Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
048580
Nº Convencional: JSTJ00027953
Relator: AUGUSTO ALVES
Descritores: BURLA AGRAVADA
HABITUALIDADE
TOXICODEPENDENTE
CULPA
CIRCUNSTÂNCIAS
CONFISSÃO
ARREPENDIMENTO
Nº do Documento: SJ199602070485803
Data do Acordão: 02/07/1996
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N454 ANO1996 PAG356
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: DIR CRIM - CRIM C/PATRIMÓNIO.
Legislação Nacional: CP82 ARTIGO 72 ARTIGO 86 ARTIGO 88 ARTIGO 314 A.
Sumário : I - O crime de burla é especialmente agravado quando o arguido se dedique habitualmente à sua prática no sentido de fazer dessa actividade o seu modo de vida como meio de sustentar o vício de que se tornou dependente.
II - Podendo parecer que a toxicodependência reduz o grau da culpa pela desorganização psíquica que condiciona a função avaliadora dos fenómenos, agrava, por outro lado, tal elemento por se imporem, nessa circunstância, medidas contrárias às naturais consequências da maior propensão criminógena resultante daquele desvio de comportamento; por isso lhe cabe o regime aplicável aos alcoólicos e equiparados.
III - A confissão dos factos, o arrependimento, o haver feito desintoxicação e o bom comportamento prisional são circunstâncias posteriores atendíveis, mas não o serão especialmente por não se destinarem a reparar as consequências do crime.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção de Jurisdição Criminal do Supremo
Tribunal de Justiça:
I - Pelo Tribunal Colectivo do Seixal, sob acusação do
Ministério Público, foi julgado e condenado o arguido:
- A, a quem eram imputados 4 crimes previstos e punidos pelos artigos 31 n. 1 e 314 alínea a); 1 crime previsto e punido pelo artigo
305; 14 crimes previstos e punidos pelo artigo 235; 36 crimes previstos e punidos pelos artigos 313 e 314 alínea a); 12 crimes previstos e punidos pelo artigo
228 ns. 1 alínea a) e 2; 2 crimes tentados previstos e punidos pelos artigos 23, 313 n. 1 e 314 alínea a), todos do Código Penal de 1982, vindo a final a ser condenado por um crime de burla previsto e punido pelos artigos 313 e 314 alínea a) na pena de 15 meses de prisão; pelo crime continuado de burla previsto e punido pelos artigos 313, 314 alínea a) e 30, na pena de 4 anos de prisão; pelo crime de falsificação de documento autêntico na pena de 18 meses de prisão e 30 dias de multa à taxa diária de 300 escudos, com a alternativa de 20 dias de prisão; pela falsificação de documentos transmissíveis por endosso previsto e punido pelo artigo 228 n. 1 alíneas a) e c) e 2, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão e 60 dias de multa à taxa diária de 300 escudos, com a alternativa de 40 dias de prisão; pelo crime de apropriação ilícita de coisa achada previsto e punido pelo artigo 305 do Código
Penal, na pena de 4 meses de prisão;
E em cúmulo de tais penas foi condenado o arguido na pena única de 6 anos de prisão e 75 dias de multa à taxa diária de 300 escudos com a alternativa de 50 dias de prisão. Nesta pena declarou-se perdoado 1 ano de prisão.
II - Inconformado, o arguido A deduz recurso para este Supremo Tribunal e, nas alegações respectivas conclui:
1 - O douto acórdão recorrido não nos merece qualquer reparo excepto no que diz respeito à medida da pena concretamente aplicada.
2 - Esta é demasiado gravosa tendo em conta as circunstâncias em que os crimes foram cometidos, o modo de execução, dos mesmos, os antecedentes criminais e o comportamento posterior do arguido, quer em juízo quer na prisão.
3 - A causa do crime foi a toxicodependência.
