Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2318/07.2TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: SERRA BAPTISTA
Descritores: PROVEITO COMUM DO CASAL
CASAMENTO
CONFISSÃO DO PEDIDO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 01/07/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
1 – O “proveito comum do casal” – que se não presume – afere-se - não pelo resultado, mas pela aplicação da dívida, ou seja, pelo fim visado pelo devedor que a contraiu.

2 - Saber se uma determinada dívida, contraída por um dos cônjuges, foi aplicada em proveito comum do casal, implica, ao mesmo tempo, uma questão de facto (averiguar o destino dado ao dinheiro) e uma questão de direito (decidir sobre se, em face desse destino, a dívida foi ou não contraída em proveito comum do casal).

3 - Traduzindo-se a expressão “proveito comum” num conceito de natureza jurídica, há que preencher o mesmo através de factos materiais indicadores do aludido destino, naturalmente alegados na petição inicial.

4 – Não tratando tal expressão de um mero facto, não pode, como tal, ser adquirida por confissão das partes.

5 – A alegação de que o bem adquirido com o empréstimo se destinou ao património comum do casal engloba também um conceito meramente jurídico, que, de igual modo, não pode ser adquirido por confissão.

6 - Quando a questão do casamento não é a questão jurídica central de um determinado processo, basta a confissão, podendo prescindir-se da certidão do registo civil exigida pelo art.4º do CRCivil .
Decisão Texto Integral:



ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:




BANCO M..., S. A., veio intentar acção, com processo ordinário, contra AA e marido BB, pedindo a sua condenação solidária a pagar a quantia de € 16 790,19, acrescida de juros vencidos até 14/5/07, no montante de € 3 007,83 e da quantia de € 120,31, de imposto de selo sobre tais juros, bem como juros sobre o capital em dívida, que se vencerem à taxa anual de 26,58%, desde 15/5/07 até integral pagamento e o imposto de selo que, à taxa de 4%, sobre estes juros vier a recair.

Alegando, para tanto, e em suma:

Tendo concedido crédito à ré, sob a forma de mútuo, no montante de € 12 575, com juros à taxa anual de 22,58%, a pagar em 60 prestações, deixou a mesma ré de pagar a 14ª prestação e as seguintes.
A título de cláusula penal, foi contratualmente fixada uma indemnização correspondente à taxa de juros acordada, acrescida 4 pontos percentuais, ou seja, uma taxa anual de 26,58%.
O empréstimo reverteu em proveito comum do casal, que, assim, é solidariamente responsável pelo pagamento da quantia em dívida.

Citados regularmente os réus, não contestaram.

Pelo que o senhor Juiz proferiu despacho declarando confessados os factos articulados pelo autor.

Foi proferida a sentença, na qual, na parcial procedência da acção, foi a ré condenada a pagar ao autor a quantia de € 363,24, bem como a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença correspondente às 15ª a 60ª prestações de capital, com exclusão dos juros remuneratórios, acrescida de juros de mora, à taxa de 24,58%, contados desde a citação até integral pagamento. Com a absolvição do réu do pedido.

Inconformado, veio o autor interpor recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, onde, por acórdão aí proferido, e na parcial procedência do recurso, foi a ré condenada a pagar ao autor a quantia de € 363,24, deduzida de € 282,09, bem como a quantia que se vier a fixar em execução de sentença, correspondente às 15ª a 60ª prestações de capital, com exclusão dos juros remuneratórios, uma e outra acrescida de juros moratórios à taxa de 26,58%, contados desde o vencimento – 10 de Setembro de 2006 - até integral pagamento e ainda o imposto de selo.

