Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5515/15.3T8OAZ-A.P1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO LEONES DANTAS
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
TRABALHADOR POR CONTA PRÓPRIA
SEGURO DE ACIDENTES DE TRABALHO
JURISDIÇÃO DO TRABALHO
Data do Acordão: 06/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Área Temática:
DIREITO DO TRABALHO - ACIDENTES DE TRABALHO.
ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA - TRIBUNAIS DE PRIMEIRA INSTÂNCIA / COMPETÊNCIA ESPECIALIZADA.
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / LEIS, SUA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO,
Doutrina:
- BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1990, 185 e 186.
- CARLOS ALEGRE, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2.ª edição, 30.
- CASTANHEIRA NEVES, «A interpretação Jurídica», in Curso de Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, 1976, 68; Digesta, Volume 2.º, Coimbra Editora, 1995, 336 e ss..
- FERNANDO J. BRONZE, Lições de Introdução ao Direito, 2.ª Edição, 2010, Coimbra Editora, pp. 919 e 920, 923, 924.
- KARL ENGISCH, Introdução ao Pensamento Jurídico, Fundação Calouste Gulbenkian, 3.ª Edição, 1972, 111 e 112; Metodologia da Ciência do Direito, 2.ª Edição, 1983, Fundação Calouste Gulbenkian, 401, 402.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 9.º, 10.º, 11.º.
LEI N.º 100/97, DE 13 DE SETEMBRO E LEGISLAÇÃO COMPLEMENTAR, SEJA O DO REGIME EM VIGOR, DECORRENTE DA LEI N.º 98/2009, DE 4 DE SETEMBRO.
LEI N.º 62/2013, DE 26 DE AGOSTO, VERSÃO ACTUAL: - ARTIGO 126.º, N.º 1, AL. C).
LEI N.º 62/2013, DE 26 DE AGOSTO, VERSÃO INICIAL, QUE ENTROU EM VIGOR EM 1 DE SETEMBRO DE 2014, DIPLOMA QUE FOI REGULAMENTADO PELO DECRETO-LEI N.° 49/2014, DE 27 DE MARÇO: - ARTIGOS 37.º, N.º 1, 38.º, N.º1, 40.º, 79.º, 80.º, N.ºS 1 E 2, 126.º.
REGIME DOS ACIDENTES DE TRABALHO DECORRENTE DA LEI N.º 2127, DE 3 DE AGOSTO DE 1965, REGULAMENTADA PELO DECRETO N.º 360/71, DE 21 DE AGOSTO.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

-DE 14/04/2005, PROCESSO N.º 410/05-3, DE 14 DE ABRIL DE 2005, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT .

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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

-DE 3/12/2015, PROCESSO 297/11, IN JUSJORNAL, N.º 2305, DE 29 DE JANEIRO DE 2016.

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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

-DE 14/09/2011, PROCESSO N.º 4597/10.9TTLSB.L1-4, IN WWW.DGSI.PT .

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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

-DE 21/10/2010, PROCESSO N.º 697/08.3TBLMG.P1, DE 21 DE OUTUBRO DE 2010, EM WWW.DGSI.PT .

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ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 19/02/2003, PROCESSO N.º 193/02 - 4.ª SECÇÃO, DISPONÍVEL EM SUMÁRIOS DE ACÓRDÃOS DA SECÇÃO SOCIAL DO ANO DE 2003, IN WWW.STJ.PT .
-DE 24/05/2005, PROCESSO N.º 1539/05, DA 6.ª SECÇÃO CÍVEL, E DE 19/02/2004, PROCESSO N.º 4347/03, DA 4.ª SECÇÃO SOCIAL, AMBOS SUMARIADOS IN WWW.STJ.PT .
Sumário :
1 – Incumbe à Jurisdição do Trabalho, através das Secções Especializadas do Trabalho, conhecer «c) das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais», nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 126.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto.

2 – Cabe na competência daquelas secções conhecer dos litígios emergentes de acidentes sofridos por trabalhadores por conta própria, no exercício das suas funções, litígios esses que ocorram entre aqueles trabalhadores e as seguradoras para quem tenham transferido a responsabilidade pela reparação das consequências daqueles acidentes, mesmo quando ocorridos antes de 1 de janeiro de 2000.

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

I

AA, louvando-se do disposto no artigo 145.º do Código de Processo do Trabalho, veio, em 23 de dezembro de 2015, requerer exame médico de revisão de incapacidade para o trabalho, identificando como entidade responsável a BB - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., pedindo que seja deferido o pedido de realização de perícia médica, para aferição do agravamento da incapacidade e consequente indemnização, a suportar pela requerida seguradora.

Invocou em fundamento da sua pretensão, em síntese que: nasceu no dia 04 de março de 1967; exerceu profissão por conta própria na área da construção civil e no dia 26 de agosto de 1997 sofreu um acidente de trabalho que consistiu numa queda ao descer umas escadas; que, para salvaguarda das situações de risco laboral, havia efetuado com a CC, S.A., hoje integrada por fusão na BB – Companhia de Seguros S.A., um seguro no Ramo Acidentes de Trabalho titulado pela apólice nº ..., tendo como objeto seguro a atividade laboral do próprio tomador do seguro, em vigor na data do acidente, cobrindo a massa salarial anual de Esc. 1.440.000$00; depois de internamentos e tratamentos que descreve, a seguradora lhe atribuiu uma Incapacidade Parcial Permanente de 37,5 % (0,25 x 1.5) e incapacidade para o trabalho habitual, aceitou o acidente como de trabalho, o nexo de causalidade entre o acidente e as lesões sofridas, prestou-lhe assistência médica e medicamentosa, pagou-lhe valores a título de incapacidades temporárias e passou a pagar-lhe 307.170$00 como pensão anual, desde 1999.11.25, pensão que ulteriormente veio a remir; que o sinistro foi regularizado ao abrigo da Lei n.º 2127 – Dec. n.º 360/71 e alterações introduzidas pelo DL n.º 459/79, tendo a seguradora aplicado as respetivas regras técnicas para fixação da incapacidade; desde 2005, as lesões do pé e perna esquerdos se têm agravado significativamente, causando crescente sofrimento intermitente, que forçam o sinistrado a claudicar e a sobrecarregar muito também o membro inferior direito, situação de agravamento progressivo que revela que a situação clínica do sinistrado não se estabilizou nos 10 anos subsequentes à alta clínica.

A Seguradora, notificada para apresentar quesitos, veio tomar posição quanto ao requerido, referindo que o pedido de revisão formulado pelo sinistrado não pode ser admitido por se verificar a caducidade do direito invocado, pois o incidente de revisão foi instaurado mais de 15 anos a contar da data da alta e do acordo de fixação da incapacidade e da pensão, que teve lugar em 25 de novembro de 1999, sem que entretanto tenha sido deduzido qualquer outro incidente de revisão pois aplica-se o n.º 2 da Base XXII, da Lei n.º 2127. Invocou ainda que a Lei n.º 98/2009 apenas se aplica aos acidentes ocorridos a partir de 1 de janeiro de 2010, como constitui jurisprudência pacífica e, à cautela, sustenta não ser este o tribunal competente pois à data do acidente os tribunais onde se resolveria a presente questão seriam os tribunais comuns.

