Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4243/17.0T9PRT-K.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: TERESA DE ALMEIDA
Descritores: RECURSO DE REVISÃO
TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
METADADOS
PROVA PROIBIDA
DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE
EXCEÇÃO DE CASO JULGADO
MEIOS DE OBTENÇÃO DA PROVA
DIREITOS FUNDAMENTAIS
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 09/06/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE REVISÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Constitui, nos termos da al. e), do n.º 1 do art. 449º do CPP, fundamento da revisão o facto de “se descobrir que serviram de fundamento à condenação provas proibidas…”.

II. No caso, não há uma descoberta da utilização de provas proibidas; trata-se, antes, da probabilidade de aplicação de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral de normas eventualmente utilizadas, no que à prova produzida concerne.

III. No fundo, reconduz-se, pois, o objeto do presente recurso ao fundamento previsto na alínea f), do n.º 1, do artigo 449º, do Código de Processo Penal.

IV. Não assiste razão ao arguido quando pretende considerar o acesso à identificação do n.º de telefone e da IMEI, para a execução de interceções telefónicas, abrangido pela declaração de inconstitucionalidade invocada – trata-se de acesso a dados que não respeitam a comunicações efetuadas, tratadas e armazenadas ao abrigo da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho e constituem “caracteres permanentes, pelo que a identificação do sujeito a que pertencem pode ser obtida independentemente de qualquer comunicação”(Ac. 268/2022, TC).

V. Por outro lado, tratando-se de elementos de identificação constantes dos contratos celebrados com os operadores e/ou ligados ao reconhecimento da posse de equipamentos móveis, os respetivos registo e fornecimento à autoridade judiciária competente não importam desproporcionalidade ou desadequação face ao fim em vista, nem a afetação do direito fundamental à autodeterminação informativa.

VI. Nem demanda tal acesso, sem relação com qualquer comunicação efetuada, notificação específica ulterior, assemelhando-se, do ponto de vista da natureza e do regime, à obtenção, em processo penal, de outros dados pessoais, mormente, de identificação.

VII. A al. f), do nº 1, do art. 449.º do CPP veio satisfazer a necessidade de inscrever no Código de Processo Penal o instrumento/fundamento correspondente à previsão da 2.ª parte do n.º 3 do art. 282.º da Constituição, não existindo, entre ambos, oposição ou contradição.

VIII. À ponderação pelo Tribunal Constitucional sobre a exceção à ressalva de caso julgado, suceder-se-á a apreciação da concreta repercussão no caso, em sede de revisão de sentença, face ao caráter determinante, na condenação, da norma inconstitucional

IX. A decisão prevista na 2.ª parte do n.º 3, do art. 282.º da CRP implica a ponderação, a efetuar pelo Tribunal Constitucional, de diversos elementos, entre outros, o período de vigência da norma, a natureza da inconstitucionalidade e da própria norma declarada inconstitucional, sempre vinculada à Lei Fundamental e aos princípios constitucionais.

X. l. Trata-se, pois, de uma decisão vinculada, não obrigatória e necessariamente expressa, sem a qual permanece a ressalva dos casos julgados.

XI. m. Referindo-se a um meio de obtenção de prova, a declaração de inconstitucionalidade não versa sobre a própria essência da obtenção de dados de tráfego de comunicações eletrónicas, mesmo no caso das comunicações pretéritas, mas sobre o meio e a forma encontrados pelo legislador europeu e pelos direitos nacionais para operacionalizar a obtenção – a criação de um “arquivo” geral e sem limitações quanto à sua sede.

XII. n. A norma declarada inconstitucional (relativa ao armazenamento) dificilmente se poderá, sequer, configurar como uma norma processual penal: não disciplina o modo de acesso pelas autoridades judiciárias nem os crimes subjacentes à decisão de acesso – dispõe sobre o modelo e conteúdo do armazenamento.

XIII. o. Quanto ao segundo segmento da parte decisória do Acórdão, a inconstitucionalidade refere-se à ausência de previsão de uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, “a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros”, ou seja, a uma norma processual stricto sensu que não afeta os direitos fundamentais do arguido.

XIV. p. As normas em causa no Acórdão do TC não têm natureza substantiva e não afetam, quer o núcleo essencial do meio de obtenção de prova em causa, quer os direitos fundamentais do arguido.

XV. q. Inexistindo, pois, razão para que a declaração de inconstitucionalidade contemplasse a necessária e expressa exceção à ressalva dos casos julgados.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:


I. RELATÓRIO


a. O arguido AA, identificado no processo, interpôs recurso extraordinário de revisão do Acórdão em Processo Comum, proferido em 15.07.2020 (Juiz 4 do Juízo Central Criminal do Porto), que o condenou na pena única de 6 anos de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefaciente, p. e p. pelo art. 21º, nº 1 do DL 15/93, de 22.01 com referência às Tabelas I-A, I-B, I-C, anexas ao mesmo, com a agravante do disposto nos arts. 75º e 76º do Código Penal.

Para tanto invoca o disposto no artigo 449, nº 1, alíneas e) e f), do Código de Processo Penal, terminando a motivação do recurso com a formulação das seguintes conclusões: (transcrição)

“I – O arguido AA, ora recorrente, foi condenado nos presentes autos como autor de um crime de tráfico de estupefaciente, p. e p. pelo art. 21º, nº 1 do DL 15/93, de 22.01 com referência às Tabelas I-A, I-B, I-C, anexas ao mesmo, com a AGRAVANTE do disposto nos arts. 75º e 76º do Código Penal, à pena de 6 ANOS DE PRISÃO EFECTIVA.

II – O tribunal de 1ª Instância fundamentou tal condenação, apenas e tão só, pelas intercepções telefónicas estabelecidos entre os arguidos, nomeadamente entre o aqui recorrente e os arguidos BB, CC e DD.

III – Não existe, ao logo de todo o processo, qualquer outro tipo ou meio de prova que não sejam as referidas intercepções telefónicas/metadados, tendo sido nesta prova que o Tribunal de 1ª Instância fundamentou a condenação do aqui recorrente.

IV – Prova esta conseguida através da intercepção dos números de telefone ou imei´s dos arguidos, cujos dados foram fornecidos pelas operadoras telefónicas que os tinham armazenados. Não tendo sido os arguidos notificados de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros

V - Ora, de acordo com a recente decisão do Tribunal Constitucional, à qual se atribui efeitos retroactivos – Acórdão 268/2022 de 14 de Abril de 2022 – que decidiu:

“a) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 6.º da mesma lei, por violação do disposto nos números 1 e 4 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 26.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo n.º 18.º, todos da Constituição;

b) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, relativa à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigação, deteção e repressão de crimes graves, na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 20.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º, todos da Constituição.”

estamos perante um meio proibido de prova, nos termos do artigo 126ª n.º 3 do Código de Processo Penal.

VI - Pelo que, requer-se a V.s Excias Venerandos Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça se dignem conceder a revisão do Acórdão datado de 15.07.2020 proferido no processo em epígrafe, nos termos do artigo 449º, n.º 1 al. e) e f) do Código de Processo Penal conjugado com o artigo 126º, n.º 3 do mesmo diploma legal.”


b. A M.ma juíza do tribunal de julgamento, além da invocação da norma do n.º 3 do art. 282.º da CRP face ao teor do Acórdão do TC n.º 268/2022, expos sobre a natureza da prova em causa, do seguinte modo:

“A questão que impõe esclarecer é a de saber se as referidas intercepções de conversas telefónicas e sms, que atingiram o ora arguido recorrente, foram obtidas com recurso aos apelidados “metadados”.

A Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações.

O objecto de tal diploma está, pois, consagrado no seu artigo 1.º(objeto), o qual reza o seguinte:

1 - A presente lei regula a conservação e a transmissão dos dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e a pessoas colectivas, bem como dos dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, para fins de investigação, detecção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes, transpondo para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações, e que altera a Directiva n.º 2002/58/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Junho, relativa ao tratamento de dados pessoais e à protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas.

2 - A conservação de dados que revelem o conteúdo das comunicações é proibida, sem prejuízo do disposto na Lei n.º 41/2004, de 18 de Agosto, e na legislação processual penal relativamente à intercepção e gravação de comunicações.

