Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
511/16.6PKLSB.L2.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: PIRES DA GRAÇA
Descritores: LEGÍTIMA DEFESA
IN DUBIO PRO REO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
Data do Acordão: 02/21/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – PROVA / MEIOS DE PROVA / PROVA TESTEMUNHAL – JULGAMENTO / AUDIÊNCIA / PRODUÇÃO DE PROVA – RECURSOS / RECURSOS ORDINÁRIOS / TRAMITAÇÃO.
DIREITO CONSTITUCIONAL – DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS PESSOAIS.
Doutrina:
-Beleza dos Santos, RLJ, 78, 26;
-Claus Roxin, Culpabilidad Y Prevencion en Derecho Penal, p. 4 a 113;
-Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, I, p. 27 ; Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 278, p. 211;
-Taipa de Carvalho, Direito Penal, Parte Geral, Publicações Universidade Católica, p. 87;
-Teresa Quintela de Brito, Direito Penal – Parte Especial: Lições, Estudo e Casos, p. 191;
-Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, Coimbra, 1990, p. 120 a 125 ; 2003, p. 124, 126 e 127 ; Homicídios em série, Coletânea Jornadas sobre a revisão do Código Penal, Lisboa, 1998, p. 126 a 135.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 132.º, N.º 2, 355.º, N.º 1, 410.º, N.º 2 E 412.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 32.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


ACÓRDÃO DO PLENÁRIO DA SECÇÃO CRIMINAL DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA N.º 7/95, DE 19 DE OUTUBRO DE 1995; DE 08-11-2006, PROCESSO N.º 3102/06; DE 26-11-1990, IN WWW.DGSI.PT; DE 26-06-2001, IN WWW.DGSI.PT; DE 22-01-2014, IN WWW.DGSI.PT; DE 07-07-2005, PROCESSO N.º 1670/05; DE 15-05-2008, PROCESSO N.º 3979/07; DE 27-05-2009, PROCESSO N.º 09P0484, IN WWW.DGSI.PT; DE 09-11-2000, PROCESSO Nº 2693/00-5ª; DE 23-11-2000, PROCESSO Nº 2766/00 - 5ª; DE 30-11-2000, PROCESSO Nº 2808/00 - 5ª; DE 28-06-2001, PROCESSOS NºS 1674/01-5ª, 1169/01-5ª E 1552/01-5ª; DE 30-08-2001, PROCESSO Nº 2806/01 - 5ª; DE 15-11-2001, PROCESSO Nº 2622/01 - 5ª; DE 06-12-2001, PROCESSO Nº 3340/01 - 5ª; DE 17-01-2002, PROCESSO 2132/01-5ª; DE 09-05-2002, PROCESSO Nº 628/02-5ª, CJSTJ 2002, TOMO 2, PÁG. 193; DE 16-05-2002, PROCESSO Nº 585/02 - 5ª; DE 23-05-2002, PROCESSO Nº 1205/02 - 5ª; DE 26-09-2002, PROCESSO Nº 2360/02 - 5ª; DE 14-11-2002, PROCESSO Nº 3316/02 - 5ª; DE 30-10-2003, CJSTJ 2003, TOMO 3, PÁG. 208; DE 11-12-2003, PROCESSO Nº 3399/03 - 5ª; DE 04-03-2004, PROCESSO Nº 456/04 - 5ª, IN CJSTJ 2004, TOMO1, PÁG. 220; DE 11-11-2004, PROCESSO Nº 3182/04 - 5ª; DE 23-06-2005, PROCESSO Nº 2047/05 -5ª; DE 12-07-2005, PROCESSO Nº 2521/05 - 5ª; DE 03-11-2005, PROCESSO Nº 2993/05 - 5ª; DE 07-12-2005 E DE 15-12-2005, CJSTJ 2005, TOMO 3, PÁGS. 229 E 235; DE 29-03-2006, CJSTJ 2006, TOMO 1, PÁG. 225; DE 15-11-2006, PROCESSO N.º 2555/06 - 3ª; DE 14-02-2007, PROCESSO N.º 249/07 - 3ª; DE 08-03-2007, PROCESSO N.º 4590/06 - 5ª; DE 12-04-2007, PROCESSO N.º 1228/07 - 5ª; DE 19-04-2007, PROCESSO N.º 445/07 - 5ª; DE 10-05-2007, PROCESSO N.º 1500/07 - 5ª; DE 04-07-2007, PROCESSO N.º 1775/07 - 3ª; DE 17-10-2007, PROCESSO N.º 3321/07 - 3ª; DE 10-01-2008, PROCESSO N.º 907/07 - 5ª; DE 16-01-2008, PROCESSO N.º 4571/07 - 3ª; DE 20-02-2008, PROCESSOS N.ºS 4639/07 - 3ª E 4832/07-3ª; DE 05-03-2008, PROCESSO N.º 437/08 - 3ª; DE 02-04-2008, PROCESSO N.º 4730/07 - 3ª; DE 03-04-2008, PROCESSO N.º 3228/07 - 5ª; DE 09-04-2008, PROCESSO N.º 1491/07 - 5ª E PROCESSO N.º 999/08-3ª; DE 17-04-2008, PROCESSOS N.ºS 677/08 E 1013/08, AMBOS DESTA SECÇÃO; DE 30-04-2008, PROCESSO N.º 4723/07 - 3ª; DE 21-05-2008, PROCESSOS N.ºS 414/08 E 1224/08, DA 5ª SECÇÃO; DE 29-05-2008, PROCESSO N.º 1001/08 - 5ª; DE 15-07-2008, PROCESSO N.º 818/08 - 5.ª; DE 03-09-2008 NO PROCESSO N.º 3982/07-3ª; DE 10-09-2008, PROCESSO N.º 2506/08 - 3ª; DE 08-10-2008, NOS PROCESSOS N.ºS 2878/08, 3068/08 E 3174/08, TODOS DA 3ª SECÇÃO; DE 15-10-2008, PROCESSO N.º 1964/08 - 3ª; DE 22-10-2008, PROCESSO N.º 215/08-3ª.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

- DE 10-12-2014, PROCESSO N.º 40/11.4JAA​VR.C2.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

- PROCESSO N.º 76/07.0TAVC.L1.

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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

- DE 02-10-2013;
- DE 11-12-2013.
Sumário :
I - A matéria de facto provada não legitima que a actuação da arguida fosse com animus defendendi, antes pelo contrário, o que resulta claro é que a arguida agiu voluntária, consciente e intencionalmente para matar o seu marido, como logrou concretizar, apesar de o mesmo não estar a praticar, nem constar que estivesse em vias de praticar, qualquer agressão que justificasse a acção da arguida.

II - Nem sequer é caso de convocar a dúvida, que é privativa de matéria de facto em termos de violação do princípio in dubio pro reo, pois que este, dizendo respeito à matéria de facto e sendo um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, só pode ser sindicado pelo STJ dentro dos seus limites de cognição, devendo, por isso, resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP.

III - Inexistindo dúvida razoável na formulação do juízo factual fica afastado o princípio in dubio pro reo, sendo que tal juízo factual não teve por fundamento uma imposição de inversão da prova, ou ónus da prova a cargo da arguida, mas resultou do exame e discussão livre das provas produzidas e examinadas em audiência, como impõe o art. 355.º, n.º 1, do CPP, subordinadas ao princípio do contraditório, conforme o art. 32.º, n.º 1, da CRP.

IV - Existe uma recondução directa da conduta delinquente a um dos exemplos padrão aludidos no n.º 2 do art. 132.º do CPP – o da al. b) – que pelas circunstâncias constantes da matéria de facto provada integrantes e definidoras da acção letal da arguida (num contexto de relacionamento conjugal perturbado, com significativos deficits de respeito, de cooperação, de assistência e afectivos) a definem como de especial censurabilidade, pelo que não há lugar à desqualificação do crime de homicídio qualificado.
Decisão Texto Integral:

                            Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


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Como consta do relatório do acórdão recorrido, proferido nos autos de recurso penal  511/16.6PKLSB.L2, pela 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

:

“AA, filha de ... e de ..., nascida a ... de 1973, natural da freguesia de ..., em ..., foi acusada, pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de 1 (um) crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos artigos 131 e 132, n.ºs 1 e 2, alíneas b) e h) do Código Penal e de 1 (um) crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do Código Penal. 

A arguida através de acórdão proferido no processo 511/16.6PKLSB, da comarca de Lisboa –Lisboa-Instância Central-1ª Secção Criminal-J5, foi alvo das seguintes condenações:

- a) condenar a arguida AA pela prática, como autora material, na forma consumada em concurso real, de 1 (um) crime de violência doméstica previsto e punido nos termos do disposto no artigo 152, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão;

b) condenar a arguida AA pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de 1 (um) crime de homicídio qualificado previsto e punido nos termos dos artigos 131 e 132, n.ºs 1 e 2, alínea b) do Código Penal, na pena de 14 (catorze) anos de prisão, absolvendo-a da qualificativa prevista na alínea h) do n.º 2 do artigo 132 do Código Penal, pela qual vinha acusada;

e) condenar a arguida AA em cúmulo jurídico na pena única de 14 (catorze) anos e 8 (oito) meses de prisão;

(…)

A arguida encontra-se na presente data sujeita à medida de coacção de OPHVE.

   Não se conformando com a sentença proferida, veio a arguida no pretérito, devidamente identificada nos autos interpor recurso daquela sentença a folhas 765 até 781, o qual foi devidamente apreciado por este Tribunal através de acórdão proferido em 9 de Março de 2017, através do qual se determinou julgar parcialmente provido o recurso interposto pela arguida, declarando-se nulo o acórdão recorrido, no tocante à operação da fundamentação da medida concreta das penas parcelares, bem como da fundamentação da pena única nos termos do disposto no artigo 379º nº 1 al.a) e c), com referência ao artigo 374º nº 2, ambos do CPP, determinando-se  a feitura de novo acórdão pelo mesmo Tribunal e relator que o elaborou, circunscrito à medida  concreta das penas parcelares, nos termos supra descritos naquele acórdão, bem como depois da operação da pena única através do cumulo jurídico, nos termos do artº 77º do CP, suprindo-se por conseguinte os vícios atrás referidos.

Foi proferido novo acórdão pelo Tribunal “ a quo”, no seguimento do ordenado, o qual se encontra devidamente exarado a folhas 478 até 1019.

Deste acórdão veio a arguida interpor recurso [..]”

E, julgando o recurso, veio aquela Relação decidir por acórdão de 27 de Outubro de 2017:

“1.Julgar não provido o recurso interposto pela arguida e ora recorrente, devidamente identificada nos autos, confirmando-se na integra o acórdão recorrido;

  2.Custas a cargo da arguida, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC ( artº 513º nº 1 do CPP)

3.Notifique-se, e também pessoalmente arguida e D.N.”:


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Inconformado, recorreu a arguida para este Supremo, apresentando a motivação de recurso, com as seguintes:

 

“CONCLUSÕES:
1. As decisões recorridas não respeitaram o comando do Tribunal da Relação de Lisboa, que ordenou a repetição da sua elaboração, desde logo porque, a bem da verdade, continuam a não ser consideradas factos que deviam ter sido, de acordo com o Acórdão a que o Tribunal a quo estava adstrito, depois porque, mais importante, dessas circunstâncias atenuantes deviam ter sido, com o devido respeito, retiradas conclusões que objectivassem uma redução de pena – que não foi considerada.

2. Nesses precisos termos, desde já se requer que na análise ao presente recurso, sejam tidas em conta essas questões, com as seguintes implicações:


3. Ou através de comando que ordene o Tribunal a quo a rectificar, de facto, a decisão proferida, considerando as circunstâncias atenuantes;


4. Ou através de Acórdão que revogue o acórdão proferido em primeira instância, confirmado na segunda, não se considerando, o que se admite sem conceder, por imperativo de pelo patrocínio, as questões que a seguir se colocarão, substituindo a pena aplicada por outra que considere a necessária atenuação, em conformidade com o exposto no primeiro Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa.


5. Dos autos não resultam provados os crimes em agenda. Bem pelo contrário, resulta provado que a arguida não cometeu o crime de violência doméstica e resulta evidenciado que a arguida terá actuado, no facto qualificado como homicídio, em legítima defesa.


6. Na verdade, há dois factos dados como provados que servem de baliza a todo o processo que aqui se traz e que, no fundo, não podem ser abandonados pelo jurisprudente – como foi feito, com todo o respeito, pelo tribunal a quo:


7. PONTO 4 da matéria provada – A arguida e o ofendido BB discutiam e batiam-se mutuamente, sendo na maior parte das vezes por razões de ciúme mútuo e por questões monetárias.


8. PONTO 16 da matéria provada – De regresso a casa, por volta das 06 horas do dia 23 de Março de 2016, e já no interior da residência começaram a discutir por questões relacionadas com falta de dinheiro e por ciúmes, discussão travada em tom de voz elevado e enquanto a arguida andava de um lado para o outro atrás do ofendido BB, este repetia várias vezes: “mas o que é que eu te fiz?


9. Como se apreende de uma leitura atenta da matéria de facto provada no presente, não ressalta nenhum evidente (nem, em abono da verdade, menos evidente) que demonstre a exigência qualitativa de resultado – vitima mais ou menos permanente.


10. A necessidade, a exigência, de um resultado para que se consuma o crime de violência doméstica, ao contrário da decisão recorrida, não só não se verifica no presente processo, como não se verificou na realidade dos factos – o que resultou da prova testemunhal.


11. Ao decidir como decidiu, nesta questão, o acórdão recorrido violou o artigo 152.º 1 alínea a) e n.º 2 do Código Penal, devendo, por isso, ser substituído por douto Acórdão que revogue a incriminação da arguida.


12. A arguida defendeu, desde a primeira hora, que actuou em legítima defesa, considerando dois factores: que sofria agressões permanentes e que, não menos importante, no dia e hora aqui em análise foi vítima de uma tentativa de homicídio, ou de agressão, por parte de seu marido, através da tal faca que trespassa este processo e que é por diversas vezes referida no acórdão recorrida e que, por isso, se defendeu.


