Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1364/04.2 TBMTA.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
REQUISITOS
EXECUÇÃO CAMBIÁRIA
DESERÇÃO DA INSTÂNCIA EXECUTIVA
EFEITOS
CASO JULGADO
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Data do Acordão: 03/20/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIAS DAS OBRIGAÇÕES.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO / INSTÂNCIA / EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA - PROCESSO DE EXECUÇÃO / EXTINÇÃO DA EXECUÇÃO.
DIREITO COMERCIAL - TITULOS DE CRÉDITO / LIVRANÇA / AVAL.
Doutrina:
- Abílio Neto, “Código de Processo Civil”, Anotado, 19ª edição, 2007, p.1211.
- Antunes Varela e Pires de Lima, in “Código Civil”, Anotado, vol., I, p. 627.
- Castro Mendes, Acção Executiva, 1980, p. 211
- Lebre de Freitas, Acção Executiva, 2ª Edição à Luz do Código Revisto, (1997), pp. 293 e 294.
- Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil”, Anotado, 4ª edição, p. 634, nota 5.
- Vaz Serra, “Responsabilidade Patrimonial”, BMJ-75, p. 287.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 601.º, 610.º, 611.º, 612.º, 616.º, 671.º, N.º1, 672.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 287.º, AL. C), 919.º.
LULL: - ARTIGO 30.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 28.03.1996, IN CJSTJ, 1996, I, 159.
-DE 11.12.1996, IN BMJ, 462-421.
Sumário :
1. Tendo sido julgada extinta por deserção a acção executiva, essa decisão não faz caso julgado material, nem torna supervenientemente inútil a acção declarativa em que a Autora, ali exequente, move aos aqui RR., lá executados como avalistas.

2. Na acção de impugnação pauliana os actos gratuitos, ou onerosos, praticados em desfavor do credor são intrinsecamente válidos; todavia, o credor impugnante tem direito à restituição dos que forem necessários à satisfação do seu crédito, podendo directamente agredir o património de quem estiver obrigado à restituição.

3. Nos termos do art. 612º, nº1, do Código Civil, sendo o acto de alienação de cariz oneroso está sujeito a impugnação se o devedor e o terceiro, ao concretizarem-no, tiverem actuado de má-fé; sendo o acto gratuito, mesmo que os sujeitos do negócio tenham agido de boa-fé, a impugnação procede. Para o efeito do nº2 daquele normativo, agir de má-fé é ter “consciência do prejuízo que o acto causa ao credor”.

4. Agem com patente má fé os aqui RR., avalistas de um mútuo concedido pela Autora, que, na pendência de execução movida pelo mutuante/exequente concertadamente com um terceiro pactuaram um contrato de compra e venda do único bem imóvel dos avalistas com o assumido propósito de excluírem do seu património o único bem que constituía garantia do crédito por que os vendedores se responsabilizaram.

Decisão Texto Integral:

Proc.1364/02.2TBMTA.L1.S1.

R-443[1]

Revista


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

 A “Caixa AA” instaurou, em 2.12.2004, no Tribunal Judicial da Comarca da Moita, acção declarativa de condenação, com a forma de processo ordinário, contra:

 BB (1º Réu)

 CC (2ºs RR.)

DD (3º Réu)

 Pedindo que, em relação a si, seja decretada a ineficácia do acto de venda que os RR. realizaram, tendo os dois primeiros vendido e o terceiro comprado e, ainda, que seja ordenado que o terceiro Réu restitua o bem imóvel, objecto desse contrato de compra e venda, de forma a que a Autora se possa pagar, à custa do mesmo, do crédito que tem sobre os dois primeiros RR.

Peticiona ainda, subsidiariamente, no caso de o primeiro pedido não proceder, a declaração de nulidade das escrituras de compra e venda e que seja ordenada a anulação e cancelamento do respectivo registo a favor do terceiro Réu.

Para fundamentar a sua pretensão alegou, em síntese, ser dona e legítima portadora de três livranças subscritas pelos dois primeiros RR. que, quando apresentadas a pagamento, não foram liquidadas nas respectivas datas (4.11.1998 e 28.3.2000), nem posteriormente, sendo credora dos referidos RR., actualmente, no montante global de € 379.575,71, quantia que corresponde a capital, juros e imposto de selo.

