Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6ª SECÇÃO | ||
Relator: | CATARINA SERRA | ||
Descritores: | ACIDENTE DE VIAÇÃO RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL DO ESTADO DANO PAGAMENTO EMPREGADOR SUB-ROGAÇÃO PRAZO DE PRESCRIÇÃO CONTAGEM DE PRAZOS CUMPRIMENTO | ||
Data do Acordão: | 04/02/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE POR FACTOS ILÍCITOS / PRESCRIÇÃO. | ||
Doutrina: | - Adriano Vaz Serra, Prescrição e Caducidade, BMJ, 1961, n.º 105, p. 190; - Ana Filipa Morais Antunes, “Algumas questões sobre prescrição e caducidade”, AA.VV., Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, volume III, Coimbra, Coimbra Editora, 2010, p. 36-37; - Brandão Proença, Natureza e prazo da prescrição do 'direito de regresso' no diploma do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, Cadernos de Direito Privado, 2013, n.º 41, p. 29 e ss., 36 e ss., 42 e 44; - Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, Coimbra, Coimbra Editora, 1987, p. 278 e 504; - Reinhard Zimmermann, Comparative Foundations of European Law of Set-off and Prescription, Cambridge, Cambridge University Press, 2004, p. 129 e ss.; - Rita Canas da Silva, Ana Prata (coord.), Código Civil Anotado, Volume I, Coimbra, Almedina, 2017, p. 374, 379-370; 651-653. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 498.º, N.º 3. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: - DE 07-04-2011, PROCESSO N.º 329/06.4TBAGN.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT; - DE 29-11-2011, PROCESSO N.º 1507/10.7TBPNF.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT; - DE 18-10-2012, PROCESSO N.º 56/10.8TBCVL-A.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT; - DE 19-05-2016, PROCESSO N.º 645/12.6TVLSB.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT; - DE 21-09-2017, PROCESSO N.º 900/13.8TBSLV.E1.S1, IN WWW.DGSI.PT; - DE 02-11-2017, PROCESSO N.º 40/10.1TVPRT.P1.S1; - DE 18-01-2018, PROCESSO N.º 1195/08.0TVLSB.E1.S1, IN WWW.DGSI.PT; - DE 03-07-2018, PROCESSO N.º 1507/10.7TBPNF.P1.S1; - DE 03-07-2018, PROCESSO N.º 2445/16.5T8LRA-A.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT. | ||
Sumário : | I. O direito que a entidade empregadora exerce contra a seguradora para reaver o pagamento efectuado ao lesado (o “direito do pagador”) não é um direito de regresso em sentido próprio mas um “direito de reembolso”, que promana da sub-rogação (normalmente de origem legal) daquelas entidades nos direitos do lesado, não se lhe aplicando o prazo (excepcional) previsto no n.º 3 do artigo 498.º do CC. II. Estando em causa pagamentos parcelares, a contagem do prazo de prescrição do direito de reembolso inicia-se na data do cumprimento integral da obrigação (i.e., na data do último pagamento parcelar), a não ser quando seja possível a autonomização de um ou mais dos pagamentos, por dizerem respeito a “danos normativamente diferenciados”. | ||
Decisão Texto Integral: |
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Recorrente: Estado Português Recorrida: AA O Estado Português, Ministério da Administração Interna, PSP, representado pelo Ministério Público, instaurou acção declarativa comum contra AA, não como lesado directo mas por ter satisfeito ao lesado (BB, agente da PSP) certas quantias monetárias, no valor global de 133.405,85 euros, em consequência de acidente de viação por este sofrido, cuja culpa pertenceu, em exclusivo, ao segurado da ré. Devidamente citada para contestar, veio a ré invocar, nomeadamente, a excepção da prescrição, relativamente a parte do crédito alegado pelo autor, no montante de 80.850,34 euros, o que fez ao abrigo do disposto no artigo 498.º, n.º 2, do CC. Oportunamente, veio a ser proferido despacho saneador no Tribunal de 1.ª instância, no qual foi julgada parcialmente procedente a excepção de prescrição invocada pela ré e foi esta absolvida do pedido de condenação no pagamento da quantia de 34.125,73 euros. Inconformada com tal decisão e pretendendo ainda a sua absolvição quanto à condenação no pagamento da remanescente quantia relativamente à qual havia invocado a excepção de prescrição (46.724,61 euros), apelou a ré para o Tribunal da Relação de Évora. Em Acórdão prolatado em 18.10.2018 (fls. 102 dos autos), o Tribunal da Relação de Évora julgou totalmente procedente a excepção de prescrição invocada pela ré na sua contestação e absolveu a mesma do pedido de condenação no pagamento ao autor da quantia de 80.850,34 euros. Não se conformando com esta decisão, interpôs, por sua vez, o autor o presente recurso de revista, finalizando as suas alegações (fls. 117 e s. dos autos) com a formulação das conclusões seguintes:
O autor apresentou contra-alegações (fls. 142 dos autos), pugnando, essencialmente, pela manutenção na íntegra do Acórdão recorrido. 1[1] - No dia 01-06-2010, cerca das 16H00,o Agente Principal …, BB, do efetivo do Comando Distrital de Policia de Faro, no exercício das suas funções, foi interveniente num acidente de viação, quando efetuava patrulhamento auto na Estrada da Companheira S/N, na cidade de …. 2 - O acidente ocorreu entre a viatura policial, matrícula -CN-, marca …, com a viatura civil ligeira passageiros, matricula -HJ-, marca ..., quando ambas circulavam em sentido oposto. 3 - O embate entre as viaturas foi frontal, do qual resultaram danos físicos no elemento policial sinistrado e materiais na viatura do Estado/PSP. 4 - O condutor da viatura civil, a quem foi atribuída a totalidade da culpa, transferira a responsabilidade civil para a demandada. 5 - Esta assumiu essa responsabilidade, tendo indemnizado o valor dos danos materiais da viatura policial, em € 7.718,78, tendo procedido voluntariamente à sua regularização – fls. 21 6 - A autora alegou ter pago ao Hospital ... a quantia de € 3085,87 que terá sido paga na sequência de autorização de 15 de dezembro de 2010 – fls. 42/44/46 7 - Já em 2016, a demandada foi instada pela autora a regularizar os créditos sub-rogados com os vencimentos, suplementos e demais subsídios abonados pelo Estado/PSP ao sinistrado policial até janeiro de 2011, e ainda 2/30 de vencimentos e suplementos de fevereiro de 2015 – fls. 62, 66 e 70. 8 - A autora alegou ter sido abonado ao agente da PSP a quantia de € 133 405,85, assim: durante ambos os períodos referidos de incapacidade [discriminados a seguir], abonou o valor total de: € 133.405,85 (cento e trinta e três mil, quatrocentos e cinco euros e oitenta e cinco cêntimos), referentes a vencimentos, suplementos e vários subsídios a que agente policial sinistrado tinha direito, distribuídos da seguinte forma (doc. nº 4, 5 e 5-A): As quantias supra discriminadas podem agrupar-se da seguinte forma: € 76.320,52 [(2010: € 13.164,33; 2011: 22.897,78; 2012: 20.697,44; 2013 (até 23 de Setembro de 2013, posto que decorre de fls. 183 que, segundo a autora, os pagamentos terão ocorrido nos dias 23 de cada mês): € 19.560,97], acrescidos de € 3.085,87; e € 55.641,38, relativos a 2013 (Outubro em diante): € 6.101,67; 2014: € 26.076,83; 2015: € 23.462,88. 9 - A autora teve conhecimento do respetivo direito pelo menos um mês depois do acidente, no dia 20 de julho - fls. 32. 10 - No dia 23 de setembro de 2016 deu entrada neste Tribunal a presente ação e a ré foi citada no dia 27 de setembro – fls. 96 – tendo apresentado contestação no dia 2 de novembro – fls. 114. O DIREITO Conforme formuladas atrás, as questões a apreciar no presente recurso são as duas seguintes:
Começando pela análise da primeira questão, saliente-se que existe uma divergência quanto à sua resposta entre o Tribunal de 1.ª instância e o Tribunal recorrido. Enquanto o Tribunal de 1.ª instância considerou aplicável o disposto no artigo 498.º, n.º 3, do CC e, ao abrigo desta norma, aplicou ao caso o prazo de cinco anos resultante da aplicação conjugada dos artigos 118.º, n.º 1, al. c), 143.º e 148.º., n.º 3, do CPP, o Tribunal da Relação de Évora expressou o seu entendimento de que o n.º 3 do artigo 498.º do CC era inaplicável aplicável aos titulares do direito de regresso e decidiu o caso com base no disposto no n.º 2 da norma. Segundo este último Tribunal, a razão de ser da introdução do n.º 3 prende-se com a necessidade de evitar a ocorrência de situações em que, quando o crime tivesse maior gravidade, por força do princípio da adesão (cfr. artigo 71.