O art. º 2 do mesmo diploma refere que “ Para efeitos da presente lei, entende-se por:

a) «Dados», os dados de tráfego e os dados de localização, bem como os dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador; (…)

O acórdão do Tribunal Constitucional acima identificado, sublinha que o que está em causa são os dados que revelam, a todo o momento, aspectos da vida privada e familiar dos cidadãos, permitindo rastrear a localização do individuo ao longo do dia, todos os dias (desde que transporte o telemóvel ou outro dispositivo electrónico de acesso à internet) e identificar com quem contacta (chamada – inclusive as tentadas e não concretizadas - por telefone ou telemóvel, envio ou recepção de de sms, mms, de correio electrónico ou de comunicações telefónicas através de internet), bem como a duração e a regularidade dessas comunicações.

Porque se trata de dados que não abrangem o conteúdo das comunicações, dizendo respeito apenas às suas circunstâncias (marcos ou pontos de referência que lhe dão o respectivo suporte e que permitem circunscrever a informação sob todas as formas), são designados como metadados.

Também conhecidos como “dados de tráfego”, foram já alvo de definição no quadro do Acórdão Constitucional 241/2002 de 29.05, segundo o qual são:

- dados de base, os relativos à conexão de rede e que permitem, independentemente de qualquer comunicação, a identificação do utilizador de certo equipamento - nome, morada, número de telefone;

- dados funcionais, os necessários ao estabelecimento de uma ligação ou comunicação;‘

- dados de tráfego, os gerados pela utilização da rede (ex: localização do utilizador, localização do destinatário, duração da utilização, data e hora, frequência); são dados funcionais necessários ao estabelecimento de uma ligação ou comunicação e os dados gerados pela utilização da rede (por exemplo, localização do utilizador, localização do destinatário, duração da utilização, data e hora, frequência). Traduzem-se em elementos da própria comunicação, que permitem identificar, em tempo real ou a posteriori, os utilizadores, o relacionamento directo entre uns e outros através da rede, a localização, a frequência, a data, a hora e duração da comunicação

- dados de conteúdo, relativos ao conteúdo da comunicação ou mensagem.

O art.º4 da Lei n.º 32/2008 de 17 de Julho acima referenciada refere-se aos chamados dados de tráfego ou metadados, abrangendo ainda os dados de base.

Compulsados os presentes autos, constata-se que o acesso das entidades policiais, o qual judicialmente autorizado ao abrigo dos art.ºs 187, 189 e 269, n.º 1, al. e), do C. Processo Penal, estendeu-se aos elementos necessários para a realização de intercepções telefónicas para recolha de elementos de prova em tempo real e para o futuro.

Ora, na medida em que o tribunal motivou a condenação do ora arguido e condenado nessas intercepções e seu conteúdo, as quais obtidas pelas autoridades policiais em tempo real e imediato, conclui-se que as mesmas não são prova proibida. Na verdade, não foram solicitados qualquer dados que tenham sido anteriormente armazenados, estes últimos abrangidos pela normas julgadas inconstitucionais pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º268/2022 publicado no Diário da República, 1.ª Série, de 3 de Junho de 2022, - artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 6.º da mesma lei - ,

Improcede assim o fim pretendido com o recurso ora interposto, dado que as provas a que o tribunal atendeu na sua motivação não constituem prova proibida nos termos alegados pelo recorrente.”


c. O D.mo magistrado do MP na 1.ª instância respondeu, defendendo a improcedência do recurso, argumentando: (transcrição)

“Antes de mais, e como primeiro argumento do presente parecer, consideramos ser de ter em atenção o teor do art.º 282 da Constituição da República Portuguesa onde no seu n.º 1 se pode ler que “A declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado.

E no seu n.º 3 estabelece que “Ficam ressalvados os casos julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido.”.

Ora, não se descortina daquele Douto Acórdão que aí tenha sido tomada decisão em contrário por parte do Tribunal Constitucional nos termos daquele n.º 3, razão pela qual, na nossa modesta opinião, se encontram ressalvados os casos julgados, tendo o Acórdão, nesta sede proferido, já transitado em julgado.

Todavia, e ainda que assim não se entenda sempre se dirá que não cremos que assista razão ao recorrente.

De facto, e como segundo argumento do presente parecer, os elementos de prova recolhidos e que permitiram a fixação da matéria de facto atinente ao recorrente e consequente condenação não padecem de qualquer vício.

Na realidade, tendo existindo intercepções telefónicas no âmbito dos presentes autos, as mesmas foram determinadas pelo M.º Juiz de Instrução.

E foram-no nos termos do preceituado nos art.ºs 187, 189 e 269, n.º 1, al. e), do C. Processo Penal.

Estabelece o art.º 187 do C.P.P. no seu n.º 1 que “A intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas só podem ser autorizadas durante o inquérito, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, por despacho fundamentado do juiz de instrução e mediante requerimento do Ministério Público, quanto a crimes:

b) Relativos ao tráfico de estupefacientes;.”

Por sua vez, estabelece o art.º 189 do C.P.P. no seu n.º 1 “O disposto nos artigos 187.º e 188.º é correspondentemente aplicável às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone, designadamente correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática, mesmo que se encontrem guardadas em suporte digital, e à intercepção das comunicações entre presentes.”.

Ora, nas intercepções telefónicas estamos perante recolha de elementos de prova em tempo real e para o futuro e não perante qualquer tipo de dado que esteja armazenado e preservado, sendo que ao abrigo daqueles preceitos foi também solicitada a facturação detalhada das chamadas recebidas (trace-back).

Ou seja, a recolha de elementos probatórios foi efectuada ao abrigo daqueles preceitos legais.

O Douto Acórdão do Tribunal Constitucional pronunciou-se no sentido da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória e geral, do artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 6.º da mesma lei, por violação do disposto nos números 1 e 4 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 26.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo n.º 18.º, todos da Constituição e da norma do artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho por violação do disposto no n.º 1 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 20.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º, todos da Constituição.

Não incidiu este, nem declarou qualquer inconstitucionalidade relativamente aos art.ºs 187 e 189, do C.P.P..

Ademais, perpassado o processo não se descortina despacho com fundamento naqueles preceitos legais, agora declarados inconstitucionais nos termos sobreditos, nem na peça recursiva se descortina a indicação de qualquer despacho com base nesses preceitos.”


d. O MP no STJ emitiu parecer, defendendo, igualmente, a improcedência do recurso.


O recorrente tem legitimidade para requerer a revisão (artigo 450.º, n.º 1, al. c), do CPP), este tribunal é o competente (artigos 11.º, n.º 4, al. d), e 454.º do CPP) e nada obsta ao conhecimento do recurso.

Colhidos os vistos, realizou-se a conferência a que alude o artigo 455.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.

Cumpre decidir.


II. Fundamentação


1. Objeto do recurso

O objeto do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas da motivação apresentada pelo recorrente.

O acórdão condenatório transitou, quanto ao arguido AA, em 03-03-2021.

As questões a apreciar respeitam:

- à utilização de “n.ºs de telefone e IMEIs fornecidos pelos operadores que os tinham armazenados” para a realização de interceções telefónicas, sem que tivesse sido o arguido notificado de tal acesso pelas autoridades judiciárias, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros;

- ao efeito da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral (no caso, da declaração contida no Acórdão 268/2022 de 14 de Abril de 2022) em sentenças penais transitadas em julgado.


2. O presente recurso extraordinário de revisão foi interposto ao abrigo das alíneas e) e f), do n.º 1, do artigo 449º, do Código de Processo Penal, referindo-se a alínea e) à proibição de prova abrangida pela previsão do n.º 3, do artigo 126º do mesmo diploma, e a al. f) à declaração, pelo Tribunal Constitucional, da inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação.

Por sua vez, o n.º 3 do art. 126.º do CPP determina a nulidade, ressalvados os casos previstos na lei, das provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respetivo titular.

Os fundamentos do recurso mostram-se interligados, na medida em que a prova em causa seria proibida em razão da inconstitucionalidade declarada e que, se aplicável ao caso, resultaria em solução favorável ao arguido.

