de que se afirma legítimo portador, subscrita pela 1ª executada e avalizada pelos dois restantes executados, e que não foi paga por nenhum deles na data do vencimento - 22/4/04 - nem posteriormente.

Deduziu oposição o executado CC, alegando que a sua assinatura está aposta no verso da livrança sem nenhuma indicação, razão pela qual não tem validade como aval.

O exequente contestou, alegando em resumo que celebrou em 22/8/96 com a 1ª execu­tada um contrato de mútuo no valor de 74.819,68 € e que a livrança executada foi avali­zada em branco pelo opoente a fim de garantir o cumprimento desse contrato; que em 28/11/96 foi feito um aditamento, assinado pelo opoente, no qual declara dar o seu acordo ao contratado; que deverá apreciar-se o sentido da assinatura aposta pelo opoente no verso do título a fim de verificar se, atentas as circunstâncias, quis obrigar-se como avalista; e que, de qualquer modo, mesmo que se considere existir um vício de forma, o opoente litiga com abuso do direito, pois sempre agiu como garante pessoal (avalista) das obrigações assumidas pela 1ª executada.

Foi proferido despacho saneador que julgou procedente a oposição deduzida e declarou extinta a execução relativamente ao opoente.

Por acórdão de 28/9/09 a Relação do Porto, dando provimento à apelação do exequente, revogou a decisão recorrida e ordenou o prosseguimento do processo mediante a selecção da matéria de facto controvertida, tendo em vista as várias soluções plausíveis da causa.

Cumprindo o ordenado, a 1ª instância organizou a base instrutória e, realizado o julga­mento e estabelecidos os factos, proferiu nova sentença  que, julgando improcedente a oposição, ordenou o prosseguimento da execução relativamente ao opoente.

A Relação, porém, deu provimento à apelação do opoente e por acórdão de 4/7/11 revo­gou a sentença, julgou procedente a oposição e, consequentemente, extinta a execução.

Agora é o exequente que, inconformado, pede revista, sustentando que o acórdão da 2ª instância deve ser revogado e substituído por outro que julgue improcedente a oposição e determine o prosseguimento da execução contra o opoente.

Resumidamente, concluiu que:

1) Face às circunstâncias extra-cartulares provadas, a assinatura do recorrido aposta na face posterior da livrança executada, sem qualquer indicação, tem o valor de aval prestado à sociedade subscritora;

2) O princípio da literalidade dos títulos de crédito não pode valer com o sentido excessivo de impor a in­terpretação literal do texto; aplicam-se-lhes, por isso, os princípios da interpretação da declaração negocial estabelecidos nos artºs 236º a 239º do CC;

3) No domínio das relações imediatas  a exigência de forma do aval estabelecida no artº 31º da LULL tem eficácia meramente ad probationem, ou seja, o requisito formal pode ser ultrapassado mediante prova em contrário;

4) Sendo o aval um negócio formal, por força do artº 238º, nº 2, do Código Civil deve prevalecer sempre a vontade real das partes, desde que a tal não se oponham as razões determinantes da forma do negócio;

5) No domínio das relações imediatas tudo se passa como se a obrigação deixasse de ser literal e abs­tracta;

6) Aos olhos de um declaratário normal os factos alegados na contestação, corroborados com os documen­tos juntos ao processo (não impugnados pelo opoente) e em especial com o pacto de preenchimento que acompanhou a livrança ajuizada, permitem concluir que a assinatura do recorrido na face posterior da livrança, local habitual do aval, foi aposta na qualidade de avalista da subscritora (a 1ª executada);

7) E uma vez que o recorrido já tinha assinado a livrança na sua face anterior na qualidade de gerente da sociedade subscritora, a segunda assinatura no verso só se compreende se significar um aval e tiver sido aposta com o intuito de avalizar a obrigação cambiária;

8) Sem outra indicação, a assinatura do recorrido na face posterior da livrança não pode ter o valor de endosso - desde logo porque lá não figura a assinatura do tomador (1º endosso), nem o recorrido indica quem é o seu endossado em endosso precedente devendo, portanto, ser considerada como aval, se ele se quis obrigar como tal;

9) A intenção do recorrido prestar aval à 1ª executada através da sua assinatura no verso do título retira-se da relação material subjacente, da aposição de duas assinaturas na livrança executada, da circunstância de ser gerente da subscritora e do facto de, ao assinar o contrato como avalista da livrança, ter a consciência de que se responsabilizava pelo pagamento do título ao assiná-lo no verso.