13. Mas não podemos deixar de manifestar um desconforto – que é o mínimo que se pode dizer – perante um acórdão que condena uma mulher, Mãe extremosa de quatro filhos, que sofreu as agruras de uma vida complexa e violenta, sem que lhe seja dado o benefício da dúvida.


14. O benefício da dúvida deve prevalecer e essa especifica dúvida deve beneficiar a arguida.


15. Pelo que os factos, todos, que estão provados no presente, as fotografias do local, as declarações da arguida referidas no acórdão e todas as outras declarações, também referidas no acórdão recorrida, levam a que se considere a aplicação, ao presente, da legítima defesa, referida no artigo 32.º do Código Penal – máxime, o artigo 33.º do Código Penal, na modalidade de excesso de legítima defesa.


16. Assim ao decidir como decidiu, nesta questão, o acórdão recorrida violou os artigos 32.º, 33.º e o artigo 131.º e 132.º n.ºs 1 e 2, alínea b) do Código Penal, devendo, por isso, ser substituída por douto Acórdão que revogue a incriminação da arguida.


17. Atento todo o exposto, a vida da arguida, as suas condicionantes e, especialmente, as circunstâncias específicas em que o crime se terá perpetrado, não se verifica a qualificação do mesmo, caso não se considere a legítima defesa, o que se admite, sem conceder, por imperativo de pleno patrocínio.


18. Bem pelo contrário, o crime em agenda, caso se considere assim, terá sido praticado num momento de especial vulnerabilidade da arguida, que, movida pelo momento, pelas circunstâncias, terá actuado daquela maneira – e não de outra, por infortúnio.


19. Pelo que, sem mais considerandos, a decisão recorrida viola os  artigos 131.º e 132.º n.ºs 1 e 2, alínea b) do Código Penal, devendo, por isso, ser substituída por douto Acórdão que revogue a incriminação da arguida nos termos aplicados.


20. Na determinação da pena concreta a aplicar, deve o tribunal atender a todas as circunstâncias, que não fazendo parte do crime, depuseram a favor do arguida ou contra ela (art. 72.º, n.º 2 do C.P.).


21. Ao decidir como supra se expendeu, o tribunal a quo violou os arts. 70.º e 71.º do C.P.


22. O acórdão recorrido interpretou, assim, erradamente o disposto no art. 72.º do C.P. pois não valorou as circunstâncias concretas que militam a favor do arguida.


23. Todavia, um outro aspecto não pode deixar de merecer a atenção do recorrente: a falta de sensibilidade judicativa que, também em sede de determinação da pena, foi timbre do tribunal recorrido.


24. Na ponderação da pena a aplicar, deve o julgador atender a uma sanção que deva ser aplicada ao prevaricador – sendo certo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (cfr. art. 40.º, n.º 2 do CP” – por forma a prevenir que este venha a pautar a sua conduta extravasando o juridicamente permitido, devendo, por isso mesmo, servir a pena objectivos de ressocialização.)


25. Assim, ao atender apenas a necessidades de prevenção especial que, conforme resulta dos autos e do texto do próprio acórdão não existem, o tribunal a quo violou o disposto nos arts. 70.º e 71.º do C.P.


26. Nestes termos, o acórdão recorrido viola os artigos 32.º, 33.º, 70.º, 71.º, 72.º, 152.º 1 alínea a) e n.º 2, 131.º e 132.º n.ºs 1 e 2, alínea b) do Código Penal, devendo ser ser substituído por douto Acórdão que revogue a incriminação da arguida.

Termos em que, sem prescindir de douto suprimento, deve ser proferido douto e final Acórdão que revogue o acórdão em conformidade com o referido.

Como é de JUSTIÇA!


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            Respondeu  o Ministério Público, à motivação de recurso, onde alega :

            “Em conclusão:

1 - A lei mostra-se aplicada e a prova foi valorada em conformidade.

2 - O Acórdão não padece de falta de fundamentação, insuficiências, erro de apreciação ou qualquer nulidade/irregularidade.

3 - O Tribunal a quo deu cumprimento integral ao preceituado no artº 127º do CPP e não violou o disposto nos nºs. 2, dos art°s 410° e 374º.

4 - As penas impostas (parcelares e única), ponderada a personalidade do agente, situa-se dentro da gravidade do crime e da culpa, e foi graduada de harmonia com as necessidades punitivas (ressocialização e prevenção, conforme os artºs 40°, 70° e 71 ° do CP), considerada igualmente a reincidência (artºs 75° e 76° do Cód. Penal).

5 - O Acórdão recorrido não merece qualquer censura, pelo que deve ser mantido e confirmado nos seus precisos termos, negando-se provimento aos recursos.      

                E assim decidindo, V. Excelências farão

                                                                                                                             Justiça”


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            Neste Supremo, o Dig.mo Magistrado do Ministério Público emitiu douto Parecer, onde assinala:

            “II- Questão prévia: Delimitação do âmbito do recurso

2.1 - O acórdão da Relação, como já vimos, confirmou integralmente, e portanto também quanto a qualquer dos dois crimes objeto da condenação, o veredicto condenatório da 1.ª Instância.

O arguido foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. nos termos do disposto no art.º 152.º, n.º 1. Alínea a) e n.º 2 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão.

Dispõe o art.º 400.º, n.º 1, al. f) do C.P. Penal, que não é admissível recurso “de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos”. Daqui resulta que, havendo dupla conforme respeitante à pena aplicada pelo crime de violência doméstica, de dois anos e 2 meses de prisão, a natureza e medida desta pena está fora dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, não apenas no que respeita à medida da pena mas, como decorre , entre outros arestos do STJ, do Acórdão de 11-04-2012, proferido no Processo n.º 3989/07.5TDLSB.L1.S1, está  também o Supremo Tribunal impedido de exercer qualquer censura sobre a actividade decisória prévia que subjaz e conduziu à condenação.  Pelo que,  neste segmento, o recurso deverá ser rejeitado (art.º 420.º, n.º 1 al. b) C. P. Penal).

2.2 - Qualificação jurídico penal

De acordo com o disposto no art.º 434.º do C. P. Penal, “Sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 3  do art.º 410.º, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito”.

Ora o recorrente sustenta o recurso, no que respeita à qualificação jurídico-penal da sua conduta, numa leitura dos factos que ignora aquilo que foi definitivamente fixado pelas instâncias, pretendendo uma intervenção do Supremo Tribunal no que respeita à reponderação da matéria de facto, situação que está definitivamente consolidada e extravasa as suas competências. Em tais circunstâncias e porque objectivamente não existe qualquer fundamento para que o Supremo Tribunal se socorra dos poderes previstos nos n.ºs 2 e 3 do art.º 410.º do C. P. Penal, não pode o recurso, quanto a esta questão, deixar também de ser rejeitado, nos termos do disposto no art.º 420.º,n.º 1, al. a), do C. P. Penal..

2.3 – Há que concluir portanto que, não sendo já passíveis de reexame, no âmbito do presente recurso, qualquer dos identificados segmentos do decidido, e tendo em conta que, como decorre do disposto no n.º 3 do art. 414.º do CPP, a decisão que irrestritamente o admitiu não vincula o tribunal superior, segue-se que o recurso interposto tem de ficar confinado, apenas, à medida da pena aplicada pelo crime de homicídio qualificado e subsequente pena única aplicada, em cúmulo jurídico, devendo quanto ao mais ser liminarmente rejeitado, por inadmissibilidade legal, nos termos do disposto nos arts. 400.º, n.º 1, alínea f), 434.º e 420.º, n.º 1, alínea b), com referência ao art. 414.º, n.ºs 2 e 3 e 420.º,  todos do CPP.

III - Pena  pelo crime de homicídio e medida resultante do cúmulo.

3.1 - Conforme escreve o Prof. Figueiredo Dias, “As finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa” .               

Esta perspectiva vai de encontro ao disposto no art.º 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.

A exigência de previsão constitucional expressa  encontra abrigo, no que respeita a restrições ao direito à liberdade, no art.º 27.º, n.os 1 e 2 da Constituição, normas que tipificam as situações em que é constitucionalmente permitida a aludida restrição.

No respeito pelos parâmetros constitucionais estabelecidos pelas citadas normas, e da orientação doutrinal acima mencionada, consagra o art.º 40.º, n.º 1 do Código Penal, como finalidade das penas e medidas de segurança, a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, sendo que a pena, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, tem como limite inultrapassável a medida da culpa. Por sua vez, os art.º s 70.º e 71.º do C. Penal estabelecem as regras para determinação da escolha e da medida da pena.

O art.º 70.º faz prevalecer o princípio favor libertatis, sempre que a pena não privativa de liberdade, sendo aplicável em alternativa à pena privativa de liberdade, realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Por sua vez o art.º 71.º, indica no seu n.º 1º como orientação primária para a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, a culpa do agente e as exigências de prevenção. Prescrevendo no n.º 2  que na determinação concreta da pena o tribunal atenda a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, nomeadamente:

a)            O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

b)            A intensidade do dolo ou da negligência;

c)            Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

d)            As condições pessoais do agente e a sua situação económica;

e)            A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

f)            A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

3.2 - O crime de homicídio pelo qual a arguida foi condenada é punível, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 131.º e 132.º, n.º 2, alínea b) do Código Penal, com pena de 12 a 25 anos de prisão.

 Diz o art.º 24.º n.º 1 da CRP que a vida humana é inviolável  e em nome desse valor o n.º 2 do mesmo artigo estabelece que em caso algum haverá pena de morte. Isto significa que a vida humana é um bem jurídico de tal relevância que o próprio Estado se limita no seu exercício do jus puniendi, em nome da sua preservação, já quem nenhum outro bem jurídico se lhe sobrepõe. Mesmo aqueles que, designadamente no âmbito das teorias funcionalistas, contestam a teoria da protecção dos bens jurídicos como fundamento de legitimação material do direito de punir, jamais invocariam o homicídio como exemplo da conduta que pode ou não justificar tutela penal dado que este crime “…é o delito natural por excelência e é a «constante» mais constante do direito penal”  .

3.3 - Neste contexto, a pena imposta à arguida pelo crime de homicídio qualificado, 14 anos de prisão, resulta a nosso ver de uma criteriosa avaliação da sua conduta à luz dos parâmetros constitucionais e legais acima mencionados. Cremos aliás que a decisão foi relativamente benévola, o que se compreende tendo em conta as circunstâncias da prática dos factos, designadamente terem os mesmos ocorrido após uma digressão alcoólica da arguida e da vítima, que começou ao fim da tarde de 22 de março de 2016, no restaurante onde ambos foram jantar, se prolongou por diversos bares, e que apenas terminou já alta madrugada do dia seguinte, por volta das 06.00 horas, cerca de meia hora antes da consumação do crime.

 Avulta ainda referir o ambiente disfuncional em que o casal vivia, com discussões e agressões, geralmente motivadas por ciúmes ou por falta de dinheiro, já que nenhum deles exercia actividade remunerada, vivendo com o apoio da segurança social, de familiares e amigos.

Se todos estes factores concorrem para uma apreciação tendencialmente morigeradora da conduta da arguida, certo é por outro lado que, o tipo de instrumento utilizado e a zona do corpo em que a arguida atingiu o seu marido revelam um dolo acentuado, que não pode deixar de ser reflectido na pena aplicada.

 A pena imposta não é pois excessiva face à moldura legal, aos valores que estão em causa e à necessidade de sinalizar perante a comunidade a assertividade da justiça penal. Por outro lado não ultrapassa a medida da culpa e situa-se num patamar que propicia a efetiva ressocialização da arguida.

 

3.4 – Consideramos, finalmente, que também o cúmulo das penas não merece qualquer censura, sendo certo que a consideração para efeitos de cúmulo da pena imposta pelo crime de violência doméstica, teve um impacto diminuto na pena única.

IV – Conclusão

Entendemos pelo exposto que

a)           Deverá ser rejeitado o recurso nas questões respeitantes à reapreciação da matéria de facto e à pena aplicada pelo crime de violência doméstica, nos termos dos artigos arts. 400.º, n.º 1, alínea f), 434.º e 420.º, n.º 1, alínea b), com referência ao art. 414.º, n.ºs 2 e 3 e 420.º,  todos do CPP.

b)            É de negar provimento ao recurso na parte respeitante à pena imposta pelo crime de homicídio e subsequente cúmulo das penas parcelares, confirmando-se o veredicto condenatório proferido pelo Tribunal da Relação”


<>


            Cumpriu-se o disposto no artº 417º nº2, do CPP

<>


            Não tendo sido requerida audiência, seguiu o processo para conferência, pós os vistos legais


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            Consta do acórdão recorrido:

“A sentença sob censura tem o seguinte teor, nos segmentos que ora nos interessam:

(…)

ACÓRDÃO

 […]

III – Fundamentação de facto:

A matéria de facto provada é a seguinte:

1. A arguida AA e o ofendido BB, de 42 (quarenta e dois) anos de idade, contraíram casamento em 16 de Março de 2010, tendo fixado residência desde então, na Rua...

            2. Do agregado familiar faziam parte dois filhos de um casamento anterior da arguida,CC e DD, nascidos em ... de 1997 e ... de 2000, respectivamente,

e,

            3. fruto do seu casamento com o ofendido BB, os menores EE e FF, nascidos a 24 de Janeiro de 2011 e 23 de Agosto de 2012, respectivamente.      

          4. A arguida e o ofendido BB discutiam e batiam-se mutuamente, sendo na maior parte das vezes por razões de ciúme mútuo e por questões monetárias.

           5. Nenhum dos membros do casal exercia actividade laboral remunerada, vivendo de subsídios sociais – rendimento social de inserção (no valor de duzentos e dezasseis euros) e dos abonos dos filhos (no valor de duzentos e oito euros) –, de alguns donativos em dinheiro de familiares e de amigos, nomeadamente dos pais da arguida que pagavam a renda da casa (no valor de cento e quarenta e três euros mensais), lhes compravam alimentos e lhes davam dinheiro.