Porque, na verdade, não há uma verdadeira autonomia do fundamento previsto na al. e) – posteriormente ao trânsito da decisão condenatória não há uma emergência de facto novo, desconhecido até ao termo da discussão da causa, não ocorre a descoberta de uma invalidade de prova.[1]

Note-se que constitui, nos termos da referida al. e), fundamento da revisão o facto de “se descobrir que serviram de fundamento à condenação provas proibidas…”. É o caso do conhecimento posterior ao trânsito, por exemplo, da existência de tortura, de prova recolhida no domicílio sem observância das normas legais ou da existência de interceções eletrónicas ilegais.

No caso, não há uma descoberta da utilização de provas proibidas; trata-se, antes, da probabilidade de aplicação de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral de normas eventualmente utilizadas no que à prova produzida concerne.

No fundo, reconduz-se, pois, o objeto do presente recurso ao fundamento previsto na alínea f), do n.º 1, do artigo 449º, do Código de Processo Penal.

3. Dados instrumentais à realização de interceções telefónicas

O arguido confunde a disponibilidade, no momento do início da interceção, de um número de telefone ou de uma IMEI (International Mobile Equipment Identity ou Identificação Internacional de Equipamento Móvel), não no contexto de comunicações pretéritas, mas destinada à interceção, em tempo real e no futuro, com o fornecimento de dados armazenados pelos operadores, ao abrigo, com o fim e o âmbito da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho.

O número de telefone é um elemento contratual de fornecimento de serviço de telefone e visa, tal como a IMEI (este, relativamente aos equipamentos móveis), a identificação do utilizador.

Ora, todos os dados elencados no artigo 4.º da Lei n. º 32/2008 respeitam a comunicações realizadas, mantendo-se armazenados durante o período de um ano que se inicia, exatamente, na data da conclusão da comunicação (art. 6.º) e, ainda, a dados de localização.

Atente-se nas categorias de dados abrangidos pelo artigo 4.º da Lei n.º 32/2008 que os operadores se encontravam obrigadas a armazenar:

“1. a) Dados necessários para encontrar e identificar a fonte de uma comunicação;

b) Dados necessários para encontrar e identificar o destino de uma comunicação;

c) Dados necessários para identificar a data, a hora e a duração de uma comunicação;

d) Dados necessários para identificar o tipo de comunicação;

e) Dados necessários para identificar o equipamento de telecomunicações dos utilizadores, ou o que se considera ser o seu equipamento;

f) Dados necessários para identificar a localização do equipamento de comunicação móvel.

2 - Para os efeitos do disposto na alínea a) do número anterior, os dados necessários para encontrar e identificar a fonte de uma comunicação são os seguintes:

a) No que diz respeito às comunicações telefónicas nas redes fixa e móvel:

i) O número de telefone de origem;

ii) O nome e endereço do assinante ou do utilizador registado;

b) No que diz respeito ao acesso à Internet, ao correio electrónico através da Internet e às comunicações telefónicas através da Internet:

i) Os códigos de identificação atribuídos ao utilizador;

ii) O código de identificação do utilizador e o número de telefone atribuídos a qualquer comunicação que entre na rede telefónica pública;

iii) O nome e o endereço do assinante ou do utilizador registado, a quem o endereço do protocolo IP, o código de identificação de utilizador ou o número de telefone estavam atribuídos no momento da comunicação.

3 - Para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1, os dados necessários para encontrar e identificar o destino de uma comunicação são os seguintes:

a) No que diz respeito às comunicações telefónicas nas redes fixa e móvel:

i) Os números marcados e, em casos que envolvam serviços suplementares, como o reencaminhamento ou a transferência de chamadas, o número ou números para onde a chamada foi reencaminhada;

ii) O nome e o endereço do assinante, ou do utilizador registado;

b) No que diz respeito ao correio electrónico através da Internet e às comunicações telefónicas através da Internet:

i) O código de identificação do utilizador ou o número de telefone do destinatário pretendido, ou de uma comunicação telefónica através da Internet;

ii) Os nomes e os endereços dos subscritores, ou dos utilizadores registados, e o código de identificação de utilizador do destinatário pretendido da comunicação.

4 - Para os efeitos do disposto na alínea c) do n.º 1, os dados necessários para identificar a data, a hora e a duração de uma comunicação são os seguintes:

a) No que diz respeito às comunicações telefónicas nas redes fixa e móvel, a data e a hora do início e do fim da comunicação;

b) No que diz respeito ao acesso à Internet, ao correio electrónico através da Internet e às comunicações telefónicas através da Internet:

i) A data e a hora do início (log in) e do fim (log off) da ligação ao serviço de acesso à Internet com base em determinado fuso horário, juntamente com o endereço do protocolo IP, dinâmico ou estático, atribuído pelo fornecedor do serviço de acesso à Internet a uma comunicação, bem como o código de identificação de utilizador do subscritor ou do utilizador registado;

ii) A data e a hora do início e do fim da ligação ao serviço de correio electrónico através da Internet ou de comunicações através da Internet, com base em determinado fuso horário.

5 - Para os efeitos do disposto na alínea d) do n.º 1, os dados necessários para identificar o tipo de comunicação são os seguintes:

a) No que diz respeito às comunicações telefónicas nas redes fixa e móvel, o serviço telefónico utilizado;

b) No que diz respeito ao correio electrónico através da Internet e às comunicações telefónicas através da Internet, o serviço de Internet utilizado.

6 - Para os efeitos do disposto na alínea e) do n.º 1, os dados necessários para identificar o equipamento de telecomunicações dos utilizadores, ou o que se considera ser o seu equipamento, são os seguintes:

a) No que diz respeito às comunicações telefónicas na rede fixa, os números de telefone de origem e de destino;

b) No que diz respeito às comunicações telefónicas na rede móvel:

i) Os números de telefone de origem e de destino;

ii) A Identidade Internacional de Assinante Móvel (International Mobile Subscriber Identity, ou IMSI) de quem telefona;

iii) A Identidade Internacional do Equipamento Móvel (International Mobile Equipment Identity, ou IMEI) de quem telefona;

iv) A IMSI do destinatário do telefonema;

v) A IMEI do destinatário do telefonema;

vi) No caso dos serviços pré-pagos de carácter anónimo, a data e a hora da activação inicial do serviço e o identificador da célula a partir da qual o serviço foi activado;

c) No que diz respeito ao acesso à Internet, ao correio electrónico através da Internet e às comunicações telefónicas através da Internet:

i) O número de telefone que solicita o acesso por linha telefónica;

ii) A linha de assinante digital (digital subscriber line, ou DSL), ou qualquer outro identificador terminal do autor da comunicação.

7 - Para os efeitos do disposto na alínea f) do n.º 1, os dados necessários para identificar a localização do equipamento de comunicação móvel são os seguintes:

a) O identificador da célula no início da comunicação;

b) Os dados que identifiquem a situação geográfica das células, tomando como referência os respectivos identificadores de célula durante o período em que se procede à conservação de dados.”


Ou seja, todos os dados tratados e armazenados ao abrigo daquele normativo respeitam a comunicações, nos seus vários modos de realização, iniciando-se cada registo com o estabelecimento da comunicação e terminando com o seu fim.

Os dados registados e tratados pelos operadores de serviços de comunicações eletrónicas beneficiam, desde logo, da proteção dos instrumentos convencionais e legais destinados à proteção do direito à vida privada, face ao tratamento automatizado dos dados de carácter pessoal (o chamado regime de proteção de dados) – a Convenção para a Proteção das Pessoas relativamente ao Tratamento Automatizado de Dados de Carácter Pessoal, do Conselho da Europa, assinada em Estrasburgo, a 28.01.1981, aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 23/93, de 09/07 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 21/93, de 09/07; o artigo 8.º da Carta dos Direitos Fundamentais da EU, Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento e do Conselho, de 27 de abril de 2016 e a Lei n.º 58/2019, de 08 de Agosto.