º do CPP), o ilícito criminal não se mostrasse ainda prescrito no processo penal e já estivesse extinto o direito à indemnização civil conexa com o crime. Sendo esta a justificação para a previsão do prazo alargado do n.º 3 do artigo 498.º do CC, ele apensas deve valer para o prazo de prescrição do direito do lesado e já não para o caso do direito de regresso. Partindo desta premissa e observando que, no caso em apreço, o Estado Português (através do Ministério Público e em representação da PSP) havia intentado a presente acção no dia 23.09.2016 e que a ré havia sido citada em 27.09.2016, concluiu o Tribunal recorrido que havia prescrito no prazo de três anos o direito da PSP exigir judicialmente à ré todos os pagamentos efectuados até 27.09.2013, os quais atingem o valor global de 80.850,34 euros, composto do montante pago à ISU – Estabelecimentos de Saúde e Assistência, S.A. (3.085,87 euros) , em 3.11.2011, e do montante pago a BB, o agente da PSP, durante os períodos de incapacidade, a título de vencimentos, suplementos e subsídios, nos anos de 2010 (13.164,33 euros), 2011 (24.341,73 euros), 2012 (20.697,44 euros) e até 27.09.2013 (19.560,97 euros), no total de 77.764,47 euros. Invoca a recorrente, a favor da aplicabilidade do disposto no artigo 498.º, n.º 3, do CC, duas ordens de argumentos: a qualificação da entidade empregadora como “lesada” determinada pelo disposto no artigo 47.º, n.º 3, do DL n.º 503/99, de 20 de Novembro (regime jurídico dos acidentes em serviço e das doenças profissionais no âmbito da Administração Pública), e a insusceptibilidade da aplicação do artigo 498.º, n.º 2, do CC aos casos, como este, que não são, em rigor, de direito de regresso mas de sub-rogação. Apreciem-se os argumentos aduzidos e tome-se posição. O artigo 498.º do CC é o seguinte teor: “1. O direito de indemnização prescreve no prazo de três, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respetivo prazo a contar do facto danoso. 2. Prescreve igualmente no prazo de três anos, a contar do cumprimento, o direito de regresso entre os responsáveis. 3. Se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável (…)”. Como é sabido, a prescrição, regulado, em geral, nos artigos 300.º a 327.º do CC, é uma causa de extinção das obrigações e “tem a natureza de excepção, com base na qual o devedor poderá recusar, legitimamente, o cumprimento de uma obrigação”[2]. O instituto serve interesses diversos: a probabilidade de ter sido feito o pagamento; a presunção de renúncia do credor; a consolidação de situações de facto; a protecção do devedor contra a dificuldade de prova do pagamento; a necessidade de segurança jurídica e certeza dos direitos; o imperativo de sanear a vida jurídica de direitos praticamente caducos; e, finalmente, a exigência de promover o exercício oportuno dos direitos e a sanção da inércia ou da negligência injustificada do credor. O que sucede nesta última hipótese, é que “[a] passividade [do credor] sugere que já não está interessado na invocação do direito, por isso se considera que, em tais casos, deixa de merecer tutela jurídica”[3]. Em conformidade com isto, entre os princípios gerais que informam o instituto da prescrição conta-se o princípio de que o prazo de prescrição só começa a correr quando o direito puder ser exercido[4] e o princípio de que a prescrição não deve correr se o credor não tem possibilidade de agir (agere non valenti non currit praescriptio)[5], consagrados, respectivamente, nos arts. 306.º e 321.º do CC[6]. Como se viu, decorre do artigo 498.º, n.º 1, do CC que o prazo geral de prescrição do direito à indemnização é, em princípio, de três anos a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete. O mesmo prazo de três, contado agora desde o cumprimento da obrigação de indemnizar por qualquer dos responsáveis solidários, vale para o exercício do direito de regresso. Este é um prazo relativamente curto, o que bem se compreende: “se decorre muito tempo sobre os factos, aumenta o risco de a prova, mormente a testemunhal, ser mais difícil e incerta” [7]. Estabelece-se, no entanto, uma ressalva no n.