               6. Quer a arguida, quer o ofendido BB mantinham hábitos relacionados com o consumo excessivo e dependente de bebidas alcoólicas, sendo muitas das discussões potenciadas pelo efeito do álcool.

            7. Na sequência dessas discussões que levavam a cabo no interior da casa de morada de família e às vezes em espaço público, a arguida batia no corpo do ofendido BB, com chapadas na cara e empurrões.

            8. Nessas ocasiões, o ofendido BB ia para casa da sua mãe, GG onde chegava a permanecer uma semana e onde a arguida o ia buscar.

            9. No dia 19 de Março de 2016, cerca das 04 horas, a arguida dirigiu-se a casa da mãe do ofendido BB, onde este se encontrava a dormir há cerca de uma semana, para o levar de volta para a casa de morada de família.

            10. No período compreendido entre 01 e 23 de Março de 2016, em data não concretamente apurada, a arguida, na sequência de uma discussão mantida com o ofendido BB, no café do bairro onde viviam, e à frente de outras pessoas empurrou-o, causando-lhe dor e provocando-lhe um sentimento de vergonha.

            11. Ao actuar da forma descrita, a arguida sabia que estava a maltratar física e psicologicamente o seu marido e a violar os deveres de respeito e solidariedade que sabia lhe incumbirem, querendo agir daquela forma.

            12. A arguida agiu deliberada, livre e conscientemente, com o propósito concretizado de molestar o ofendido BB no seu corpo e na sua saúde, o que conseguiu.

            13. Bem sabia a arguida que as suas condutas eram proibidas e punidas por Lei penal.


*

            14. No dia 22 de Março de 2016, cerca das 18 horas e 30 minutos, a arguida e o ofendido BB saíram de casa para irem jantar num restaurante com uns amigos, tendo no decurso desse jantar ingerido bebidas alcoólicas e conversado sobre a situação profissional daquele, que se encontrava desempregado.

            15. Após o jantar foram ainda a vários bares onde ingeriram mais bebidas alcoólicas.

            16. De regresso a casa, por volta das 06 horas do dia 23 de Março de 2016, e já no interior da residência começaram a discutir por questões relacionadas com falta de dinheiro e por ciúmes, discussão travada em tom de voz elevado e enquanto a arguida andava de um lado para outro atrás do ofendido BB este repetia várias vezes: "mas o que é que eu te fiz?"

            17. Após, a arguida agarrou uma faca de cabo em madeira, com uma lâmina de 10,5 cm (dez vírgula cinco centímetros) que se encontrava na cozinha, sobre o lava-louça e empunhando-a, desferiu uma facada na base esquerda do pescoço do ofendido BB, na região supra clavicular esquerda, levando a que o mesmo começasse a desfalecer de imediato, devido à extensa hemorragia, situação que conduziu à sua morte.

           18. A actuação da arguida provocou no ofendido BB as lesões que se encontram descritas nos exames de hábito externo e interno do relatório de autópsia médico-legal de fls. 378 a 383:

- no pescoço, uma ferida corto-perfurante, transfixiva, ao nível da porção distal do esternocleidomastóideo esquerdo, subjacente à ferida corto-perfurante na região supraclavicular esquerda, fusiforme, oblíqua para baixo e para fora, medindo 1 cm (um centímetros) de comprimento, apresentando na porção lateral escoriação terminal que mede 1 cm (um centímetro) de comprimento orientada para baixo, com infiltração hemorrágica perifocal;

            - nos vasos e nervos, ferida corto-perfurante, transfixiva, ao nível da carótida e jugular esquerdas com infiltração hemorrágica perifocal;

            - na artéria aorta ferida corto-perfurante da aorta ao nível da crassa, com infiltração hemorrágica perifocal.

            19. As lesões traumáticas corto-contundentes a nível da pele, na região supraclavicular esquerda, do músculo esternocleidomastóideo esquerdo, da carótida e jugular esquerdas, da aorta torácica produzidas pela faca, instrumento corto-contundente, apresentam um trajecto daquele instrumento no corpo do ofendido BB orientado de cima para baixo, discretamente de trás para a frente e discretamente da esquerda para a direita.

            20. As lesões traumáticas cervicais e torácicas, provocadas pela faca examinada a fls. 8, 305 a 309, 322 e 323, instrumento de natureza corto-perfurante, foram a causa directa, necessária e adequada da morte violenta do ofendido BB, de etiologia médico-legal homicida.

            21. Ao agir da forma supra descrita, desferindo aquele golpe com a faca, a arguida agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, com o propósito de tirar a vida ao ofendido BB, seu marido, o que quis e conseguiu.

            22. Ao actuar da forma descrita a arguida pretendeu tirar a vida ao ofendido BB, seu marido, utilizando para o efeito meio idóneo à produção de tal resultado - utilização de uma faca - e quis atingi-lo no pescoço, zona do corpo que a arguida sabia que alojava vasos e artérias, órgãos vitais à vida, como a carótida, a jugular e a aorta e que ao atingi-lo com uma faca provocaria necessariamente a morte do ofendido BB, morte que representou, que quis e conseguiu.

23. Bem sabia que a sua conduta era proibida e punida pela Lei penal.
            24. Mais agiu a arguida, de forma livre, deliberada e conscientemente bem sabendo que ao longo do tempo de matrimónio com o ofendido BB manteve discussões com o mesmo, movida por ciúmes, batendo-lhe com frequência e provocando-lhe lesões físicas e dores, ao invés de salvaguardar o bem-estar familiar com o mesmo, o que quis, representou e conseguiu alcançar.
               25. Agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por Lei.


*

Mais resultou provado que:

           26. Do certificado do registo criminal da arguida AA consta:

a) a condenação no processo com o NUIPC 861/08.5PKLSB, proferida pela extinta 3ª Secção do 3º Juízo Criminal de Lisboa, datada de 11 de Junho de 2012, transitada em julgado em 04 de Setembro de 2012, na pena única de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à razão diária de € 5 (cinco euros), pela prática, em 02 de Agosto de 2008, de 1 (um) crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153, n.º 1 do Código Penal (pena parcelar de noventa dias) e de 1 (um) crime de injúria, previsto e punível pelo artigo 181, n.º 1 do Código Penal (pena parcelar de noventa dias).

b) a condenação no processo com o NUIPC 122/15.3S9LSB, proferida pelo J3 da Secção de Pequena Criminalidade, da Instância Local de Lisboa da Comarca de Lisboa, datada de 28 de Abril de 2015, transitada em julgado em 04 de Junho de 2015, na pena única de 60 (sessenta) dias de multa, à razão diária de € 5 (cinco euros), pela prática, em 12 de Abril de 2015, de 1 (um) crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03 de Janeiro, por referência aos artigos 121 a 123 do Código da Estrada (pena parcelar de quarenta dias) e de 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos artigo 292, n.º 1 e 69, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal (pena parcelar de quarenta dias) e na pena acessória de 3 (três) meses de proibição de conduzir veículos a motor.

Por despacho judicial de 26 de Janeiro de 2016, foi declarada extinta a pena acessória pelo cumprimento.

c) a condenação no processo com o NUIPC 136/15.3S9LSB, proferida pelo J5 da Secção de Pequena Criminalidade da Instância Local de Lisboa, da Comarca de Lisboa, datada de 14 de Abril de 2016, transitada em julgado em 04 de Maio de 2016, na pena de 100 (cem) dias de multa, à razão diária de € 5 (cinco euros), pela prática, em 24 de Abril de 2015, de 1 (um) crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3º do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03 de Janeiro, por referência aos artigos 121 a 123 do Código da Estrada.


*

                27. Do “Relatório de avaliação de risco de violência doméstica” elaborado em 20 de Junho de 2016, no âmbito dos presentes autos, em que foi avaliada a arguida resulta:

            “... é a filha mais nova da relação entre os seus progenitores e refere que terá nascido em Lisboa «sempre na mesma casa (…) onde eu nasci era onde eu vivia agora (…) na Penha de França.»

(…)

            Quanto ao seu progenitor menciona que terá sido bancário «o meu pai passava mais a vida a trabalhar do que em casa (…) sempre foi um homem do trabalho, nunca foi um pai que desse assim muito carinho» (sic). Relativamente à progenitora indica que terá sido costureira, descrevendo-a como sendo «meiguinha (…) uma santa (…) sou muito ligada à minha mão» (sic).

           Relativamente às dinâmicas familiares, refere que terá assistido a violência por parte do seu progenitor para com a sua progenitora «[quanto a discussões] algumas (…) [acerca de comportamentos violentos] às vezes (…) [questionada se seria violência física ou psicológica] as duas» (sic). Quanto à violência exercida para com os descendentes afirma «a minha mãe se me deu duas chapadas foi muito (…) o meu pai sempre foi muito nervoso (…) ralhava (…) não podia mexer um dedo» (sic). Questionada acerca das regras impostas no agregado familiar, durante a sua infância, refere «havia. Não podia ligar a televisão sem pedir (…) direitinha à mesa e levantava se pedia (…) não tinha permissão para sair (…) não via televisão» (sic).

            Ao descrever a situação atual, a avaliada afirma «tenho uma família de ouro, apesar de todos os momentos maus. Momentos que todas as famílias têm» (sic).

            Questionada se terá tido apoio financeiro de familiares, refere «pedia às vezes sim, à minha irmã (…) às vezes pagava outras vezes não» (sic). Atualmente o progenitor da avaliada estará a cobrir as despesas relativas ao seu defensor «monetariamente, tá a pagar-me o advogado» (sic).

            (…)

             Questionada acerca de problemas de saúde físicos, relata que terá problemas de visão, alegadamente, resultantes das agressões que terá sofrido por parte do seu ex-cônjuge «agora tinha muitos porque não tinha dinheiro para ir ao médico (…) queria ver a minha vista (…) eu nem ler consigo (…) não vejo nada deste lado [apontando para o olho esquerdo] (…) por tanta porrada que levei deste lado (…) ficava-me a doer a cabeça (…) devia lá 15 [quinze] euros no Centro de Saúde (…) como não tinha 15 [quinze] euros não fui» (sic). Adicionalmente menciona «tenho uma hérnia no hiato, no estômago (…) uma hérnia discal (…) nunca mais tomei a medicação (…) asma, arritmia (…) [em relação à medicação para o problema da asma] só a bomba porque os outros medicamentos não consigo comprar (…) [relativamente à arritmia] sentia o meu coração parar por 1 [um] segundo (…) tinha arritmia nervosa (…) receitou-me [o médico] na altura meio Xanax à noite (…) tinha uma consulta de cefaleias mas não cheguei a ir» (sic.)

            (…)

            Questionada acerca do consumo de álcool, refere «álcool bebia (…) no tempo da Seleção, o Sporting, jantares (…) nessa altura nem bebia muito (…) nunca tive um mau vinho (…) eu tava muito tempo sem beber (…) eu queria era cantar, dançar (…) sabia-me bem tar ali com os amigos (…) à sexta ou se alguém fazia anos durante a semana» (sic). Quanto a uma possível interferência dos consumos na sua vida, afirma «nenhuma (…) eu nunca perdi o Norte dos meus filhos» (sic).

            Quando ao consumo de drogas, afirma «nunca consumi drogas (…) sempre tive muito medo destas coisas» (sic).

            (…)

            A avaliada afirma que, ainda, terá frequentado o 8º ano de escolaridade, durante a noite, tendo simultaneamente iniciado o seu percurso profissional «fui trabalhar para uma gráfica ajudar a fazer os acabamentos (…) a minha irmã também trabalhava lá (…) depois estudava à noite, entrava às 19h e saía às 23h (…) ainda andei no 8º ano e depois desisti a meio» (sic). Quanto ao tempo que terá permanecido neste emprego, refere «ser esporádico (…) 1 [um] ano» (sic).

            Refere que terá frequentado um curso de cabeleireira, tendo trabalhado algum tempo nesta área «tinha carteira (…) trabalhei em cabeleireiros, mas como aprendiz» (sic). Menciona que, como cabeleireira, terá trabalhado no Terminal do Rossio «como ajudante de cabeleireira (…) andava a fazer de manhã [referindo-se ao curso] e ia trabalhar à tarde» (sic).

            (…)

            A avaliada afirma que não terá desenvolvido nenhuma actividade profissional, devido ao nascimento do primeiro filho, sendo que terá trabalhado num infantário, após o filho ter 4 (quatro) anos «depois fiquei grávida tive uma temporada sem trabalhar porque o meu marido não queria»

            (…) referindo que não terá exercido nenhuma atividade laboral, a partir dos 28 anos de idade.

            (…)

            ... refere que terá conhecido BB, em 2009, «conheci o BB lá no café ao pé de mim. Ainda ele consumia drogas (…) depois acho que se começou a tratar (…) sim conheci o ...quando ainda era casada (…) conheci na altura que ele tomava metadona, mas consumia ao mesmo tempo (…) na altura em que o conheci nem gostei dele, era barraqueiro, tinha sinais que consumia (…) percebi logo que havia qualquer coisa que não batia certo (…) eu era amiga da mulher dele. Começamos a gostar um do outro (…) ele saiu de casa e foi viver comigo (…) porque eu gostava dele, a gente dava-se bem um com o outro e foi uma coisa que aconteceu (…) mais-valia não ter feito mas pronto (…) quando a gente foi morar juntos ele já não consumia» (sic).

            Ao descrever o relacionamento que manteve com BB, relata «tínhamos tanta coisa em comum (…) brincávamos muito um com o outro (…) tínhamos o gosto pelas motas» (sic).

            (…)

           No que concerne à sintomatologia psicopatológica apresentada por AA, observa-se uma elevação nas dimensões de somatização, sensibilidade interpessoal e depressão, Esta sintomatologia manifesta ser particularmente intensa e perturbadora, sendo que a privação da liberdade poderá ter contribuído para o incremento da referida sintomatologia psicopatológica.

