Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4124/19.2T8BRG.G1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
DIREÇÃO EFETIVA
VEÍCULO AUTOMÓVEL
PROPRIETÁRIO
REPARAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO DE PERDAS E DANOS
INCÊNDIO
COMISSÁRIO
COMITENTE
SEGURO DE GARAGISTA
Data do Acordão: 09/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I - O art. 503º, nº1, do CCivil responsabiliza aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo e o utiliza no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, pelos danos provenientes do risco próprio do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação;

II – Na entrega de um veículo numa oficina para reparação, a direcção efectiva, como poder real, de facto, sobre o veículo, transfere-se do proprietário para o garagista durante o período de trabalho e nas fases de diagnóstico ou de teste final;

III – Não são da responsabilidade do garagista que recebeu o veículo para efectuar uma reparação mecânica na transmissão, os danos originados por um incêndio que se desencadeou durante a noite na instalação eléctrica da cabine do veículo, pois que nesta parte  - o sistema eléctrica do veículo – não houve transferência da direcção efectiva do proprietário para o dono da oficina.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



Agrifer Equipamentos Agric. Industriais, Lda., sociedade comercial por quotas com sede na Travessa ..., da freguesia ..., do concelho ..., intentou a presente ação declarativa, sob a forma comum, contra Mapfre Seguros Gerais, S.A. com sede na rua ..., na cidade ..., peticionando a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de €54.583,08, a título de indemnização por danos patrimoniais.

Alegou para tanto, e em síntese:

Tem por objeto social o comércio e indústria de máquinas e equipamentos agrícolas e industriais;

Em maio 2015 celebrou com a ré um seguro PME, para proteção do conteúdo/recheio, existentes no local de risco, nomeadamente nas suas instalações, incluindo incêndio, raio ou explosão, com uma cobertura base de €581.790,28.

Sucedeu que, em 17.08.2016, pelas 01.54 horas, na sua oficina ocorreu um incêndio quando não se encontrava ninguém na oficina, nem nas instalações, que teve origem numa maquina retroescavadora de marca JCB 3CX TED ocasionado por curto circuito na instalação elétrica da cabine, ao nível médio do lado direito do painel de instrumentos, mais especificamente na zona da junção da ficha de ligação da cablagem elétrica, que era propriedade da sociedade M..., Lda., que se encontrava no interior das instalações a reparar. O fogo propagou-se pelo veículo, gerando uma vultosa carga térmica e consequente elevada desenfumagem, provocando danos em toda a infraestrutura e recheio.

Tal incêndio foi objeto de inquérito crime (proc. n.º 1137/16.... do DIAP ..., ... Secção), contra desconhecidos, no qual foi proferido despacho de arquivamento;

Como consequência direta e necessária do incêndio resultaram danificados entre outros bens, a máquina retroescavadora JCB 3CX TED, os sistemas de deteção automática contra intrusão e incendio; sistemas de videovigilância e central telefónica.

Ao abrigo do referido contrato de seguro celebrado, a ré a assumiu a responsabilidade pelo ressarcimento dos danos decorrentes em tal sinistro, tendo sido acordado o pagamento à autora da quantia de €169.000,00.

Não obstante esse acordo, a ré apenas efetuou o pagamento de €132.158,33, em duas tranches em fevereiro de 2017, após insistência da autora através de três cartas registadas com aviso de receção (em 30.12.2016, 12.012017e 30.01 2017), mantendo, por conseguinte, a ré em divida à autora o pagamento de €36.841,67.

Entre outros danos sofridos em decorrência do incêndio, alega o pagamento efetuado em 13.01.2017 à proprietária da máquina retroescavadora marca JCB modelo 3CXTED, que se encontrava na oficina para reparação e se incendiou, no valor de € 38.564,00.