Refere, ainda, ser portadora de uma outra livrança subscrita pelos mesmos RR., no montante de € 5.985,00 vencida em 24.7.2002 e que aqueles também não liquidaram, tendo intentado, para efeito do seu pagamento, acção executiva, no valor global de € 6.662,35, quantia que corresponde a capital, juros e imposto de selo.

Acrescenta que, para cobrança do seu crédito, intentou acção executiva, cujo valor, à data da propositura da acção, perfazia o montante de € 339.992,36 acrescido dos respectivos juros de mora.

Ocorre que os dois primeiros RR. venderam ao terceiro Réu, um prédio urbano sito na freguesia da Moita, tendo a aquisição sido registada a favor deste, que foi casado com a segunda Ré.

Acrescenta que, com o referido imóvel, caso não tivesse sido alienado, os dois primeiros RR. podiam ter satisfeito o crédito da Autora, tendo aqueles plena consciência que, ao procederem à venda do imóvel, impossibilitavam a Autora de se ver ressarcida do prejuízo que lhe causaram, tendo tal venda sido efectuada com o propósito de evitar esse ressarcimento, pelo que entende que, ao abrigo do disposto no art. 616°, n°1, do Código Civil, tem direito à restituição do bem, na medida do seu interesse, podendo executá-lo no património do obrigado à restituição.

 Se assim não se entender, então, apontam a situação como sendo de simulação, não tendo os dois primeiros RR. querido vender nem o terceiro Réu comprar, não tendo ocorrido qualquer pagamento de preço, havendo apenas a vontade, por parte de todos os RR., de afastar das execuções judiciais, o património em causa.

Regularmente citados, vieram os RR. contestar.

Os RR. BB e CC aceitam ter sido intervenientes nas livranças em poder da Autora, mas alegam não serem intervenientes principais, pois são apenas dois dos seis avalistas constantes dos referidos títulos, sendo a aceitante e devedora principal a sociedade “EE, Lda.”.

Acrescentam que os valores em dívida são inferiores aos indicados, já que a Autora escamoteia valores já pagos por conta da dívida.

Referem que, quanto à livrança de € 5.985,00 nada têm a ver com ela uma vez que não a avalizaram. No mais referem que a operação de crédito realizada pela Autora com a sociedade “EE, Lda.” não foi feita com base na existência do imóvel que a mesma refere.

Entendem que a Autora litiga com má fé, na medida em que conhece existirem já bens penhorados na acção executiva no valor de centenas de milhar de euros, encontrando-se os seus créditos sobejamente garantidos.

Mais alegam que a venda do imóvel teve em vista regularizar uma dívida que têm para com o Réu DD que, através de contrato de mútuo, emprestou à Ré CC a quantia de € 8.500,00.

 Por sua vez, o Réu DD confirma que o contrato de compra e venda teve como finalidade a regularização do crédito que tinha sobre os RR. BB e FF, tendo agido de boa fé, desconhecendo as relações entre eles e a Autora.

 Impugna o valor da causa, referindo que esse valor deve ser o do acto cuja validade é impugnada, ou seja, 59.850 €, valor de compra e venda do imóvel.

 A Autora apresentou réplica, onde conclui como na petição inicial.

 Após os articulados, foi proferido despacho saneador onde foi discriminada a matéria de facto assente e a que carecia de prova a produzir.


***

 

Foi a acção julgada procedente, constando da parte decisória da sentença:

“Pelo exposto, na procedência da acção decide-se:

-Declarar ineficaz em relação à Autora o contrato de compra e venda celebrado entre os dois primeiros Réus e o terceiro Réu, que teve por objecto o prédio urbano, composto por um lote para construção, sito no ..., a confrontar do norte com a Estrada Nacional, a sul com a Rua … e a nascente e a poente com GG, inscrito sob o art. 4551, actualmente inscrito na Conservatória do Registo Predial da Moita, a favor do Réu DD, pela inscrição …, apresentação n° 20, de 12 de Dezembro de 2002, ficando a Autora autorizada a executar este imóvel no património deste Réu, até ao valor do seu crédito, acrescido de juros moratórias à taxa 7% até 30.04.2002 e a partir daí à taxa de 4%, até integral pagamento.


***

            O Réu BB, apelou para o Tribunal da Relação de Lisboa, que por Acórdão de 1.19.2013 – fls. 285 a 302 – negou provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.