4 - É entendimento corrente que a toxicodependência leva a que, pessoais normais sem qualquer tendência para a prática de crimes, passem a ter comportamentos desviantes e até criminosos.
5 - Todos são unânimes em considerar a toxicodependência uma doença, ela sim o verdadeiro problema social.
6 - Ora, no caso vertente, ficou provado que o arguido abandonou o consumo de drogas, assim como ficou provado que a dependência da droga foi a única causa do cometimento desses crimes.
7 - Ressalta da actuação do arguido que este não é pessoa perigosa ou violenta.
8 - Os montantes envolvidos na prática dos crimes são extremamente reduzidos e os prejuízos dos ofendidos são mínimos.
9 - O arguido foi anteriormente condenado mas por factos (por consumo de droga) em nada idênticos àqueles pelos quais agora foi condenado.
10 - Os factos pelos quais foi condenado foram praticados num curto espaço de tempo, não se podendo, por isso, considerar o arguido burlão profissional.
11 - Assim terá de entender-se que os factores dos crimes de burla por que foi condenado não integram a agravante do artigo 314 alínea a) do Código Penal;
12 - Por outro lado o arguido sempre confessou espontaneamente os factos e mostra-se sinceramente arrependido;
13 - O arguido voluntariamente fez tratamento de desintoxicação e tem bom comportamento prisional.
14 - A prisão e a sua manutenção por um longo período é a última "ratio" do sistema penal português.
15 - Os Meritíssimos Juizes do Tribunal Colectivo deviam ter tido em consideração todos estes factos e circunstâncias e, por isso, ter aplicado ao arguido uma pena de prisão nunca superior a 3 anos.
16 - Ao decidir como o fizeram os Meritíssimos Juizes violaram as disposições legais dos artigos 72 e 314 alínea a) do Código Penal.
III - Respondeu à motivação o Digno Magistrado do
Ministério Público, defendendo que é habitual, não só quem faz da prática de certo tipo de criminal o seu modo de vida, mas também, aquele que se habituou a praticar determinado tipo de condutas em que de certa forma se especializou; tendo ficado provado que consome produto estupefaciente há 8 anos não poderá invocar-se menor censurabilidade nos crimes de burla por ele cometidos; e o arrependimento não é relevante desde que não acompanhado de actos a reparar ou minimizar as consequências dos ilícitos.
IV - Subido os autos a este Supremo Tribunal foi dada vista dos mesmos ao Excelentíssimo Procurador Geral junto deste Supremo.
E foram colhidos os vistos legais.
Seguiu-se audiência pública.
Cumpre conhecer.
V - São os seguintes os factos provados:
Em Agosto de 1993, o arguido e B formularam um plano para ilicitamente obterem de comerciantes a entrega de dinheiro para gastarem em proveito próprio.
Na execução do plano muniram-se de um livro de actas, de dois livros de recibos, de um catálogo de troféus e de uma folha elaborada a computador epigrafada de
"... Futebol Clube" e onde exararam a seguinte mensagem: "Somos uma equipa de Futebol de Salão constituída por 10 jovens que quer participar em diversos torneios. Assim vimos por este meio pedir um patrocínio para a compra de equipamentos necessários.
Estamos também a pensar federar a equipa para entrar em torneios em Lisboa, bem como participar no campeonato regional. Queremos que nos ajudem monetariamente, agradecemos antecipadamente a vossa generosa contribuição para tal efeito. "Atenciosamente" seguindo-se uma rubrica.
Com os elementos supra referidos dirigiram-se a diversos estabelecimentos comerciais a cujos gerentes pediram dinheiro para ajudar na compra de equipamentos desportivos, mostrando o livro de actas, onde haviam colado diversos cartões de outros estabelecimentos e referindo hipotéticas contribuições já recebidas.
Após receberem os donativos entregaram aos ofendidos um recibo comprovativo das importâncias recebidas.
Tal estratagema foi determinante para obterem dos ofendidos a entrega das quantias que receberam e fizeram suas, pois levaram-nas a convencerem-se de que estavam a contribuir para fins desportivos.