Não houve contra alegações.

II. Fundamentação

a) Matéria de Facto

1) Foi dada aos autos de execução, a que a presente oposição está apensa, a livrança junta a fls. 14, dos autos de execução, no valor global de 112.864,97 €, com vencimento em 22/4/04, subscrita pelo oponente no verso, sem qualquer outra indicação, conforme o teor do documento de fls 14 do processo principal, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

2) CC apôs a sua assinatura no verso da livrança dada à execução com a intenção de se obrigar ao pagamento dessa livrança, nos mesmos termos que a sociedade BB, Indústria de Etiquetas, Ldª.

b) Matéria de Direito

A questão essencial, e a bem dizer única, a decidir é a de saber se a simples assinatura do opoente no verso da livrança executada, sem qualquer indicação, tem valor como aval.

O art. 30º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças (LULL) dispõe:

“O pagamento de uma letra pode ser no todo ou em parte garantido por aval.

Esta garantia é dada por um terceiro ou mesmo por signatário da letra”.

O artº 31º do mesmo diploma, por seu turno,  diz:

“O aval é escrito na própria letra ou numa folha anexa.

Exprime-se pelas palavras “bom para aval “ ou por qualquer outra fórmula equivalente; é assinado pelo dador de aval.

O aval considera-se como resultado da simples assinatura do dador aposta na face anterior da letra, salvo se se trata da assinatura do sacado ou do sacador.

O aval deve indicar a pessoa por quem se dá. Na falta de indicação, entender-se-á pelo sacador”.

Por fim, o artº 32º estabelece que:

“O dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada.

A sua responsabilidade mantém-se, mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma.

Se o dador de aval paga a letra, fica sub-rogado nos direitos emergentes da letra contra a pessoa a favor de quem foi dado o aval e contra os obrigados para com esta em virtude da letra”.

Este regime legal aplica-se às livranças, por força do disposto no artº 77º da referida LULL.

Das normas transcritas resulta sem qualquer dúvida que o aval tem a natureza jurídica de uma garantia, conforme também toda a doutrina põe em relevo (cfr, por último, José Engrácia Antunes, Os Títulos de Crédito, uma Introdução, pág. 81 e nota 153). E o mesmo sucede com a jurisprudência. Assim, por exemplo, no acórdão deste STJ de 12/1/10 (Procº: 2974/04.3TVPRT-A.P1.S1 [1]), afirma-se que “o fim próprio, a função específica do aval é garantir ou caucionar a obrigação de certo subscritor cambiário”, acrescentando-se que a regra de que o aval é escrito na própria livrança ou em folha anexa (allongue) não é mais do que a consagração do princípio da literalidade.

Das mesmas normas resulta ainda que o aval pode ser completo ou incompleto (aval em branco): completo quando se exprime pelas palavras “bom para aval” ou por uma fórmula equivalente e é assinado pelo dador de aval; em branco ou incompleto quando resulta da simples assinatura do dador, aposta na face anterior da livrança, desde que tal assinatura não seja do sacado, nem do sacador. Portanto, se na face anterior da letra surgir uma assinatura que não seja nem a do sacador nem a do sacado, presume-se - presunção legal -que é de um avalista (neste sentido, Ferrer Correia, Licões de Direito Comercial, III, pág. 203).