De novo irresignado, veio o autor pedir revista para este Supremo Tribunal de Justiça, formulando, na sua alegação, as seguintes conclusões:

1ª. No acórdão recorrido errou-se ao confirmar-se a sentença proferida em lª instância na parte em que se julgou a presente acção improcedente e não provada quanto ao R. marido, ora recorrido.
2ª. Os RR., ora recorridos, apesar de terem sido regularmente citados para os termos da acção, não apresentarem contestação, nem deduziram qualquer oposição, designadamente não impugnaram o facto de o veículo ter revertido para o proveito comum do casal dos RR., atento até o mesmo ter revertido para o património comum dos RR., pelo que se encontra confessado, por não contestado.
3ª. A falta de contestação pelos RR, ora recorridos, implica a confissão dos factos articulados pela autora, nos termos e de harmonia com o disposto no artigo 484°, do Código de Processo Civil.
4ª. Com efeito, no artigo 17° da petição inicial de fls. , o A. na acção, ora recorrente, alegou expressamente que o empréstimo concedido pelo dito recorrente à R. mulher, ora recorrida, - que se destinava à aquisição de um veículo automóvel - reverteu em proveito comum do casal formado pelos RR. na acção, ora recorridos, constitui matéria de facto.
5ª. Como por unanimidade, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça em Acórdão de 18 de Dezembro de 2008, proferido pela 6ª Secção, no âmbito do Processo n° 3501/08-6, ao deixar claramente explicitado: "Quer isto dizer que o empréstimo concedido pelo Autor ao Réu se destinou efectivamente á aquisição de um veiculo automóvel que ficaria a pertencer a ambos os Réus, e portanto, objectivamente, á luz das regras da experiencia e aos olhos de uma pessoa média, ao beneficio económico de ambos, que é suficiente para integrar o conceito jurídico de proveito comum.
Tanto basta para se concluir não se poder conhecer razão á recorrente."
6ª. Termos em que deve conceder-se provimento ao presente recurso, e, por via dele, revogar-se a sentença recorrida, substituindo-se a mesmo por acórdão que julgue a acção inteiramente procedente e provada.

Não houve contra-alegações.

Corridos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.

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Vem dado como PROVADO:

1 - No exercício da sua actividade comercial, e com destino, segundo informação então prestada pela Ré, à aquisição de um veículo automóvel da marca BMW, 520 I Touring, com a matrícula ...-...-LR, o A., por contrato constante de título particular datado de 30 de Junho de 2005, concedeu à Ré crédito directo, sob a forma de um contrato de mútuo, tendo assim emprestado à Ré a importância de € 12.575,00.
2 - Nos termos do contrato assim celebrado entre o A. e a R., aquele emprestou a esta a dita importância de € 12.575,00, com juros à taxa nominal de 22,58% ao ano, devendo a importância do empréstimo, e os juros referidos, bem como o prémio de seguro de vida, serem pagos, nos termos acordados, em 60 prestações mensais e sucessivas, com vencimento a primeira em 10 de Agosto de 2005 e as seguintes nos dias 10 dos meses subsequentes.
3 - Consta da cláusula 4. b) do contrato que a importância de cada uma das referidas prestações deveria ser paga - conforme ordem irrevogável logo dada pela Ré para o seu Banco - mediante transferências bancárias a efectuar, aquando do vencimento de cada uma das referidas prestações, para conta bancária logo indicada pelo ora A.
4 - Consta da cláusula 8. b) do contrato que a falta de pagamento de qualquer das referidas prestações na data do respectivo vencimento implicava o vencimento imediato de todas as demais prestações.
5 - Foi acordado entre o A. e a Ré que, em caso de mora sobre o montante em débito, a título de cláusula penal, acrescia uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual ajustada - 22,58% - acrescida de 4 pontos percentuais, ou seja, um juro à taxa anual de 26,58%.
6 - O A. é uma instituição de crédito.
7 - A Ré, das prestações referidas, não pagou a l4ª e seguintes, vencida, em 10 de Setembro de 2006.
8 - A Ré não providenciou às transferências bancárias - que não foram feitas ­para pagamento das ditas prestações.
9 - A Ré ainda procedeu ao pagamento de 282,09.
10 - Conforme expressamente consta do referido contrato o valor de cada prestação era de € 363,24.
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Como é bem sabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objecto do recurso – arts 684º, nº 3 e 690º, nº 1 e 4 do CPC, bem como jurisprudência firme deste Supremo Tribunal.
Sendo, pois, as questões atrás enunciadas e que pelo recorrente nos são colocadas que cumpre apreciar e decidir.

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Restando apenas a questão de saber se, não tendo os réus impugnado a alegação, por banda do autor, de o veículo pela ré adquirido ter revertido para o proveito comum do casal, deve a mesma entender-se como confessada, implicando a condenação de ambos os réus.