Em execução do plano, utilizando os artigos referidos e actuando da forma descrita, em 15 de Agosto de 1993, o arguido e B dirigiram-se ao Centro Comercial da Amora e ali obtiveram dos encarregados das seguintes lojas as seguintes quantias: a)- Papelaria ..., propriedade de C, 2000 escudos; b) - ..., propriedade de D, 1000 escudos, entregues por E; c)- ..., propriedade de F, 500 escudos; d)- ..., propriedade de G, 5000 escudos;
Em finais de Janeiro de 1994, em Lisboa, o arguido encontrou na via pública o Bilhete de Identidade n...., pertencente a H e bem sabendo que o mesmo não lhe pertencia apropriou-se dele não diligenciando pela sua entrega ao legítimo proprietário, conduta voluntária e consciente que sabia não ser permitida.
Na posse do documento, o arguido retirou a fotografia do legítimo titular aposta no B.I. e no seu lugar colocou uma fotografia sua que tirou de um documento do mesmo tipo.
E passou a fazer-se acompanhar desse Bilhete de
Identidade assim fabricado, identificando-se como se fosse o dito H.
O arguido formulou então um plano idêntico ao anterior para ilicitamente obter de comerciantes a entrega de dinheiro para gastar em proveito próprio.
Para tal muniu-se de um livro de actas, de um livro de recibos e de uma folha azul de 25 linhas epigrafada de
"... Futebol Clube" e onde exarou a seguinte mensagem: Somos uma equipa constituída por 12 jovens de futebol de salão do qual queremos entrar em vários torneios assim como federar a equipa. Vimos por este meio pedir a vossa ajuda para a compra de equipamentos.
Agradecemos a vossa colaboração e generosidade.
Atenciosamente, seguindo-se a expressão dactilografada
... F. Clube: N/6801244162 e sobre ela uma rubrica.
Munido desses artigos, dirigiu-se a diversos estabelecimentos comerciais a cujos proprietários ou encarregados pediu dinheiro para ajudar na compra dos necessários equipamentos desportivos, mostrando o livro de actas onde havia colocado cartões de outros estabelecimentos referindo hipotéticas comparticipações já recebidas e fazia crer aos ofendidos que podiam obter outros benefícios das doações.
Após receber os donativos entregava aos ofendidos um recibo comprovativo da importância recebida.
Tal estratagema foi determinante para obter dos ofendidos a seguir mencionados a entrega das quantias que recebeu e fez suas, pois levou-os a convencerem-se de que estavam a contribuir para fins desportivos.
Afirmando preferir a entrega de dinheiro através de cheque o arguido obteve diversas doações através desse meio de pagamento.
Na posse desses títulos, em muitos deles, o arguido alterou o montante inscrito quer mudando algarismos quer alterando o extenso em correspondência e, utilizando o B.I. pertencente a H, identificando-se com ele, obteve o pagamento ou levantamento das importâncias aumentadas.
Quer ao substituir a fotografia do B.I. trocando-a pela sua, quer ao alterar o montante dos cheques, quer ao utilizar o B.I. falsificado para obter o pagamento das quantias inscritas, o arguido agiu contra a vontade e sem consentimento de cada respectivo titular bem sabendo que lhes causava prejuízo assim como ao Estado pela perda de confiança na fiabilidade dos documentos e querendo causá-lo como forma de obter o correspondente acréscimo patrimonial indevido e a impunidade.
Na execução do plano, utilizando o estratagema descrito suportado pelos documentos referidos e acrescido de forma referenciada obteve nos estabelecimentos que a seguir se descriminam as quantias infra mencionadas:
1. Em 14 de Fevereiro de 1994, no Estabelecimento Retrosaria ..., sito na rua ..., em Sesimbra, o cheque n.... sobre o Banco Fonsecas & Burnay no montante de 2000 escudos, montante por si alterado em 16 de Fevereiro de 1984 para 80000 escudos.