           Relativamente à personalidade de AA, apesar de não se verificar a presença de traços de personalidade psicopáticos, observam-se défices na dimensão do comportamento antissocial. Mais especificamente, a apresentação de um estilo de vida parasita, um défice no controlo comportamental, impulsividade, irresponsabilidade e versatilidade criminal.

            No que respeita a crenças acerca das práticas educativas, verifica-se que a avaliada tende a legitimar a punição física das crianças pela autoridade parental e, no contexto conjugal, pela atribuição a causas externas.

           A avaliada apresenta um nível moderado de risco de violência futura, sustentado através dos seguintes fatores de risco: Existência de violência contra conhecidos, conflitos extremos no relacionamento conjugal, história de desemprego frequente, problemas relacionados com o consumo de álcool, ter sido testemunha de violência familiar na infância, desajuste precoce, personalidade caracterizada pela impulsividade, falta de insight, presença de violência física perpetrada por AA contra BB, recente intensificação da violência, atitudes que atenuam e minimizam a história de violência conjugal, probabilidade moderada de fracasso de planos a longo prazo, probabilidade elevada de exposição a fatores stressores e pouca capacidade de gestão do stress. Quanto a outros fatores que potenciam o risco, destaca-se a presença dos filhos da avaliada no momento do crime.

            De acordo com a sintomatologia psicológica apresentada por AA, bem como, a alegada história de consumo de álcool por parte da arguida, considera-se pertinente uma avaliação clínica estruturada, bem como, um acompanhamento ao nível psicológico e/ou psiquiátrico. (…).”


*

            28. Do “Relatório social para determinação da sanção”, datado de 28 de Outubro de 2016, resulta:

            “O seu processo de desenvolvimento decorreu num quando familiar disfuncional, decorrente dos comportamentos agressivos (a nível psicológico e físico) do pai, figura rígida e autoritária.

            (…)

           A arguida realizou um percurso escolar irregular por motivos de saúde, tendo sido sujeita a quatro cirurgias plásticas devido a sequelas de um acidente de viação ocorrido na primeira infância. Neste contexto, após algumas reprovações, desistiu de estudar aos 16 anos, para trabalhar num cabeleireiro, tendo apenas concluído o 7º ano de escolaridade. Ainda frequentou durante dois anos um curso profissional que lhe conferiu a carteira de «ajudante praticante», no entanto, tal não contribuiu para que obtivesse progressão ao nível escolar. Com excepção de uma experiência laboral pontual num infantário, desde há cerca de 20 anos que a arguida se encontra inactiva profissionalmente.

            Aos 22 anos, após um conflito com o progenitor, decide sair de casa e casar com o pai dos seus dois filhos mais velhos, actualmente com 19 e 16 anos. Esta relação cedo se mostrou disfuncional, pautada por comportamentos agressivos severos por parte do companheiro.

            (…) mais tarde, iniciou uma relação conjugal com a vítima do presente processo, formalizada em casamento pouco tempo depois, e que resultou no nascimento dos dois filhos mais novos, actualmente com 5 e 4 anos.

            (…)

           À data dos factos, AA residia com a vítima e os quatro filhos numa habitação arrendada pelo progenitor, na zona de Lisboa. Encontrando-se ambos inactivos profissionalmente, a subsistência era garantida através de apoios sociais (RSI – Rendimento Social de Inserção – e prestações familiares dos filhos, no valor de cerca de € 300,00), que aliavam às pensões de alimentos dos filhos mais velhos da arguida (cerca de € 200,00) e ao apoio da família de origem daquela, que garantia as despesas relacionadas com a habitação.

           A arguida não exercia qualquer actividade estruturada, dividindo-se o seu quotidiano entre os cuidados prestados aos filhos e as sociabilidades na sua zona de residência. Segundo as fontes, o casal mantinha uma relação disfuncional, com frequentes episódios de violência doméstica, despoletados por sentimentos de ciúmes mútuos e dificuldades financeiras, potenciadas por consumos excessivos de álcool.

            A família era acompanhada pela CPCJ desde o episódio em que a arguida foi interceptada a conduzir sem habilitação legal e sob o efeito de álcool. De acordo com a Dra. ..., as problemáticas identificadas prendiam-se com a ausência de motivação e de hábitos de trabalho do casal, que isolavam os menores em casa, não promovendo a sua socialização ou integração num equipamento pré-escolar. Segundo a arguida, o companheiro padecia de uma problemática grave de consumos de álcool e estupefacientes, que tentavam esconder com receio de lhes serem retirados os filhos. Para além disso, revela que deixava os filhos em casa com os irmãos mais velhos, numa tentativa de os proteger dos meios criminógenos que frequentava.

           Na sequência da aplicação da medida de coacção de confinamento habitacional, a arguida, juntamente com os quatro filhos, foi acolhida pelos pais, que lhe têm prestado todo o suporte necessário à sua subsistência.

        Segundo o progenitor, a situação económica tem vindo a deteriorar-se, dado que os rendimentos das reformas do casal, que totalizam cerca de € 1000,00, se mostram insuficientes para as despesas do agregado, que ainda integra um sobrinho da arguida. Para equilibrar a situação, foi aplicada recentemente uma medida de apoio financeiro aos filhos menores da arguida, tendo passado o agregado a beneficiar de um subsídio de cerca de € 450,00.

            (…)

           A dinâmica familiar foi descrita como sendo tensa, decorrente do facto da progenitora padecer de doença oncológica, aliado ao do progenitor se manter uma figura austera e rígida, exercendo pressão psicológica e de controlo sobre todos os elementos do agregado. Ainda assim, a arguida mostra-se ambivalente relativamente à figura do pai, reconhecendo que ao longo do seu percurso de vida aquele se mostrou sempre disponível para a apoiar.”


*

            29. A arguida, instantes depois do referido em 17. dos factos provados, comunicou quer ao seu filho CC, quer às autoridades policiais que o ofendido havia cometido suicídio, versão esta que convenceu o seu filho a sustentar.

            30. A disponibilidade monetária referida em 5. dos factos provados era gerida pela arguida, pessoa a quem o ofendido pedia e subtraia dinheiro para fazer face aos custos das adições ao álcool e tabaco.

            31. O ofendido tinha 1,63 m (um metro e sessenta e três centímetros) de altura e a arguida tem 1,72 m (um metro e setenta e dois centímetros) de altura, com as compleições físicas retratadas nos autos.               


*

                Matéria de facto não provada:

1. O referido em 4. dos factos provados ocorria desde o início da convivência matrimonial.

                2. A arguida batia no corpo de BB, com apertões nos braços e nas costas.

            3. No mês de Fevereiro de 2016, em data não concretamente apurada, cerca das 04 horas, a arguida dirigiu-se a casa da mãe do ofendido.           

            4. Após terem começado a discutir, a arguida partiu o vidro da porta da casa e de seguida deu um murro ao ofendido BB atingindo-o num dos olhos, tendo-lhe causado um hematoma e dor.

            5. Aquando do referido em 10. dos factos provados, a arguida deu palmadas e apertões nos braços e nas costas do ofendido.

           6. O ofendido BB não recebeu tratamento nem assistência médica mas sofreu dores físicas.
7. Na cozinha, local para onde se dirigiram e onde continuaram a discutir, a arguida desferiu ao ofendido BB empurrões e chapadas na cara.       


<>

Cumpre apreciar e decidir:

            A arguida recorrente, coloca a questão prévia da insuficiência de factos necessários à decisão, traduzida em omissão de pronúncia pelas instâncias. como se depreende da motivação e da conclusão 1ª.

           

           Diz que dos autos “não resultam provados os crimes em agenda.”porque não cometeu o crime de violência doméstica e resulta evidenciado que a arguida terá actuado, no facto qualificado como homicídio , em legítima defesa.” (conclusões 5ª a 16)

            Embora peça que o acórdão recorrido deve “ser substituído por douto Acórdão que revogue a incriminação da arguida”, questiona a medida concreta da pena aplicada. (conclusões 20 e segs)

            Aliás, etiquetou a motivação no seguintes termos:

            “Questão Prévia”

                “Quanto ao Acórdão

a) Da Violência Doméstica

b) Da Legítima Defesa no Crime de Homicídio

c) Da Desqualificação Do Homicídio

d) Da Pesada Pena Aplicada.”

 

            Analisando:

           As questões ora trazidas ao Supremo já tinham sido equacionadas no recurso interposto para a Relação,

            Com efeito, do acórdão recorrido consta:

“De acordo com o disposto no artigo 412° do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro de 1995, o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no n.º 1 do artigo 379° do mesmo diploma legal.

     Por outro lado, e como é sobejamente conhecido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação (art. 412.º, n.º 1 do CPP).

O objecto do recurso interposto pela arguida o qual é delimitado pelo teor das suas conclusões, suscita o conhecimento das seguintes questões (só de direito, uma vez que não é impugnada a matéria de facto contida no Acórdão nos termos do artº 412º do CPP): 

1.A arguida não praticou o crime de violência doméstica, tendo sido violado o artº 152º nº 1 al. a) e nº 2 do C.P., sendo que o acórdão recorrido não deu cumprimento ao acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa;

2-A arguida não praticou o crime de homicídio qualificado devendo entender-se que levam a que se considere a aplicação, ao presente, da legítima defesa, referida no art. 32.º do C.P. - máxime, o art. 33.° do C.P., na modalidade de excesso de legítima defesa.

 Assim ao decidir como decidiu, nesta questão (crime de homicídio qualificado), o acórdão recorrido violou os arts. 32.°, 33.º, 131.° e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), do C.P., devendo, por isso, ser substituída por douto Acórdão que revogue a incriminação da arguida;

2A- E tudo supra em 1 e 2, face ao que se provou sob os nºs  4 e 16 dos factos provados;

3-O acórdão recorrido, ao não valorar concretamente as circunstâncias concretas que militam a favor da arguida, violou o disposto nos artigos, 40º, 70º, 71º e 72º do CP, pois atendeu apenas a necessidades de prevenção especial;

4-Ter sido excessiva a dosimetria da pena única aplicada pelo Tribunal recorrido que revelou falta de sensibilidade;”


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Sobre a invocada questão prévia,

Como se explicitou no acórdão recorrido

“Considerando-se obviamente, o recurso interposto pela arguida, é patente que não foi manifestamente impugnada a matéria de facto que foi dada como assente na sentença recorrida, pelo que a mesma se tem por definitivamente imutável e assente.

  Já acima se delimitou o âmbito do conhecimento do recurso interposto pela arguida perante este Tribunal, o qual se circunscreve ou delimita única e exclusivamente a questões de direito.”

O Supremo Tribunal de Justiça, afora os casos em que julga em 1ª instância, ou em recurso de decisões da Relação funcionando em 1ª instância, não conhece de matéria de facto, salvo o conhecimento oficioso de vícios nos termos do nº 2, do artº 410º do CPP, pois que como resulta do disposto no artº 434º do CPP.” Sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito.”

O nº 1 do artº 410º do CPP, refere: “Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida”, e o artº 434º do CPP diz, na verdade, que o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, sem prejuízo do disposto no artigo 410º nºs 2 e 3.

E o nº 2 do mesmo artigo dispõe:

Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada,

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.

Mas, como vem sendo entendido por este Supremo, não é da competência do Supremo Tribunal de Justiça conhecer dos vícios aludidos no artigo 410º nº 2 do CPP, como fundamento de recurso, quando invocados pelos recorrentes, uma vez que o conhecimento de tais vícios sendo do âmbito da matéria de facto, é da competência do tribunal da Relação. (artºs 427º e 428º nº 1 do CPP)

Aliás, sendo o Supremo Tribunal de Justiça um tribunal de revista, só conhece dos vícios aludidos no artigo 410º nº 2, de forma oficiosa, por sua própria iniciativa, quando tais vícios se perfilem, que não a requerimento dos sujeitos processuais. uma vez que o recurso interposto para o STJ visa exclusivamente o reexame da matéria de direito (artº 434º do CPP).

Mesmo nos recursos das decisões finais do tribunal colectivo, o Supremo só conhece dos vícios do art. 410º, nº 2, do CPP, por sua própria iniciativa, e nunca a pedido do recorrente, que, para o efeito, sempre terá de se dirigir à Relação.

Dai que o Supremo Tribunal de Justiça como tribunal de revista, apenas conheça de tais vícios oficiosamente, se os mesmos se perfilarem no texto da decisão recorrida ainda que em conjugação com as regras da experiência comum,

Esta é a solução que está em sintonia com a filosofia do processo penal emergente da reforma de 1998 que, significativamente, alterou a redacção da al. d) do citado art. 432., fazendo-lhe acrescer a expressão antes inexistente "visando exclusivamente o reexame da matéria de direito", filosofia que, bem vistas as coisas, visa limitar o acesso ao Supremo Tribunal, sob pena do sistema vigente comprometer irremediavelmente a dignidade deste como tribunal de revista que é.(v Acórdão deste Supremo Tribunal de 09-11-2006 Proc. n. 4056/06 - 5.ª Secção)

Com tal inovação, o legislador claramente pretendeu dar acolhimento a óbvias razões de operacionalidade judiciária, nomeadamente, restabelecendo mais equidade na distribuição de serviço entre os tribunais superiores e garantir o desejável duplo grau de jurisdição em matéria de facto.

Esta posição nada tem de contraditório, já que a invocação expressa dos vícios da matéria de facto, se bem que algumas das vezes possa implicar alguma intromissão nos domínios do conhecimento de direito, leva sempre ancorada a pretensão de reavaliação da matéria de facto, que a Relação tem, em princípio, condições de conhecer e colmatar, se for caso disso, sendo claros os benefícios em sede de economia e celeridade processuais que, em casos tais, se conseguem, se o recurso para ali for logo encaminhado.

Como referiu por ex. o Acórdão de 8-11-2006, deste Supremo Tribunal, proc.n. 3102/06- desta 3.ª Secção: Os vícios elencados no art. 410º, nº 2, do CPP, pertinem à matéria de facto; São anomalias decisórias ao nível da confecção da sentença, circunscritos à matéria de facto, apreensíveis pelo seu simples texto, sem recurso a quaisquer outros elementos a ela estranhos, impeditivos de bem se decidir tanto ao nível da matéria de facto como de direito. Também o apelo ao princípio in dubio pro reo respeita à matéria de facto.