É, em especial, o armazenamento dos dados pessoais tratados, em matéria tão sensível, no que à intimidade da vida privada diz respeito, como é a das comunicações eletrónicas e para um universo que compreende todos os utilizadores dos serviços, durante o prazo de um ano, que constitui objeto da declaração de inconstitucionalidade.

Ou, como se diz no Acórdão 268/2022 do TC, em causa estava: “Uma regulamentação nacional que prevê a conservação generalizada e indiferenciada de dados de tráfego e de dados de localização, com vista a lutar contra a criminalidade grave, excede os limites do estritamente necessário e não pode ser considerada justificada, numa sociedade democrática, como exige o artigo 15.º, n.º 1, da Diretiva 2002/58, lido à luz dos artigos 7.º, 8.º, 11.º e 52.º, n.º 1, da Carta (v., neste sentido, Acórdão de “21 de dezembro de 2016, Tele2, C-203/15 e C-698/15, EU:C:2016:970, n.º 107).”

Mesmo quando se refere aos elementos de identificação do utilizador (n.º de telefone ou IMEI), conexos a comunicação estabelecida no passado, o Acórdão n.º 268/2022 do TC entende que poderia subtraí-los ao juízo de inconstitucionalidade se os mesmos se encontrassem armazenados no espaço da UE:

“o padrão invocado pela requerente (o direito à inviolabilidade das comunicações, consagrado no artigo 34.º da Constituição) não protege os dados de base, como se concluiu nos Acórdãos n.ºs 486/2009 e 403/2015, e se reiterou no Acórdão n.º 463/2019:

«Assim, quer os dados de base, quer os dados de localização de equipamento, a que se refere o artigo 3.º da Lei Orgânica, n.º 4/2017, não devem ser considerados como dados atinentes a uma comunicação, já que tanto nuns quanto noutros inexiste qualquer dimensão subjetiva inerente à comunicação. Os primeiros são, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 2.º da mesma Lei, dados escritos atinentes a uma relação contratual entre uma pessoa e uma empresa operadora de telecomunicações, referindo-se à identificação e morada do titular e ao próprio contrato de ligação à rede; os segundos abrangem a deteção de dados de localização a partir de um telefone ligado, mas em stand by, e/ou através do sistema de satélite GPS ou outro (ver, neste sentido, Manuel da Costa Andrade, “Comentário ao artigo 194.º do Código Penal”, in J. Figueiredo Dias (direção), Comentário Conimbricense do Código Penal — Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 2012, pág. 1104)».

“Não parece dever mudar-se a orientação de que o regime jurídico-constitucional relevante para a apreciação da medida de conservação dos endereços de protocolo de IP dinâmicos que identificam a fonte da comunicação deve ser o dos dados de base. Na verdade, ainda que seja discutível a respetiva categorização (porquanto o apuramento do endereço de protocolo IP dinâmico pressupõe a análise do momento em que se realizou uma concreta comunicação), a intensidade de agressão aos direitos à reserva da intimidade da vida privada e à autodeterminação informativa é, neste domínio, similar ao dos demais dados de base. Com efeito, o apuramento da identidade do utilizador da fonte da comunicação a quem estava atribuído o protocolo IP em certo momento não revela as circunstâncias da comunicação, a sua duração, a pessoa com quem se comunica ou os sites consultados; limita-se a identificar, tal como nos demais dados de base, o utilizador daquele computador.

Esta conclusão é, de resto, condicente com a orientação seguida pelo Tribunal de Justiça no Acórdão La quadrature du net, cit. n.º 152: «Importa observar que os endereços IP, apesar de fazerem parte dos dados de tráfego, são gerados sem estarem ligados a uma comunicação específica e servem principalmente para identificar, por intermédio dos prestadores de serviços de comunicações eletrónicas, a pessoa singular proprietária de um equipamento terminal a partir do qual é efetuada uma comunicação através da Internet. Assim, em matéria de correio eletrónico e de telefonia através da Internet, desde que apenas sejam conservados os endereços IP da fonte da comunicação e não os do seu destinatário, esses endereços não revelam, enquanto tais, nenhuma informação sobre terceiros que tenham estado em contacto com a pessoa que está na origem da comunicação. Por conseguinte, esta categoria de dados tem um grau de sensibilidade menor que o dos outros dados de tráfego».”

E, mais adiante:

“(…) a obrigação de conservação de dados de base (e de endereços de protocolo IP dinâmicos relativos à fonte de uma comunicação, independentemente da respetiva categorização) pelo período de um ano, constante da conjugação das normas dos artigos 4.º e 6.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, não seria em si mesma inconstitucional, se o legislador houvesse cumprido a injunção de prever o seu armazenamento no território da União Europeia.”


4. Não assiste, assim, razão ao arguido quando pretende considerar o acesso à identificação do n.º de telefone e da IMEI, para a execução de interceções telefónicas, abrangido pela declaração de inconstitucionalidade invocada – trata-se de acesso a dados que não respeitam a comunicações efetuadas, tratadas e armazenadas ao abrigo da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho e constituem “caracteres permanentes, pelo que a identificação do sujeito a que pertencem pode ser obtida independentemente de qualquer comunicação”(Ac. 268/2022, TC).

Por outro lado, tratando-se de elementos de identificação constantes dos contratos celebrados com os operadores e/ou ligados ao reconhecimento da posse de equipamentos móveis, os respetivos registo e fornecimento à autoridade judiciária competente, ao abrigo dos art.ºs 187º, 189º e 269º, n.º 1, al. e), do Código de Processo Penal, não importam desproporcionalidade ou desadequação face ao fim em vista, nem a afetação do direito fundamental à autodeterminação informativa.

Nem demanda comunicação específica ulterior da sua solicitação e utilização, assemelhando-se, do ponto de vista da natureza e do regime, à obtenção, em processo penal, de outros dados pessoais, mormente, de identificação.

Não constituindo a disponibilidade instrumental de tais dados meio proibido de obtenção de prova, improcede tal fundamento.


6. A al. f), do nº 1, do art. 449.º do CPP

Sobre a relação entre a al. f) do nº 1 do art. 449.º do CPP e a parte final do n.º 3 do art. 282.º da CRP, Paulo Pinto de Albuquerque[2], defende que aquela norma deve ser interpretada restritivamente e, portanto, havendo caso julgado, só há fundamento de revisão em relação «aos casos julgados postos em causa por decisão expressa do TC. Isto é, a alª f) do nº 1 deve ser sujeita a uma interpretação conforme o artigo 282, nº 3, parte final, da CRP, no sentido de só constituir fundamento de revisão a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral relativamente aos casos julgados determinados pelo TC»[3].

E, em desenvolvimento, “A declaração da inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma que tenha servido de fundamento à condenação é causa de revisão de sentença. A Lei n.° 48/2007, de 29.8, resolve o problema da inexistência de um meio de execução no processo penal das sentenças do TC que declarem, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha constituído ratio decidendi da condenação, devendo, portanto, a declaração do TC ser posterior ao trânsito em julgado da decisão revidenda (ver a motivação da proposta de lei n.° 109/X, e, no âmbito da lei anterior, o acórdão do STJ, de 31.10.1996, in CJ, Acs. do STJ, TV, 3, 181). SIMAS SANTOS (2008 b: 381) pronuncia-se no sentido da inconstitucionalidade da disposição em face do artigo 282.°, n.° 3, da CRP, supondo a revisão obrigatória de todos os casos julgados penais em contrário da declaração geral de inconstitucionalidade (também no sentido de que esta previsão legal "não implica uma possibilidade de arbítrio do Tribunal Constitucional" e de que "o Tribunal Constitucional se deverá pronunciar em matéria de declaração de inconstitucionalidade das normas penais mais favoráveis sobre a reabertura do caso julgado", FERNANDA PALMA, 2008: 15, e já antes assim, RUI PEREIRA, 1991: 72). Mas o artigo 449.°, n.° 1, al.a f) admite interpretação restritiva aos casos julgados postos em causa por decisão expressa do TC. Isto é, a al.a f) do n.° 1 deve ser sujeita a uma interpretação conforme ao artigo 282.°, n.° 3, parte final, da CRP, no sentido de só constituir fundamento de revisão a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral relativamente aos casos julgados determinados pelo TC.”