No caso dos autos, a assinatura do recorrido foi aposta, não na face anterior do título, mas no verso. Ora, justamente a propósito da autonomia da obrigação do aval que se mantém, a não ser que a obrigação garantida seja nula por qualquer razão que não seja um vício de forma (citado artº 32º da LULL) o mesmo autor escreveu o seguinte (loc. cit, pág 206): “Consideremos agora especialmente o caso de aceite ou de endosso em branco em que a assinatura não tenha a localização prescrita na lei: - a aposição da simples assinatura do sacado no verso da letra, a do endossante na face anterior do título, determinam a nulidade por vício de forma, respectivamente, do aceite ou do endosso. Consequentemente será nulo, nos termos do art. 32, II, o aval prestado a qualquer destes signatários.

Do mesmo modo, será nula a obrigação do avalista que se propuser garantir a responsabilidade de outro avalista que se limitou a pôr a sua assinatura no verso da letra ou no allongue. Na verdade, só se considera como aval a aposição da simples assinatura do dador na face anterior da letra. Logo, no caso figurado, o primeiro aval será nulo por vício de forma, e nulo, por consequência, o segundo”.

Concordamos inteiramente com esta doutrina.

Na verdade, e conforme já se pôs em relevo num outro aresto deste STJ – acórdão de 29/6/04, publicado na CJ Ano XII, Tomo II, pág. 123 [2] – se o aval aqui em questão tivesse sido aposto na face anterior da livrança ajuizada, resultaria do texto da lei a sua validade, mesmo considerando tratar-se de um aval em branco (incompleto), exactamente porque se presumiria então dado pela subscritora da livrança. Isto significa que o aval em branco tem de ser aposto na face anterior do título, sob pena de não poder valer (juridicamente) como tal, mas somente como endosso; só o aval completo é que pode ser escrito em qualquer lugar da livrança (e portanto também na sua face posterior).

O que acaba de dizer-se está explicado e demonstrado com inteira clareza no acórdão deste Tribunal que se mencionou em primeiro lugar (o de 12/1/10):

“...

Esta doutrina ficou inequivocamente definida, como nos relata o Prof. Pinto Coelho (Letras, Vol. II, Fascículo V, pág. 57), quando se discutiu o citado art. 31º do texto da Comissão de Redacção.

Na sessão de 1-6-1930 o delegado italiano, Arcangeli, sugeriu que se modificasse o texto, de forma a permitir considerar igualmente como aval a simples assinatura aposta no verso do título, pois de contrário ficaria destituída de valor jurídico quando não representasse um endosso.

Mas logo se pronunciaram contra o presidente da Comissão, o belga Vallée Poussin, e o polaco Sulkowski, mantendo-se o texto primitivo com o sentido inequívoco de adopção intencional do princípio de que só a simples assinatura aposta na face anterior da letra é apta a traduzir aval, nenhum valor jurídico tendo a assinatura simples aposta, sem mais, no verso, desde que não signifique um endosso.

No mesmo sentido opina Gonçalves Dias (Da Letra e Da Livrança, VII, pág. 422 e segs), depois de proceder à análise do regime do velho Código Comercial e da discussão havida aquando da votação, por unanimidade, do mencionado art. 31º da LULL, ao escrever : “Podemos, pois, concluir com cer­teza e tranquilidade, que o aval por simples assinatura, escrito no verso, é redondamente nulo e apenas válido o aposto na face anterior.

O princípio cominatório desta nulidade não sofre excepções, ainda quando o aval em branco não possa confundir-se com os endossos por simples assinatura, como aconteceria se to­dos os endossos fossem completos e só o último em branco. A lei estabeleceu um princípio geral e absoluto e não aquela regula lesbia das soluções casuísticas: quer o aval em branco sempre na face anterior do título ou do allongue, como quer o endosso em branco no verso do título ou do allongue “.

E mais à frente conclui Gonçalves Dias (Obra citada, pág. 430):

“…

2 - Só é válido o aval em branco por simples assinatura se for escrito na face anterior do tí­tulo ou na do allongue.