Se o agente intenta ver reapreciada a matéria de facto, esta e a de direito, recorre para a Relação; se pretende ver reapreciada exclusivamente a matéria de direito recorre para 0 STJ, no condicionalismo restritivo vertido nos arts. 432º e 434º do CPP, pois que este tribunal, salvo nas circunstâncias exceptuadas na lei, não repondera a matéria de facto.

É ao tribunal da relação a quem cabe, em última instância, reexaminar e decidir a matéria de facto. - arts. 427º e 428º do CPP.

As Leis posteriores de reforma do CPP não alteraram, esse entendimento.

O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, é um conceito jurídico-processual, que ao subsumir-se ao disposto na alínea a) do nº 2 do artº 410º do CPP, apenas tem a ver com o texto da decisão recorrida, perspectivado na matéria de facto provada e não provada, no sentido de que a decisão em matéria de facto é insuficiente para a decisão de direito.

A contradição insanável de fundamentação ou entre esta e a decisão, revela-se em desarmonia intrínseca insanável, em termos de que a sua interligação se apresenta com resultados opostos sobre a mesma factualidade, não sendo possível, face ao texto da decisão recorrida, ainda que em conjugação com as regras da experiência comum, obter o facto seguro, sem dúvidas, saber qual a factualidade provada, perceptível, consistente, e conjugável harmonicamente entre si., apurada na versão transmitida,

           O erro notório na apreciação da prova, supõe, factualidade contrária à lógica e às regras da experiência comum, detectável por qualquer cidadão de formação cultural média que leia a decisão, como por ex. dizer-se que ocorrendo os factos sendo já noite, ainda havia sol.

A matéria de facto não foi alterada pela Relação,

Não se perfilam no texto do acórdão da Relação, conjugado com as regras da experiência comum, qualquer desses vícios.

Na verdade, não se perfila insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, porque a decisão em matéria de facto é bastante para a decisão de direito, constando da mesma os elementos integrantes da definição da ilicitude criminal e da responsabilidade criminal do arguido e, da determinação da medida da pena.

Inexiste contradição insanável de fundamentação ou entre a fundamentação e decisão, uma vez que a decisão recorrida se mostra intrinsecamente harmónica e consonante..

Inexiste erro notório na apreciação da prova, pois que não ressalta da decisão recorrida qualquer erro ou situação contrária à lógica e às regras da experiência comum, detectável por qualquer cidadão que compreenda a decisão ao lê-la.

A matéria de facto encontra-se pois definitivamente fixada e somente perante ela se define a aplicação do direito.


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Da decisão da Relação quanto ao crime de violência doméstica previsto e punido nos termos do disposto no artigo 152, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do Código Penal, pelo qual a arguida foi condenada na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça , uma vez que, de harmonia com o disposto no Artigo 400.º do CPP, sobre  “Decisões que não admitem recurso”:

1 - Não é admissível recurso:

[…]

e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos;”

            O que é corroborado pelo Artigo 432.ºdo mesmo diploma, que ao contemplar o “Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça”, dispõe:

1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

[…]

b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º;”

In casu apenas é admissível recurso para o Supremo Tribunal quanto ao crime de homicídio qualificado e quanto à pena única.


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Quanto ao crime de homicídio qualificado:

Da questão da  legítima defesa:

Alega a arguida que
A arguida defendeu, desde a primeira hora, que actuou em legítima defesa, considerando dois factores: que sofria agressões permanentes e que, não menos importante, no dia e hora aqui em análise foi vítima de uma tentativa de homicídio, ou de agressão, por parte de seu marido, através da tal faca que trespassa este processo e que é por diversas vezes referida no acórdão recorrida e que, por isso, se defendeu.
E que,os factos, todos, que estão provados no presente, as fotografias do local, as declarações da arguida referidas no acórdão e todas as outras declarações, também referidas no acórdão recorrida, levam a que se considere a aplicação, ao presente, da legítima defesa, referida no artigo 32.º do Código Penal – maxime, o artigo 33.º do Código Penal, na modalidade de excesso de legítima defesa
O benefício da dúvida deve prevalecer e essa especifica dúvida deve beneficiar a arguida.

Como se disse somente perante a matéria de facto provada se pode definir o direito aplicável,
O acórdão da Relação explicitou:
“Alega a arguida que não praticou o crime de homicídio qualificado, devendo entender-se, ou considerar-se a aplicação ao caso da legitima defesa referida no artº 32º do CP, ou o artº 33º do CP, na modalidade de excesso de legitima defesa, devendo assim revogar-se a incriminação da arguida e face ao que se provou nos números  4 e 16 dos factos provados.
Assim:
Sob o titulo II, o Capitulo III do Código Penal
Causas que excluem a ilicitude e a culpa,
Estabelecem os artº 32 e 33º do Código penal
Artº 32º
Legítima defesa
Constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro.
  Artigo 33.º
Excesso de legítima defesa
1 - Se houver excesso dos meios empregados em legítima defesa, o facto é ilícito mas a pena pode ser especialmente atenuada.
2 - O agente não é punido se o excesso resultar de perturbação, medo ou susto, não censuráveis.
Como já se salientou, a arguida não recorreu da matéria de facto nos termos do artº 412º do CPP, pelo que se tem a mesma por assente, inexistindo qualquer factor que levasse a que legalmente aquela devesse, e pudesse ser modificada.
Ora quanto ao crime de homicídio qualificado p.p. pelos artigos 131º, 132º nº 2 b) do CP, temos que resultaram provados os seguintes factos (no seu núcleo duro): 
             14. No dia 22 de Março de 2016, cerca das 18 horas e 30 minutos, a arguida e o ofendido BB saíram de casa para irem jantar num restaurante com uns amigos, tendo no decurso desse jantar ingerido bebidas alcoólicas e conversado sobre a situação profissional daquele, que se encontrava desempregado.
      15. Após o jantar foram ainda a vários bares onde ingeriram mais bebidas alcoólicas.
      16. De regresso a casa, por volta das 06 horas do dia 23 de Março de 2016, e já no interior da residência começaram a discutir por questões relacionadas com falta de dinheiro e por ciúmes, discussão travada em tom de voz elevado e enquanto a arguida andava de um lado para outro atrás do ofendido BB este repetia várias vezes: "mas o que é que eu te fiz?"
      17. Após, a arguida agarrou uma faca de cabo em madeira, com uma lâmina de 10,5 cm (dez vírgula cinco centímetros) que se encontrava na cozinha, sobre o lava-louça e empunhando-a, desferiu uma facada na base esquerda do pescoço do ofendido BB, na região supra clavicular esquerda, levando a que o mesmo começasse a desfalecer de imediato, devido à extensa hemorragia, situação que conduziu à sua morte.
      18. A actuação da arguida provocou no ofendido BB as lesões que se encontram descritas nos exames de hábito externo e interno do relatório de autópsia médico-legal de fls. 378 a 383:
- no pescoço, uma ferida corto-perfurante, transfixiva, ao nível da porção distal do esternocleidomastóideo esquerdo, subjacente à ferida corto-perfurante na região supraclavicular esquerda, fusiforme, oblíqua para baixo e para fora, medindo 1 cm (um centímetros) de comprimento, apresentando na porção lateral escoriação terminal que mede 1 cm (um centímetro) de comprimento orientada para baixo, com infiltração hemorrágica perifocal;
      - nos vasos e nervos, ferida corto-perfurante, transfixiva, ao nível da carótida e jugular esquerdas com infiltração hemorrágica perifocal;
      - na artéria aorta ferida corto-perfurante da aorta ao nível da crassa, com infiltração hemorrágica perifocal.
19. As lesões traumáticas corto-contundentes a nível da pele, na região supraclavicular esquerda, do músculo esternocleidomastóideo esquerdo, da carótida e jugular esquerdas, da aorta torácica produzidas pela faca, instrumento corto-contundente, apresentam um trajecto daquele instrumento no corpo do ofendido BB orientado de cima para baixo, discretamente de trás para a frente e discretamente da esquerda para a direita.
20. As lesões traumáticas cervicais e torácicas, provocadas pela faca examinada a fls. 8, 305 a 309, 322 e 323, instrumento de natureza corto-perfurante, foram a causa directa, necessária e adequada da morte violenta do ofendido BB, de etiologia médico-legal homicida.
21. Ao agir da forma supra descrita, desferindo aquele golpe com a faca, a arguida agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, com o propósito de tirar a vida ao ofendido BB, seu marido, o que quis e conseguiu.
22. Ao actuar da forma descrita a arguida pretendeu tirar a vida ao ofendido BB, seu marido, utilizando para o efeito meio idóneo à produção de tal resultado - utilização de uma faca - e quis atingi-lo no pescoço, zona do corpo que a arguida sabia que alojava vasos e artérias, órgãos vitais à vida, como a carótida, a jugular e a aorta e que ao atingi-lo com uma faca provocaria necessariamente a morte do ofendido BB, morte que representou, que quis e conseguiu.
23. Bem sabia que a sua conduta era proibida e punida pela Lei penal.
24. Mais agiu a arguida, de forma livre, deliberada e conscientemente bem sabendo que ao longo do tempo de matrimónio com o ofendido BB manteve discussões com o mesmo, movida por ciúmes, batendo-lhe com frequência e provocando-lhe lesões físicas e dores, ao invés de salvaguardar o bem-estar familiar com o mesmo, o que quis, representou e conseguiu alcançar.
      25. Agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por Lei.
 Ora e seguindo de perto o Ac. TRP de 11-12-2013 :
I. A exclusão da ilicitude da conduta por legítima defesa [art. 32º do C Penal] exige a presença de cinco requisitos objectivos e um elemento subjectivo, a saber, (i) a agressão de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, (ii) a actualidade da agressão, (iii) a ilicitude da agressão, (iv) a necessidade da defesa, (v) a necessidade do meio e (vi) o conhecimento da situação de legítima defesa - os três primeiros requisitos objectivos referem-se á situação em que o agente actua e os dois últimos á acção de defesa.
II. Haverá excesso de legítima defesa quando, pressuposta uma situação de legítima defesa, se utiliza um meio desnecessário para impedir ou repelir a agressão.
III. Tendo-se como definitivamente assente que «o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de molestar fisicamente o ofendido» fica desse modo excluído o intuito defensivo, demonstrando-se, ao invés, o agressivo, pelo que em tal caso, já não se pode falar em legítima defesa nem em legítima defesa putativa (que se traduz na errónea suposição de que se verificam, no caso concreto, os pressupostos da defesa: a existência de uma agressão actual e ilícita).
IV. A perturbação, medo ou susto, não censuráveis, referidos no º 2 do art. 33º do CPenal, respeitam ao excesso dos meios empregados em legítima defesa, isto é, aos requisitos da legítima defesa, melhor dizendo, da legitimidade da defesa: necessidade dos meios utilizados para repelir a agressão. Uma coisa é o erro sobre a existência de uma agressão actual e ilícita com base no qual o agente desencadeia a defesa (legítima defesa putativa) e outra distinta é a irracionalidade, imoderação ou falta de temperança nos meios empregues na defesa, resultante de um estado afectivo (perturbação ou medo) com que o agente actua.”
Também o AC do STJ de 26.11.1990, in www.dgsi.pt , é muito claro ao estatuir que:
I-São requisitos da legitima defesa: a) existência de uma agressão a quaisquer interesses, pessoais ou patrimoniais, do dependente ou de terceiro, que deve ser actual, no sentido de estar em desenvolvimento ou eminente, e ilícita, no sentido de o seu autor não ter o direito de o fazer; b) circunscrever-se a defesa ao uso dos meios necessários para fazer cessar a agressão; c) "Animus defendendi", ou seja, o intuito de defesa por parte do dependente.
II - A legitima defesa exclui a ilicitude do acto praticado, enquanto o acto praticado com excesso de legitima defesa se situa ao nível da culpa.
III - O excesso de legitima defesa pressupõe a verificação de todo o condicionalismo da legitima defesa, reportando-se ao excesso dos meios empregados que, sendo determinados por pertubação, medo ou susto não censuraveis, pode isentar o agente da pena por falta de culpa.
( vide também os Ac do STJ de  26.06.2001 e de 22.01.2014 ambos, in www.dgsi.pt )
Assim, e face ao que atrás se deixou expresso transparece com elevada nitidez que neste caso não se verificam nenhum dos requisitos objectivos e subjectivos,  necessários, para que ocorra ou pudesse ocorrer, e logo assim ser considerada ( neste particular a conduta da arguida vertida nos factos descritos supra), a legitima defesa ou o excesso dela, na actuação plasmada da arguida nos factos provados.
De facto, o excesso de legítima defesa pressupõe a existência prévia dos pressupostos da legítima defesa, embora excedendo o agente a respectiva conduta de defesa, pela sua desproporcionalidade ou inadequação de meios, na situação concreta, coisa que não se verifica manifestamente no caso dos autos.
Estes são muito claros e evidenciam, ao invés do pretendido pela recorrente, uma atitude manifestamente agressiva e violenta por parte desta, relativamente ao seu marido, tendo esta de forma deliberada retirado a vida deste, através do desferimento de uma única facada na zona do pescoço, sem que nada o fizesse prever e no seguimento de uma discussão ( uniteral), veja-se novamente o que se provou neste especial segmento para que dúvidas não subsistam e não havendo muito mais a acrescentar, por despiciendo;
“16-De regresso a casa, por volta das 06 horas do dia 23 de Março de 2016, e já no interior da residência começaram a discutir por questões relacionadas com falta de dinheiro e por ciúmes, discussão travada em tom de voz elevado e enquanto a arguida andava de um lado para outro atrás do ofendido BB este repetia várias vezes: "mas o que é que eu te fiz?"
17. Após, a arguida agarrou uma faca de cabo em madeira, com uma lâmina de 10,5 cm (dez vírgula cinco centímetros) que se encontrava na cozinha, sobre o lava-louça e empunhando-a, desferiu uma facada na base esquerda do pescoço do ofendido BB, na região supra clavicular esquerda, levando a que o mesmo começasse a desfalecer de imediato, devido à extensa hemorragia, situação que conduziu à sua morte.”
Assim se conclui que não estão, obviamente e “in casu “ presentes nenhum dos requisitos quer do artº 32º, quer do 33º do Código Penal, pelo que nunca se poderia concluir face à panóplia de factos provados, pela exclusão da ilicitude/ ou da culpa da conduta da arguida, fazendo apelo à legitima defesa ou ao excesso dela, por motivos óbvios e já supra descritos e que resultam claramente dos factos provados, resultando até ao invés que foi a conduta da arguida verdadeiramente a impulsionadora (note-se que era esta que na discussão andava de um lado para o outro atrás da vitima, repetindo esta (vitima) “ o que é que eu te fiz”, sendo que acto continuo a arguida pegando na faca descrita nos autos que se encontrava na cozinha da residência de ambos na altura, desferiu no seu marido uma facada na base esquerda do pescoço, levando que o mesmo desfalecesse de imediato face à extensa hemorragia, situação que conduziu à sua morte, querendo esta tirar a vida à vitima, o que conseguiu e estando assim preenchidos os elementos também subjectivos do crime de homicídio qualificado pelo qual a arguida foi condenada, p.p. pelo artigos 131º 132º nº2 al. b) do CP )“ in solo” da factualidade ocorrida e que levaram infelizmente à morte da vitima, às suas mãos e de forma muito violenta”