Nesta decorrência pretende obter da ré o pagamento de tal quantia, por ser um dano com cobertura no contrato de seguro contratado com a ré (bem de terceiro)

Mais alega, que a ré ao abrigo do contrato de seguro celebrado com a autora ressarciu parcialmente os danos sofridos, porque só assumiu parte dos custos com a empresa C..., S.A., nomeadamente os constantes das faturas n.ºs C...38, C...56 e C...06, nos montantes, respetivamente, de €1102,93, €2208,00 e €1804,00. Destes valores pagou €1.450,00, mantendo em divida o remanescente (€3 665,73). O mesmo sucedeu com as despesas suportadas com os alarmes, em relação aos quais a ré apenas efetuou o pagamento de €12.765,50 do valor €18.690,50 da fatura nº...46, mantendo em divida o remanescente (€ 5.925,00). Acresce, o valor de €100,00 correspondente ao valor da franquia descontado pela ré na indemnização paga à autora.

A Ré contestou e deduziu reconvenção.

Neste particular, veio exercer o direito de sub-rogação nos direitos de quem indemnizou por força do contrato de seguro que celebrou com a proprietária (B...) do edifício ardido pelo valor de €141.780,18, porquanto a reconvinda foi a responsável pelo incêndio dos autos.


///


Procedeu-se a julgamento, a que se seguiu a prolação de sentença que decidiu:

- julgar parcialmente procedente a acção, condenando a Ré a pagar à Autora a quantia de €38.564,00, acrescida de juros de mora contados da citação até integral e efetivo pagamento;

- julgar totalmente improcedente a reconvenção, absolvendo-se a autora/reconvinda do pedido reconvencional.

Inconformada, a Ré apelou, com impugnação da matéria de facto, mas sem sucesso pois que a Relação confirmou inteiramente a sentença.

Ainda inconformada, a Ré interpôs recurso de revista excepcional, que foi admitido pela formação, tendo apresentado as seguintes conclusões (suprimem-se as respeitantes à admissibilidade a revista excepcional):

a) Vem o presente recurso interposto do Douto Acórdão proferido pelo Meritíssimo Tribunal a quo que, julgou a apelação totalmente improcedente, confirmando a sentença impugnada.

b) Quer a douta sentença proferida na 1ª instância, quer o douto acórdão que a confirmou e de que agora se recorre, pronunciaram-se sobre a mesma questão fundamental de direito que agora se submete a douta sindicância deste Supremo Tribunal:

- Da responsabilidade objectiva/pelo risco pelo ressarcimento de danos causados em imóvel fruto de incêndio de um veículo de circulação terrestre imobilizado, interpretada à luz do art. 503º n.º 1 do Cód. Civil

– o incêndio como risco próprio do veículo de circulação terrestre ainda que imobilizado; a máquina retroescavadora enquanto veículo de circulação terrestre

c) (…)

d) Soçobrou, assim, e relativamente ao concreto objecto do presente recurso, a pretensão da Seguradora Recorrente no sentido de ver julgado procedente o pedido reconvencional por si deduzido no sentido da condenação da A., enquanto detentora da direcção efectiva do veículo, e responsável ao abrigo do art. 503º n.º 1 do CC, a ressarcir a Seguradora Reconvinte do valor que esta, ao abrigo do contrato de seguro, pagou ao lesado por danos causados a imóvel sua propriedade na sequência de um incêndio com origem num veículo/retroescavadora que se encontrava nas instalações da A. em reparação.

e) Entendeu-se na 1ª instância que: “Com efeito, provou-se que além da actividade comércio e indústria de máquinas e equipamentos agrícolas e industriais a autora se dedica, também, com escopo lucrativo, à actividade profissional de reparação de máquinas equipamentos agrícolas e industriais. Uma retroescavadora é uma máquina, destinado à execução de obras ou trabalhos industriais e que eventualmente transita na via pública, não se confundindo com um veículo automóvel, um motociclo ou, tão-pouco, um ciclomotor, como, aliás, bem resulta das definições estabelecidas pelo legislador nos artigos 105º, 106º e 107º do Código da Estrada. (…)

f) Por entender que ao caso, e relativamente a esta concreta questão, sempre haveria que aplicar-se o regime previsto no art. 503º n.º 1 do Cód. Civil – na medida em que a máquina retroescavadora não pode deixar de ser vista como veículo de circulação terrestre e o incêndio constitui, inelutavelmente, um risco próprio de um veículo ainda que imobilizado, a Seguradora recorreu da decisão assim proferida.