O requerente pronunciou-se quanto às exceções invocadas pela Seguradora, alegando a falta de fundamento das mesmas, tendo referido, no que se refere à competência do Tribunal do Trabalho para conhecer do pedido de revisão que, atendendo à data da entrada em juízo do presente incidente de revisão, ao caso é aplicável o Código do Processo de Trabalho (CPT) com as alterações introduzidas pelo DL nº 295/2009, de 13.10 (artº 6º), concretamente o disposto no artigo 145º CPT e que nos termos do disposto no art.º 85.º, al. c) da Lei nº 3/99, de 13.1, que alterou a Lei n.º 39/87, LOTJ de 23 de dezembro, compete aos tribunais do trabalho conhecer em matéria cível das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais, não resultando daí qualquer diferenciação entre acidentes decorrentes de trabalho subordinado ou de trabalho independente, pelo que a partir de 13 de janeiro de 1999 se devem aplicar também aos acidentes de trabalho por conta própria as normas atinentes aos Acidentes de Trabalho por conta de outrem por estar em causa o princípio da igualdade de tratamento consagrado na C.R.P., além de que o contrato de seguro do autor cumpria o estabelecido no DL n.º 159/99, de 11 de maio, sendo o Tribunal do Trabalho competente para a apreciação do pedido de revisão.

Foi então proferido despacho em que se julgou improcedente a exceção da caducidade e, quanto à competência material, decidiu-se o seguinte:

«1. Subsidiariamente, a requerida invoca a incompetência do tribunal pois na data do acidente a questão seria resolvida nos tribunais comuns.

2. O requerente opôs-se a esta incompetência porque, atenta a data da entrada em juízo do incidente, é este o tribunal competente.

3. Em nosso entendimento, temos que ter em conta a data da entrada do incidente em juízo na medida em que, pelo menos ao que apuramos, nunca existiu um processo judicial relativo a este acidente e, como tal, nos termos do artigo 126.º, n.º 1, alínea c), da LSJ, este é o tribunal competente.

4. Pelo exposto, julgo improcedente a exceção de incompetência absoluta deste tribunal.»

Inconformada com esta decisão, dela apelou a Seguradora para o Tribunal da Relação do Porto, tendo o recurso sido admitido apenas no que se refere à questão da competência, vindo o mesmo a ser decidido por acórdão daquele Tribunal, de 7 de julho de 2016, que integra o seguinte dispositivo: «10. Em face do exposto, concede-se provimento ao recurso e revoga-se a decisão da 1.ª instância, absolvendo da instância a recorrente BB - Companhia de Seguros, S.A. atenta a incompetência em razão da matéria do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro - Secção de Instância Central - 3.ª Secção do Trabalho com sede em Oliveira de Azeméis.

Custas pelo recorrido».

Não conformado com esta decisão veio o sinistrado recorrer de revista para este Supremo Tribunal, integrando nas alegações apresentadas as seguintes conclusões:

«1.ª. Em 23.12.2015, AA, trabalhador independente na área da construção civil, em incidente de "revisão de incapacidade", pediu que lhe fosse efetuado exame médico, nos termos do art.º 145.º do CPT;

2.ª. Com os presentes autos pretende a apreciação em juízo do eventual agravamento da incapacidade parcial permanente para o trabalho do sinistrado autor, enquanto trabalhador por conta própria.

3.ª. Esse "incidente" deu entrada na Instância Central – 3.ª- Secção do Trabalho – J1 - Oliveira de Azeméis - Comarca de Aveiro;

4.ª. O Tribunal do Trabalho é o tribunal competente para conhecer desta questão, como decidiu o douto Tribunal a quo.

5.ª. O acidente de trabalho ocorreu em 26.08.1997;

6.ª. O requerente exercia àquela data, por conta própria, a profissão de trolha na área de construção civil;

7.ª. Havia celebrado com a, hoje, BB - Companhia de Seguros SA, um contrato de seguro do Ramo Acidentes de Trabalho - Trabalhadores Independentes, pela apólice n.º ..., que a obrigava a seguradora a garantir o pagamento dos encargos provenientes de acidentes de trabalho em consequência do exercício da sua atividade profissional por conta própria (seguro de acidentes de trabalho como trabalhador independente);

8.ª. Do referido acidente não existiu qualquer processo judicial;

9.ª. Foi dada alta clínica ao sinistrado em 24.11.1999, pela seguradora, com uma IPP de 37,50%;

10.ª. Por acordo entre ambos - sinistrado e seguradora - esta obrigou-se a pagar-lhe uma pensão, anual e vitalícia, com início em 25.11.1999 e no valor de 307.000$00 (moeda da altura),

11.ª. Esta pensão foi calculada com base na Lei n.º 2127, de 3 de agosto de 1965 e no Decreto n.º 360/71, de 21 de agosto;

12.ª. Pensão que foi entretanto atualizada e objeto de remição com base na já referida legislação.

13.ª. O contrato de seguro celebrado entre o sinistrado enquanto trabalhador por conta própria e a seguradora destinava-se à cobertura dos acidentes sofridos por este e ocorridos na sua atividade profissional.

14.ª. A referida apólice estava em vigor, fora celebrada na modalidade de seguro completo, tendo como objeto a cobertura dos acidentes que pudessem ocorrer na atividade laboral do próprio tomador do seguro.

15.ª. As partes atribuíram ao dito contrato a equiparação a seguro de acidentes de trabalho.

16.ª. A requerida BB reconheceu estar tal acidente coberto pelo contrato de seguro da apólice n.º ... e aceitou a responsabilidade pelo sinistro e qualificou-o como de trabalho.

17.ª. A demandada seguradora tratou o sinistrado como acidentado de trabalho.

18.ª. O referido contrato de seguro era um contrato de seguro facultativo (art.º 405.º C.C.).

19.ª. À data inexistia seguro obrigatório para os trabalhadores por conta própria. Por isso,

20.ª. As partes por acordo equipararam o acidente dos autos a um acidente de trabalho, a que aplicaram a legislação vigente dos acidentes de trabalho por conta de outrem.

21.ª. Ou seja, tratando-se como se tratava de um seguro de acidente de trabalho por conta própria, o sinistro ocorrido no âmbito daquele contrato de seguro foi regulado como se um acidente de trabalho "tout court" se tratasse.

22.ª. O tribunal competente, em razão da matéria, para conhecer da pretensão desta pretensão é a Instância Central – 3.ª Secção - Jl - Oliveira de Azeméis - Comarca de Aveiro, como foi decidido na 1.ª Instância.

23.ª. O contrato de seguro celebrado entre as partes cumpria "materialmente" o estabelecido nas exigências do DL n.º 159/99, de 11 de maio, e estava em vigor aquando da atribuição do grau de incapacidade ao sinistrado - em 05.05.2000 - também por isso se deve considerar competente o foro do direito do trabalho para apreciar o eventual agravamento da incapacidade para o trabalho do sinistrado autor.

24.ª. A competência em razão da matéria para conhecer de qualquer acidente de trabalho, seja de trabalhador por conta de outrem, seja de trabalhador independente, seja de acidente legal ou contratualmente equiparado, pertence de acordo com a LOSJ, às Secções do Trabalho.»

Termina pedindo que seja concedido «provimento ao presente recurso de revista e, em consequência, revogando o douto Acórdão recorrido e substituindo-o por outro que declare competente o Tribunal do Trabalho para conhecer do pedido de revisão do grau da incapacidade para o trabalho do sinistrado, e improcedente a alegada exceção de incompetência material do Tribunal do Trabalho de Oliveira de Azeméis».

A recorrida não respondeu ao recurso.

Neste Tribunal, o Exm.º Magistrado do Ministério Público proferiu parecer, nos termos do n.º 3 do artigo 87.º do Código de Processo do Trabalho integrando a seguinte síntese conclusiva:

«Em situações como a presente, o elemento determinante para a atribuição da competência material aos tribunais de trabalho é, sem dúvida que se trate de um acidente de trabalho.

Não se olvida que, à data em que o acidente ocorreu, o regime jurídico dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais, encontrava-se contido na lei n.º 2 127, de 3 de agosto, a qual não contemplava os trabalhadores independentes.