Com o cheque alerado e após assiná-lo no verso com H obteve o respectivo levantamento no balcão do Banco Fonsecas & Burnay de Almada.
2. Em 24 de Fevereiro de 1994, cerca das 16 horas e 30 minutos, no estabelecimento comercial de I, sito na Travessa ..., no Fogueteiro, o cheque n. ... sacado sobre o
Banco Comercial Português, no montante de 2000 escudos.
Na posse do cheque alterou a quantia inscrita para
12000 escudos.
Com o cheque assim preenchido dirigiu-se ao estabelecimento ..., sito nas Paivas, propriedade de J à frente do qual se encontrava a sua filha e adquiriu uns sapatos tipo ténis, no valor de 6500 escudos.
Efectuou o pagamento com o sobredito cheque identificando-se como H após exarar no verso do cheque uma assinatura como sendo deste, o número do B.I. e um número de telefone como se seu fora.
Esta alteração foi determinante para a realização do negócio e a entrada ainda de 5500 escudos em dinheiro pois convenceu a filha da ofendida de que o arguido era o legítimo titular do cheque que constitua um bom meio de pagamento.
Tinha o arguido consciência de que, assim, também prejudicava a dona da loja e quis fazê-lo.
3. No dia 20 de Fevereiro de 1994, no estabelecimento comercial de L, sito em Paivas, o cheque n...., sacado sobre o Banco Nacional Ultramarino, no montante de 1500 escudos em nome de H.
Na posse do cheque alterou a quantia para 80000 escudos.
Com o cheque assim preenchido apresentou-se ao balcão de Almada do B.N.U. onde obteve o levantamento da quantia inscrita após exarar no verso do cheque a assinatura de H.
4. Em 11 de Março de 1994, pelas 18 horas, no estabelecimento comercial denominado ..., sito na Avenida ..., na Cruz de Pau, pertencente a M a quantia de 3000 escudos.
5. Em 21 de Março de 1994, no estabelecimento ..., Electrodomésticos S.A., sito na rua ..., Laranjeiro, pertencente a N, o cheque n...., sacado sobre a Caixa Geral de Depósitos no montante de 1000 escudos, que não levantou.
6. Em 23 de Março de 1994, no estabelecimento de sapataria sito no Centro Comercial ..., em Fernão Ferro, propriedade de O, o cheque n...., sacado sobre o Banco Pinto & Souto Mayor, no montante de 1000 escudos.
Na posse do cheque alterou o montante para 100000 escudos.
Com o cheque assim preenchido dirigiu-se à Agência do
B.C.P. Nova Rede, nas Paivas, e abordando P identificou-se como sendo H e pediu-lhe que lhe assinasse o cheque e o apresentasse a pagamento, já que o cheque era traçado, ele arguido precisava do dinheiro e não possuía conta nesse Banco.
Para tanto endossou o cheque ao referido P exarando no verso do cheque uma assinatura como sendo H.
Logrou com tal conduta que o abordado P depositasse o cheque e recebesse de imediato os 100000 escudos que lhe entregou.
8. Em 2 de Abril de 1994, no estabelecimento comercial de Q, sito na rua ..., na Costa da Caparica, a quantia de 2000 escudos, em dinheiro.
9. Em 2 de Abril de 1994, no estabelecimento Cafetaria ... na, Avenida...., na Costa da Caparica, propriedade de R, a quantia de 1500 escudos em dinheiro.
10. Ainda em 2 de Abril de 1994, no mesmo Centro ..., na Costa da Caparica, propriedade de S a quantia de 1500 escudos.
11. Logo a seguir, 2 de Abril de 1994, no mesmo Centro Comercial e numa loja pertença de T, a quantia de 1000 escudos em dinheiro.