g) À semelhança do que sucedeu na 1ª instância, o Venerando Tribunal da Relação considerou que: “Dada a origem e contexto do evento em causa curto circuito numa máquina retroescavadora que se encontrava a ser reparada a nível mecânico pela A. no âmbito da sua actividade de comércio e indústria de máquinas e equipamentos agrícolas e industriais nesse caso a retroescavadora não deve ser tida como veículo para os efeitos da aplicação do art. 503º n.º 1 do CC. (…)

h) Mais ajuizando que no caso “não estamos no âmbito dos riscos próprios de um veículo

i) Salvo o devido respeito, a Recorrente não se conforma com o douto acórdão proferido, discordando dos fundamentos jurídicos que o sustentam e quanto a estas duas questões fundamentais de direito, a saber:

- a máquina retroescavadora como integrante do conceito de veículo de circulação terrestre para efeitos de aplicação do art. 503º n.º 1 do CC.

- o incêndio como risco próprio de um veículo de circulação terrestre, ainda que imobilizado, e para efeitos de aplicação do art. 503º n.º 1 do CC

DA ADMISSIBILIDADE DO PRESENTE RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL:

(…)

,v) Sendo que, salvo o devido respeito por entendimento diverso, a tese expendida no douto acórdão recorrido a propósito desta questão encontra-se em manifesta contradição com o entendimento constante do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido em 20/11/2014, no âmbito do Processo n.º 3263/12.5TBGDM.P1, onde se pode ler:

“(…) O risco de um veículo automóvel se incendiar (mesmo estacionado) e causar danos a terceiros, como se sabe e resulta das normais regras da experiência , inscreve-se no círculo daqueles que lhe são próprios e que resultam da sua natureza de máquina perigosa e como tal, para o efeito considerada (…)

Não há dúvida nenhuma que é risco próprio, específico, típico, de um veículo automóvel, mesmo estacionado, que ele se incendeie e o fogo se propague a bens próximos de terceiros. Tal decorre das suas sofisticadas componentes mecânicas, sensível rede eléctrica e complexos dispositivos electrónicos, alguns em funcionamento permanente e em carga constante, cujos circuitos são alimentados a partir do acumulador de energia e que, acidentalmente, podem gerar, por atrito, desgaste, excesso de tensão, sobreaquecimento ou chispas e curto-circuito ou outros fenómenos similares, capazes de despoletar a ignição e combustão de produtos envolventes altamente inflamáveis (combustível, óleos, tintas, plásticos, borrachas, etc) (…)

w) Sempre com o devido respeito por entendimento diverso, parece-nos por demais notória a contradição existente entre a tese vertida no douto acórdão recorrido e a tese explanada no douto acórdão-fundamento, nesta concreta questão jurídica, não se vendo qualquer plausível motivo para distinguir, in casu, uma máquina escavadora de um automóvel.

(…)

cc) No que diz respeito ao pedido reconvencional – que é aquele relevante para a apreciação do objecto do presente recurso – recorde-se que a ora recorrente Seguradora funda o mesmo na ocorrência de um incêndio que teve origem numa máquina retroescavadora que se encontrava nas instalações da ora Recorrida para reparação, e a consequente indemnização, levada a cabo pela Seguradora recorrente, dos danos decorrentes desse incêndio ao abrigo da apólice de seguro que celebrou, nomeadamente com a B..., proprietária do edifício, e cujo direito de sub-rogação diante do responsável civil, se exerceu.