Porém, as partes acordaram, tratar-se de um acidente de trabalho e, como tal foi tratado, tendo a seguradora prestado ao requerente assistência médica e medicamentosa, bem como pago àquele valores a título de incapacidades temporárias vencidas e, numa fase posterior, uma pensão vitalícia que foi sofrendo atualizações.

Considerando todas as razões expostas, emite-se parecer no sentido de ser concedida revista, revogando, consequentemente o acórdão em análise e repristinando-se a sentença proferida em 1.ª instância.»

Notificado este parecer às partes, veio a seguradora insurgir-se contra o sentido do mesmo, nomeadamente, pondo em causa que as partes tenham acordado tratar-se de um acidente de trabalho, referindo que «o que as partes entenderam para efeitos de seguro facultativo celebrado, [foi] que o acidente fosse regularizado como se fosse um acidente de trabalho», concluindo no sentido da confirmação da decisão recorrida.

Sabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, nos termos do disposto nos artigos 635.º, n.º 3, e 639.º do Código de Processo Civil, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, está em causa na presente revista saber se é da competência da Jurisdição do Trabalho conhecer do presente pedido de revisão de incapacidade formulado pelo sinistrado, nos termos do artigo 145.º do Código de Processo do Trabalho.

II

1 - Os elementos decorrentes dos autos, nomeadamente a aceitação por parte da requerida dos pontos n.ºs 1 a 23 da petição apresentada pelo sinistrado, permitem dar como assente, o seguinte:

a) - O requerente nasceu no dia 04 de março de 1967;

b) - Exerceu profissão por conta própria na área da construção civil e no dia 26 de agosto de 1997 sofreu um acidente de trabalho que consistiu numa queda ao descer umas escadas;

c) - Para salvaguarda das situações de risco laboral, o sinistrado havia efetuado com a CC, S.A., hoje integrada por fusão na BB – Companhia de Seguros SA, um seguro no Ramo Acidentes de Trabalho titulado pela apólice nº ..., tendo como objeto seguro a atividade laboral do próprio tomador do seguro, e em vigor na data do acidente, cobrindo a massa salarial anual de Esc. 1.440.000$00;

d) - Depois de internamentos e tratamentos de que foi objeto, a seguradora atribuiu-‑lhe uma Incapacidade Parcial Permanente de 37,5 % (0,25 x 1.5) e incapacidade para o trabalho habitual, aceitou o acidente como de trabalho, o nexo de causalidade entre o acidente e as lesões sofridas, prestou-lhe assistência médica e medicamentosa, pagou-lhe valores a título de incapacidades temporárias e passou a pagar-lhe 307.170$00 como pensão anual, desde 1999.11.25, pensão que ulteriormente veio a remir;

e) - O sinistro foi regularizado no âmbito do contrato de seguro celebrado entre as partes, ao abrigo da Lei n.º 2127 – Dec. n.º 360/71 e alterações introduzidas pelo DL n.º 459/79, tendo a seguradora aplicado as respetivas regras técnicas para fixação da incapacidade.

f) - O acidente sofrido pelo sinistrado não foi participado ao Tribunal e os acordos subjacentes à regularização do sinistro foram obtidos extrajudicialmente, quer relativamente à assistência médica prestada pela Seguradora ao sinistrado, quer quanto às incapacidades temporárias ou definitivas por esta fixadas, quer quanto aos montantes de pensões pagas ao sinistrado, bem como relativamente ao valor do capital de remissão da pensão.

O sinistrado invocou os factos descritos nos pontos n.ºs 24 a 30 do requerimento apresentado, como fundamento da instauração do presente processo, em síntese, que desde 2005 as lesões do pé e perna esquerdos se têm agravado significativamente, causando crescente sofrimento intermitente, que forçam o sinistrado a claudicar e a sobrecarregar muito também o membro inferior direito, situação de agravamento progressivo que consubstancia e revela que a sua situação clínica se não estabilizou nos 10 anos subsequentes à alta clínica, pedindo a realização de «perícia médica para aferição do supra alegado agravamento da incapacidade e consequente indemnização a suportar pela requerida seguradora».

O litígio cuja solução se pretende, materializa-se na existência de um agravamento das consequências derivadas do acidente sofrido e na responsabilização da requerida por tal agravamento, sendo certo que as partes, no quadro do contrato de seguro existente, puseram-se de acordo, extrajudicialmente, quanto às consequências do acidente e à forma de reparação das mesmas, que foi assumida pela Seguradora.

2 - Tal como se referiu, as instâncias dividiram-se relativamente à resposta a dar à questão que é objeto do presente recurso.

Enquanto o tribunal de primeira instância se considerou competente para os termos do processo instaurado, já o Tribunal da Relação do Porto veio a decidir em sentido contrário, com os seguintes fundamentos:

«Ora, já perante os factos alegados no requerimento inicial, é possível afirmar que o sinistro verificado, tendo em consideração o regime jurídico a que se encontra submetido, não consubstancia um acidente de trabalho nem lhe é equiparável, não conferindo a lei ao sinistrado ora recorrido o direito à reparação prevista na legislação infortunística laboral.

Com efeito, de acordo com a factualidade alegada pelo requerente, tendo o acidente em causa ocorrido em 26 de agosto de 1997 quando o requerente exercia a sua profissão por conta própria, não se podia qualificar como acidente de trabalho à luz do regime legal então em vigor, definido pela Lei n.º 2.127, de 3 de agosto de 1965, considerando as disposições conjugadas das suas Bases I, II e V, e uma vez que o âmbito desse diploma legal visava exclusivamente a proteção dos trabalhadores por conta de outrem, num quadro primacial de responsabilidade objetiva dos empregadores pelos danos físicos sofridos pelos trabalhadores ao seu serviço[1].

À data, nada impedia que um trabalhador independente ou por conta própria – no sentido de a sua prestação não ser, na respetiva configuração e conformação, subordinada a ordens, instruções, direção e disciplina de outrem – celebrasse com uma seguradora um seguro facultativo para reparar os danos que eventualmente sofresse em virtude de acidentes verificados no âmbito do seu exercício profissional, podendo ainda as partes do contrato de seguro, no âmbito da liberdade contratual (artigo 405.º do Código Civil), incluir em tal contrato as cláusulas que bem lhes aprouvessem, desde que não violassem regras legais imperativas, podendo designadamente estabelecer os termos da reparação convencionada em moldes equivalentes ao que então eram conferidos pela lei reparadora de acidentes de trabalho em vigor.

Mas esta convenção contratual não tem, a nosso ver, a virtualidade de alterar a natureza jurídica do acidente que se verifique, por não contender com os pressupostos estabelecidos na lei para a sua qualificação como acidente de trabalho, e muito menos tem a virtualidade de, por essa via, alcançar a extensão ou restrição da competência em razão da matéria das diversas Secções das instâncias centrais dos Tribunais de Comarca.