***


            De novo inconformado, recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça e, alegando, formulou as seguintes conclusões:

            1. A acção executiva instaurada pela Recorrida CEMG para cobrança do seu crédito sobre o Recorrente foi extinta por deserção em 13.10.2011, tendo o despacho proferido nos autos que correram termos sob o nº137/2001 na 2ª Secção da 4ª Vara Cível da Comarca de Lisboa transitado em julgado em 22.11.2011.

            2. Tal decisão tem como efeito directo a inutilidade superveniente e absoluta da lide no presente processo.

            3. Os créditos de que a CEMG se arroga titular decorrem exclusivamente de aval prestado nas livranças dadas à execução, no processo executivo agora extinto.

4. Por força de tal acto, a CEMG deixou de ser titular dos créditos decorrentes de tais títulos sobre o ora Recorrente e restantes executados, tendo terminado todos os efeitos processuais e substantivos da pendência da execução, a qual está indissoluvelmente ligada à pretensão formulada na presente acção de impugnação pauliana.

5. Os créditos que a CEMG se arroga decorrem, única e exclusivamente do aval prestado e não de qualquer outro mútuo ao Recorrido, e não havendo outro vínculo, entre credor e devedor, com a extinção da execução, deixou de haver causa de pedir na presente acção.

6. A decisão proferida no mencionado processo e detalhada em 1., tem força de caso julgado material, produzindo efeitos fora do processo onde foi proferida.

7. Extinta a execução, nos termos supra, não será possível à exequente, aqui Recorrida, demandar de novo.

8. Não foi feita qualquer prova nos autos de que o terceiro adquirente tinha conhecimento das dívidas da outra parte no negócio, pelo que inexiste a má fé de terceiro.

9. Não se provou que o adquirente tenha agido com a consciência do prejuízo que o acto causaria ao credor.

10. Nem o credor provou que a restituição das quantias do seu crédito não estivesse garantida com o bem nomeado à penhora pelo ora Recorrente e descrito no ponto 16 dos factos dados como provados pela 1ª Instância.

11. Nem sequer foi feita prova de que o vendedor tivesse conhecimento do ónus existente sobre os bens do agora, falecido HH, os quais, sendo suficientes para solver a dívida, retiram ao acto do Recorrente a intenção de prejudicar o credor.

12. O douto Acórdão fez errada interpretação e aplicação do disposto nos arts. 287º c) e 291° do Código de Processo Civil, na versão à data da prolação da sentença da 1ª Instância e dos arts. 342°, 610° b) e 612°, todos do Código Civil.

Nestes termos e nos melhores deve o presente recurso de Revista ser admitido e, a final, ser julgado procedente, determinando-se a inutilidade superveniente da lide ou, se assim se não entender, a improcedência da acção, revogando-se a douta decisão recorrida.

Não houve contra-alegações.


***

Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos:

1) - A Autora é dona e legítima portadora de um título cambiário, reduzido a escrito e denominado “Livrança”, com o número …, que respeita a um montante de € 24.934,89 e onde consta a data de vencimento de 4.11.1998 e, no campo reservado ao aval a assinatura dos RR. BB e CC.

2) - A Autora é dona e legítima portadora de um título cambiário, reduzido a escrito e denominado “Livrança”, com o número …, que respeita a um montante de € 112.607,52 e onde consta a data de vencimento de 28.3.2000 e, no campo reservado ao aval a assinatura dos RR. BB e CC.

3) - A Autora é dona e legítima portadora de um título cambiário, reduzido a escrito e denominado “Livrança”, com o número …, que respeita a um montante de € 156.483,50 e onde consta a data de vencimento de 28.3.2000 e, no campo reservado ao aval a assinatura dos RR. BB e CC.

4) - A Autora é dona e legítima portadora de um título cambiário, reduzido a escrito e denominado “Livrança”, com o número …, que respeita a um montante de € 5.985 e onde consta a data de vencimento de 24.7.2002 e, no campo reservado ao aval a assinatura dos R.R. BB e CC.

5) - Depois do preenchimento do título cambiário referido em 4., os RR. BB e CC entregaram à Autora a quantia de € 1.320,96.

6) - Os títulos cambiários referidos em 1., 2., 3. e 4. foram apresentados a pagamento nas datas ali referidas.

7) - Os RR. foram intimados pela Autora a pagar os montantes referidos em 1.,2.,3. e 4.

8) - A Autora intentou contra os RR. BB e CC, em 29.10.2001, uma acção executiva que corre termos sob o n°137/2001, na 2ª Secção da 4ª Vara Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, para efeitos do pagamento da quantia de € 330.992,36.