          Na verdade, a matéria de facto provada não legitima que a actuação da arguida fosse com animus defendendi, antes pelo contrário, o que resulta claro é que a arguida agiu voluntaria, consciente e intencionalmente para matar o seu marido, como logrou concretizar, apesar de o mesmo não estar a praticar, nem constar que estivesse em vias de praticar qualquer agressão que justificasse a acção da arguida,
            A matéria de facto apurada é bastante elucidativa e clara quando refere:
“[…] por volta das 06 horas do dia 23 de Março de 2016, e já no interior da residência começaram a discutir por questões relacionadas com falta de dinheiro e por ciúmes, discussão travada em tom de voz elevado e enquanto a arguida andava de um lado para outro atrás do ofendido BB este repetia várias vezes: "mas o que é que eu te fiz?"
17. Após, a arguida agarrou uma faca de cabo em madeira, com uma lâmina de 10,5 cm (dez vírgula cinco centímetros) que se encontrava na cozinha, sobre o lava-louça e empunhando-a, desferiu uma facada na base esquerda do pescoço do ofendido BB, na região supra clavicular esquerda, levando a que o mesmo começasse a desfalecer de imediato, devido à extensa hemorragia, situação que conduziu à sua morte.
18. A actuação da arguida provocou no ofendido BB as lesões que se encontram descritas nos exames de hábito externo e interno do relatório de autópsia médico-legal de fls. 378 a 383:
[…]
20. As lesões traumáticas cervicais e torácicas, provocadas pela faca examinada a fls. 8, 305 a 309, 322 e 323, instrumento de natureza corto-perfurante, foram a causa directa, necessária e adequada da morte violenta do ofendido BB, de etiologia médico-legal homicida.
21. Ao agir da forma supra descrita, desferindo aquele golpe com a faca, a arguida agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, com o propósito de tirar a vida ao ofendido BB, seu marido, o que quis e conseguiu.
22. Ao actuar da forma descrita a arguida pretendeu tirar a vida ao ofendido BB, seu marido, utilizando para o efeito meio idóneo à produção de tal resultado - utilização de uma faca - e quis atingi-lo no pescoço, zona do corpo que a arguida sabia que alojava vasos e artérias, órgãos vitais à vida, como a carótida, a jugular e a aorta e que ao atingi-lo com uma faca provocaria necessariamente a morte do ofendido BB, morte que representou, que quis e conseguiu.
23. Bem sabia que a sua conduta era proibida e punida pela Lei penal.
25. Agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por Lei.

Não há assim qualquer agressão actual e ilícita da vítima que justificasse a acção letal com a forma e fins concretizados pela arguida, nem elementos fácticos no sentido de que a arguida actuou em legítima defesa.

Para concluirmos, assim, que da matéria provada não resultam elementos que suportem os requisitos legalmente previstos quer no art.° 32°, quer no artº 33º do C. P. para a aplicação do instituto da legítima defesa próprio ou de terceiro, nem elementos fácticos conducentes a excesso de legítima defesa ou à legítima defesa putativa.

Nem sequer  é caso de convocar a dúvida, que é privativa de matéria de facto em termos de violação do princípio in dubio pro reo, pois que este, dizendo respeito à matéria de facto e sendo um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, só pode ser sindicado pelo STJ dentro dos seus limites de cognição, devendo, por isso, resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, ou seja, quando seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção.

Inexistindo dúvida razoável na formulação do juízo factual fica afastado o princípio do in dubio pro reo, sendo que tal juízo factual não teve por fundamento uma imposição de inversão da prova, ou ónus da prova a cargo da arguida, mas resultou do exame e discussão livre das provas produzidas e examinadas em audiência, como impõe o artigo 355º nº 1 do CPP, subordinadas ao princípio do contraditório, conforme artº 32º nº 1 da Constituição da República.


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               Sobre a pretendida desqualificação do crime de homicídio:

            Alega a recorrente que a vida da arguida, as suas condicionantes e, especialmente, as circunstâncias específicas em que o crime se terá perpetrado, não se verifica a qualificação do mesmo, caso não se considere a legítima defesa, o que admite, sem conceder, por imperativo de pleno patrocínio.

            Analisando:

O tipo legal fundamental dos crimes contra a vida encontra-se descrito no art. 131.º do CP, sendo desse preceito que a lei parte para, nos artigos seguintes, prever as formas agravada e privilegiada, fazendo acrescer ao tipo-base, circunstâncias que qualificam o crime, por revelarem especial censurabilidade ou perversidade ou que o privilegiam por constituírem manifestação de uma diminuição da exigibilidade.

O crime de homicídio qualificado verifica-se: “Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade,(…)” artº 132º nº 1 do C.Penal

As circunstâncias referidas no nº 2 do mesmo preceito, são meramente indicativas e, não taxativas, são circunstâncias de referência exemplificativa, mas não de abrangência exclusiva.

O nº 2 apenas determina que:

“É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância do agente (…)”, seguindo-se a indicação de circunstâncias descritas nas respectivas alíneas do preceito. (sublinhado nosso)

A especial censurabilidade ou perversidade, sendo conceitos indeterminados, são representadas por circunstâncias que denunciam uma culpa agravada e são descritas como exemplos-padrão. A ocorrência destes exemplos não determina, todavia, por si só e automaticamente, a qualificação do crime; assim como a sua não verificação não impede que outros elementos possam ser julgados como qualificadores da culpa, desde que sejam substancialmente análogos aos legalmente descritos. (Ac. do STJ de  07-07-2005, Proc. n.º 1670/05 - 5.ª).

No art. 132.º do CP o legislador utilizou a chamada técnica dos exemplos-padrão, estando em causa, pelo menos para parte muito significativa da doutrina, no seu n.º 2, circunstâncias atinentes à culpa do agente e não à ilicitude, as quais podem traduzir uma especial censurabilidade ou perversidade do agente – Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, I, pág. 27 e Teresa Quintela de Brito, Direito Penal – Parte Especial: Lições, Estudo e Casos, pág. 191.

Assim sendo, é possível ocorrerem outras circunstâncias, para além das mencionadas, se bem que valorativamente equivalentes, as quais revelem a falada especial censurabilidade ou perversidade; e, por outro lado, apesar da descrição dos factos provados apontar para o preenchimento de uma ou mais alíneas do n.º 2 do art. 132.º, não é só por isso que o crime de homicídio cometido, deverá ter-se logo por qualificado.

A partir da verificação de circunstâncias que o legislador elegeu, com “efeito de indício” (expressão de Teresa Serra, Homicídio Qualificado. Tipo de Culpa e Medida da Pena, pág. 126), interessará ver se não concorrerão outros factos que, funcionando como “contraprova”, eliminem a especial censurabilidade ou perversidade do acontecido, globalmente considerado. Ac. do STJ de 15-05-2008, Proc. n.º 3979/07 - 5.ª Secção)

O cerne do referido ilícito está, assim, na caracterização da acção letal do agente como de especial censurabilidade ou perversidade face às circunstâncias em que, e como, agiu, ou dito de outro modo, está nas circunstâncias reveladoras de especial censurabilidade ou perversidade que integraram a acção letal do agente.

Como conclui Teresa Serra, in Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, Coimbra, 2003, p. 124:

“3.O critério generalizador do artigo 132º integra um tipo de culpa fundamental que permite caracterizar de forma autónoma a atitude especialmente censurável ou perversa do agente.

4. Só no âmbito de um conceito material de culpa susceptível de graduação, tendo como objecto de referência próprio o maior ou menor desvalor da atitude do agente actualizada no facto, a função de tipos de culpa agravadores da moldura penal pode ser inteiramente compreendida.”

O legislador apesar de optar pela técnica dos exemplos padrão, consubstanciados no artigo 132º funda-se porém “na combinação de um critério generalizador, constituído por uma cláusula geral de agravação penal, com uma enumeração exemplificativa de circunstâncias agravantes de funcionamento não automático”

Mesmo na construção do Leitbild dos exemplos padrão, é a partir de cada uma das concretas circunstâncias agravantes exemplificadas que se retira não apenas o seu especial grau de gravidade, mas também a sua própria estrutura valorativa. (idem, ibidem, p. 126 e 127)

O Tribunal Constitucional (TC), por seu acórdão de 10 de Dezembro de 2014, proferido nos autos  nº 40/11.4JAA​VR.C2-deste Supremo, 3ª, Secção, veio  “Julgar inconstitucional a norma retirada do n.° l do artigo 132.° do Código Penal, na relação deste com o n.° 2 do mesmo preceito, quando interpretada no sentido de nela se poder ancorar a construção da figura do homicídio qualificado, sem que seja possível subsumir a conduta do agente a qualquer das alíneas do n.° 2 ou ao critério de agravação a ela subjacente, por violação dos princípios constitucionais da legalidade e da tipicidade penais, garantidos pelo artigo 29.°, n.°1, da Constituição da República Portuguesa;”

Refere esse acórdão do TC:

            “18. Para construir o homicídio qualificado o legislador recorreu à técnica chamada dos exemplos-padrão. Nas palavras de Teresa Serra (Homicídio Qualificado: Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, Coimbra, 1990, pp. 120-125), «esta técnica estrutura-se sobre uma cláusula geral (prevista no n.° l do artigo 132.°), concretizada através de uma enumeração casuística exemplifícativa de circunstâncias agravantes de funcionamento não automático (elencados no n.° 2 do mesmo preceito)».

Adiantamos também que, apesar de toda a polémica em torno deste tipo penal, é unânime - ou pelo menos, não se registam divergências doutrinárias sensíveis -, que o procedimento traduzido em fazer um apelo directo à cláusula da especial censurabilidade ou perversidade, prescindindo por completo da intervenção (ou mediação) dos exemplos-padrão, violaria o princípio da legalidade penai.

Para a generalidade da doutrina a compatibilidade do preceito com as exigências do princípio da legalidade reside na particular conexão que se estabelece - se tem de estabelecer entre a cláusula geral do n.° l e os exemplos-padrão do n.° 2. É essa imbricação que vai assegurar o respeito pelas exigências que decorrem daquele princípio.

Isto porque, entregue a si própria, a cláusula geral, inscrita no n.° l, ao deitar mão aos conceitos de especial censurabilidade ou perversidade, necessariamente generalizadores e indeterminados, atrairia sobre si a suspeita de ofensa daquele princípio. É que a legalidade penal não pode ser uma legalidade integrada por conceitos cujo grau de generalidade ou de vacuidade requer, como condição indispensável de aplicação, uma escolha valorativa do juiz dentro de parâmetros tão vastos que lhe conferem uma amplíssima margem de ponderação e decisão.

               Pelo seu lado, os exemplos-padrão também não podem operar isoladamente, consagrada que está a proibição da analogia em direito penal.

19. A especial relação que se estabelece entre a cláusula geral do n.° l e os exemplospadrão do n.° 2 traduz-se no seguinte e delicado mecanismo, que se procura dilucidar:

a) A mera verificação de um exemplo-padrão não é, por si só, suficiente para fazer operar a qualificação; e

b) Até pode não ser necessária;

c) A verificação da especial censurabilidade ou perversidade da conduta do agente, pelo seu lado, será sempre necessária;

d) Mas não é nunca suficiente.

A fórmula «não só nem sempre», adotada por Silva Dias, é, parece, aquela que melhor espelha esta dinâmica subtil (op. cit., pp. 24).

Segundo a maioria da doutrina (Teresa Serra, Figueiredo Dias, Costa Andrade, Silva Dias), o preenchimento de um exemplo-padrão dos incluídos no n.° 2 do artigo 132° desencadeará apenas um efeito indiciário, que pode vir a ser confirmado através de uma ponderação global das circunstâncias do facto e da atitude do agente nelas expressa; ou, inversamente, neutralizado e infirmado.

Partindo desta compreensão do tipo do artigo 132.° do CP, a questão que se coloca é a de saber se e em que medida - dentro de que «balizas de legitimidade constitucional» (na expressão de Costa Andrade, constante de parecer anexo aos autos, a fls. 25) - é possível punir pelo crime de homicídio qualificado constelações fácticas que estão para além do teor expresso das normas que prescrevem os singulares exemplos-padrão.