É certo que posteriormente à ocorrência do acidente foi publicada a Lei n.º 100/97, de 13 de setembro (Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e das Doenças Profissionais), que entrou em vigor em 1 de janeiro de 2000 (seu art. 44.º, nº 1 e 71.º, nº 1 do Decreto-Lei nº 143/99, de 30 de abril na redação dada pelo art. 1.º do Decreto-Lei nº 382-A/99, de 22 de setembro) e veio prever a obrigação dos trabalhadores independentes efetuarem seguro que garanta as prestações previstas na legislação própria dos acidentes de trabalho. De harmonia com o artigo 3.º dessa Lei nº 100/97, os trabalhadores independentes devem efetuar um seguro que garanta as prestações previstas nessa mesma Lei, nos termos que vierem a ser definidos em diploma próprio (n.º 1), considerando-se trabalhadores independentes os que exerçam uma atividade por conta própria (n.º 2). Na decorrência, o Decreto-Lei nº 159/99, de 11 de maio, veio a prescrever a obrigação dos trabalhadores independentes de efetuar um seguro de acidentes de trabalho que garanta, com as devidas adaptações, as prestações definidas na Lei n.º 100/97, de 13 de setembro, para os trabalhadores por conta de outrem e seus familiares (artigo 1.º, n.º 1), seguro esse que se rege, com as devidas adaptações, pelas disposições da mencionada lei e diplomas complementares (artigo 2.º). O legislador, não obstante não ter incluído os trabalhadores independentes no elenco do artigo 2.º da Lei n.º 100/97, veio estender a tais trabalhadores (ou seja, aqueles que exercem uma atividade por conta própria e desde que a respetiva produção se não destine exclusivamente ao consumo ou utilização por si próprio e pelo seu agregado familiar – cfr. o artº 3º, nº 2, da Lei nº 100/97 e o nº 2 do artº 2º do Decreto-Lei nº 159/99) os «benefícios» emergentes da Lei nº 100/97, fazendo depender a garantia das indemnizações e prestações nela previstas da efetivação de um seguro[2].

Pretendeu-se com este novo regime, de forma clara, equiparar as garantias da legislação infortunística, própria para os trabalhadores por conta de outrem, aos trabalhadores independentes sujeitos a idênticos riscos laborais e através dum seguro de acidentes de trabalho (vide o preâmbulo do Decreto-Lei nº 159/99). No âmbito da Lei n.º 100/97, todos os acidentes que ocorram com trabalhadores independentes no seu exercício profissional e de que tenha resultado incapacidade permanente são obrigatoriamente processados judicialmente, mediante a comunicação pela seguradora, imposta pelo art. 8.º Decreto-Lei nº 159/99, de 11 de maio, sendo-lhes aplicáveis as mesmas regras de que beneficiam os “trabalhadores por conta de outrem”.

No panorama jurídico que se seguiu à Lei n.º 100/97 – que é o atual –, apesar de a Lei n.º 98/2009 de 4 de setembro (Lei de Acidentes de Trabalho em vigor desde 1 de janeiro de 2010) não conter uma norma semelhante ao antecedente artigo 3.º da Lei n.º 100/97, que acolhia a aplicabilidade do regime jurídico dos acidentes de trabalho a esta categoria de trabalhadores, o artigo 4.º, n.º 2 do Código do Trabalho aprovado pela Lei n.º 7/2009 de 12/02 dispõe que o trabalhador que exerça atividade por conta própria deve efetuar um seguro que garanta o pagamento das prestações previstas nos artigo 283.º e 284.º do Código do Trabalho e respetiva legislação complementar. E, por sua vez, o artigo 184º da Lei n.º 98/2009 dispõe que a regulamentação relativa ao regime do seguro obrigatório de acidentes de trabalho dos trabalhadores independentes consta de diploma próprio, o qual continua a ser o Decreto-Lei n.° 159/99[3].

Mas, ao tempo do referido acidente, não era assim.

Na verdade, o regime jurídico da Lei n.º 100/97, de 13 de setembro aplica-se apenas aos acidentes de trabalho que ocorreram após a sua entrada em vigor [artigo 41.º, n.º 1, alínea a)], o que aconteceu em 1 de janeiro de 2000, conforme resulta da alínea a) do n.º 1 do seu artigo 41.º, conjugada com o disposto no n.º 1 do artigo 71.º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de abril (Regulamento da Lei de Acidentes de Trabalho), na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 382-A /99, de 22 de setembro.

Ou seja, apenas relativamente aos acidentes verificados a partir de 1 de janeiro de 2000 em que seja vitimada uma pessoa que desenvolva um labor “livre”, no sentido de não ser, na respetiva configuração e conformação, subordinado a ordens, instruções, direção e disciplina de outrem, e celebre um contrato de seguro que garanta o pagamento das prestações previstas na LAT, é possível afirmar que a ação se funda num acidente de trabalho e o foro laboral é competente para dele conhecer[4].

Quanto aos acidentes anteriores a 1 de janeiro de 2000, a cobertura infortunística então legalmente prevista para os acidentes de trabalho pressupunha uma relação jus-laboral ou de subordinação económica – de acordo com as citadas Bases I, II da Lei nº 2127, de 3 de agosto de 1965 – e a lei não tutelava os acidentes sofridos por trabalhadores independentes no exercício da sua atividade profissional, pelo que, naturalmente, os mesmos não consubstanciavam acidentes de trabalho ou acidentes a estes equiparados por qualquer meio.

E, por isso, o conhecimento das questões emergentes de tais sinistros, ainda que a sua reparação houvesse sido convencionada num contrato de seguro facultativo que previsse prestações reparadoras equivalentes às previstas na LAT, não pode considerar-se compreendido na competência que às Secções do Trabalho a lei confere para conhecer “[d]as questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais” – alínea c), do n.º 1, do artigo 126.º da LOSJ.

Tendo em consideração a causa de pedir alegada pelo ora recorrido no requerimento inicial (os factos concretos em que radica o pedido de revisão), o sinistro que sofreu não pode qualificar-se como acidente de trabalho à luz da lei em vigor quando o mesmo se verificou, sendo certo que a lei que ulteriormente veio alargar a reparação laboral a sinistros sofridos por trabalhadores independentes que houvessem celebrado um contrato de seguro, é expressa quanto à sua aplicação temporal – apenas se aplica a acidentes ocorridos após 1 de janeiro de 2000 – não podendo o seu âmbito alargar-se a acidentes anteriormente verificados.

No que diz respeito ao pedido formulado – de revisão da incapacidade – trata-se de um pedido com fundamento na Base XXII da Lei n.º 2.127, em vigor à data do sinistro, lei a que vimos já não se subsumir o acidente sub judice.

Perante este desenho da petição inicial, pelo qual deve aferir-se a competência material do tribunal, impõe-se concluir que o presente litígio não emerge de um acidente de trabalho, pois que a lei assim não configurava um acidente sofrido por um trabalhador independente em 26 de agosto de 1997 – tivesse, ou não, ele celebrado um contrato de seguro – apenas passando a subsumir à lei reparadora dos acidentes de trabalho os acidentes sofridos por trabalhadores por conta própria a partir de 1 de janeiro de 2000.

(…)

Como resulta do já dito, entendemos que a equiparação convencional das prestações previstas num contrato de seguro, às prestações previstas na LAT para os acidentes de trabalho, limita os seus efeitos à delimitação das prestações devidas em caso de sinistro, não tendo a virtualidade de alterar a natureza do acidente de modo a qualificar-se o mesmo como acidente de trabalho independentemente do prescrito na lei aplicável. Perante os factos alegados no requerimento de revisão, pode desde já dizer-se que o sinistro ali descrito não se reveste da natureza de acidente de trabalho à luz da Lei n.º 2.127 de 3 de agosto de 1965, nem confere, por isso, o direito à cobertura infortunística então legalmente devida aos sinistrados vítimas de acidente de trabalho.

Assim, à data da dedução do presente incidente de revisão – como aliás anteriormente, face à LOFTJ – o acidente no qual o requerente, ora recorrido, fez radicar o seu pedido de revisão da incapacidade não era qualificável como acidente de trabalho, não estando em causa neste litígio submetido à apreciação da 3.ª Secção do Trabalho da Instância Central do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro (com sede em Oliveira de Azeméis) uma qualquer questão emergente de acidente de trabalho ou doença profissional, pelo que não cabia à referida Secção do Trabalho competência em razão da matéria para do mesmo conhecer.