           

9) -Pela inscrição …, apresentação n°…, de 12.12.2002, foi inscrita na Conservatória do Registo Predial da Moita a aquisição a favor do Réu DD, divorciado, do prédio urbano, composto por um lote para construção, sito no ..., a confrontar do norte com a Estrada Nacional, a sul com a Rua … e a nascente e a poente com GG, inscrito sob o art. 4551, por compra aos R.R. BB e CC.

10) - Com a venda referida em 9. os RR. impossibilitaram que à Autora fossem restituídas as quantias referidas em 1.,2., 3. e 4., sendo esse o objectivo de tal venda.

11) - O imóvel referido em 9. era o único bem imóvel pertencente aos RR. BB e CC, livre de encargos que permitiria obter a restituição das quantias referidas em 1.,2.,3. e 4.

12) - A escritura de compra e venda referida em 9. teve como objectivo enganar e prejudicar a Autora, não querendo os RR. vender ou comprar o imóvel e nada tendo pago o Réu DD.

13) - Com a venda referida em 9., os RR. quiseram afastar da execução mencionada em 8. o prédio referido em 9.

14) - O valor referido em 5. foi pago na sequência de acordo entre os sócios da sociedade “EE, Lda.” e a Autora.

15) - Os RR. CC e DD foram casados, entre si, casamento que foi dissolvido por divórcio decretado judicialmente em 19.9.1988, decisão transitada em julgado em 29.9.1988.

16) - Em Fevereiro de 2002 o Réu BB e outros nomearam à penhora nos autos de execução identificados em 8. um imóvel: o prédio urbano sito em Santo…, freguesia de ..., concelho do ..., descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob o na ..., omisso na matriz, com a área de 466,50 m2 e logradouro de 57.533,50 m2., confrontando a sul e poente com a Rua …, nascente com a Urbanização ..., sendo indicado o valor de 300.000.000$00, registado a favor de HH e II, também executados na mesma execução.

17) - Sobre o imóvel referido em 16. recaía, aquando da nomeação à penhora, um arresto a favor da “JJ, S.A.”, pelo valor de 193.854.218$00.

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber:

- se tendo sido julgada extinta a instância por deserção, em execução cambiária movida pela recorrida contra o aqui Réu/recorrente, executado como avalista do contrato de mútuo, sendo mutuante a Autora e mutuária a sociedade “EE, Lda.”, ocorre inutilidade superveniente da lide de onde o recurso promana, não podendo, destarte, a Autora reclamar do Réu qualquer pagamento;

- se assim não se considerar, se ocorrem os requisitos da impugnação pauliana.

Vejamos:

A primeira questão, prende-se com saber quais os efeitos da decisão que, no processo executivo, julgou extinta a instância por deserção, sendo executado o aqui recorrente como co-avalista dos títulos cambiários ali em execução, entendendo o recorrente que tal decisão tem força de caso julgado em relação ao crédito peticionado na acção declarativa.

Na pendência desta acção de condenação foi julgada extinta, por deserção, a instância executiva onde a Autora, exequente na acção executiva que corre termos sob o n° 137/2001, na 2ª Secção da 4ª Vara Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, reclamava o pagamento da quantia de € 330.992,36.

A deserção da instância implica a sua extinção – art. 287 º c) do Código de Processo Civil na redacção aplicável – e tem como causa a persistente inércia da parte em promover o impulso processual.

A extinção da instância por deserção nada tem a ver com a questão material que subjaz ao título executivo dado à execução, o juiz nem sequer aprecia a questão de fundo.

Por regra o que implica a extinção da execução é o pagamento da quantia exequenda e das custas – art. 919º do Código de Processo Civil – sendo que nesse caso o juiz profere uma sentença que, transitando em julgado, implica a extinção da obrigação exequenda. Daí que, por força do caso julgado, formado com tal sentença, não pode o credor intentar outra acção ou execução contra o devedor, pedindo o mesmo pagamento, sob pena de violação do caso julgado.

Não são assimiláveis os efeitos processuais e substantivos decorrentes da decisão que considera extinta a instância por deserção, e aqueloutra que julga extinta a execução, nos termos do art. 919º do Código de Processo Civil então vigente, antes da Reforma da acção executiva de 2003.