Adere-se a esta interpretação; com efeito, o citado elemento histórico parece dar consistência à ideia de que a al. f), do nº 1, do art. 449.º do CPP veio satisfazer a necessidade de inscrever no Código de Processo Penal o instrumento/fundamento correspondente à previsão da 2.ª parte do n.º 3 do art. 282.º da Constituição.

O art. 282.º foi introduzido pela Lei Constitucional n.º 1/82, de 30.9., no quadro do processo de Revisão que criou o Tribunal Constitucional e a Proposta de Lei 109/X/2 deu entrada no Parlamento em dezembro de 2006.

Refira-se, contudo que não será qualquer norma declarada inconstitucional a constituir fundamento de revisão, mas apenas a que tenha constituído ratio decidendi.

Em suma, à ponderação pelo Tribunal Constitucional sobre a exceção à ressalva de caso julgado, suceder-se-á a apreciação da concreta repercussão no caso, em sede de revisão de sentença, face ao caráter determinante, na condenação, da norma inconstitucional.

 

7. Caso julgado e recurso de revisão

O Tribunal Constitucional vem reafirmando a natureza da intangibilidade do caso julgado como subprincípio do princípio da segurança e certeza jurídica, inerente ao modelo do Estado de direito democrático, emergente do artigo 2.º, da Constituição.

Entre outros, o recente Acórdão n.º 192/22, de 17 de março, seguindo o Acórdão n.º 151/2015, de 4 de março, deu, novamente, corpo à jurisprudência sobre o fundamento constitucional do caso julgado, mesmo tratando-se de caso julgado formal:

«O princípio da segurança e certeza jurídica, inerente ao modelo do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição, no âmbito dos atos jurisdicionais, justifica o instituto do caso julgado, o qual se baseia na necessidade da estabilidade definitiva das decisões judiciais transitadas em julgado. Daí que seja reconhecida, enquanto subprincípio, a intangibilidade do caso julgado, revelado em preceitos constitucionais como o artigo 29.º, n.º 4, e 282.º, n.º 3, o qual também abrange o denominado caso julgado formal, relativo às decisões que têm por objeto a relação processual (neste sentido, J.J. Gomes Canotilho, em “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, pág. 264-265, da 7.ª ed., Almedina, Rui Medeiros, em “A decisão de inconstitucionalidade”, pág. 557, ed. de 1999, da Universidade Católica Editora, Isabel Alexandre, em “O caso julgado na jurisprudência constitucional portuguesa”, em Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, pág. 12-14, ed. de 2003, da Almedina, e os Acórdãos n.º 255/98, 61/2003 e 370/08, acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt)”.

Contudo, a tensão entre a segurança jurídica e a justiça pode manifestar-se expressivamente, em situações de anomalia grave da decisão judicial, em que a realidade se imponha com factos ou meios de prova de conhecimento superveniente, quando se descobrir que serviram de fundamento à condenação provas proibidas nos termos dos n.ºs 1 a 3 do artigo 126.º, ou ainda em razão de declaração, pelo Tribunal Constitucional, da inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação (n.º 1, do artigo 449º, do Código de Processo Penal).

Como se salienta no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 680/2015, de 10 de dezembro“[s]e é certo que a função jurisdicional implica, num Estado de Direito, que as decisões jurisdicionais não possam, em princípio, ser postas em causa – visando a certeza e a segurança, ínsitos naquele, na regulação definitiva das relações jurídicas intersubjetivas –, é igualmente certo que a expressão da função jurisdicional do Estado não se encontra imune ao erro, assim justificando institutos jurídicos dirigidos à reparação dos efeitos do mesmo (como é o caso do instituto da responsabilidade civil do Estado por erro imputável ao Estado-Juiz) ou, excecionalmente, à modificação da própria sentença – como é o caso do instituto de revisão de sentença”.

Ensinava o Professor José Alberto dos Reis, “A sentença pode ter sido consequência de vícios de tal modo corrosivos, que se imponha a revisão como recurso extraordinário para um mal que demanda consideração e remédio. Quer dizer, pode a sentença ter sido obtida em condições tão estranhas e anómalas, que seja de aconselhar fazer prevalecer o princípio da justiça sobre o princípio da segurança. Por outras palavras, pode dar-se o caso de os inconvenientes e as perturbações resultantes da quebra do caso julgado serem muito inferiores aos que derivariam da intangibilidade da sentença» Código de Processo Civil Anotado, vol. VI, Coimbra Editora, Coimbra, 1953, pp. 336-337.

A leitura conjugada do n.º 6, do artigo 29.º da Constituição e do artigo 449.º do CPP, encontram lugar paralelo na disposição sintética do artigo 4.º, n.º 2, do Protocolo n.º 7 à Convenção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (CEDH) que permite a quebra do caso julgado «(…) se factos novos ou recentemente revelados ou um vício fundamental no processo anterior puderem afetar o resultado do julgamento»

Como este Tribunal tem reafirmado, “A revisão é um recurso extraordinário que possibilita a quebra do caso julgado de sentenças condenatórias que devam considerar-se injustas por ocorrer qualquer dos motivos taxativamente previstos na lei. A linha de fronteira entre a segurança jurídica resultante da definitividade da sentença, por esgotamento das vias processuais de recurso ordinário ou do decurso do prazo para esse efeito, enquanto componente das garantias de defesa no processo (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição), estabelece-se, como garantia relativa à aplicação da lei penal (artigo 29.º da Constituição), no limite resultante da inaceitabilidade da subsistência de condenações que se revelem injustas. A injustiça da condenação, por virtude da demonstração de qualquer dos fundamentos contidos no numerus clausus definido na lei, sobrepõe-se à eficácia do caso julgado, em homenagem às finalidades do processo – a realização da justiça do caso concreto, no respeito pelos direitos fundamentais –, assim se operando o desejável equilíbrio entre a segurança jurídica da definitividade da sentença e a justiça material do caso" (Acórdão deste Tribunal e Secção, de 11.10.2017, no Processo n.º 1459/05.5GCALM-B)

Note-se que o recurso extraordinário de revisão tem natureza específica que, no próprio plano da Lei Fundamental, se autonomiza do genérico direito ao recurso garantido no processo penal pelo artigo 32.º, n.º 1.

Na Constituição e na lei processual penal, em concordância plena, o recurso de revisão é remédio excecional contra decisões gravemente injustas, “permitindo a sua revisão naqueles casos em que a subsistência da decisão (injusta) seria insuportável para a comunidade”. (acórdão STJ, de 10.09.2008, proc. nº 08P1617)


8. Os efeitos do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022, de 14 de abril de 2022, em sentença transitada em julgado – “salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional”

O texto da parte decisória do Acórdão tem o seguinte teor:

“a) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 6.º da mesma lei, por violação do disposto nos números 1 e 4 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 26.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo n.º 18.º, todos da Constituição;

b) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, relativa à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigação, deteção e repressão de crimes graves, na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 20.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º, todos da Constituição.”

Não integra, como é sabido e patente, declaração quanto aos respetivos efeitos, no sentido de os restringir (n.º 4 do art. 282.º da CRP) ou de os alargar, afastando a regra da ressalva dos casos julgados em matéria sancionatória (n.º 3).

Dispõe (na parte relevante na economia da presente decisão) o referido art. 282º da Constituição, sob a epigrafe efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade:

“1. A declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado.

2. Tratando-se, porém, de inconstitucionalidade ou de ilegalidade por infração de norma constitucional ou legal posterior, a declaração só produz efeitos desde a entrada em vigor desta última.

3. Ficam ressalvados os casos julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido.”

Ou seja, a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral produz os efeitos estabelecidos no nº 1 ou no nº 2, excetuadas as situações em que haja caso julgado.

E a 2.ª parte do n.º 3, prevê a faculdade de o Tribunal Constitucional decidir estender os efeitos da declaração de inconstitucionalidade aos casos julgados, quando, cumulativamente, se trate de matéria penal, disciplinar ou ilícito de mera ordenação social e a norma declarada inconstitucional for de conteúdo menos favorável ao arguido.