12. Finalmente ainda nesse dia 2 de Abril de 1994, cerca das 19 horas e 30 minutos, no estabelecimento de U, sito na Avenida ..., Costa da Caparica, a quantia de 2000 escudos em dinheiro.
13. Em 3 de Abril de 1994, no snack-bar ..., sito na Rua ..., Costa da Caparica, e pertença de V, o cheque n...., sacado sobre a Nova Rede, Banco Comercial Português, no montante de 2000 escudos.
Na posse do cheque alterou o montante inscrito para
100000 escudos.
Com o cheque assim preenchido dirigiu-se à agência do
B.C.P. Nova Rede, na rua ..., em Almada, e aí abordou H1.
Identificando-se como H, pediu-lhe que lhe assinasse o cheque e o apresentasse a pagamento já que o mesmo era traçado e ele não possuía conta nesse Banco que lhe permitisse depositá-lo, sendo que carecia do dinheiro de imediato.
Para permitir a apresentação a pagamento endossou o título a H1 exarando no verso uma assinatura como sendo a de H.
Logrou com tal conduta que H1 depositasse o cheque e recebesse de imediato os 100000 escudos que lhe entregou.
14. No dia 6 de Abril de 1994, no estabelecimento do X, o cheque n...., sacado sobre a Nova Rede, no montante de 1500 escudos.
Na posse desse cheque subscrito pelo ofendido, como representante legal da firma M.C.V.J. Ramos, Limitada, e pertencente a uma conta dessa firma, o arguido alterou a quantia nele inscrita para 130000 escudos.
Com o cheque assim preenchido dirigiu-se a uma agência bancária onde, após se identificar como H e exarar uma assinatura como se fosse deste, obteve o levantamento de 130000 escudos.
Prejudicou assim a firma M.C.V.J. Limitada, naquela quantia, prejuízo que se mantém.
15. Nesse mesmo dia 8 de Abril de 1994, na Ourivesaria ..., sita na rua dos ..., na Cova da Piedade, propriedade de Z, a quantia de 2000 escudos.
16. Nesse mesmo dia 8 de Abril de 1994, cerca das 12 horas, no estabelecimento comercial de AA, sito na rua ..., em Almada, o cheque n...., sacado sobre a Nova Rede, B.C.P., no montante de 2000 escudos.
O cheque foi emitido pelo ofendido a favor de H e o arguido alterou o montante nele inscrito para 100000 escudos.
Com o cheque assim preenchido dirigiu-se à agência da
Nova Rede em Corroios, onde, após se identificar como H através do B.I. supra referido exarou no verso do cheque uma assinatura como sendo a deste, o número do B.I. e data de validade; só não obteve o pagamento porque o funcionário bancário telefonou ao titular da conta que o elucidou da conduta do arguido, circunstância esta alheia à sua vontade.
17. Em 11 de Abril de 1994, na firma ..., sita na rua ..., em Almada, propriedade de BB, a quantia de 1500 escudos.
18. No mesmo dia 11 de Abril de 1994, cerca das 12 horas na Frutaria ..., sita na rua ..., em Almada, propriedade de CC, a quantia de 1500 escudos, em dinheiro.
19. Ainda em 11 de Abril de 1994, cerca das 16 horas, no estabelecimento comercial sito na Avenida ..., no Laranjeiro, a empregada DD entregou-lhe 2000 escudos em dinheiro;
20. Ainda em 11 de Abril de 1994, cerca das 17 horas, na Pastelaria ..., sita na Praça ..., em Almada, convenceu o empregado EE, propriedade de FF, a quantia de 2000 escudos.
21. No da 11 de Abril de 1994, cerca das 18 horas na Farmácia ..., sita na rua ..., em Almada, convenceu o empregado GG a entregar-lhe a quantia de 2000 escudos.
22. Sempre nesse dia 11 de Abril de 1994, no Instituto de ..., sito na rua ..., em Almada, propriedade de HH, a quantia de 1500 escudos.