Vale a pena enfocar deste ângulo os efeito das decisões: uma, de natureza meramente processual, em que não se aprecia sequer a pretensão material envolta na execução; outra, reconhecendo ter o devedor executado cumprido em sede executiva, quer pelo pagamento coercivo, quer voluntariamente. Mesmo existindo extinção da execução pelo pagamento do executado, é discutível se tal decisão faz caso julgado material.

No Acórdão recorrido, depois de se aludir à posição do Professor Castro Mendes, in “Acção Executiva”, 1980, pág. 211, que tendia a considerar que a sentença, julgando extinta a execução, fazia caso julgado, ponderava que não sendo essa decisão passível de recurso de apelação mas de agravo (ao tempo), sendo que neste recurso não se aprecia o mérito, dúvidas eram fundadas quanto a saber se a decisão, em bom rigor, apreciava a questão de fundo.

Na redacção do art.919º do Código de Processo Civil anterior à Reforma introduzida pelo DL.38/2003, de 8.3, o nº2 previa a existência de sentença que julgasse extinta a execução, verificados os requisitos do seu nº1. Com a referida Reforma, o art. 919º, nº1, prevê uma extinção automática em caso de pagamento.

 Com efeito, estatui:

 “1. A execução extingue-se logo que se efectue o depósito da quantia liquidada, nos termos do artigo 917.º, ou depois de pagas as custas, tanto no caso do artigo anterior como quando se mostre satisfeita pelo pagamento coercivo a obrigação exequenda ou ainda quando ocorra outra causa de extinção da instância executiva.

2. A extinção é notificada ao executado, ao exequente e aos credores reclamantes.”

“Segundo o regime anterior, a extinção da execução era declarada por sentença, que reconhecia a verificação de algum dos pressupostos enunciados no preceito; na sua redacção actual, foi eliminada a alusão a tal sentença, o que torna defensável a desnecessidade da intervenção do juiz, e que caberá ao agente de execução dar por findo o processo executivo e proceder às notificações necessárias, solução que nos suscita sérias dúvidas quanto à sua conformidade com o princípio constitucional da reserva da função jurisdicional.” – “Código de Processo Civil Anotado”, de Abílio Neto, 19ª edição, 2007, pág.1211.

O Professor Lebre de Freitas, citado no Acórdão recorrido – “Acção Executiva”, págs. 293 e 294 (não é referida a edição, mas é a “2ª Edição à Luz do Código Revisto”, (1997)[2] acerca da natureza da sentença que põe termo à execução, escreveu:

“A natureza desta sentença é controvertida. Para quem entenda que há lugar à formação de caso julgado (material) no processo executivo, constitui-o essa sentença sempre que por ela se julgue extinta a execução por extinção da obrigação exequenda.

Mas, atentas a estrutura e a função da acção executiva e a circunscrição do atributo de caso julgado às decisões sobre a relação material controvertida (art. 671-1), as quais, por sua vez, pressupõem uma actividade processual desenvolvida em contraditoriedade (…), a sentença de extinção da execução não é dotada da eficácia de caso julgado material (…). Por ela é tão só verificado o termo da acção executiva e, mesmo quando tal ocorre por extinção da obrigação exequenda, a sua estrutura continua a ser a duma providência da esfera executiva, cuja característica de definitividade se coloca tão-só no plano da relação processual, por ela extinta com a mera eficácia de caso julgado formal (art. 672).

Sendo assim, a sentença de extinção da execução não surte eficácia fora do processo executivo. Mas o efeito extintivo do facto (pagamento ou outro) invocado na acção executiva (…) não deixará de se produzir, obstando ao êxito duma nova acção executiva (…), mas não impedindo a propositura, pelo executado, duma acção de restituição do indevido”. (destaque nosso)

 Na obra, “A Acção Executiva Depois da Reforma” – 4ª edição”, – 2004 – o Professor Lebre de Freitas, ante a referida alteração, reponderou a sua apreciação, escrevendo na pág. 359/360:

 “Até à reforma da acção executiva, a extinção da execução tinha lugar, salvo o caso de deserção da instância (art. 291), mediante uma sentença que lhe punha termo (…) e devia (tal como hoje a ocorrência da extinção automática da execução), ser notificada ao executado, ao exequente e aos outros credores graduados (art. 919-2).