º 3, na hipótese de o facto ilícito configurar crime. Sobre esta hipótese pronunciaram-se, desde logo, Pires de Lima e Antunes Varela, advertindo que “[a] sujeição ao prazo de prescrição da lei penal só se verifica (…) se esta fixar um prazo mais longo. A prescrição do crime não importa, pois, necessariamente, a prescrição do direito à indemnização”[8]. No que toca directamente ao problema em causa neste recurso – da aplicabilidade ou não desta última norma ao titular do direito de regresso –, o consenso actual na jurisprudência em torno da tese da inaplicabilidade é visível[9], recusando-se de forma repetida que o disposto naquela norma valha para o direito exercido pela seguradora contra o seu segurado. Como bem apontou o Tribunal recorrido, a norma encontra a sua justificação na necessidade de adaptar o pedido de responsabilidade civil à acção penal, tendo em atenção os casos em que, por força do princípio da adesão (cfr. artigo 71.º do CPP), aquele é deduzido no contexto desta última. Não faria sentido, com efeito, que o direito do titular à indemnização civil (a exercer no processo criminal) pudesse ser afectado pela prescrição quando estivesse ainda a decorrer o prazo de prescrição do procedimento criminal, que, em certos casos (cfr. artigo 118.º do CP) é mais longo do que o fixado no n.º 1 do artigo 498.º do CC. No entanto, como se diz no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.11.2011, Proc. 1507/10.7TBPNF.P1.S1 [10]: "estas razões não colhem quando se está perante o direito de regresso da seguradora, realidade jurídica inteiramente distinta e autónoma em relação ao direito de indemnização do lesado; por isso mesmo é que no primeiro caso o prazo de prescrição se conta a partir da data do cumprimento da obrigação e no segundo do conhecimento do direito pelo lesado. Porque o direito de regresso nada tem que ver com a fonte da obrigação que a seguradora extinguiu ao cumprir o contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil celebrado com o lesante não se justifica, em tal eventualidade, o alongamento do prazo de prescrição previsto no nº 3 do artº 498º, antes devendo prevalecer o interesse da lei na rápida definição da situação e na consequente punição da inércia da seguradora num lapso de tempo mais curto, que é o do nº 2 do mesmo preceito”[11]. A questão foi também abordada por Brandão Proença[12], justamente em anotação a um acórdão pertencente àquele grupo – o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.10.2012, Proc. 56/10.8TBCVL-A. C1.S1[13]. De forma clara e bem fundamentada, em que convoca, além de numerosa jurisprudência e doutrina[14], argumentos ponderosos, como os trabalhos preparatórios da lei, conclui o autor pela inaplicabilidade do prazo (excepcional) previsto no n.º 3 do artigo 498.º do CC ao direito exercido pela seguradora. Propende ainda para uma resposta negativa Ana Prata, “pois a razão da extensão do prazo não procede relativamente à seguradora”[15]. No caso em apreciação – reconhece-se – , não está em causa, exactamente, a relação entre a seguradora e o agente (lesante) mas a relação entre um outro “responsável” (entidade empregadora) e a seguradora. Mas nem por isso os argumentos expendidos a favor daquela tese deixam de valer. Para dizer a verdade, nem o direito que a seguradora exerce contra o seu segurado / lesante nem o direito que, como acontece neste caso, a entidade empregadora exerce contra a seguradora para reaver os pagamentos efectuados, ao abrigo do artigo 46.º, n.ºs 1 e 2, do DL n.º 503/99 de 20 de Novembro, ao agente lesado (o “direito do pagador”), é um direito de regresso em sentido próprio. Trata-se, em rigor, de um “direito de reembolso”, na expressão de Brandão Proença[16], que promana da sub-rogação (normalmente de origem legal) daquelas nos direitos do lesado. Nada disto altera os dados do problema, sendo comummente aceite que, apesar de inexistir uma perfeita relação de responsabilidade solidária (o regime de “vinculação solidária”[17] pressuposto no artigo 498.º, n.