Ora, na decisão que declarou a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 6.º da mesma lei e do artigo 9.º da Lei citada, “na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros”, o Tribunal Constitucional não declarou expressamente que os efeitos da declaração de inconstitucionalidade se estendem ao caso julgado.

A questão a equacionar é, pois, a de se saber se, não tendo o Tribunal Constitucional feito aquela declaração, serão os efeitos da declaração de inconstitucionalidade aplicáveis no caso vertente admitindo-se, em face disso, o recurso de revisão.

Para Gomes Canotilho e Vital Moreira[4], «a possibilidade de revisão de sentenças constitutivas de caso julgado em matéria penal ou equiparada não é automática, pois tem de ser expressamente decidida pelo TC na sentença que declarar a inconstitucionalidade (ou ilegalidade) da norma, não podendo obstar a isso o preceito (de resto, de constitucionalidade muito duvidosa) do artº 2º-4 do Cód. Penal. Em suma, estabelece-se aqui uma limitação automática dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade, em homenagem ao princípio do caso julgado (…), limitado este pelo princípio da norma penal (ou equiparada) mais favorável».

Consideram ainda que, embora a Constituição não defina o que é caso julgado, em seu entender, «trata-se de um conceito pré-constitucional suficientemente densificado (designando situações que, de forma definitiva e irretractável, foram fixadas por sentença judicial), para não permitir a sua ampliação de modo a abarcar outras situações (relações ou situações definitivamente consolidadas ou exauridas por outros meios jurídicos, como cumprimento, transacção, prescrição, caducidade)». E que estas situações definitivamente consolidadas não podem ser retroactivamente perturbadas pela eficácia ex tunc da declaração de inconstitucionalidade”.

Sintetizam, assim, os efeitos da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral “1º- o regime-regra – que nem sequer precisa de ser explicitado pelo TC e que vale na falta de qualquer declaração sobre o assunto – é o de que os efeitos se produzem desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal, (ou desde o momento em que ela se tornou superveniente inconstitucional ou ilegal), salvo quanto aos casos julgados, que não são afectados; 2º o TC poderá ampliar os efeitos normais da declaração quanto à questão da ressalva dos casos julgados, excluindo dessa ressalva certos casos, nos termos do n.º 3; 3º- o TC pode restringir os efeitos da declaração, quanto a dois aspectos: eliminando, total ou parcialmente, o efeito repristinatório e protelando o início de produção dos efeitos da declaração (de todos ou de parte deles)”.

Rui Medeiros[5] considera que a ressalva do caso julgado revela que «a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral não constitui fundamento autónomo de revisão das sentenças firmes».

E que o nº 3 do artigo 282º exclui unicamente que [6]“a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral dê origem a qualquer remédio específico contra as sentenças firmes fundadas na norma posteriormente declarada inconstitucional”.

Entende que a quebra pelo respeito pelo caso julgado formado sobre a aplicação da norma declarada inconstitucional não opera ope juris, dependendo da ponderação do tribunal constitucional. E que o poder de afastar o respeito pelo caso julgado explica-se por ser necessário fazer um concreto juízo de ponderação «com referência à específica norma jurídica em causa, daquelas razões de justiça, ao qual não poderão ser alheios os princípios da adequação e da proporcionalidade» (ob. cit. pág. 734).

Jorge Miranda defende igualmente a necessidade de decisão expressa do TC mas, em sentido diverso, entende que tal decisão é obrigatória[7]:

“Todavia, a regra não funciona automaticamente. Tem de haver uma decisão do Tribunal Constitucional, embora não se trate de uma faculdade, mas sim de uma obrigação: tem de haver uma revogação expressa dos casos julgados constante da declaração de inconstitucionalidade, à luz de um princípio de proporcionalidade.

Se faltar a revogação, os tribunais criminais deverão reapreciar os casos julgados, suprindo assim a inconstitucionalidade por omissão resultante daquela decisão, mas com possibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional. (…)

E deve entender-se que não apenas normas sancionatórias materiais, mas também normas processuais de natureza substantiva.”

Tal como Gomes Canotilho e Vital Moreira e Rui Medeiros e divergindo de Jorge Miranda, entende-se que a decisão prevista na 2.ª parte do n.º 3, do art. 282.º da CRP implica a ponderação, a efetuar pelo Tribunal Constitucional, de diversos elementos, entre outros, o período de vigência da norma, a natureza da inconstitucionalidade e da própria norma declarada inconstitucional, sempre vinculada à Lei Fundamental e aos princípios constitucionais.

Trata-se, pois, de uma decisão vinculada, não obrigatória e necessariamente expressa, sem a qual permanece a ressalva dos casos julgados.

Quando o Tribunal Constitucional se pronuncia sobre a inconstitucionalidade de uma norma com força obrigatória geral define com carácter vinculativo e imodificável, não apenas que a norma é inconstitucional, mas também, sempre que tal faculdade lhe está reservada, as condições e o momento a partir do qual essa norma deixará de produzir efeitos na ordem jurídica.


9. O princípio da retroatividade da lei penal mais favorável

Dispõe o n.º 4, do artigo 29.º da Constituição:

“Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido.”

Ensina Jorge Miranda[8]

“A par do princípio da legalidade, o Direito penal acolhe o princípio do tratamento legislativo temporalmente mais favorável: são ambos manifestações da mesma ideia de segurança (ou de segurança e justiça) e de salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias individuais frente ao poder punitivo do Estado. (…)

Ou, como acentua EDUARDO CORREIA, se uma lei nova deixa de incriminar certos factos é porque entende, numa melhor visão das coisas, que o facto não merece punição e, assim, não há necessidade de se aplicar a lei anterior. (…)

Ou ainda, conforme sintetizam AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO, MARIA FERNANDA PALMA e JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, o princípio é o da aplicação da lei penal favorável, surgindo a retroatividade in melior como um princípio e não apenas como uma exceção à proibição da retroatividade.

Por conseguinte, dentre duas ou mais leis penais ou processuais penais de carácter substantivo  que se sucedam no tempo, aplicáveis (ou potencialmente aplicáveis) à mesma pessoa ou ao mesmo facto, prevalece a de conteúdo mais benévolo; aplica-se a que menos comprima direitos liberdades e garantias, a menos gravosa ou restritiva destes direitos; por razões de liberdade e de igualdade entre os membros da comunidade jurídica é a lei penal mais favorável, ou a menos desfavorável aos seus direitos, que lhes deve ser, em último termo, aplicada. (…)

A aplicação da lei penal mais favorável ao arguido, mesmo que retroativamente, implica: l.a) que o facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixará de o ser se uma lei nova o eliminar do número das infrações e que, se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessarão a respetiva execução e os seus efeitos penais (art. 2°, n.s 2, do Código Penal); 1.b) que quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, será sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente (art. 2°, n° 4, do Código Penal).

Até à reforma operada pela Lei n.s 59/2007, de 4 de setembro, no inciso final deste art. 2°, n.º 4, ressalvava-se o caso julgado, o que era considerado por larga parte da doutrina inconstitucional. (…)

Implica também a aplicação de lei penal mais favorável que, se for declarada a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de certa lei penal e se, por causa disso, for repristinada (art. 281.5, n.s 1, da Constituição) ou vier a tornar-se aplicável uma lei de conteúdo mais favorável, será esta a que deverá efetivamente ser aplicada, inclusive se já tiver havido trânsito em julgado da sentença condenatória (e não havendo agora que distinguir entre lei incriminadora e lei definidora da pena ou da medida de segurança).

Por conseguinte, não será ressalvado o caso julgado quando a norma declarada inconstitucional ou ilegal respeitar a matéria penal - ou a matéria disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social - e for de conteúdo menos favorável ao arguido (art. 282.s, n." 3,2.ª parte.”