A natureza desta sentença era controvertida. Para quem entendia haver lugar à formação de caso julgado material no processo executivo, constituía-o essa sentença, sempre que por ela se julgasse extinta a execução por extinção da obrigação exequenda…Mas, atentas a estrutura e a função da acção executiva e a circunscrição do atributo de caso julgado às decisões sobre a relação material controvertida (art. 671-1), as quais, por sua vez, pressupõem uma actividade processual desenvolvida em contraditoriedade (…), defendeu-se, nas edições anteriores desta obra, que a sentença de extinção da execução não era dotada da eficácia de caso julgado material (…).

Por ela era tão só verificado o termo da acção executiva e, mesmo quando tal ocorresse por extinção da obrigação exequenda, a sua estrutura continuava a ser de uma providência da esfera executiva, cuja característica de definitividade se colocava tão-só no plano da relação processual, por ela extinta com a mera eficácia de caso julgado formal (art. 672).

A sentença de extinção da execução não surtia, pois, eficácia fora do processo executivo.

Com a reforma da acção executiva, deixou de ter lugar essa sentença, produzindo-se automaticamente o efeito extintivo da instância (art. 919-1) (…).

A questão da formação de caso julgado no processo executivo deixou, pois, de se poder pôr.

Mas, hoje como ontem, o efeito de direito substantivo do facto (pagamento ou outro) invocado na acção executiva (…) não deixa de se produzir, obstando ao êxito duma nova acção executiva (…), mas não impedindo a propositura, pelo executado, duma acção de restituição do indevido (…)”.

Desde logo, importa afirmar que o ensinamento do Ilustre processualista se reporta à extinção da execução por via do pagamento, ou seja, apesar de antes se exigir uma sentença e depois da Reforma introduzida pelos DL.183/2003, de 8.3 e DL.199/2003, de 10.9, nem sequer essa formalidade estar prevista, decorre agora que a extinção da execução pela via do pagamento produz efeitos de índole substantiva impedindo o exequente de intentar nova execução.

Mas estas considerações não são transponíveis para os casos em que a extinção da instância executiva decorre de razões que nada têm a ver com a questão substancial, qual seja a de saber se o executado solveu a dívida exequenda.

Assim e por maioria de razão, a extinção da instância por deserção na acção executiva – sancionando a inércia reiterada do exequente em impulsionar a execução – não produz efeito de caso julgado material passível de invocação útil na acção declarativa de condenação onde o credor impetra o pagamento do executado “salvo” pela extinção da instância por via da deserção.

Assim, o facto de, entretanto, ter ocorrido no processo executivo em causa instaurado em Outubro de 2001, extinção da instância por deserção, tal não importa a inutilidade superveniente da acção de onde o recurso dimana.

            Veremos se ocorrem os requisitos da impugnação pauliana.

            É regra consabida que o património do devedor é responsável pelo cumprimento das suas obrigações – art. 601º do Código Civil – daí, que ao credor seja dada a possibilidade de se precaver, com garantias reais ou pessoais, ou ambas, que exige do devedor para assegurar a satisfação do seu crédito.

A lei prevê meios de conservação da garantia patrimonial, como a declaração de nulidade, a sub-rogação do credor ao devedor, o arresto e a impugnação pauliana.   

         O art. 610º do Código Civil, define os requisitos gerais da impugnação pauliana nos seguintes termos: 

“Os actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e não sejam de natureza pessoal podem ser impugnados pelo credor, se concorrerem as circunstâncias seguintes:

a) Ser o crédito anterior ao acto ou, sendo posterior, ter sido o acto realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;
           

 b) Resultar do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade.”

            A acção de impugnação pauliana consiste na faculdade concedida por lei ao credor, de atacar os actos do seu devedor que, realizados dolosamente, façam perigar a satisfação do seu crédito.

Ao contrário do regime legal que vigorava no Código de Seabra, em que tal acção era considerada uma “acção rescisória” ou “anulatória”, já que o art. 1404º estipulava que, “rescindido o acto ou contrato, revertem os bens ao cúmulo dos bens do devedor, em benefício dos seus credores”, a lei actual, diversamente, estabelece no art. 616º, nº1, do Código Civil:

 

 “Julgada procedente a impugnação o credor tem o direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei”.

            Os actos gratuitos, ou onerosos, praticados em desfavor do credor são intrinsecamente válidos; todavia, o credor impugnante tem direito à restituição dos que forem necessários à satisfação do seu crédito, podendo directamente agredir o património de quem estiver obrigado à restituição.

Vaz Serra, in “Responsabilidade Patrimonial”, estudo publicado no BMJ-75 escreveu:

 “A acção pauliana é dada aos credores para obterem, contra um terceiro, que procedeu de má-fé ou se locupletou, a eliminação do prejuízo que sofreram com o acto impugnado.