dd) Entendeu-se nas instâncias, e tal como supra se deixou já aflorado, que não deverá responsabilizar-se a recorrida pelo pagamento da quantia em causa, porquanto esta, enquanto entidade encarregue de proceder à reparação da máquina em causa logrou ilidir a presunção de culpa que sobre si impendia ao abrigo do art. 799º n.º 1 do Cód. Civil, não havendo, na tese defendida no acórdão recorrido, no caso dos autos de aplicar o regime da responsabilidade objectiva/pelo risco previsto no art.º 503º n.º 1 do Cód. Civil.

ee) E manteve-se tal entendimento, estribado em dois pressupostos (com os quais a recorrente jamais se poderá conformar), concretamente:

- a máquina retroescavadora não consubstancia um veículo de circulação terrestre para efeitos de aplicação do art. 503º n.º 1 do Cód. Civil

- o incêndio não é um risco próprio da máquina para efeitos de aplicação do art. 503º n.º 1 do Cód. Civil

ff) No caso concreto, e atento o risco em causa – incêndio e as circunstâncias em que o mesmo ocorreu - não faz qualquer sentido distinguir-se a máquina retroescavadora de um qualquer veículo automóvel.

gg) A máquina não estava no âmbito de qualquer actividade de laboração exclusivamente industrial – única situação que, no modesto entendimento da recorrente, poderia eventualmente afastar a sua integração no âmbito do escopo normativo do art. 503º n.º 1 do Cód. Civil.

hh) A máquina em causa estava imobilizada, apoiada nas suas sapatas, com o diferencial parcialmente desmontado, e em reparação na oficina da A./recorrida.

ii) Nesta concreta circunstância, não difere, e para efeitos do concreto risco de incêndio, de um veículo automóvel que se encontre igualmente na oficina, em reparação, imobilizado e apoiado, por exemplo, sem rodas ou colocado numa plataforma elevatória.

jj) Não se podendo, e com o merecido respeito, compadecer com a inusitada comparação que se faz no douto acórdão recorrido, e para efeitos de risco de incêndio, entre uma máquina escavadora e um frigorífico ou outro qualquer electrodoméstico.

kk) Tem para si a recorrente que andou, pois, mal o Mmo. Tribunal a quo ao considerar que, no caso presente, não tem aplicação o disposto no art. 503º n.º 1 do Cód. Civil.

ll) Motivo pelo qual, e tal como infra melhor se desenvolverá, se impõe a revogação do acórdão recorrido, nessa parte e a consequente procedência do pedido reconvencional formulado.

A MÁQUINA RETROESCAVADORA COMO VEÍCULO DE CIRCULAÇÃO TERRESTRE PARA EFEITOS DE APLICAÇÃO DO ART. 503º N.º 1 DO CÓD. CIVIL

mm) No caso em apreço, estamos diante de um veículo, que não sendo um automóvel, não pode deixar de ser considerado como veículo de circulação terrestre.

nn) A máquina retroescavadora, apesar de ter uma função industrial e de só ocasionalmente transitar na via pública, é qualificada pelo artigo 109º n.º 2, do Código da Estrada, como uma viatura de circulação terrestre, sendo inclusivamente regida pela disciplina respectiva (designadamente, no que se reporta à contratação de seguro obrigatório e à responsabilidade pelo risco), pelo menos quando os sinistros em que incorram contendam com a aptidão para transitar.

oo) Sendo que o sistema eléctrico da máquina retroescavadora tem, e salvo o merecido respeito, inelutável conexão com os elementos da máquina que regulam a circulação.

pp) Não é pelo facto da máquina em apreço estar apoiada nas suas sapatas, imobilizada, na oficina, que se pode afastar por completo, a sua natureza de veículo circulante, tanto mais quanto o curto circuito que a mesma sofreu e veio a originar o incêndio, apresenta-se intimamente relacionado com esta sua natureza de veículo de circulação terrestre.

qq) Considera a recorrente que a tese vertida no douto acórdão recorrido, de não se considerar a máquina em causa como um veículo ode circulação terrestre apenas faria sentido se o mesmo fosse utilizado exclusivamente para fins agrícolas ou industriais, o que não é, consabidamente, o caso duma retroescavadora que, no âmbito das suas funções, configura igualmente um veículo circulante.