Para Maria João Antunes[9]“Uma das questões que tem sido posta ao Tribunal tem sido a de saber qual é, afinal, o âmbito de proteção da norma constitucional segundo a qual se aplicam retroativamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido. A de saber se é admissível do ponto de vista jurídico-constitucional o estabelecimento de regras distintas consoante a lei nova seja uma lei descriminalizadora (ou equivalente) ou, diferentemente, uma lei da qual decorra apenas um regime mais favorável.  No primeiro caso, o conteúdo de sentido do princípio da aplicação da lei penal mais favorável imporia a aplicação desta lei ainda que já tivesse havido condenação transitada em julgado (Acs. n.os 677/98, 169/2002 e 572/2003). Mas já não no segundo caso, em que seria admissível ressalvar os casos já julgados, precisamente porque da lei nova decorreria apenas um regime mais favorável (Ac. n.º 644/98). Quando o CP ressalvava da aplicação do regime penal mais favorável os casos em que o agente já havia sido condenado por sentença transitada em julgado (artigo 2.º, n.º 4), o entendimento do Tribunal foi no sentido da não inconstitucionalidade desta norma penal. Considerando que a Constituição aceita como um valor próprio o respeito pelo caso julgado e não podendo deixar de se perspetivar a regra constante do n.º 4 do artigo 29.º como uma garantia constitucional fundamental, o Tribunal concluiu que a restrição operada por aquela norma penal não era desnecessária, irrazoável ou injustificada, face à “enormíssima perturbação na ordem dos tribunais judiciais” que a solução contrária acarretaria (Acs. n.os 644/98). Mais recentemente, face à nova redação do n.º 4 do artigo 2.º do CP, de acordo com a qual passou a ser sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente, prevendo-se a reabertura da audiência de julgamento para o efeito (artigo 371.º-A do Código de Processo Penal), o Tribunal voltou a fazer um julgamento de não inconstitucionalidade. Se o propósito que presidiu à garantia do caso julgado foi precisamente o de evitar que o condenado viesse a ter que enfrentar um novo julgamento, no qual poderia ver agravada a sua situação jurídico-penal, então a intangibilidade do caso julgado não pode ser invocada em seu manifesto prejuízo (Acs. 164/2008, 265/2008 e 201/2010).”

O Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 660/2021, de 29 de julho, discorreu sobre o âmbito da “lei penal” mais favorável:

“Do princípio da legalidade “emergem subprincípios básicos em matéria de punição criminal, a saber: (i) o princípio da legalidade stricto sensu, que prescreve que só a lei é competente para definir crimes e respetivas penas; (ii) o princípio da tipicidade, que impõe que a lei deve concretizar de modo suficiente quais os pressupostos do tipo legal de crime, bem como tipificar as respetivas penas; (iii) o princípio da não retroatividade da lei penal, que proíbe a criminalização de factos passados, bem como a punição mais agravada/severa de condutas cometidas no passado; e o (iv) princípio da aplicação retroativa da lei penal mais favorável, que impõe a aplicação da lei despenalizadora da conduta, ou que puna de modo menos severo determinado crime, mesmo a condutas cometidas no passado.

(…) Como se pode ler no Acórdão n.º 451/93:

“[…] [Segundo o entendimento atrás descrito,] o citado artigo constitucional [artigo 29.º, n.º 4] visava apenas a aplicação da lei criminal, ou seja, da lei penal de carácter substantivo que é a competente para definir crimes (bem como os pressupostos das medidas de segurança) e as respetivas penas (tal como as medidas de segurança), não se aplicando aos preceitos processuais, para os quais rege o artigo 32.º da Lei Fundamental, onde não se prevê qualquer princípio de aplicação retroativa de normas mais favoráveis.

Esta decisão do Tribunal foi objeto de apreciação crítica por parte de J. J.Gomes Canotilho na Revista de Legislação e de Jurisprudência, n.º 3792, pág. 84 e ss., onde(…), manifesta ‘sérias reticências [por se dar por demonstrado] que os ‘candidatos positivos’ reentrantes no âmbito do art. 29.º/4 da CRP se limita[re]m às leis penais materiais ou substantivas’.

No essencial, Gomes Canotilho entende que o princípio do tratamento mais favorável ao arguido abrange não apenas o direito material sancionatório, mas também as normas processuais de natureza substantiva, propendendo a considerar como tais, na senda do ensino de Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, I, Coimbra, 1981, pág. 32, e Direito Processual Penal, 1988/89, Secção de Textos da U.C., pág 10) ‘as normas processuais penais que condicionem a responsabilidade penal ou contendam com os direitos fundamentais do arguido ou do recluso’. […]


No caso, as normas declaradas inconstitucionais respeitam a meio de obtenção de prova previsto em normativo nacional que transpôs Diretiva europeia (Directiva 2006/24/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março de 2006, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações, e que altera a Directiva 2002/58/CE) e que vigorou, em boa parte do espaço jurídico e jurisdicional da UE, por mais de 10 anos.

Com efeito, note-se que o Acórdão Tele 2 do TJUE[10] data de 21 de dezembro de 2016 e o Acórdão La Quadrature du Net foi proferido em 6 de outubro de 2020.

A faculdade (para Jorge Miranda, a obrigação) de o Tribunal declarar a exceção (aplicação aos casos julgados) à exceção (ressalva de caso julgado) da eficácia-regra ex tunc, quando a norma declarada inconstitucional respeitar a matéria penal (ou direito sancionatório, em geral) e for de conteúdo menos favorável ao arguido corresponde à concretização do princípio da retroatividade da lei penal mais favorável, consagrado, como vimos, no n.º 4 do art. 29.º da CRP (“aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido”).

É um princípio dirigido, primordialmente, às normas de direito penal que definem os tipos de crime, as respetivas molduras penais, os pressupostos do crime.

Note-se que, na doutrina sobre a 2.ª parte do n.º 3 do art. 282.º da CRP, a ilustração do campo de aplicação se refere sempre a descriminalização e redução da moldura penal.

No caso, as normas declaradas inconstitucionais são de natureza processual penal, aplicando-se-lhes, em princípio, as regras definidas no art.º 5.º do CPP:

- aplicação imediata, sem prejuízo da validade dos atos realizados na vigência da lei anterior;

- não se aplicam aos processos iniciados anteriormente à sua vigência quando da sua aplicabilidade imediata possa resultar:

a) Agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa; ou

b) Quebra da harmonia e unidade dos vários actos do processo.

Particularmente neste contexto, reconhece-se, contudo, de modo pacífico, a existência de normas processuais penais stricto sensu e de normas processuais penais materiais ou substantivas, sendo estas as que condicionem a responsabilidade penal ou contendam com os direitos fundamentais do arguido.

Em causa, no Acórdão em referência, encontram-se normas de processo penal, relativas a um meio de obtenção de prova e, sendo embora, em consequência, o próprio meio colocado, de certo modo, em crise, a inconstitucionalidade desvela-se em matérias que:

- não se referem ao arguido em processo penal, mas ao armazenamento antecedente, geral e indiscriminado, incluindo, potencialmente, todos os cidadãos, pelo período de 1 ano, de dados relativos a comunicações realizadas, em territórios exteriores ao espaço da União Europeia,

Ou,

- respeitam à não previsão de notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros.

Referindo-se a um meio de obtenção de prova, a declaração de inconstitucionalidade não versa sobre a própria essência da obtenção de dados de tráfego de comunicações eletrónicas, mesmo no caso das comunicações pretéritas, mas sobre o meio e a forma encontrados pelo legislador europeu e pelos direitos nacionais para operacionalizar a obtenção nos casos de criminalidade grave – a criação de um “arquivo” geral e sem limitações quanto à sua sede.

A norma inconstitucional dificilmente se poderá, até, configurar como uma norma processual penal, constituindo, na verdade, o alargamento (temporal e de categorias de dados) da base de faturação das operadoras relativas às comunicações dos últimos 6 meses.

Tendo, não olvidamos, como fim a investigação criminal de crimes graves, o normativo, na parte declarada inconstitucional pela 1.ª parte da decisão do TC, não disciplina o modo de acesso pelas autoridades judiciárias, nem os crimes subjacentes à decisão de acesso – dispõe sobre o modelo e conteúdo do armazenamento.

Por outro lado, quanto ao n.º 2 da parte decisória do Acórdão, a inconstitucionalidade refere-se à ausência de previsão de uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, “a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros”, ou seja, de forma clara, a uma norma processual stricto sensu que não é, pela sua natureza, suscetível de afetar os direitos fundamentais do arguido.