20. A doutrina tem vindo a aceitar que ainda é compatível com o princípio da legalidade a punibilidade naqueles casos em que a situação concreta revela um conteúdo de desvalor ou uma estrutura axiológica idêntica ou similar a algum dos exemplos-padrão ali consagrados. É consensual que a qualificação terá sempre que passar pela filtragem ou mediação através do exame de correspondência axiológica concreta com algum dos exemplos-padrão elencados no n,° 2.

                […]

                22. O Tribunal Constitucional já teve oportunidade, por mais de uma vez, de se pronunciar sobre o sentido e alcance do princípio da tipicidade dos crimes. Vejam-se, a título de exemplos significativos:

                […]

               24. A análise estrutural do artigo 132.° do CP suscitou naturais dúvidas quanto à sua compatibilidade com o princípio da tipicidade. Isso mesmo foi assumido no decurso dos trabalhos de revisão do Código. Aí se pode ler (Reforma do Código Penal Trabalhos Preparatórios, Volume I, Lisboa, 1995, p.145.):

               «A técnica dos exemplos-padrão, que a jurisprudência vem considerando compatível com o princípio da legalidade, sempre provocou resistências em vários sectores da doutrina.»

Ora, se a técnica dos exemplos-padrão, em si mesma, é, ou foi, controversa, compreende-se muito bem que a generalidade da doutrina, referida noutro ponto, sustente uma aplicação muito prudente do artigo 132.°, no sentido de exigir para verificação do homicídio qualificado atípico, um juízo de especial perversidade e censurabilidade concretizado numa estrutura valorativa semelhante a uma das alíneas do n.° 2 do artigo 132.°.

É elucidativa, a este propósito, a análise que Teresa Serra, faz, alínea a alínea, em busca de exemplos de extensão aplicativa da estrutura valorativa de cada exemplo-padrão (cfr. «Homicídios em série», incluído na coletânea Jornadas sobre a revisão do Código Penal, Lisboa, 1998, pp. 126 a 135):

Na verdade, as noções de especial perversidade e censurabilidade, desapoiadas de qualquer elemento concretizador extraído de uma das alíneas do n.° 2 do artigo 132.°, ficam à mercê das pré-compreensões do legislador, construídas com base nas suas convicções, morais, sociais, culturais, filosóficas, religiosas, etc,, introduzindo um fator de incerteza intolerável na lei penal.

[…]”

            Ora in casu há uma recondução directa da conduta delinquente a um dos exemplos-padrão aludidos no nº 2 do artº 132º do CPP- o da alínea b), que pelas circunstancias constantes da matéria de facto provada integrantes e definidoras da  acção letal da arguida,  - que se torna redundante  reproduzir - a definem como de especial censurabilidade.

            Não há lugar assim, à desqualificação do crime de homicídio qualificado


<>


            Sobre a medida concreta da pena:

            Escreveu-se, além do mais, no acórdão da Relação:

“O artigo 71º nº 3 do CPP, determina que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.

 -            O acórdão recorrido, na tese da arguida não obedece à fundamentação necessária imposta por lei, porque em suma não indicou as circunstâncias atenuantes devidas na ponderação das penas  em concreto, conforme foi determinado pelo anterior Ac do TRL, não as enumerando sequer.

Ora repete-se, dispõe o art.71º do CP, que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (nº1); na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente: o grau de licitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente (nº2, al.a)); a intensidade do dolo ou da negligência (nº2, al.b)); os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram (nº2, al.c)); as condições pessoais do agente e a sua situação económica (nº2, ald)); a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime (nº2, al.e)); a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena (nº2, al.f)); na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena (nº3).

Esta operação implica, pois, uma apreciação conjunta de todas estas circunstâncias, sendo também relevante a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização), que naturalmente tenham resultado provadas, através da sua cristalização em factos concretos,  e relativamente às quais o Tribunal do julgamento deverá rastrear,  no sentido por ele entendido, com vista à determinação da medida concreta da pena.

E a forma como esta operação é efectuada deve transparecer claramente no acórdão sem qualquer mácula, atendendo ao dever de fundamentação de todas as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente, dever que decorre do disposto nos artigos 205º, nº1 da CRP e 97º, nº5, do CPP, sendo que relativamente à sentença estabelece a lei um especial dever de fundamentação, pormenorizado no art.374º, nº2, do CPP, e cuja omissão acarreta a nulidade da sentença, passível de arguição e de conhecimento oficioso em sede de recurso, nos termos do art.379º, nºs 1, al. a) e 2 do CPP, devendo os fundamentos da medida concreta da pena ser expressamente referidos na sentença nos termos do nº 3 do art.71º do CP, como já supra referido.

Ora, era tal operação que estava omissa no  primeiro acórdão proferido pelo Tribunal “ a quo”, mas que agora, e como facilmente se pode constatar da sua leitura, não acontece de todo.

Senão vejamos:

Da escolha e determinação da medida das penas

O crime de violência doméstica previsto pelo artigo 152, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do Código Penal é punido com pena de prisão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos.

O crime de homicídio qualificado previsto pelos artigos 131 e 132, n.ºs 1 e 2, alínea b), ambos do Código Penal é punido com pena de 12 (doze) a 25 (vinte e cinco) anos.  

Os critérios constantes dos artigos 40, 70 e 71, todos do Código Penal consagram o entendimento de que toda a pena tem como suporte axiológico normativo uma culpa concreta e que o julgador se encontra limitado pelo respeito da dignidade da pessoa humana, pelas exigências de prevenção geral e especial.

Os factores concretos a ter em conta na determinação da medida da pena são, de acordo com a sistematização do n.º 2 do artigo 71 do Código Penal, fundamentalmente, os que estão relacionados com a execução do facto (alíneas a), b), e c)), os relativos à personalidade do agente (alíneas d) e f)) e, por último, os factores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto.

In casu, ter-se-á em atenção:

Quanto ao crime de violência doméstica:

[…]


*

Quanto ao crime de homicídio qualificado:

A. a ilicitude do facto que é mediana a elevada, considerando:

A1. a unidade da conduta – único golpe;

A2. os circunstancialismo gerador de mal-estar entre a arguida e o ofendido, a surpresa, imprevisibilidade da agressão que encontra o ofendido indefeso, sem reacção e capacidade de recuperação;

A3. o nível de agressividade;

A4. a pessoa da vítima e o contexto habitacional;

Apenas alguns destes factores pesam em desfavor da arguida, designadamente o referido em A2., porquanto a habitação é considerado um local de segurança, associado à surpresa do ataque; em A3. e A4., considerando o modo de execução e a relação com a pessoa da vítima.

A unicidade do golpe pondera-se favoravelmente, porquanto não existiu uma sucessão de agressões físicas com o referido objecto corto-perfurante.

B. a forte intensidade do dolo – na modalidade de dolo directo – cfr. n.º 1 do artigo 14 do Código Penal;

Este factor surge na sua forma mais grave e, por isso, igualmente assinalado em desfavor da arguida.

C. o comportamento anterior da arguida, com diversas condenações penais, por uma pluralidade de crimes de diferentes naturezas; e

D. as condições sócio-económicas da arguida, reproduzindo-se aqui tudo quanto acima de afirmou em relação a estes dois factores a respeito do crime de violência doméstica.

Aqui dá-se por reproduzido o que atrás se mencionou a propósito da prevenção geral, da concretização dos dias de prisão, da incipiente integração social e ausência de integração laboral, no que respeita às necessidades de prevenção especial, importa criar na pessoa da arguida a consciência que estes factos jamais deverão voltar a ocorrer.

                Nestes termos e ponderando, em conjunto, os critérios enunciados, entende-se adequado condenar a arguida numa pena concreta, como justa e adequada, de 14 (catorze) anos de prisão, pela prática de um crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos artigos 131 e 132, n.ºs 1 e n.º 2, alínea b), do Código Penal.


*

Do cúmulo jurídico:

Procedendo ao cúmulo jurídico das penas de prisão aplicadas à arguida:

O n.º 1 do artigo 30 do Código Penal ao dispor, sob a epígrafe: “Concurso de crimes”, que:

                “O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.”

trata da pluralidade de infracções e não da sua punição.

                Do ponto de vista da sua punição, o concurso de crimes pode conduzir ao concurso de penas (que dá lugar a uma pena única, resultante de um cúmulo de penas parcelares) ou à sucessão de penas (em que as diversas penas permanecem autónomas).

                De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 77 do Código Penal:

                “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.”

Pelo exposto, temos de concluir estar perante um concurso efectivo de infracções, porquanto a arguida cometeu 2 (dois) crimes.

Assim, para que a arguida seja condenada em pena única, terá de estabelecer-se a pena do concurso, que, segundo a norma legal referida, terá como limite superior a soma das penas concretamente aplicadas, e como limite mínimo a mais elevada das penas aplicadas.

Deste modo, a pena de prisão terá o seu limite inferior em 14 (catorze) anos e o seu limite superior em 16 (dezasseis) anos e 2 (dois) meses.

Resulta da referida norma legal que o sistema da pena única, através do cúmulo jurídico, impõe a reapreciação dos factos e da personalidade da arguida em conjunto.

Ora, ponderada a gravidade dos factos – praticados num contexto de relacionamento conjugal perturbado, com significativos deficits de respeito, de cooperação, de assistência e afectivos –, em que a morte surge como o culminar, um último acto da relação absolutamente desgastada, entende-se que se mostra adequada à culpa e às exigências de prevenção geral e especial de socialização da arguida, a pena única de 14 (catorze) anos e 8 (oito) meses de prisão.

Tal operação que estava omissa no acórdão precedente proferido pelo Tribunal “ a quo”, bem como quanto à ponderação de circunstâncias relativas à pena única, encontram-se agora perfeitamente balizadas, sendo certo que, e não tendo sido impugnada a matéria de facto nele contida, aquele tribunal considerou os factos que entendeu relevantes, classificando-os, para a ponderação da medida concreta para cada um dos dois crimes cometidos pela arguida, bem como para a ponderação da pena única encontrada.

A alegação de que existe algum “ deficit” quanto às circunstâncias atenuantes, não pode ser visto do prisma apontado pela recorrente. O tribunal “ a quo”  no seu livre arbítrio e cumprindo as normas legais entendeu não serem estas tão relevantes, quanto esta o desejaria, mas não deixou de as deixar exaradas no acórdão como acima se pode ler,  mas, tal não obsta que a dosimetria das penas tenha sido operada de acordo com todos os tramites legais.

Assim a fundamentação dos actos “(…) permite a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando por isso como meio de autodisciplina” – cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pág.294, pelo que neste particular desiderato as circunstâncias acima apontadas encontram-se devidamente perceptíveis e discriminadas, transparecendo claramente no acórdão recorrido.

Improcede assim este segmento do recurso.

Da dosimetria das penas

Invoca a recorrente que as penas deverão ser reduzidas, tendo o Tribunal “ a quo” revelado uma falta de sensibilidade judicativa.

Ora não nos parece que tal tenha sucedido no caso em apreço, senão vejamos.

A arguida e ora recorrente foi condenada nos seguintes termos.

a) condenar a arguida AA pela prática, como autora material, na forma consumada em concurso real, de 1 (um) crime de violência doméstica previsto e punido nos termos do disposto no artigo 152, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão;

b) condenar a arguida AA pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de 1 (um) crime de homicídio qualificado previsto e punido nos termos dos artigos 131 e 132, n.ºs 1 e 2, alínea b) do Código Penal, na pena de 14 (catorze) anos de prisão, absolvendo-a da qualificativa prevista na alínea h) do n.º 2 do artigo 132 do Código Penal, pela qual vinha acusada;

e) condenar a arguida AA em cúmulo jurídico na pena única de 14 (catorze) anos e 8 (oito) meses de prisão;

Ora, como explica Taipa de Carvalho, “Direito Penal, Parte Geral”, Publicações Universidade Católica, 87, na determinação da medida e espécie da pena o “critério da prevenção especial não é absoluto, mas antes duplamente condicionado e limitado: pela culpa e pela prevenção geral.

Condicionado pela culpa, no sentido de que nunca o limite máximo da pena pode ser superior à medida da culpa, por maiores que sejam as exigências preventivo-especiais (…). Condicionado pela prevenção geral, no sentido de que nunca o limite mínimo da pena (ou a escolha de uma pena não detentiva) pode ser inferior à medida da pena tida por indispensável para garantir a manutenção da confiança da comunidade na ordem dos valores juridíco-penais violados e a correspondente paz jurídico-social, bem como para produzir nos potenciais infractores uma dissuasão mínima.

Em síntese: a prevenção geral constitui o limite mínimo da pena determinada pelo critério da prevenção especial.

Tudo visto é esse limite mínimo que, no caso em apreço, não nos parece ter sido ultrapassado de modo algum no acórdão recorrido.

De facto basta verificar que naquele constam todos os elementos e devidamente ponderados de acordo com as regras legais em vigor do concreto doseamento das penas parcelares que efectivamente foram aplicadas à arguida, sendo que esta se insurge efectivamente com o quantitativo encontrado pelo Tribunal “ a quo”, pretendendo, retira-se à evidência, ver ser-lhe diminuídas as penas e depois o cumulo jurídico que lhe foi feito.

Ora quanto à medida da pena, e como ensinava Beleza dos Santos, «a tranquilidade pública só deverá considerar-se convenientemente restabelecida quando a pena for um justo castigo, um adequado meio de intimidação e um conveniente processo de regeneração do delinquente» (R.LJ., 78, 26).

De acordo com o direito vigente, o Tribunal deve partir da teoria da união, a qual exige se chegue a uma relação equilibrada dos diferentes fins de pena. A pena deve determinar-se de modo a que garanta a função retributiva, esta equacionada com o ilícito em si e a culpabilidade, sem pressuposto, limite último, e seja possível, pelo menos, o cumprimento também da revisão ressocializadora, da própria pena com respeito ao próprio arguido, a exemplo, deste modo, o fim da prevenção especial.