º 2, do CC), o disposto na norma é passível de aplicação analógica àquela última situação[18]. Reproduzem-se aqui, novamente, as palavras de Brandão Proença, que – acredita-se – são especialmente aptas a contrariar o argumento apresentado, em segunda linha, pelo recorrente: “o 'direito de regresso' e o 'direito de sub-rogação' mais não são do que, em circunstâncias diferentes, idênticos direitos de reembolso (ou de regresso latu sensu) das quantias pagas, ex vi legis, a título provisório e por obrigados (não responsáveis) secundários, direitos esses a 'construir' substancialmente de forma semelhante, com uma natureza que não é, nem deve ser a do direito do lesado ressarcido e com um conteúdo delimitado essencialmente pelo crédito satisfeito e, em rigor, a considerar extinto[19]. Estas palavras permitem já iluminar o caminho da resposta à questão central – a (in)aplicabilidade do artigo 498.º, n.º 3, do CC –, apontando definitivamente para a natureza distinta do direito de regresso / direito de sub-rogação e do direito de indemnização do lesado. À tese da inaplicabilidade do artigo 498.º, n.º 3, do CC contrapõe, ainda assim, o recorrente um argumento especial: o de que o artigo 47.º, n.º 3, do DL n.º 503/99, de 20 de Novembro (regime jurídico dos acidentes em serviço e das doenças profissionais no âmbito da Administração Pública), determinaria a equiparação legal do recorrente ao lesado. Diz-se no referido preceito que “[o] serviço ou organismo ao serviço do qual ocorreu o acidente ou foi contraída a doença profissional e a Caixa Geral de Aposentações são tidos como lesados nos termos e para os efeitos do artigo 74.º do Código de Processo Penal, observando-se, nesta matéria, o disposto nos artigos 71.º a 84.º do mesmo diploma”. Existe, de facto, uma equiparação do serviço ou organismo ao serviço do qual ocorreu o acidente do lesado. Mas tal equiparação está expressamente circunscrita ao artigo 74.º do CPP, que regula a legitimidade e os poderes processuais do lesado na hipótese de o pedido de indemnização civil ser fundado na prática de um crime e, portanto, deduzido no processo penal, por força do princípio da adesão (cfr. artigo 71.º do CPP). Significa isto, tão-só, que, nesta hipótese, este serviço ou organismo tem legitimidade para deduzir pedido de indemnização no processo penal, designadamente, que, tal como o lesado, tem esta legitimidade ainda que se não tenha constituído ou não possa constituir-se assistente (n.º 1 do artigo 74.º do CPP) e que, tal como o lesado, a sua intervenção processual se restringe à sustentação e à prova do pedido de indemnização civil, competindo-lhe, correspondentemente, os direitos que a lei confere aos assistentes (n.º 2 do artigo 74.º do CPP). De modo algum é autorizado retirar-se da equiparação para estes efeitos que o “direito de reembolso” de que é titular o serviço ou organismo se transfigura, convertendo-se num direito igual ao direito do lesado ou que se estendem àquele todos os requisitos que conformam o exercício do direito de indemnização pelo lesado, designadamente quanto ao prazo de prescrição. Mantém-se, portanto, a convicção de que o “direito ao reembolso” é um direito de natureza distinta do direito do lesado e que esta circunstância se reflecte no prazo de prescrição (distinto) de cada um dos direitos. Se, no confronto com o lesado, o lesante “merece” sofrer o efeito sancionatório do alongamento da prescrição, já não pode dizer-se o mesmo quando o que está em causa é o “direito ao reembolso”. Perante o titular deste direito não foi praticado qualquer ilícito criminal; ele não é um “lesado imediato”, não detém uma pretensão indemnizatória, emergindo, simplesmente, o seu direito do pagamento ao (verdadeiro) lesado. Não existem, portanto, razóes para que ele beneficie da possível extensão do prazo de prescrição de que, ao abrigo do n.º 3 do artigo 498.º do CC, beneficia o lesado ou, adaptando a fórmula de Brandão Proença, para considerar que ele é “beneficiári[o] (no plano prescricional) do ilícito criminal cometido pelo [] [lesante]” [20]. A resposta à 1º questão é, em conclusão, negativa: o disposto no artigo 498.º, n.º 3, do CC é inaplicável ao direito que o autor / recorrente pretende exercer contra a ré / recorrida, aplicando-se, sem possibilidade de extensão, o prazo de três anos previsto no n.º 2 do mesmo preceito.