E impõe-se revogar a decisão recorrida, absolvendo a recorrente seguradora da instância por procedente a exceção dilatória da incompetência material, nos termos prescritos nos artigos 96.º, alínea a), 97.º, n.º 1, 99.º, n.º 1, 577.º, alínea a) e 578º do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, todos aplicáveis “ex vi” do art. 1.º, n.º 2 al. a) do Código de Processo do Trabalho.»

3 – A jurisprudência dos Tribunais da Relação nem sempre tem enfrentado a questão que constitui o objeto do presente recurso de acordo com a mesma linha de orientação.

Assim, a decisão recorrida referencia o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no processo n.º 4597/10.9TTLSB.L1-4, de 14-09-2011, de que foi extraído o seguinte sumário: «É competente para conhecer de ação intentada por um trabalhador por conta própria contra uma seguradora, baseada em acidente ocorrido em 3 de março de 1998, um Tribunal Judicial de competência genérica (e não um Tribunal do Trabalho)».[5]

Em sentido contrário pronunciou-se o Tribunal da Relação de Évora, no acórdão proferido no processo n.º 410/05-3, de 14 de abril de 2005, de que foi extraído o seguinte sumário:

«I - Em matéria de acidentes de trabalho, quando o legislador fala em Tribunal competente, está a referir-se ao Tribunal do Trabalho territorialmente competente, excluindo por isso as outras categorias de Tribunais.

II - Com efeito tanto na Lei 100/97, como no seu regulamento, constante do DL n.º 143/99, em várias disposições, fala-se em “TRIBUNAL COMPETENTE”. E o legislador definiu como tal «o Tribunal do Trabalho territorialmente competente» - art.º 2º al. g) do DL n.º 143/99.

III - No que respeita aos acidentes de trabalho dos trabalhadores independentes, o DL n.º 159/99 de 11 de maio, manda aplicar o regime previsto na lei n.º 100/97 e diplomas complementares e ele próprio acolhe o conceito de tribunal competente definido no art.º 2º al. g) do DL n.º 143/99 (cfr. art. 2º e 8º do DL 159/99)»[6].

Na mesma linha de orientação se situa o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, no processo n.º 697/08.3TBLMG.P1, de 21 de outubro de 2010, de que foi extraído o seguinte sumário:

«No art. 85º, al. c) da Lei nº 3/99, de 13.01 (LOFTJ), não se estabelece qualquer restrição à reserva de competência do tribunal do trabalho inerente à condição do sinistrado, nomeadamente, por ser trabalhador independente, o que determina o entendimento de que todos os litígios cíveis inerentes a acidentes de trabalho são apreciados pelo tribunal do trabalho, daí decorrendo que os litígios que se prendem com acidentes de trabalho não podem ser apreciados pelo tribunal judicial, sob pena de incompetência absoluta, em razão da matéria (art. 101º do CPC) e absolvição do R. da instância (arts. 105º, nº1 e 288º, nº1, al. a), ambos do CPC)»[7].

4 - Esta Secção debruçou-se sobre a competência dos Tribunais de Trabalho para conhecer de litígios derivados de acidentes sofridos por trabalhadores por conta própria, no processo proferido na revista n.º 193/02 - 4.ª Secção, datado de 19-02-‑2003, de que foi extraído o seguinte sumário:

«I – O conceito de acidente de trabalho contido no art.º 85 da Lei n.º 3/99 de 13 de janeiro (LOFTJ) é um conceito aberto a formulações legais várias exteriores a esta lei, essencialmente bebidas na LAT e legislação complementar.

II – A nova LAT (Lei n.º 100/97 de 13 de setembro) inclui no conceito de acidente de trabalho casos de trabalho autónomo e, ao referir-se no art.º 3 aos trabalhadores independentes, anuncia já a aplicação do seu regime, embora com adaptações, aos acidentes sofridos por estes.

III – O legislador do DL n.º 159/99 de 11 de maio, ao regulamentar o seguro obrigatório a efetuar pelo trabalhadores independentes, designa por mais de uma vez  de acidentes de trabalho os sofridos por estes trabalhadores, o que não fez em vão (preâmbulo e arts.º 2 e 7). 

IV – A participação do acidente prevista no art.º 8, n.º 2 do DL n.º 159/99 só ganha sentido se se compaginar com o sistema processual existente nos Tribunais do Trabalho. 

V – Os acidentes ocorridos com trabalhadores independentes – uma vez verificados os necessários requisitos – são acidentes de trabalho e como tal estão compreendidos no art.º 85, al. c) da LOFTJ, sendo os Tribunais do Trabalho competentes em razão da matéria para deles conhecer. 

VI – O DL n.º 159/99 não é organicamente inconstitucional, pois apenas cura de traçar o regime substantivo e adjetivo para o seguro obrigatório dos trabalhadores independentes, com vista a garantir as prestações definidas na LAT.» [8]

Esta Secção debruçou-se de novo sobre essa questão no acórdão proferido na revista n.º 4347/03-4, datado de 19-02-2004, em que, como fundamento do decidido, se afirmou o seguinte:

«Com a publicação deste diploma [Decreto-Lei n.º 159/99, de 11 de maio] os acidentes sofridos pelos trabalhadores independentes no seu trabalho passaram a ter um tratamento legal idêntico ao dos acidentes sofridos pelos trabalhadores por conta de outrem.

A lei trata os acidentes dos trabalhadores independentes como acidentes de trabalho e fixa-lhes um regime idêntico ao dos trabalhadores por conta de outrem.

As questões legais emergentes de ambas as situações são idênticas no essencial.

Há um sinistrado, ou os seus familiares, de um lado, a pretender uma reparação pelos danos sofridos com um acidente, e, do outro, um responsável pela reparação desses mesmos danos.

Há a caracterização do acidente como de trabalho, a fixação da incapacidade, a sua revisão, o cálculo da pensão, a atualização, remição e caducidade da pensão fixada, questões comuns aos dois tipos de acidentes.

No conceito de acidentes de trabalho referido pelo art.º 85.º al. c), da Lei 3/99, cabe perfeitamente o acidente sofrido pelo trabalhador independente, com os requisitos previstos no DL 159/99.

Tratando-se de acidente de trabalho, as questões dele emergentes são da competência dos Tribunais de Trabalho.

O DL 159/99 limitou-se a regulamentar o seguro de acidentes de trabalho para os trabalhadores independentes, anunciado já pela Lei 100/97.

No referido diploma não legislou o Executivo sobre a organização e competência dos Tribunais, direta ou indiretamente.

Veio definir os termos do seguro obrigatório dos trabalhadores independentes, de forma a garantir-lhes as prestações previstas na Lei 100/97, como, aliás, já fora anunciado no art.º 3.º desta mesma lei.

Não se vislumbram razões para a sua inconstitucionalidade orgânica, por pretensa violação da reserva legislativa da Assembleia da República, sem autorização específica deste órgão.

O acórdão desta secção, de 19.02.03, proferido na Revista n.º 193/02, decidiu já neste mesmo sentido.»[9]

III

1 – O sinistrado, em 26 de agosto de 1997, quando se encontrava no desempenho das suas funções de trabalhador da construção civil, por conta própria, foi vítima de um acidente que se materializou numa queda quando descia umas escadas.

Tinha anteriormente feito um contrato de seguro com uma seguradora mais tarde integrada na Recorrida, nos termos do qual esta assumia a responsabilidade por reparar as consequências derivadas de acidentes ocorridos no exercício das suas funções, de acordo com as soluções legalmente estabelecidas para os acidentes de trabalho.

No quadro deste acordo, a Seguradora prestou assistência médica ao sinistrado, fixou as incapacidades derivadas das sequelas daquele acidente e veio a pagar-lhe as indemnizações e pensões decorrentes do contrato de seguro anteriormente celebrado.