23. Finalmente nesse dia 1 de Abril de 1994, cerca das
12 horas, no estabelecimento ..., sito na rua ..., em Corroios, propriedade de
II, o cheque n...., sacado sobre Banco Fonsecas Burnay, no montante de 2000 escudos.
Na posse do cheque alterou a quantia inscrita para
12000 escudos.
Com o cheque assim preenchido dirigiu-se à agência do referido Banco nas Paivas, onde, após se identificar como H, exarou uma assinatura como sendo a deste no verso, o número do B.I. que utilizava, obteve o levantamento da quantia de 12000 escudos.
24. Em 14 de Abril de 1994, cerca das 12 horas e 30 minutos, no estabelecimento comercial Centro Ortopédico ..., do Centro Comercial
..., na Cruz de Pau, propriedade de JJ, o cheque n...., sacado sobre o C.P. Português, no montante de 1500 escudos.
Tal cheque não chegou a ser levantado pelo arguido.
25. Nesse mesmo dia 14 de Abril de 1994, na ... do Centro Comercial ..., sito nos Foros de Amora, Cruz de Pau, propriedade de LL, o cheque n.... sacado sobre o Banco Pinto e Sotto Mayor, no montante de 500 escudos.
Na posse do cheque o arguido alterou o montante para
100000 escudos.
Com o cheque assim preenchido dirigiu-se à Agência do Pinto e Sotto Mayor no Fogueteiro, onde, após se identifica como H exarando no verso do cheque uma assinatura como sendo a deste, e indicando o número e a data de validade do B.I. que vinha utilizando, não obteve o pagamento porque o funcionário bancário suspeitou da quantia constante do cheque e telefonou ao titular, tendo face à informação obtida solicitado a intervenção policial, circunstância alheia à sua vontade.
26. Em 17 de Fevereiro de 1994, cerca das 18 horas, na residência de MM, sita na Avenida ..., em Vale de Milhaços, Corroios, o arguido fez crer a este ofendido que andava a efectuar um peditório para um torneio de futebol em Vale de Milhaços e assim convenceu-o a entregar-lhe o cheque n...., sacado sobre o Banco Fonsecas e Burnay, no montante de 2000 escudos.
Na posse do cheque o arguido alterou o seu montante para 30000 escudos.
Com o cheque assim preenchido dirigiu-se à agência do
Crédito Predial Português no Laranjeiro e exarando no verso do cheque um carimbo com os dizeres ...Futebol Clube N/C 801244362, Miratejo, 2800 Almada, logrou que a quantia de 30000 escudos lhe fosse entregue, em prejuízo do titular da conta.
O arguido agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, querendo e conseguindo enganar os ofendidos determinando-os a entregar-lhes valores e quantias a que sabia não ter direito, que gastou em proveito próprio com consciência de que lhes causava um prejuízo equivalente ao lucro por si obtido.
Conhecia o carácter proibido da sua conduta.
Vinha praticando estes factos e outros idênticos desde há cerca de 2 anos.
Fê-lo porque sendo tóxico-dependente de heroína e cocaína na forma injectada desde há cerca de 8 anos, não conseguia (obter) deter emprego certo nem podia suportar o custo diário do seu consumo.
O lucro assim obtido foi fundamentalmente utilizado na aquisição de substâncias psico-activas.
Há cerca de 2 anos trabalhou durante 6 meses como boletineiro nos C.T.T.'s.
Depois disso fez apenas biscates como montador reparador.
Vive com os pais, ele reformado da Lisnave, ela contínua.
Dispõe como habilitações literárias do 9. ano de escolaridade.
Após a prisão foi sujeito a tratamento e actualmente não consome.
Confessou integralmente e relevantemente a apurada conduta, colaborando activamente na descoberta da verdade e demonstrou sincero e sentido arrependimento.
Foi anteriormente condenado em 22 de Janeiro de 1993 por consumo de droga e 14000 escudos de multa.