rr) Note-se que a máquina retroescavadora em apreço nos autos tinha, inclusive, matrícula – ..-NP-.. – e como se pode verificar do elenco dos factos provados (alínea 3) factos provados).

ss) Sustentando a tese já expendida supra no sentido de que no caso em apreço é mister que se qualifique a máquina escavadora enquanto veículo de circulação terrestre, para além do vertido no Douto Acórdão-fundamento (acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27/02/2019, proferido no processo n.º 49/13.3GDCVL.C1, disponível em www.dgsi.pt e que aqui novamente se convoca) veja.se também o entendimento consignado no Acórdão do Tribunal de Guimarães, proferido em 15/02/2018, no âmbito do processo n.º 535/14.8TBPTL.G1, disponível em www.dgsi.pt.

tt) Pese embora esta última referida decisão tenha sido proferida a respeito a integração ou não de um evento com uma máquina retroescavadora enquanto acidente de viação e coberto ao abrigo do seguro de responsabilidade civil automóvel, temos que da mesma resultam alguns ensinamentos relevantes e totalmente aplicáveis no caso em apreço.

uu) O primeiro deles tem que ver, inelutavelmente, com a abrangência com conceito de veículo de circulação vertido no art. 503º n.º 1 do Cód. Civil que, nos moldes da jurisprudência citada, abrange claramente toda a unidade circulante, todo e qualquer meio de transporte terrestre, incluindo máquinas florestais, agrícolas ou industriais que tenham em si também uma função de locomoção.

vv) O segundo deles tem que ver com o facto de só se afastar esta noção de circulação terrestre quando a concreta função que o veículo esteja a desempenhar no momento do evento danoso, seja totalmente alheia à sua função de veículo circulante, estranho ao seu funcionamento enquanto tal e alheio à concretização do seu risco enquanto veículo circulante.

ww) Ora, no caso em apreço, reitera-se que é evidente que a máquina retroescavadora em si tem também uma função de veículo de circulação terrestre, movimentando-se, locomovendo-se, embora esporadicamente, na via pública, e servindo também como meio de transporte.

xx) Recorrendo-se aqui ao entendimento consignado no Douto acórdão-fundamento (Ac. Tribunal da Relação de Coimbra de 27/02/2019), em face das concretas circunstâncias que envolveram o sinistro – incêndio de uma máquina escavadora que se encontrava imobilizada, apoiada nas suas sapatas, com o diferencial traseiro em reparação na oficina reparadora – urge considerar que se trata de um evento que envolve um veículo de circulação terrestre para efeitos de aplicação do art. 503º n.º 1 do Cód. Civil, na medida em que o risco em causa não está fora do circulo de protecção da responsabilidade objectiva.

yy) Note-se ainda o entendimento constante do sumário do Douto Acórdão do STJ, de 08/05/2013, proferido no processo n.º 254/08.4TBODM.E1.S2, disponível em www.dgsi.pt, onde se refere:

“Um tractor é um veículo de circulação terrestre e, embora operando em local não aberto à circulação ocorrendo o acidente no contexto de realização de trabalhos agrícolas, numa propriedade particular não deve ser excluído o risco próprio que potencia como unidade circulante, não sendo de afastar o regime jurídico constante do art. 503º n.º 1 do CC que consagra a responsabilidade objectiva pelo risco.(…)

zz) Acresce que, o facto do veículo não estar em circulação não exclui a responsabilidade objectiva do art. 503º n.º 1 do Cod. Civil.

aaa) Andou, pois, mal o Mmo. Tribunal a quo ao considerar que, no caso concreto, a máquina retroescavadora não integrava o conceito de veículo de circulação terrestre para efeitos do disposto no art. 503º n.º 1 do Cód. Civil, incorrendo, assim, em violação da referida norma.