Com isto não se pode, ainda, todavia, dar por solucionado o caso. Falta saber quando se inicia a contagem do prazo de prescrição – do prazo de prescrição de três anos, por aplicação analógica do artigo 498.º, n.º 2, do CC. Só quando se responder a esta 2.ª questão será possível dizer se o direito de regresso do autor prescreveu e, no caso afirmativo, quais os pagamentos afectados pela prescrição. A lei é bem clara quanto ao dies a quo. Ele coincide com a data do cumprimento e é fácil de aplicar no caso de a obrigação ser de prestação instantânea, portanto, bem localizada (e esgotada) em determinada data. Dúvidas podem surgir quando, como no caso em apreciação, existem vários pagamentos parcelares. Mas as dúvidas são ainda dissipáveis. Leia-se, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21.09.2017, Proc. 900/13.8TBSLV.E1.S1, de 18.01.2018, Proc. 1195/08.0TVLSB.E1.S1, e o já referido Acórdão de 3.07.2018, Proc 2445/16.5T8LRA-A.C1.S1[21], em que se afirma claramente que, no caso de parcelamento ou fraccionamento do pagamento da indemnização, deve, em princípio, atender-se ao último pagamento efectuado. Admite-se que a regra possa ser temperada nos casos em que seja possível a "autonomização da indemnização", para evitar que se prolongue injustificadamente o prazo para o exercício do direito. Mas esta autonomização é apenas admissível em relação a “danos normativamente diferenciados”, a “danos autónomos e consolidados”. Reproduzem-se aqui algumas passagens (esclarecedoras) do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.04.2011, Proc. 329/06.4TBAGN.C1.S1 [22]: “[n]ão sendo a letra da lei - ao reportar-se apenas ao 'cumprimento', como momento inicial do curso da prescrição – suficiente para resolver, em termos cabais, esta questão jurídica, será indispensável proceder a um balanceamento ou ponderação dos interesses envolvidos: assim, importa reconhecer que a opção pela tese que, de um ponto de vista parcelar e atomístico, autonomiza, para efeitos de prescrição, cada um dos pagamentos parcelares efectuados ao longo do tempo pela seguradora acaba por reportar o funcionamento da prescrição, não propriamente à 'obrigação de indemnizar', tal como está prevista e regulada na lei civil (arts. 562º e segs.) mas a cada recibo ou factura apresentada pela seguradora no âmbito da acção de regresso, conduzindo a um – dificilmente compreensível – desdobramento, pulverização e proliferação das acções de regresso, no caso de pagamentos parcelares faseados ao longo de períodos temporais significativamente alongados. Pelo contrário, a opção pela tese oposta – conduzindo a que apenas se inicie a prescrição do direito de regresso quando tudo estiver pago ao lesado - poderá consentir num excessivo retardamento no exercício da acção de regresso pela seguradora, manifestamente inconveniente para os interesses do demandado, que poderá ver-se obrigado a discutir as causas do acidente, de modo a apurar se o estado de alcoolemia verificado contribuiu ou não para o sinistro, muito tempo para além do prazo-regra dos 3 anos a que alude o nº1 do art. 498º do CC (…). a ideia base da unidade da 'obrigação de indemnizar' poderá ser temperada pela possível autonomização das indemnizações que correspondam ao ressarcimento de tipos de danos normativamente diferenciados, consoante esteja em causa, nomeadamente : - a indemnização de danos patrimoniais e não patrimoniais, sendo estes ressarcidos fundamentalmente através de um juízo de equidade, e não da aplicação da referida teoria da diferença; - a indemnização de danos que correspondam à lesão de bens ou direitos claramente diferenciados ou cindíveis