Daqui resulta o seu carácter pessoal ou obrigacional.

O autor na acção exerce o crédito de eliminação daquele prejuízo...O efeito da acção deve ser uma simples consequência da sua razão de ser e, por isso, parece dever limitar-se à eliminação do prejuízo sofrido pelo credor, deixando o acto, quanto ao resto, tal como foi feito” obra citada pág. 287.

Tanto assim é que, nos termos do art. 616º, nº4, do Código Civil, os efeitos da impugnação aproveitam apenas ao credor que a tenha requerido.

Não se está, assim, perante uma declaração de nulidade com a inerente repristinação do “statuo quo ante” que permitiria a todos os credores do devedor executar o património deste – cfr. neste sentido Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 28.3.96, in CJSTJ, 1996, I, 159 –  “A impugnação pauliana reveste um carácter pessoal, já que os seus efeitos aproveitam apenas ao credor que a tenha requerido”.

 Também os Professores Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, 4ª edição, pág. 634, nota 5, acentuam o carácter pessoal da acção de impugnação pauliana a partir do preceituado no art. 616º, nº4, daquele Código.

Mas o que é agir de má-fé nos termos do art. 612º do Código Civil?

Nos termos do art. 612º, nº1, sendo o acto de alienação de cariz oneroso está sujeito a impugnação se o devedor e o terceiro, ao concretizarem-no, tiverem actuado de má-fé; sendo o acto gratuito, mesmo que os sujeitos do negócio tenham agido de boa-fé, a impugnação procede.

Para o efeito do nº2 deste normativo, agir de má-fé é ter “consciência do prejuízo que o acto causa ao credor”.

“I – A impugnação pauliana, enquanto garantia das obrigações, tem como requisitos, tratando-se de acto oneroso, a anterioridade do(s) crédito(s) do autor em relação a tal acto, o facto de este causar a impossibilidade ou o agravamento da impossibilidade de satisfação integral daquele(s) e a circunstância de todos os intervenientes no negócio questionado se encontrarem de má fé.

II – A má fé, enquanto requisito subjectivo da impugnação pauliana, significa a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor, e não já a intenção de prejudicar este último.

III – A má fé, neste sentido, abrange a própria negligência consciente – já que o agente tem consciência de que o acto pode prejudicar o credor, ainda que confie que tal resultado não venha a verificar-se.       

IV – A intenção de prejudicar só constitui requisito da impugnação pauliana se o acto a impugnar for anterior à constituição do crédito (...)” Ac. deste Supremo Tribunal de Justiça, de 11.12.1996, in BMJ, 462-421.

        

Nos termos do art. 616º do Código Civil – “1. Julgada procedente a impugnação, o credor tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei. 2. O adquirente de má fé é responsável pelo valor dos bens que tenha alienado, bem como dos que tenham perecido ou se hajam deteriorado por caso fortuito, salvo se provar que a perda ou deterioração se teriam verificado no caso de os bens se encontrarem no poder do devedor. 3. O adquirente de boa fé responde só na medida do seu enriquecimento. 4. Os efeitos da impugnação aproveitam apenas ao credor que a tenha requerido”.

Nos termos o art. 611º do Código Civil, compete ao devedor ou ao terceiro interessado na manutenção do acto, objecto da impugnação pauliana, a prova de que o obrigado “possui bens penhoráveis de igual ou maior valor”.

Como ensinam Antunes Varela e Pires de Lima, in “Código Civil Anotado”, vol., I, pág. 627, tal preceito exprime “em alguma medida” afastamento em relação às regras do ónus da prova, colocando a cargo do devedor e também de terceiro (adquirente) a prova de que aquele possui bens penhoráveis de valor igual ou superior ao da dívida.

Importa, então, ajuizar se os apontados requisitos se acham provados.

Sem dúvida que a Autora é credora dos valores indicados nos títulos cambiários, quatro livranças, cujos vencimentos ocorreram em 4.11.1998, 28.3.2000, 28.3.2000 e 24.7.2002 e não foram pagos, razão pela qual executou os ora RR., sendo os 1ºs RR. co-avalistas de um empréstimo feito à sociedade “EE”.

Por via do aval prestado à mutuária, os 2ºs RR., avalistas, são responsáveis como garantes na mesma medida em que o é a avalizada.