3 - É nulo o aval em branco por simples assinatura, quando escrito na face posterior do título ou na do allongue.

4 - Ainda que seja para aval, a simples assinatura no verso tem de reputar-se necessaria­mente (por uma presunção que também é juris et de jure) como um endosso em branco, se essa assinatura não repugnar à cadeia dos endossos. E, assim, o aval em branco no verso transforma o avalista em endossante, como o endosso em branco no anverso transforma o endossante num avalista. Repugnando à cadeia dos endossos, a assinatura no verso nem é boa para aval, nem para endosso: portanto é nula.

5 - A nulidade do aval em branco, escrito no verso, subsiste nas relações imediatas por não ter a forma cambiária. O caso é semelhante ao de uma assinatura privada de válida forma (assinatura de chancela, a rogo ou de cruz”.

....

Assim sendo, não pode deixar de entender-se que não é de seguir a jurisprudência citada pelo Banco recor­rente, nem tão pouco a doutrina do Prof. Vaz Serra (RLJ Ano 108º, pág. 78), segundo a qual se al­guém tiver aposto no verso de uma letra ou livrança a sua assinatura, sem outra indicação, e se verificar que não pode tê-lo feito como endossante, cabe ao tribunal apreciar se quis obrigar-se como avalista.

Com efeito, é ainda Gonçalves Dias (Obra citada, pág. 428) quem informa que à proposta do delegado Arcangeli, em que se apoia Vaz Serra, esclareceu o presidente da Comissão que o objectivo da alínea III do citado art. 31º da LULL era não permitir o aval em branco no verso do título.

“Arcangeli replica: que vale então uma simples assinatura no verso, que não pertença à sé­rie de endossos?

O Presidente responde: não vale nada, por ser írrita e nula “.

Por isso, está vedado ao tribunal recorrer a elementos extracartulares, no domínio das relações imediatas, tendo em vista a determinação do avalizado, com simples assinatura aposta no verso de uma livrança.

A mera assinatura do opoente aposta no verso da livrança, sem qualquer outra indicação, não tem valor como aval.

Tal aval é nulo por vício de forma, ainda que o opoente tenha assinado a livrança em branco, como vem alegado pelo Banco exequente, se o portador do título, autorizado pelo pacto de preenchimento, não fez preceder ou seguir aquela assinatura da expressão “bom para aval“ ou outra equivalente, convertendo o aval incompleto em aval completo.

A nulidade do aval em branco escrito no verso (face posterior) da livrança subsiste nas relações imediatas, por não ter a forma cambiária”.

Exactamente no sentido acabado de expôr, e com argumentação substancialmente idên­tica, decidiu um outro acórdão do STJ – Revª 2023/06, de 24/10/06, na CJ Ano XIV, III, 96 [3] – cujo sumário é o seguinte: “A assinatura no verso do título, sem menção de que é aval, mesmo no domínio das relações imediatas, retira àquela assinatura a natureza de obrigação cambiária e não responsabiliza o seu autor a título cambiário”.

Em face de tudo o que antecede já se vê que do ponto de vista do direito cambiário é de todo irrelevante o facto de o recorrido ter aposto a sua assinatura no verso da livrança com a intenção de se obrigar nos termos que se provaram; irrelevante porque no local onde foi aposta, cambiariamente, nada vale, nada significa - é como se lá não estivesse, como se não existisse; não tem valor jurídico algum, designadamente para o efeito de se concluir que o opoente se obrigou como avalista da subscritora (a 1ª executada).

Deste modo, improcedem ou mostram-se deslocadas todas as conclusões da minuta.

III. Decisão

Nega-se a revista.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 15 de Março de 2012.

Nuno Cameira (Relator)


Sousa Leite


Salreta Pereira

_______________________
[1] Relator: Azevedo Ramos.
[2] Relator: Afonso Correia.
[3] Relator: Alves Velho