VI - Dizendo que nenhum reparo lhe merece o acórdão a não ser quanto à medida da pena, o recorrente acaba por impugnar a qualificação jurídica dos factos ao defender que os factos não integram a agravação do artigo 314 alínea a) do Código Penal de 1982. Começaremos pois por analisar esta questão.
O arguido foi efectivamente condenado por 1 crime de burla e um crime continuado de burla, e qualquer deles com referência ao artigo 314 alínea a) do Código Penal.
Ora o dito artigo e alínea agravam especialmente a burla quando o agente se entrega habitualmente a esta.
Ao contrário do Código Penal que o precedeu, o Código
Penal de 1982 não definiu o conceito de habitualidade, que deixou assim de estar dependente da prática anterior de qualquer crime.
Foi a jurisprudência que na busca da delimitação do conceito foi aceitando como habitual aquele que faz da prática reiterada de certo tipo criminal o seu modo de vida.
Mais, porém. Esta prática reiterada deverá ser encarada numa perspectiva sociopsicológica, ou seja baseada no comportamento real do arguido, independentemente de essa conduta ter já sido ou não objecto de sucessivas condenações transitadas em julgado - Acórdão da Relação de Lisboa de 21 de Março de 1990 in B.M.J. 395/656.
Na sequência desta evolução o Código Penal vigente -
Decreto-Lei 48/95 de 15 de Março - afastou o conceito de habitualidade que o Código Penal de 1982 utilizava nos artigos 297 n. 2 alínea e) e 314 alínea a) e em substituição nos artigos 204 n. 1 alínea b) e 218 n. 2 alínea b) utiliza "Fazendo da prática de furtos modo de vida" "O agente fizer da burla modo de vida".
Isto considerado, há que concluir face aos factos provados que o arguido há cerca de 2 anos vinha praticando estes factos e outros idênticos. Não detinha emprego certo e apenas fazia biscates como montador reparador. E fazia-o para poder fazer face ao consumo de estupefacientes - heroína e cocaína - em que é viciado há cerca de 8 anos.
Impõe-se assim concluir que o arguido se dedicava habitualmente à prática do crime de burla, no sentido de que fazia dele modo de vida, ou seja meio de sustentar o vício de que se tornara dependente.
Assim, não assiste razão ao recorrente quando aduz que os factores por que foi condenado não integram a agravante do artigo 314 alínea a) do Código Penal de 1982.
VII - Afastada assim a possibilidade de qualificação diversa dos crimes de burla passemos a considerar as penas concretas no quadro da pena legal abstracta.
O recorrente aponta como violada a norma do artigo 72 do Código Penal e para tanto invoca para ser consideradas as circunstâncias de o arguido ser toxicodependente, a confissão dos factos e o arrependimento, o haver feito tratamento de desintoxicação, o ter bom comportamento prisional e a prisão por longo período ser a última "ratio" do sistema penal português.
A - Comecemos pela toxicodependência.
É facto que esta é geralmente equacionada como uma doença. E uma doença que arrasta certa desorganização psíquica susceptível de afectar o quadro de uma justa avaliação dos fenómenos e da vontade. Pareceria, assim, que a mesma poderia reduzir o grau de culpa.
O fenómeno tem no entanto de ser encarado também do lado da culpa na formação da personalidade, a exigir enormes cuidados na preparação para não cair em situações em que a desagregação da personalidade tem com consequência directa essa maior probabilidade de delinquir.
Daí que se a circunstância que um lado aponta para a redução da culpa por outro impõe que se olhe exactamente como agravação da mesma.
De resto é a própria lei a apontar essa agravação no artigo 88 do Código Penal de 1982 ao mandar aplicar aos toxicodependentes o regime do artigo 86 estipulado para os alcoólicos e equiparados a quem pune com uma pena relativamente indeterminada.