Sustentando o recorrente que, tendo os réus sido regularmente citados, sem terem contestado os factos por si alegados, devem ter-se os mesmos por provados face ao estatuído no art. 490º, nº 2 do CPC.

E, assim, tendo o A. expressamente alegado que o empréstimo em causa, feito à ré, se destinou à aquisição de um veículo automóvel (1) , tendo revertido em proveito comum do casal, “atento até o veículo se destinar ao património comum do casal dos RR” (2) , estão enunciados os factos necessários.

Constituindo, pois, em seu entender, matéria de facto tal alegação, encontrando-se a mesma pelos réus confessada.

Mas, e salvo o devido respeito, não é assim, como bem decidiu a Relação e agora iremos procurar demonstrar.

Sendo certo que tal questão tem por diversas vezes sido submetida à apreciação deste Supremo, que tem decidido, ao que cremos de modo consensual, de forma contrária à pretensão do recorrente (3)

Ora, determina o art. 1691.º, nº 1, al. c) do CC que são da responsabilidade de ambos os cônjuges as dívidas contraídas na constância do matrimónio, pelo cônjuge administrador, em proveito comum do casal e nos limites dos seus poderes de administração.

Considerando-se praticados em proveito comum do casal os actos tendentes a beneficiar o agregado familiar, ainda que os resultados obtidos pela sua prática não lhe tenham trazido benefício efectivo (4)

Devendo ter-se presente que a administração cabe normalmente ao marido e à mulher (art. 678.º do CC).

Aqui cabendo apenas as dívidas contraídas na vigência do matrimónio (5)

Podendo até aceitar-se aqui, como o casamento não é a questão central destes autos, que os réus são marido e mulher, que são, na verdade, casados. Prescindindo-se, se necessário, da certidão comprovativa de tal estado civil, exigida pelo art. 4.º do CRCivil. Aqui nos bastando, a tal respeito, com a confissão (6)

Traduzindo-se, porém, a expressão proveito comum num conceito de natureza jurídica a preencher através de factos materiais indicadores do destino à satisfação dos interesses comuns do casal, que têm de ser alegados pela parte interessada na procedência da demanda.

Não sendo alegação de facto o juízo que envolve a determinação e aplicação de norma ou normas legais (7) .

Abrangendo os factos, desde logo, as ocorrências concretas da vida real, cabendo dentro da sua vasta categoria, não apenas os acontecimentos do mundo exterior (da realidade empírico sensível, directamente captável pelas percepções do homem), mas também os eventos do foro interno, da vida psíquica, senhorial ou emocional do indivíduo (8) .

Assentando o critério geral para a distinção entre matéria de facto e matéria de direito, como diz Paulo Cunha, com mais ou menos alterações que todos os autores aceitam, que há matéria de direito sempre que para se chegar a uma solução, há necessidade de recorrer a uma disposição legal, ainda que se trate de interpretação de uma simples palavra da lei; havendo matéria de facto quando o apuramento das realidades se faz todo à margem da aplicação directa da lei, por averiguação de factos cuja existência ou não existência não depende da interpretação de nenhuma norma jurídica. Ou seja, é matéria de direito tudo aquilo – todos aqueles pontos – cuja averiguação dependa do entendimento a dar a normas legais, seja qual for a espécie e a importância destas. Sempre que se discuta ou possa discutir a observância ou a violação duma disposição legal, estaremos diante matéria de direito; no caso contrário diante de matéria de facto (9) .

Ora, saber se uma determinada dívida, contraída por um dos cônjuges, foi aplicada em proveito comum do casal, implica, ao mesmo tempo, uma questão de facto (averiguar o destino dado ao dinheiro) e uma questão de direito (decidir sobre se, em face desse destino, a dívida foi ou não contraída em proveito comum do casal). E, por isso se vem afirmando que tal é uma questão mista ou complexa (10)

Aferindo-se o proveito comum – que não se presume, excepto nos casos em que a lei o declarar (art. 1691.º, nº 3 do CC) - não pelo resultado, mas pela aplicação da dívida, ou seja, pelo fim visado pelo devedor que a contraiu. Assim, se o fim foi o interesse do casal, a dívida considera-se aplicada em proveito comum dos cônjuges.