DO INCÊNDIO ENQUANTO RISCO PRÓPRIO DO VEÍCULO, AINDA QUE IMOBILIZADO

bbb) Igualmente quanto a esta questão, entende a Seguradora recorrente ter andado mal o douto acórdão recorrido.

ccc) Como se referiu supra, o douto acórdão recorrido faz uma equiparação, no caso concreto, do risco de incêndio da máquina retroescavadora ao risco de incêndio de um qualquer electrodoméstico.

ddd) Concluindo que não estamos, pois, perante um risco próprio de um veículo. eee) Não se conforma a recorrente com tal entendimento, considerando que, à semelhança do sucedido com a qualificação da máquina escavadora, também neste conspecto o acórdão recorrido incorre em violação do disposto no art. 503º n.º 1 do Cod. Civil.

fff) Na verdade, extensa jurisprudência existe no sentido antagónico do douto acórdão ora impugnado, nomeadamente o Acórdão fundamento (Acórdão do tribunal da Relação do Porto, de 20/11/2014, proferido no processo 3263/121.5TBGDM.P1, disponível em www.dgsi.pt), cujo sumário espelha, de forma bem clara, entendimento divergente do acórdão recorrido:

I O incêndio é risco próprio de um veículo parado.

II Resultando destruído pelas chamas o estacionado ao seu lado, tal dano considera-se proveniente daquele risco, havendo lugar a responsabilidade objectiva, nos termos do art. 503º, n.º 1 do CC”

ggg) Considerando os componentes inerentes a uma máquina escavadora como a dos autos, nomeadamente o seu combustível e óleos, e intrincado sistema eléctrico/electrónico e hidráulico, parece por demais evidente, e sempre com o merecido respeito por diverso entendimento, que o risco de incêndio que a mesma apresenta se assemelha em tudo a um veículo automóvel, sendo manifestamente superior ao de um electrodoméstico.

hhh) Preconizando igual entendimento, veja-se o sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 07/02/2017 (consultável in Colectanea de Jurisprudencia – Coimbra 1976 ISSN 0870-7979-A, 42, tomo 1 n.º 276 (Janeiro –Fevereiro 2017), p. 97-103, ), e onde se refere:

“II Constitui um risco próprio de um veículo automóvel , mesmo estacionado, que ele se incendeie e o fogo se propague a bens próximos de terceiros.

iii) - E, ainda no mesmo sentido, reveste particular relevo a tese vertida no Douto Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (2ª Secção), proferido no processo de reenvio prejudicial n.º C-100/98, de 20/06/2019, e que tem por objecto um pedido de reenvio prejudicial apresentado nos termos do art. 267º TFUE, pelo Tribunal Supremo de Espanha, a respeito da interpretação do artigo 3º da Directiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Setembro de 2009, relativa ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, do qual emerge que “está abrangida pelo conceito de “circulação de veículos”, previsto nesta disposição, uma situação , com ao que está em causa no processo principal, em que um veículo estacionado numa garagem privada de um imóvel utilizado em conformidade com a sua função de meio de transporte começou a arder e provocou um incêndio , que teve origem no curto circuito desse veículo e causou danos a esse imóvel, mesmo quando o referido veículo estivesse parado mais de 24 horas no momento em que ocorreu o incêndio”

jjj) Na senda de tais entendimentos, urge considerar que o incêndio foi decorrente de causas inerentes ao funcionamento do veículo/retroescavadora – curto-circuito – pelo que o mesmo deve se integrado no art. 503º n.º 1 do CC, na medida em que a utilização do veículo não pode ser vista como exclusivamente acoplada à ideia de circulação ou andamento.

kkk) O veículo de circulação terrestre continua a ser utilizado quando está imobilizado, quer por estar estacionado, quer por estar avariado, quer por estar a ser consertado/reparado.

lll) Sempre que o incêndio do veículo tenha a ver com o seu funcionamento ou os seus órgãos internos, não se apresentando conexionado com actos de terceiro ou com circunstâncias que lhe são exteriores, verifica-se uma situação reconduzível a um risco próprio do veículo.