Tal como decorre da decisão recorrida, na data em que ocorreu o sinistro que vitimou o requerente encontrava-se em vigor o regime dos acidentes de trabalho decorrente da Lei n.º 2127, de 3 de agosto de 1965, regulamentada pelo Decreto n.º 360/71, de 21 de agosto, e este diploma, a contrário da legislação que lhe veio a suceder, não previa o alargamento do âmbito do regime de proteção dos sinistrados no trabalho que estabelecia para os trabalhadores por conta própria.

A análise dessa legislação, modelarmente descrita na decisão recorrida, evidencia linhas de força que são relevantes no sentido de se encontrar uma resposta à questão que constitui o objeto do presente recurso.

Resulta dessa legislação que através de disposições específicas se impôs aos trabalhadores por conta própria a obrigação de transferirem para uma seguradora o risco pela reparação de acidentes sofridos no exercício das suas funções, aplicando-‑se-lhes, por esta via, o regime de reparação estabelecido na legislação relativa a acidentes de trabalho.

Em parte alguma, contudo, o legislador alterou o conceito de acidente de trabalho e o âmbito de cobertura do mesmo, seja o que decorre da Lei n.º 100/97, de 13 de setembro e legislação complementar, seja o do regime em vigor, decorrente da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro.

Na sequência da entrada em vigor da Lei n.º 100/97, de 13 de setembro, foi publicado o regime específico do seguro de acidentes de trabalho para os trabalhadores independentes, no Decreto-lei n.º 159/99, de 11 de maio, regime de seguro que se articula com as disposições relativas a seguro de acidentes de trabalho decorrentes do regime destes acidentes.

A evolução do sistema jurídico acima referida permite concluir que o legislador estendeu o regime de proteção dos acidentes de trabalho a estes acidentes, mas não os considerou como acidentes de trabalho.

Acresce que, ao contrário do que se passa no regime geral dos acidentes de trabalho, o risco pela reparação das consequências destes acidentes onera os próprios sinistrados e não o destinatários da atividade pelos mesmos prestada, tal como acontece naqueles acidentes.

É certo que se pode ponderar o facto de o legislador esperar que os trabalhadores transfiram os custos dos seguros que os obriga a suportar, através dos preços dos serviços prestados, para os respetivos destinatários.

Ao regime instituído, estão subjacentes preocupações de natureza social derivadas da perda da capacidade de ganho que se pretendem minorar através da privatização do risco e da responsabilização das seguradoras, garantindo por esta via a reparação das consequências de acidentes e a minoração daquelas consequências.

Contudo, a dimensão do interesse público que está subjacente a estes acidentes não tem o mesmo relevo daquela que ocorre nos acidentes de trabalho.

Na verdade, na ausência de transferência para uma seguradora do risco, não se faz intervir o Fundo de Acidentes de Trabalho para assegurar o pagamento de quaisquer indemnizações ou pensões, nem se prevê igualmente a intervenção do destinatário da atividade prosseguida pelo trabalhador quando ocorre o acidente.

Deste modo, apesar da reparação destes acidentes ocorrer no quadro do regime estabelecido pela legislação de acidentes de trabalho, estes acidentes não se confundem com os acidentes de trabalho qua tale.

Torna-se então necessário saber se os conflitos derivados dos mesmos ainda podem ser considerados como litígios «derivados de acidentes de trabalho e doenças profissionais» para os efeitos da atribuição da competência para conhecimento dos mesmos aos Tribunais de Trabalho.

2 – Na data em que foi instaurado o presente processo - 24 de novembro de 2015 -, estava em vigor a versão inicial da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, que entrou em vigor em 1 de setembro de 2014, diploma que foi regulamentado pelo Decreto-Lei n.° 49/2014, de 27 de março.

Aquela lei estabelecia no seu 37.º, n.º 1 que na «ordem jurídica interna, a competência reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território» e no n.º 1 do seu artigo 38.º referia que «a competência fixa-‑se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei».

Aquele diploma disciplinava a competência em razão da matéria no âmbito dos tribunais judiciais no seu artigo 40.º, que era do seguinte teor:

«Artigo 40.º

Competência em razão da matéria

1 - Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

2 - A presente lei determina a competência, em razão da matéria, entre os tribunais judiciais de primeira instância, estabelecendo as causas que competem às secções de competência especializada dos tribunais de comarca ou aos tribunais de competência territorial alargada.»

Já no âmbito da organização dos tribunais judiciais de 1.ª instância, aquela lei previa no seu artigo 79.º que «os tribunais judiciais de primeira instância são, em regra, os tribunais de comarca e designam-se pelo nome da circunscrição em que se encontram instalados», estabelecendo no n.º 1 do seu artigo 80.º que «compete aos tribunais de comarca preparar e julgar os processos relativos a causas não abrangidas pela competência de outros tribunais» e no n.º 2 que «os tribunais de comarca são de competência genérica e de competência especializada».

No n.º 1 do artigo 81.º daquele diploma previa-se o desdobramento dos tribunais de comarca em: «a) instâncias centrais que integram secções de competência especializada; b) Instâncias locais que integram secções de competência genérica e secções de proximidade» e previa-se no n.º 2 do mesmo artigo que «Nas instâncias centrais podem ser criadas as seguintes secções de competência especializada: a) Cível; b) Criminal; c) Instrução criminal; d) Família e menores; e) Trabalho; f) Comércio; g) Execução.»

O artigo 126.º daquele diploma disciplinava a competência das secções do trabalho, nos seguintes termos:

«Artigo 126.º

Competência cível

1 - Compete às secções do trabalho conhecer, em matéria cível:

a) Das questões relativas à anulação e interpretação dos instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho que não revistam natureza administrativa;

b) Das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho;

c) Das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais;

d) Das questões de enfermagem ou hospitalares, de fornecimento de medicamentos emergentes da prestação de serviços clínicos, de aparelhos de prótese e ortopedia ou de quaisquer outros serviços ou prestações efetuados ou pagos em benefício de vítimas de acidentes de trabalho ou doenças profissionais;

e)  a s) (…)

2. (…).»

No presente recurso está em causa a aplicação da alínea c) do n.º 1 deste artigo nos termos da qual «compete às secções do trabalho conhecer, em matéria cível: c) Das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais».

Cumpre então determinar se o critério normativo que decorre da alínea c) do n.º 1 do artigo 126.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, «das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais» suporta a atribuição aos Tribunais de Trabalho da competência para conhecer os litígios derivados de acidentes sofridos por trabalhadores por conta própria, no exercício das suas funções, entre estes e as seguradoras para quem tenham transferido a responsabilidade pela reparação das consequências daqueles acidentes.

3 – Na resposta à questão que importa resolver, torna-se necessário o recurso à Doutrina e aos contributos que a mesma tem fornecido no que se refere à metodologia jurídica, tendo sempre presente que na sociedade em que vivemos a aplicação do Direito é uma realidade dinâmica, visando resolver os problemas que esta enfrenta no seu dia a dia.

KARL ENGISCH, sistematiza o processo interpretativo, nos seguintes termos:

«O tratado de Direito Civil de ENNECCERUS, que continua a ser um texto modelar, declara que a interpretação tem de partir do teor verbal da lei, o qual há de ser posto em claro «tendo em conta as regras da gramática e designadamente o uso (corrente) da linguagem», tomando, porém, em particular consideração também os «modos de expressão técnico jurídicos». Acrescenta, todavia, que além do teor verbal hão de ser considerados: «a coerência interna do preceito, o lugar em que se encontra e as suas relações com outros preceitos» (ou seja, a interpretação lógico-sistemática), assim como a «situação que se verificava anteriormente à lei e toda a evolução histórica», bem assim «a história da génese do preceito», que resulta particularmente dos trabalhos preparatórios, e finalmente o «fim particular da lei ou do preceito singular» (ou seja, a interpretação teleológica). A terminar acentua-se ainda, porém, que também releva ou tem importância o valor do resultado, que o Direito apenas é parte da cultura global, e, por conseguinte, o preceito da lei deve, na dúvida, ser interpretado de modo a «ajustar-se o mais possível às exigências da nossa vida em sociedade e ao desenvolvimento de toda a nossa cultura» (o que, todavia, em minha opinião, pode ser incluído no conceito de interpretação teleológica)[10].