de um ponto de vista normativo, desde logo os que correspondam à lesão da integridade física ou de bens da personalidade e os que decorram da lesão do direito de propriedade sobre coisas. E tal autonomização ou diferenciação, operada funcionalmente em razão da natureza dos bens lesados, poderá tornar razoável uma consequencial autonomização do início dos prazos de prescrição do direito de regresso : assim, por exemplo, não vemos razão bastante para que, - tendo a seguradora assumido inteiramente perante o lesado o ressarcimento de todos os danos decorrentes da destruição e privação do uso da viatura sinistrada – possa diferir o exercício do direito de regresso quanto a essa parcela autonomizável e integralmente satisfeita da indemnização apenas pela circunstância de, tendo o acidente provocado também lesões físicas determinantes de graves sequelas, ainda não inteiramente avaliadas e consolidadas, estar pendente o apuramento e a liquidação da indemnização pelos danos exclusivamente ligados à violação de bens da personalidade do lesado. Em suma: se não parece aceitável a autonomização do início de prazos prescricionais, aplicáveis ao direito de regresso da seguradora, em função de circunstâncias puramente aleatórias, ligadas apenas ao momento em que foi adiantada determinada verba pela seguradora, já poderá ser justificável tal autonomização quando ela tenha subjacente um critério funcional, ligado à natureza da indemnização e ao tipo de bens jurídicos lesados, com o consequente ónus de a seguradora exercitar o direito de regresso referentemente a cada núcleo indemnizatório autónomo e juridicamente diferenciado, de modo a não diferir excessivamente o contraditório com o demandado, relativamente à causalidade e dinâmica do acidente, em função da pendência do apuramento e liquidação de outros núcleos indemnizatórios, claramente cindíveis do primeiro”. Em face de todas estas considerações, impõe-se, a final, formular a pergunta: registar-se-á, in casu, a autonomia dos danos, que reclama a autonomização de alguns dos pagamentos efectuados pelo autor / recorrente para efeitos de diversa contagem do prazo de prescrição? Convocando a decisão da matéria de facto, verifica-se que os pagamentos respeitam todos, a “vencimentos, suplementos e demais subsídios” a que o agente policial sinistrado tinha direito, durante os períodos de incapacidade que sofreu (factos 7. e 8.). Parece, assim, não existir autonomia dos danos objecto de ressarcimento, devendo o prazo de prescrição previsto no artigo 498.º, n.º 2, do CC contar-se da data do último pagamento, que, atendendo aos factos provados (facto 8.), terá ocorrido em 23.11.2015). Sendo que o prazo de prescrição se interrompe pela citação (cfr. artigo 323.º. n.º 1, do CC) e que esta teve lugar, no caso em apreço, em 27.09.2016 (facto 10.), não resta senão concluir que, ao contrário do decidido no Acórdão recorrido, o autor / recorrente mantém o direito ao reembolso de todos os pagamentos efectuados ao agente policial lesado até 27.09.2013, num total quantificado de 80.850,34 euros. *
Pelo exposto, concede-se provimento à revista e revoga-se o Acórdão recorrido nos seguintes termos: decide-se julgar improcedente a excepção de prescrição invocada pela ré / recorrida na sua contestação e condena-se esta à obrigação de reembolsar o autor / recorrente da quantia de € 80.850,34 euros.
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Custas pela ré / recorrida.
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LISBOA, 2 de Abril de 2019
Catarina Serra (Relator)
Raimundo Queirós
Ricardo Costa
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