Além disso, a defesa do Ordenamento Jurídico exige, por último, que a pena se determine de tal modo, que possa alcançar um efeito sócio-pedagógico na comunidade, que sirva ela de exemplo, de contra motivo à prática de idênticos ilícitos pelos demais indivíduos. Foi para fazer ou atingir a possível concordância dos fins das penas no caso concreto, que se desenvolveu na Jurisprudência a teoria da margem da liberdade, teoria segundo a qual a pena adequada à culpabilidade não é uma medida exacta.

A pena concreta é fixada entre um limite mínimo (já adequado à culpa) e um limite máximo (ainda adequado à culpa) determinada em função da culpa, intervindo os outros fins das penas - prevenção geral e prevenção especial - dentro daqueles limites (cfr. Claus Roxin, in Culpabilidad Y Prevencion en Derecho Penal, pág. 4-113).

Assim, a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, no caso concreto (art. 71º, n.º 1, do C. P.), atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele (n.º 2), designadamente: o grau de ilicitude do facto, o modo de execução e a gravidade das suas consequências; a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; a conduta anterior e posterior ao facto; a falta de preparação para manter conduta lícita, manifestada no facto, como atrás já se salientou.

A medida da pena não é pura matemática, antes uma operação complexa desenrolada em três fases:

- escolhem-se os fins das penas, pois só a partir deles se podem ajuizar os factos do caso concreto relevantes para a determinação da pena e a valoração que lhes deve ser dada (o n.º 1 indica a culpa do agente em primeiro lugar, mas no mesmo nível situa as exigências de prevenção), lembrando que agora dispõe o art. 40. °, n.° 1 sobre as finalidades da punição - protecção dos bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade;

-              fixam-se os factores que influem no doseamento da pena, as circunstâncias concorrentes no caso concreto que, em relação com os fins das penas, têm importância para a determinação do tipo e gravidade da pena (indicados, exemplificativamente, no n.° 2);

- tecem-se os considerandos que fundamentam a determinação efectuada (de acordo com o n.° 3).

(vide neste sentido, Ac Tribunal da Relação de Lisboa, in recurso nº 76/07.0TAVC.L1 da 9ª secção criminal)

E assim foi efectivamente feito pelo tribunal “a quo” que, ao fixar as penas concretas a aplicar à arguida/recorrente, usou até de extrema moderação e cuidado, tendo plenamente justificado o como e o porquê da escolha daquelas penas em concreto ponderando razões de prevenção geral , as circunstâncias agravantes e atenuantes, as quais, bem expressas e explicitas estão no acórdão recorrido para a determinação da pena única.

Há que castigar e, ao mesmo tempo, (sem postergar a função delimitadora da culpa do agente, fundamento e medida de pena) atentar com alguma acuidade nos fins de prevenção geral e especial, não se podendo optar sistematicamente pela aplicação, perdoe-se-nos o termo, de penas “simbólicas”, sem qualquer projecção na vida e comportamento futuro dos criminosos, ao mesmo tempo que não apazigua as necessidades de prevenção geral.

Os arguidos têm que de alguma forma sentir o desvalor da sua conduta que é sancionado pelo Estado de Direito, pelo simples facto de terem delinquido.

Os Tribunais não podem esquecer o extremo impacto que a situação dos autos, neste caso tem na sociedade e para a população em geral, qual se evidenciou entre o mais na prática de um crime de homicídio, em que a vítima era marido da arguida, sendo que tinham filhos em comum. Este é um dos  crimes mais graves do nosso ordenamento jurídico, pois o ceifar doloso e intencional de uma vida humana, deve ser encarado com especial acuidade e devidamente punido, considerando-se nomeadamente as circunstâncias em concreto da prática deste crime, bem como diga-se do crime de violência doméstica, o qual se tem vindo a assistir a um número crescente e significativo da sua prática ( quer por homens, quer por mulheres), os quais se espelham em processos judiciais condicentes com a sua oclusão e cuja resiliência parece querer persistir, e que muitas vezes poderão ser geradores de crimes mais graves, como poderá ter alegadamente acontecido nestes autos que culminou num homicídio, como se sabe.

Ora, sopesando todos os elementos objectivos e subjectivos considerados pela decisão recorrida, as circunstâncias apuradas e sem perder de vista os bens jurídicos ofendidos nos crimes cometidos pela arguida e da natureza dos autos, concluímos que o tribunal “ a quo” usou de ponderado cuidado e moderação, pelo que as penas em concreto (acima referidas) encontradas para punir a conduta da arguida relativamente a ambos os crimes, se encontram devidamente balizados e justificados, nos termos que atrás se deixaram expostos, os quais diga-se já vinham devidamente explanados no acórdão recorrido quanto á aplicação das penas parcelares relativamente a cada um dos crimes, e também posteriormente da pena única resultante do cumulo jurídico.

Assim a fixação da pena única mostra-se também equilibrada, justa, proporcional e razoável e não deixa ficar comprometida a crença da comunidade na validade das normas incriminadoras violadas, emitindo ainda um certeiro juízo na prevenção e na segurança dos valores que as normas penais visam resguardar a sociedade que a arguida “feriu” com a sua actuação criminosa.

Ora, como é por todos consabido, o recurso dirigido à medida da pena visa tão-só o controlo da desproporcionalidade da sua fixação ou a correcção dos critérios de determinação, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso (vide Ac. do TRP de 2.10.2013).

A intervenção correctiva do Tribunal Superior, no que diz respeito à medida da pena aplicada só se justifica quando o processo da sua determinação revelar que foram violadas as regras da experiência ou a quantificação se mostrar desproporcionada, e tal no ensinamento de Figueiredo Dias, sendo certo que a recorrente pretende ver diminuída a dosimetria das penas parcelares (decorrendo tal da motivação e conclusões do recurso que tempestivamente apresentou) e depois pela diminuição da pena única decorrente do cumulo jurídico.

Assim a fixação da pena única relativa aos crimes atrás referidos e posto em causa pela arguida, mostra-se equilibrada, justa, proporcional e razoável e não deixa ficar comprometida a crença da comunidade na validade das normas incriminadoras violadas, imitindo ainda um certeiro juízo na prevenção e na segurança dos valores que as normas penais visam resguardar a sociedade que a arguida “feriu” com a sua actuação criminosa.

Sufragamos que, nesta matéria, tem plena aplicação aos tribunais de 2ª instância a jurisprudência, relativa à intervenção do STJ na determinação concreta das penas, no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 27/05/2009, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Raul Borges, acessível in www.gde.mj.pt, Proc. 09P0484, que passamos a citar: “… A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que “no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada”- cfr. acórdãos de 09-11-2000, processo nº 2693/00-5ª; de 23-11-2000, processo nº 2766/00 - 5ª; de 30-11-2000, processo nº 2808/00 - 5ª; de 28-06-2001, processos nºs 1674/01-5ª, 1169/01-5ª e 1552/01-5ª; de 30-08-2001, processo nº 2806/01 - 5ª; de 15-11-2001, processo nº 2622/01 - 5ª; de 06-12-2001, processo nº 3340/01 - 5ª; de 17-01-2002, processo 2132/01-5ª; de 09-05-2002, processo nº 628/02-5ª, CJSTJ 2002, tomo 2, pág. 193; de 16-05-2002, processo nº 585/02 - 5ª; de 23-05-2002, processo nº 1205/02 - 5ª; de 26-09-2002, processo nº 2360/02 - 5ª; de 14-11-2002, processo nº 3316/02 - 5ª; de 30-10-2003, CJSTJ 2003, tomo 3, pág. 208; de 11-12-2003, processo nº 3399/03 - 5ª; de 04-03-2004, processo nº 456/04 - 5ª, in CJSTJ 2004, tomo1, pág. 220; de 11-11-2004, processo nº 3182/04 - 5ª; de 23-06-2005, processo nº 2047/05 -5ª; de 12-07-2005, processo nº 2521/05 - 5ª; de 03-11-2005, processo nº 2993/05 - 5ª; de 07-12-2005 e de 15-12-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, págs. 229 e 235; de 29-03-2006, CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 225; de 15-11-2006, processo n.º 2555/06 - 3ª; de 14-02-2007, processo n.º 249/07 - 3ª; de 08-03-2007, processo n.º 4590/06 - 5ª; de 12-04-2007, processo n.º 1228/07 - 5ª; de 19-04-2007, processo n.º 445/07 - 5ª; de 10-05-2007, processo n.º 1500/07 - 5ª; de 04-07-2007, processo n.º 1775/07 - 3ª; de 17-10-2007, processo n.º 3321/07 - 3ª; de 10-01-2008, processo n.º 907/07 - 5ª; de 16-01-2008, processo n.º 4571/07 - 3ª; de 20-02-2008, processos n.ºs 4639/07 - 3ª e 4832/07-3ª; de 05-03-2008, processo n.º 437/08 - 3ª; de 02-04-2008, processo n.º 4730/07 - 3ª; de 03-04-2008, processo n.º 3228/07 - 5ª; de 09-04-2008, processo n.º 1491/07 - 5ª e processo n.º 999/08-3ª; de 17-04-2008, processos n.ºs 677/08 e 1013/08, ambos desta secção; de 30-04-2008, processo n.º 4723/07 - 3ª; de 21-05-2008, processos n.ºs 414/08 e 1224/08, da 5ª secção; de 29-05-2008, processo n.º 1001/08 - 5ª; de 15-07-2008, processo n.º 818/08 - 5.ª; de 03-09-2008 no processo n.º 3982/07-3ª; de 10-09-2008, processo n.º 2506/08 - 3ª; de 08-10-2008, nos processos n.ºs 2878/08, 3068/08 e 3174/08, todos da 3ª secção; de 15-10-2008, processo n.º 1964/08 - 3ª; de 22-10-2008, processo n.º 215/08-3ª (…) .”.

Mas tal, em analepse, e como já enfatizámos, não se verifica no caso em apreço.

Se tivermos em consideração o atrás já referido, as penas parcelares encontradas para o crime de violência doméstica e homicídio (nos moldes em que a arguida foi condenada) e subsequente cúmulo jurídico não se mostra desproporcionada nem merece censura nem se pode considerar ser excessiva, não tendo sido violadas as normas indicadas pelo arguido no seu recurso.

Improcede assim e também neste segmento, o recurso apresentado pela arguida /recorrente.

Tendo em conta o exposto na pertinente fundamentação, e o disposto nos artºs 40º e 71ºe a condição pessoal e económica da arguida constante da matéria de facto provada., os limites legais da pena aplicável, as fortes exigências de prevenção geral e especial e a forte intensidade da culpa, e que, como refere Figueiredo Dias  Direito Penal Português -As consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 278, p. 211:

“Todos estão hoje de acordo em que é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de factores relevantes para aquela, ou, pelo contrário, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. Não falta, todavia, quem sustente que a valoração judicial das questões de justiça ou de oportunidade estariam subtraídas ao controlo do tribunal de revista, enquanto outros distinguem: a questão do limite ou da moldura da culpa estaria plenamente sujeita a revista, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado. Só não será assim, e aquela medida  será controlável mesmo em revista, se, v.g., tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada. “

Sendo que, da matéria factica apurada não procede desiderato justificativo de aplicação do art~º 72º do Código Penal, pois inexistem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.

Conclui-se que a pena aplicada pelo crime de homicídio não se revela injusta nem desproporcionada, que, por isso, é de manter.


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            Por sua vez quanto à pena única, verificando-se que os factos se encontram interligados, e não resultam de tendência criminosa, a gravidade dos mesmos, e a circunscrição da vida pregressa da arguida, antes da prática dos factos dos autos a crime de ameaças e de condução de veículo em estado de embriaguez, e  que  “Relativamente à personalidade de ..., apesar de não se verificar a presença de traços de personalidade psicopáticos, observam-se défices na dimensão do comportamento antissocial. Mais especificamente, a apresentação de um estilo de vida parasita, um défice no controlo comportamental, impulsividade, irresponsabilidade e versatilidade criminal.A arguida “apresenta um nível moderado de risco de violência futura, sustentado através dos seguintes fatores de risco: Existência de violência contra conhecidos, conflitos extremos no relacionamento conjugal, história de desemprego frequente, problemas relacionados com o consumo de álcool, ter sido testemunha de violência familiar na infância, desajuste precoce, personalidade caracterizada pela impulsividade, falta de insight, presença de violência física perpetrada por ... contra ..., recente intensificação da violência, atitudes que atenuam e minimizam a história de violência conjugal, probabilidade moderada de fracasso de planos a longo prazo, probabilidade elevada de exposição a fatores stressores e pouca capacidade de gestão do stress. Quanto a outros fatores que potenciam o risco, destaca-se a presença dos filhos da avaliada no momento do crime.

            De acordo com a sintomatologia psicológica apresentada por ..., bem como, a alegada história de consumo de álcool por parte da arguida, considera-se pertinente uma avaliação clínica estruturada, bem como, um acompanhamento ao nível psicológico e/ou psiquiátrico. (…).”e ainda que “

            Tendo ainda em conta as fortes exigências de prevenção geral  e especial, a intensidade da culpa, as balizas legais de punição, sendo que “De acordo com a sintomatologia psicológica apresentada por ..., bem como, a alegada história de consumo de álcool por parte da arguida, considera-se pertinente uma avaliação clínica estruturada, bem como, um acompanhamento ao nível psicológico e/ou psiquiátrico. (…).”, conclui-se que a pena única aplicada não se revela desajustada, desproporcional ou excessiva, sendo, por isso de manter.


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Termos em que decidindo:

            Acordam os juízes deste Supremo - 3ª Secção :

Rejeitam o recurso, por legalmente inadmissível, nos termos dos artº 414º nº 2 420º nº1, al. b), do CPP, quanto à questão de facto suscitada, bem como no concernente ao crime de violência doméstica  nos termos do artº 400º nº 1 al. e), e 432º nº 1 al. c), do CPP.

Negam provimento ao recurso quanto ao demais.

Tributam a recorrente em 5 UCs de taxa de justiça.

 Condenam a recorrente na importância de 4 UCs nos termos do nº 3 do artº 420.º do CPP.

Lisboa, Escadinhas de São Crispim,

                                   Elaborado e revisto pelo relator.