Em suma, as normas em causa no Acórdão do TC não têm natureza substantiva e não afetam  quer o núcleo essencial do meio de obtenção de prova em causa, quer os direitos fundamentais do arguido.

Inexistindo, pois, razão para que a declaração de inconstitucionalidade contemplasse a necessária e expressa exceção à ressalva dos casos julgados.


10. Em síntese,

a. Constitui, nos termos da al. e), do n.º 1 do art. 449º do CPP, fundamento da revisão o facto de “se descobrir que serviram de fundamento à condenação provas proibidas…”.

b. No caso, não há uma descoberta da utilização de provas proibidas; trata-se, antes, da probabilidade de aplicação de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral de normas eventualmente utilizadas no que à prova produzida concerne.

c. No fundo, reconduz-se, pois, o objeto do presente recurso ao fundamento previsto na alínea f), do n.º 1, do artigo 449º, do Código de Processo Penal.

d. Não assiste razão ao arguido quando pretende considerar o acesso à identificação do n.º de telefone e da IMEI, para a execução de interceções telefónicas, abrangido pela declaração de inconstitucionalidade invocada – trata-se de acesso a dados que não respeitam a comunicações efetuadas, tratadas e armazenadas ao abrigo da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho e constituem “caracteres permanentes, pelo que a identificação do sujeito a que pertencem pode ser obtida independentemente de qualquer comunicação”(Ac. 268/2022, TC).

e. Por outro lado, tratando-se de elementos de identificação constantes dos contratos celebrados com os operadores e/ou ligados ao reconhecimento da posse de equipamentos móveis, os respetivos registo e fornecimento à autoridade judiciária competente não importam desproporcionalidade ou desadequação face ao fim em vista, nem a afetação do direito fundamental à autodeterminação informativa.

f. Nem demanda tal acesso, sem relação com qualquer comunicação efetuada, notificação específica ulterior, assemelhando-se, do ponto de vista da natureza e do regime, à obtenção, em processo penal, de outros dados pessoais, mormente, de identificação.

g. Não constituindo a disponibilidade instrumental de tais dados meio proibido de prova, improcede tal fundamento.

h. A al. f), do nº 1, do art. 449.º do CPP veio satisfazer a necessidade de inscrever no Código de Processo Penal o instrumento/fundamento correspondente à previsão da 2.ª parte do n.º 3 do art. 282.º da Constituição, não existindo, entre ambos, oposição ou contradição.

i. À ponderação pelo Tribunal Constitucional sobre a exceção à ressalva de caso julgado, suceder-se-á a apreciação da concreta repercussão no caso, em sede de revisão de sentença, face ao caráter determinante, na condenação, da norma inconstitucional

j. A decisão prevista na 2.ª parte do n.º 3, do art. 282.º da CRP implica a ponderação, a efetuar pelo Tribunal Constitucional, de diversos elementos, entre outros, o período de vigência da norma, a natureza da inconstitucionalidade e da própria norma declarada inconstitucional, sempre vinculada à Lei Fundamental e aos princípios constitucionais.

l. Trata-se, pois, de uma decisão vinculada, não obrigatória e necessariamente expressa, sem a qual permanece a ressalva dos casos julgados.

m. Referindo-se a um meio de obtenção de prova, a declaração de inconstitucionalidade não versa sobre a própria essência da obtenção de dados de tráfego de comunicações eletrónicas, mesmo no caso das comunicações pretéritas, mas sobre o meio e a forma encontrados pelo legislador europeu e pelos direitos nacionais para operacionalizar a obtenção – a criação de um “arquivo” geral e sem limitações quanto à sua sede.

n. A norma declarada inconstitucional (relativa ao armazenamento) dificilmente se poderá, sequer, configurar como uma norma processual penal: não disciplina o modo de acesso pelas autoridades judiciárias nem os crimes subjacentes à decisão de acesso – dispõe sobre o modelo e conteúdo do armazenamento.

o. Quanto ao segundo segmento da parte decisória do Acórdão, a inconstitucionalidade refere-se à ausência de previsão de uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, “a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros”, ou seja, a uma norma processual stricto sensu que não afeta os direitos fundamentais do arguido.

p. As normas em causa no Acórdão do TC não têm natureza substantiva e não afetam, quer o núcleo essencial do meio de obtenção de prova em causa, quer os direitos fundamentais do arguido.

q. Inexistindo, pois, razão para que a declaração de inconstitucionalidade contemplasse a necessária e expressa exceção à ressalva dos casos julgados.


11. Quanto a custas

Nos termos do disposto no artigo 456.º do CPP, se o Supremo Tribunal de Justiça negar a revisão pedida pelo assistente, pelo condenado ou por qualquer das pessoas referidas no n.º 2 do artigo 450.º, condena o requerente em custas.

De acordo com o artigo 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e da Tabela III em anexo, a taxa de justiça é fixada entre 1 e 5 UC, tendo em conta a complexidade do processo.

Em conformidade com estas disposições, considera-se adequada a fixação da taxa de justiça em 3 UC.


III. Decisão

Termos em que se delibera em conferência na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

a) Julgar improcedente o recurso do arguido e, em consequência, negar a revisão do acórdão condenatório requerida por AA.

b) Condenar o requerente em custas, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.


Supremo Tribunal de Justiça, 06 de setembro de 2022


Teresa de Almeida (Relatora)

Ernesto Vaz Pereira (1.º Adjunto)

Lopes da Mota (2.º Adjunto)

Nuno Gonçalves (Presidente da Secção)

______

[1] Acórdão deste Tribunal e desta Secção, de 04.07.2018, no Proc. 1006/15.0JABRG-D.S1, também citado em Código Processo Penal Comentado, António Henriques Gaspar et alii, 3.ª Edição Revista, 2021, pág. 1437.
[2] - Revista do CEJ, 1º Semestre, 2008, Número 9 (especial), Estudos, pág. 381.
[3] Comentário do Código de Processo Penal: à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. - 4.a ed. - Lisboa: Universidade Católica Editora, 2011, pág. 1211 e 1212.
[4] Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume II, 4ª edição revista, Coimbra Editora, pág. 976 e 977.
[5] (Constituição Portuguesa Anotada, Jorge Miranda e Rui Medeiros, Tomo III, 2.a edição revista, atualizada e ampliada, UCE, 2020, pág. 732.
[6] Ob. Cit., págs. 832 e 833.
[7] Fiscalização da Constitucionalidade, 2017, Almedina, pág. 342.
[8] Ob. Cit., págs. 338 a 344.
[9] “Direito Penal, Direito Processual Penal e Direito da Execução das Sanções Privativas da Liberdade e Jurisprudência Constitucional”, págs. 20 e 21 Revista Julgar, N.º 21 - 2013  Coimbra Editora
[10] Que decidiu que:
1. O artigo 15.°, n.° 1, da Diretiva 2002/58/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de julho de 2002, relativa ao tratamento de dados pessoais e à proteção da privacidade no setor das comunicações eletrónicas (Diretiva relativa à privacidade e às comunicações eletrónicas), conforme alterada pela Diretiva 2009/136/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2009, lido à luz dos artigos 7.°, 8.° e 11.°, bem como do artigo 52.°, n.° 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional que prevê, para efeitos de luta contra a criminalidade, uma conservação generalizada e indiferenciada de todos os dados de tráfego e dados de localização de todos os assinantes e utilizadores registados em relação a todos os meios de comunicação eletrónica.
2. O artigo 15.°, n.° 1, da Diretiva 2002/58, conforme alterada pela Diretiva 2009/136, lido à luz dos artigos 7.°, 8.° e 11.° bem como do artigo 52.°, n.° 1, da Carta dos Direitos Fundamentais, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional que regula a proteção e a segurança dos dados de tráfego e dos dados de localização, em especial, o acesso das autoridades nacionais competentes aos dados conservados, sem limitar, no âmbito da luta contra a criminalidade, esse acesso apenas para efeitos de luta contra a criminalidade grave, sem submeter o referido acesso a um controlo prévio por parte de um órgão jurisdicional ou de uma autoridade administrativa independente, e sem exigir que os dados em causa sejam conservados em território da União.