No caso dos autos, impõe-se determinar se o segmento normativo «das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais» comporta a atribuição à jurisdição do Trabalho do litígio dos autos, ou se aquela norma só é aplicável aos litígios emergentes de acidente de trabalho como tal considerados pela legislação respetiva. Torna-se, deste modo, necessário saber se a norma em causa abrange um acidente que à luz do direito em vigor na data em que o mesmo ocorreu poderia não ser considerado como um acidente de trabalho, no fundo, se a disciplina que deriva da mesma pode ser estendida a situações que não caberiam no seu sentido literal.

BATISTA MACHADO, pronunciando-se sobre os resultados da interpretação jurídica, identifica como “interpretação extensiva” a situação em que «o intérprete chega à conclusão de que a letra do texto fica aquém do espírito da lei, que a fórmula verbal adotada peca por defeito, pois diz menos do que aquilo que pretendia dizer. Alarga ou estende então o texto, dando-lhe um alcance conforme o pensamento legislativo, isto é, fazendo corresponder a letra da lei ao espírito da lei» e refere que «a interpretação extensiva assume normalmente a forma de extensão teleológica: a própria razão de ser da lei postula a aplicação a casos que não são diretamente abrangido pela letra da lei mas são abrangidos pela finalidade da mesma»[11].

Nas palavras de KARL LARENZ, «interpretação teleológica quer dizer interpretação de acordo com os fins cognoscíveis e as ideias fundamentais de uma regulação. A disposição particular há de ser interpretada no quadro do seu sentido literal possível, e em concordância com o contexto significativo da lei, no sentido que corresponda otimamente à regulação legal e à hierarquia destes fins»[12].

Destaca ainda este autor que «a esse respeito, o intérprete há de ter sempre presentes a globalidade dos fins que serviram a regulação. Certamente que esses fins terão sido as mais das vezes tidos também em conta pelo legislador, mas este não necessita de ter dado conta de todas as consequências em particular daí decorrentes»[13] e que «os fins que o legislador intenta realizar por meio da lei são, em muitos casos, ainda que não em todos, fins objetivos do Direito, como a manutenção da paz e a justa resolução dos litígios, o “equilíbrio” de uma regulação no sentido da consideração otimizada dos interesses que se encontram em jogo, a proteção dos bens jurídicos e um procedimento judicial justo. Além disso, todos nós aspiramos a uma regulação que seja “materialmente adequada”. Só quando se supuser esta intenção da parte do legislador se chegará, por via da interpretação, a resultados que possibilitam uma resolução “adequada” do também no caso concreto»[14].

Pronunciando-se sobre os resultados da determinação do sentido da norma, refere CASTANHEIRA NEVES que «com a acentuação da interpretação teleológica, os resultados da interpretação enriqueceram-se de outros tipos de grande relevo prático e que têm de comum o aceitarem já a preterição do texto a favor do cumprimento efetivo da intenção prático-normativa da norma»[15].

Depois de ponderar no quadro dessa reflexão a chamada “interpretação corretiva”, refere aquele autor que «analogamente se passam as coisas com os modos interpretativos que se designam por redução teleológica e por extensão teleológica»[16] e concretiza, referindo que «trata-se, na primeira, de reduzir ou de excluir do campo de aplicação de uma norma casos que estão abrangidos pela sua letra (contra, portanto, o texto da lei), com fundamento na teleologia imanente à mesma norma. Na segunda, de alargar, ao contrário, o campo de aplicação de uma norma, definido pelo texto, com fundamento também na sua imanente teleologia, a casos que por aquele texto não estariam formalmente abrangidos», afirmando ainda que «a redução teleológica e a extensão teleológica não se confundem, respetivamente, com a interpretação restritiva e com a interpretação extensiva, porque o que se verifica nas primeiras não é já a procura da adequação ou de uma final correspondência entre letra e espírito, entre texto e pensamento normativo, mas trata-se antes de uma “correção  do texto fundada teleologicamente”, prosseguindo portanto a interpretação para além dos possíveis sentidos do texto ou sacrificando o seu formal sentido impositivo»[17] e destaca que «se assim estamos já a ultrapassar os limites tradicionalmente traçados à interpretação, isso afinal só nos mostra uma vez mais que a acentuação do “elemento teleológico” – ou seja, a compreensão prático-normativa e não apenas filológico-histórica ou dogmático-analítica das normas jurídicas – implica o abandono de um sentido puramente hermenêutico (hermenêutico-‑exegético) e a assunção de um sentido verdadeiramente normativo (prático-normativo) da I.J.»[18].

FERNANDO J. BRONZE considera que «nestoutro entendimento da questão principal, o pensamento jurídico acabou por abrir-se à consideração de resultados interpretativos incompatíveis com a (entretanto, concludentemente criticada) orientação tradicional e inucleados na (hoje em dia, pertinentemente sublinhada) convocação da relevância, da teleologia e do fundamento do critério interpretando. Nesta linha, alude-se, no nosso tempo e inter alia, à adaptação extensiva e restritiva, respetivamente quando a “relevância material do caso [for] mais [ou menos] ampla” do que “a pressuposição hipotético-material da norma”, mas ainda se deva reconhecer uma normativo-‑juridicamente suficiente analogia entre esses dois polos. Uma e outra, radicam, portanto, na comparação do mérito autonomamente reconhecido ao caso decidindo e da “intencionalidade problemático-normativa da norma”. E também à extensão e à redução teleológicas: a primeira consiste no alargamento do “campo de aplicação da norma, definido pelo texto, com fundamento […] na sua imanente teleologia, a casos que por aquele texto não estariam abrangidos”»[19].

Prossegue ainda o mesmo autor, referindo que «pela via da adaptação extensiva (considerando, portanto, a “intencionalidade [hoc sensu: a relevância] problemático-normativa da norma” – o âmbito da previsão que ela hipoteticamente assume – e o mérito análogo do caso decidindo), e da extensão teleológica (atendendo, pois, “ao [específico] fundamento teleológico da norma” – ao “âmbito da realidade” que ela efetivamente visa – e ainda ao mérito análogo do caso decidendo é igualmente possível mobilizar justificadamente uma norma e solucionar, por sua mediação, casos concretos, quando o pensamento tradicional, ao contrário, colocava já o decidente perante uma lacuna, impondo-lhe na ausência de obstáculos impeditivos, a respetiva integração»[20].                                                                                                               

4 – No respeito pelos parâmetros decorrentes dos artigos 9.º, 10.º e 11.º do Código Civil, o aplicador do Direito, tomando como ponto de referência o texto da lei, «n.º 2 do artigo 9.º», terá de encontrar o «pensamento legislativo» (n.º 1 do mesmo artigo) e neste contexto não poderá deixar de atender aos fins da norma – ou seja, os objetivos prosseguidos pelo legislador com a concreta disposição em análise.

Nas situações de aparente desconformidade entre o texto da lei e o seu espírito, o intérprete, partindo da análise do caso, indagará sobre a possibilidade de solução do problema jurídico que o mesmo revela por recurso à aplicação da norma em análise, tendo em vista a concretização dos objetivos prosseguidos pelo legislador e que justificam a solução normativa existente.