O aval é o acto pelo qual uma pessoa estranha ao título cambiário, ou mesmo um signatário – art. 30º da LULL – garante, por algum dos co-obrigados no título, o pagamento da obrigação pecuniária que este incorpora. O aval é uma garantia dada pelo avalista à obrigação cambiária e não à relação extracartular.

A livrança  é um título de crédito, contendo uma promessa de pagamento.

 O emitente, subscritor do título, declara-se ele próprio obrigado a pagar ao tomador ou à sua ordem a quantia mencionada no mesmo (Ferrer Correia).

“O pagamento da livrança pode ser garantido por aval, ficando o dador de aval responsável da mesma maneira que a pessoa afiançada, ou seja, tal qualmente o subscritor do título, devedor principal e solidariamente com ele — arts. 77º, 30º e 32° da LULL (cfr. Ferrer Correia, “Lições de Direito Comercial”, Reprint, ed. Lex, 526).

Na pendência do processo executivo – Proc.137/2001 – instaurado em 29.10.2001,  os 1ºs RR. avalistas/executados venderam ao 3º Réu o prédio urbano identificado em 9. dos factos provados, aquisição que foi registada a favor do comprador, em 12.12.2002; fizeram-no com o propósito consciente de impedir que à Autora fossem restituídas as quantias constantes das livranças, sendo que o imóvel, que alienaram, era o único bem que possuíam e que permitia responder pela dívida assumida por via da garantia do aval que prestaram à subscritora.

Com a alienação, os RR. vendedores agiram com evidente má fé, já que visaram prejudicar a Autora, escamoteando aquele prédio do seu património.

Sendo patente a má fé dos vendedores do ponto em que, ao pretenderam retirar do seu património o único bem que poderia servir de garantia ao credor, sendo patente a consciência do prejuízo que assim causariam, também o terceiro Réu estava imbuído desse propósito fraudulento, intervindo num negócio fantástico com o fito de cooperar ilicitamente com os 1ºs RR., sendo comum a todos a ausência de vontade real de celebrarem um negócio, o que patenteia actuação dolosa, fraudulenta.

É assim inquestionável a má fé com que agiram todos os Réus no negócio em causa, do qual resultou para o credor diminuição, senão impossibilidade, da garantia patrimonial do seu crédito.

             Pelo exposto o recurso soçobra.

            Sumário – art. 663º, nº7, do Código de Processo Civil

 1. Tendo sido julgada extinta por deserção a acção executiva, essa decisão não faz caso julgado material, nem torna supervenientemente inútil a acção declarativa em que a Autora, ali exequente, move aos aqui RR., lá executados como avalistas.

2. Na acção de impugnação pauliana os actos gratuitos, ou onerosos, praticados em desfavor do credor são intrinsecamente válidos; todavia, o credor impugnante tem direito à restituição dos que forem necessários à satisfação do seu crédito, podendo directamente agredir o património de quem estiver obrigado à restituição.

3. Nos termos do art. 612º, nº1, do Código Civil, sendo o acto de alienação de cariz oneroso está sujeito a impugnação se o devedor e o terceiro, ao concretizarem-no, tiverem actuado de má-fé; sendo o acto gratuito, mesmo que os sujeitos do negócio tenham agido de boa-fé, a impugnação procede. Para o efeito do nº2 daquele normativo, agir de má-fé é ter “consciência do prejuízo que o acto causa ao credor”.

4. Agem com patente má fé os aqui RR., avalistas de um mútuo concedido pela Autora, que, na pendência de execução movida pelo mutuante/exequente concertadamente com um terceiro pactuaram um contrato de compra e venda do único bem imóvel dos avalistas com o assumido propósito de excluírem do seu património o único bem que constituía garantia do crédito por que os vendedores se responsabilizaram.

Decisão:

Nega-se a revista.

Custas pelo recorrente.

Supremo Tribunal de Justiça, 20 de Março de 2014

Fonseca Ramos (Relator)

Fernandes da Silva

Ana Paula Boularot

_____________________
[1] Relator – Fonseca Ramos.
Ex.mos Adjuntos:
Conselheiro Fernandes do Vale.
Conselheira Ana Paula Boularot.

[2] Como o tratadista adverte, pág.7, “Sempre que é feita referência a um artigo sem menção de diploma legal, trata-se do Código de Processo Civil, tal como resultou da revisão efectuada pelo Dec-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, e pelo Dec. -Lei n.º180/96, de 25 de Setembro”.