Conclui-se, em face disso, que a circunstância de o arguido ser toxicodependente não é de molde a influenciar decisivamente a moldura penal, nos moldes do artigo 72 do código Penal de 1982.
B - Já as circunstâncias da confissão dos factos, o arrependimento, o haver feito desintoxicação o bom comportamento prisional são circunstâncias posteriores atendíveis, mas sê-lo-ão especialmente quando a conduta seja destinada a reparar as consequências do crime - artigo 72 alínea e).
Não se divisa que qualquer das circunstâncias provadas se destinasse a reparar as consequências do crime. Mas
é certo que arguido confessou integral relevantemente os factos, que demonstrou sincero e sentido arrependimento. E que fez tratamento e actualmente não consome estupefacientes.
Ora no quadro do artigo 72 do Código Penal de 1982, é a culpa que fixa o máximo da pena, as exigências de prevenção geral que ditam o mínimo e a prevenção especial que aponta o "quantum" concreto que balizará a punição ética do arguido e a necessidade da sua reinserção social.
Assim, atenta a culpa, que é intensa por se tratar de dolo directo, a ilicitude que se mostra elevada atentos os montantes envolvidos, as condições pessoais do arguido, e a sua conduta anterior e posterior reputam-se de ajustadas as penas de 15 meses de prisão e 4 anos de prisão encontradas por cada um dos crimes de burla; mas igualmente ajustadas se revelam as penas encontradas para os crimes de falsificação de documento autêntico - 18 meses de prisão e 30 dias de multa a 300 escudos - falsificação de cheques - 2 anos e 6 meses de prisão - e apropriação ilícita de coisa achada - 4 meses de prisão.
Importa, todavia, confrontar estas penas com as que lhe seriam aplicáveis em face do Código Penal vigente.
Assim, o primeiro crime de burla seria punido face aos artigos 217 e 218 n. 2 alínea b) com a pena abstracta de 2 a 8 anos. Desde logo o mínimo da pena será maior do que a pena aplicada e assim mais grave a punição para o arguido nos termos da lei nova.
De igual modo deverá raciocinar-se quanto ao crime continuado de burla pois que a sua punição face aos artigos 217 e 218 n. 2 alínea b) era susceptível de vir a ser mais gravosa.
Ainda a falsificação do Bilhete de Identidade, como documento autêntico punida no quadro do artigo 228 ns.
1 alínea a) e 2 com uma pena de 1 a 4 anos e multa até
90 dias, seria punido no domínio do Código Penal vigente pelo artigo 256 ns. 1 e 3 com a pena abstracta de 6 meses a 5 anos de prisão ou multa de 60 a 600 dias.
Concretamente, face à culpa e ilicitude seria de aplicar a prisão e assim haveria de ser mais grave a pena, o que se revelaria mais gravoso para o recorrente.
O que acaba de dizer-se para tal falsificação seria inteiramente de aplicar à falsificação dos cheques, títulos de crédito transmissíveis por endosso.
Por último, a apropriação do Bilhete de Identidade encontrado foi punida no quadro da prisão até 1 ano ou multa até 90 dias - artigo 305 ns. 1 e 2 -; mas pelo
Código penal vigente a pena haveria de ser idêntica face ao artigo 209, por se entender que o crime há-de ser punido com prisão; mas se punível fosse com multa a punição haveria de ser mais grave.
Não são por isso aplicáveis as sanções do Código Penal vigente ao arguido.
Em consequência improcedem todas as conclusões do recorrente e não se mostram violadas as disposições legais apontadas.
Em face do exposto acordam em julgar improcedente o recurso e confirmar-se a decisão recorrida.
Pagará o recorrente 4 UCs e as custas fixando-se a procuradoria em 1/4.
Lisboa, 7 de Fevereiro de 1996.
Augusto Alves,
Andrade Saraiva,
Lopes Rocha,
Costa figueirinhas.
Decisão:
Acórdão de 28 de Dezembro de 1994 do 2. Juízo Criminal do Seixal.