Por isso, não se deve quesitar se a dívida foi ou não contraída em proveito comum do casal, mas antes perguntar-se – tendo em conta alegação prévia, obviamente (11) – que aplicação teve a quantia proveniente da dívida (12) .

Ora, traduzindo-se a expressão “proveito comum” num conceito de natureza jurídica, há que preencher o mesmo através de factos materiais indicadores do aludido destino, naturalmente alegados na petição inicial (13) .

Não bastando a alegação do próprio conceito legal.

Não sendo o mesmo conceito, em si mesmo, passível de se considerar confessado pela não impugnação por banda da parte contrária, ou seja, dos réus.

Não bastando, também, para colmatar tal falta, alegar que o veículo se destinou ao património comum do casal.

Já que estamos, de igual modo, perante um conceito jurídico (14).

Bem andando as instâncias, mormente a Relação, ao não ter assumido as afirmações da autora, atinentes ao “proveito comum do casal” e “destino ao património comum do casal” como matéria de facto, susceptível de confissão por banda dos réus

E, assim, o incumprimento do ónus de alegação por banda do autor, levará necessariamente à improcedência da acção, quanto ao réu.

Concluindo:
1 – O “proveito comum do casal” – que se não presume – afere-se - não pelo resultado, mas pela aplicação da dívida, ou seja, pelo fim visado pelo devedor que a contraiu.
2 - Saber se uma determinada dívida, contraída por um dos cônjuges, foi aplicada em proveito comum do casal, implica, ao mesmo tempo, uma questão de facto (averiguar o destino dado ao dinheiro) e uma questão de direito (decidir sobre se, em face desse destino, a dívida foi ou não contraída em proveito comum do casal).
3 - Traduzindo-se a expressão “proveito comum” num conceito de natureza jurídica, há que preencher o mesmo através de factos materiais indicadores do aludido destino, naturalmente alegados na petição inicial.
4 – Não tratando tal expressão de um mero facto, não pode, como tal, ser adquirida por confissão das partes.
5 – A alegação de que o bem adquirido com o empréstimo se destinou ao património comum do casal engloba também um conceito meramente jurídico, que, de igual modo, não pode ser adquirido por confissão.
6 - Quando a questão do casamento não é a questão jurídica central de um determinado processo, basta a confissão, podendo prescindir-se da certidão do registo civil exigida pelo art.4º do CRCivil .

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Face a todo o exposto, acorda-se neste Supremo Tribunal de Justiça em se negar a revista.
Custas pelo autor.

Supremo Tribunal de Justiça, 7 de Janeiro de 2009

Serra Baptista (Relator)
Álvaro Rodrigues
Santos Bernardino
_____________________
(1) Cfr. arts 1.º e 2.º da p.i.
(2) Cfr. art. 17.º da mesma p. i
(3) Entre outros, e ainda com menção de demais jurisprudência com eles conforme, Acs deste STJ de 19/5/04 (Moreira Camilo), Pº 04ª2730, de 11/11/08 (Alves Velho), Pº 08B3303 e de 10/9/09 (Pires da Rosa), Pº 07B3536, in www.dgsi.pt.
(4) Rodrigues Bastos, Notas ao CC, vol. VI, p. 138.
(5) P. Lima e A. Varela, CC Anotado, vol. IV, p. 329.
(6) Ac. do STJ de 10/9/09 já citado.
(7) Vaz Serra, Anotação ao Ac. do STJ de 27/3/79, in RLJ Ano 112.º, p. 271 e ss.
(8) A. Varela e outros, Manual do Processo Civil, p. 406 e seg.
(9) RLJ Ano 62.º, p. 50 e ss.
(10) Citado Ac. de 19/10/04.
(11) Pois cada uma das partes suporta, como resultado do princípio dispositivo, um ónus de alegação ou de afirmação, sendo o pleito julgado contra si se os factos não alegados forem indispensáveis à sua pretensão.
(12) P. Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito de Família, vol. I, p. 411 e 412.
(13) Entre outros, citado Ac. de 11/11/08.
(14) Desconhecendo-se, ainda, qual o regime de bens do casal (arts 1717.º e ss do CC).