Nesta abordagem tem particular relevo as circunstâncias concretas em que a norma é aplicada e neste parâmetro, no caso dos autos, não pode olvidar-se a generalização de formas de prestação de trabalho não subordinado, em que ocorrem igualmente acidentes de trabalho e a necessidade sentida pelo legislador de estender a estes acidentes o regime geral de proteção dos acidentes de trabalho.

Por outro lado, a resolução dos litígios emergentes de acidentes de trabalho há muito que está atribuída a uma jurisdição especializada – a jurisdição do Trabalho - que aborda esta competência num quadro processual próprio – o processo dos acidentes de trabalho - que integra disciplina processual específica para a realização deste ramo do Direito, articulando a dimensão pericial da determinação das consequências do acidente, com a realização dos interesses de natureza pública que estão subjacentes à reparação da perda da capacidade de ganho.

Esta forma de processo resolve também de uma forma estruturalmente correta a solução normativa da privatização do risco que caracteriza o sistema jurídico português e o individualiza nos quadros do direito comparado.

Indagando-se das razões que podem justificar a atribuição da competência para conhecer dos litígios emergentes dos acidentes à jurisdição do trabalho sofridos por trabalhadores não subordinados, constata-se que ocorrem aqui todas a razões que justificam a integração dos acidentes de trabalho em geral nesta jurisdição especializada, embora nos acidentes sofridos por trabalhadores por conta própria não estejam presentes todas as dimensões de interesse público que estão subjacentes à disciplina dos acidentes de trabalho.

Na verdade, está em causa a aferição das consequências clínicas dos acidentes sofridos por estes trabalhadores no exercício das suas funções, que, em concreto e na sua dimensão material, enquanto acidentes, têm a mesma natureza dos acontecimentos que integram os acidentes de trabalho em geral, exigindo a mesma apreciação especializada.

Está em causa ainda a aferição das consequências destes acidentes no quadro da Tabela Nacional de Incapacidades, assente numa perícia especializada, e que é também do parâmetro de referência dos acidentes de trabalho em geral.

Para além disso, está em causa a definição dos responsáveis pela reparação das consequências destes acidentes, onde o parâmetro do seguro de acidente de trabalho e o envolvimento de seguradoras com base no mesmo, tem papel de relevo.

Pode, assim, concluir-se que estão presentes nestes casos todas as especificidades subjacentes aos acidentes de trabalho em geral e que justificam a sua atribuição à Jurisdição do Trabalho, pelo que se impõe igualmente a atribuição da competência para conhecimento daqueles acidentes a esta jurisdição.

A solução encontrada cabe no teor literal da lei, uma vez que também estes acidentes são tratados como acidentes de trabalho por vontade das partes, no âmbito de um contrato de seguro, havendo que definir responsabilidades no quadro da disciplina emergente desse contrato.

O entendimento diverso alicerça-se no mero teor literal da lei, em violação do disposto na 1.ª parte do n.º 1 do artigo 9.º do Código Civil, alheando-se das preocupações que estão subjacentes à existência de uma jurisdição especializada para conhecer dos litígios emergentes de acidentes de trabalho e da verificação no caso dos autos das mesmas razões que justificam a existência dessa jurisdição.

Refere-se no acórdão recorrido, como suporte do decidido que «erigindo a lei como critério definidor da competência conceitos de natureza jurídica, devem esses conceitos ser compreendidos em conformidade com o modo como o ordenamento jurídico os perspetiva, pelo que as “questões” a que se reporta o preceito são necessariamente aquelas que resultem de acidentes ou doenças que, segundo a lei substantiva que lhes é aplicável, devam ser considerados como “acidentes de trabalho” ou “doenças profissionais”».

As considerações acima tecidas a propósito da solução jurídica encontrada no âmbito da legislação relativa a acidentes de trabalho para enquadrar os acidentes sofridos por trabalhadores por conta própria no desempenho das suas funções, põem claramente em causa a base em que assenta este raciocínio.

Na verdade, em parte alguma aquela legislação considera como acidentes de trabalho, nos termos em que este conceito é ali assumido, os acidentes sofridos por aqueles trabalhadores no exercício das suas funções.

Aquela legislação limita-se a estender o regime de reparação estabelecido aos trabalhadores por conta própria, nos termos de contrato de seguro cuja celebração impõe a estes trabalhadores com companhias seguradoras, sendo certo que mesmo este contrato obedece a disciplina própria e diversa da estabelecida para os contratos de seguro por acidentes de trabalho, celebrados entre empregadores, ou destinatários da atividade do trabalhador e seguradoras.

Deste modo, tendo em conta as razões que justificam a existência da Jurisdição do Trabalho no sistema jurídico português e a sua melhor aptidão para a realização da Justiça do caso, pode concluir-se que cabem na competência desta jurisdição os litígios emergentes de acidentes sofridos por trabalhadores por conta própria, no exercício das suas funções, que envolvam esses trabalhadores e as seguradoras para quem tenham transferido o risco inerente ao exercício dessas funções, nos termos de contrato de seguro, mesmo quando estejam em causa acidentes ocorridos antes de 1 de janeiro de 2000.

IV

Em face do exposto, acorda-se em conceder a revista e em revogar a decisão recorrida, repristinando-se a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância, para onde o processo deve ser remetido, a fim de prosseguir seus termos.

Custas, nas instâncias e na revista, a cargo da Seguradora.

Junta-se sumário do acórdão.

Lisboa, 8 de junho de 2017

António Leones Dantas (Relator)

Ana Luísa Geraldes

Chambel Mourisco

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[1] Vide o Acórdão da Relação de Lisboa de 14 de setembro de 2011, Processo n.º 4597/10.9TTLSB.L1-4, in www.dgsi.pt.  
[2] Vide Carlos Alegre, in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2ª edição, p 30.
[3] Considerando que atualmente se mantém em vigor o regime ínsito no Decreto-Lei n.° 159/99 de 11/05 - diploma que regulamentou a anterior LAT e que não foi revogado - como também, que as remissões efetuadas ali para a Lei 100/97 se fazem, agora, para a Lei 98/2009, vide o Acórdão da Relação de Guimarães de 3 Dez. 2015, Processo 297/11, in JusJornal, n.º 2305, de 29 de janeiro de 2016.
[4] Vide os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 2005.05.24, Agravo n.º 1539/05, da 6.ª Secção Cível, e de 2004.02.19, Recurso n.º 4347/03, da 4.ª Secção Social, ambos sumariados in www.stj.pt.
[5] Disponível nas Bases de Dados Jurídicas da DGSI.
[6] Disponível nas Bases de Dados Jurídicas da DGSI.
[7] Disponível nas Bases de Dados Jurídicas da DGSI.
[8] Disponível em Sumários de Acórdãos da Secção Social do ano de 2003, in http://www.stj.pt/.
[9] Disponível em texto integral in http://bdjur.almedina.net/.
[10] Introdução ao Pensamento Jurídico, Fundação Calouste Gulbenkian, 3.ª Edição, 1972, p.p. 111 e 112.
[11] Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1990, pp. 185 e 186.
[12] Metodologia da Ciência do Direito, 2.ª Edição, 1983, Fundação Calouste Gulbenkian, p. 401.
[13] Ibidem.
[14] Obra citada, p. 402.
[15] “A interpretação Jurídica”, in Curso de Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, 1976, p.68. Cfr., igualmente, Digesta, Volume 2.º, Coimbra Editora, 1995, pp. 336 e ss..
[16] Ibidem.
[17] Ibidem.
[18] Ibidem.
[19] Lições de Introdução ao Direito, 2.ª Edição, 2010, Coimbra Editora, pp. 919 e 920.
[20] Obra citada, p.p. 923 e 924.