mmm) Nestas situações, sendo a eclosão do incêndio motivada pelos riscos próprios do veículo, a responsabilidade pela indemnização dos prejuízos causados pelo incêndio cabe, a título objectivo, a quem tem a direcção efectiva do veículo, por força do que dispõe o artigo 503º n.º 1, do Cód. Civil , in casu, à A./recorrida.

nnn) Considerando o concreto risco de incêndio, e as características de uma máquina retroescavadora permitimo-nos salientar novamente que não faz qualquer sentido, para este efeito, operar-se uma distinção entre a mesma e um veículo automóvel.

ooo) Nas concretas circunstâncias fácticas dos autos era absolutamente indiferente estarmos diante de uma escavadora ou de um automóvel: o risco de curto circuito no sistema eléctrico é justamente o mesmo em ambos os veículos.

ppp) Ao abrigo do disposto no art. 503º do Cód Civil, sempre deveria a recorrida ser considerada a responsável pela ocorrência do evento (incêndio, devido a risco próprio do veículo), e tal como se expendeu na reconvenção.

qqq) Ao consignar distinto entendimento, o douto acórdão recorrido incorreu em grave violação do disposto no art. 503º n.º 1 do Cód. Civil.

rrr) O que se deixa expressamente alegado, para todos os devidos efeitos legais, nomeadamente para a revogação do douto acórdão recorrido e consequente procedência do pedido reconvencional.

DA COMPENSAÇÃO:

sss) Concedendo-se provimento ao presente recurso (relativo ao pedido reconvencional), sempre se dirá que, nos precisos termos já vertidos nos autos, se impõe operar a compensação entre aquilo que a Seguradora R. Seguradora foi condenada a liquidar à A., e o respectivo contra crédito emergente da procedência da reconvenção.

A Recorrida contra alegou, pugnando pela improcedência do recurso, com as seguintes conclusões úteis:

(…)

5) De facto o artigo 503º do Código Civil é inaplicável á maquina retroescavadora, pois não é um veiculo de circulação terrestre e para além do mais não estava no âmbito de qualquer atividade de laboração exclusivamente industrial, não sendo o incendio um risco próprio da maquina para efeitos da aplicação do artigo 503º do CPC..

6) A Recorrente não quer aceitar os factos provados e tenta agora dar uma nova versão de direito, que não existe, sendo que quer o Mmo. Juiz a quo, quer o Venerando Tribunal da Relação, bem andaram na aplicação do direito aos factos que a Recorrente teima em não aceitar.

7) Para além disso, ambas as instâncias, concluiram e bem, que o incêndio não é um risco próprio do veiculo, pois o risco é exatamente o mesmo de um electrodoméstico, pelo que muito bem se considerou não ser de aplicar o disposto no artigo 503º do Código Civil.

8) Carece igualmente de qualquer fundamento sério, o pedido de compensação da Recorrente, tanto mais, que a sua Reconvenção foi julgada totalmente improcedente e nada do que veio alegar permite alterar a dupla conforme que sobre tais factos já ocorreu.

9) Termos em que deve o recurso ser rejeitado, ou quando assim não se entenda deve ser julgado improcedente.

///

Colhidos os vistos, cumpre decidir.


Âmbito do recurso.

Das conclusões da Recorrente resulta que as questões suscitadas para serem analisadas na presente revista são:

- Saber se uma máquina retroescavadora que se encontra numa oficina para ser reparada integra o conceito de “veículo de circulação terrestre” para efeitos de aplicação do art. 503º, nº1 do CCivil;

- Se o incêndio é um risco próprio do veículo de circulação terrestre, ainda que esteja imobilizado.

- Direcção efectiva de veículo.


Fundamentação.

O acórdão recorrido deu como provada a seguinte matéria de facto:

“1) A autora dedica-se ao comércio e indústria de máquinas e equipamentos agrícolas e industriais.

2) Entre a autora e ré, foi celebrado um contrato de seguro PME, titulado pela apólice n.º ...06, com início no dia 01/03/2015, para proteção do conteúdo/recheio, existentes no local de risco, nomeadamente nas suas instalações, incluindo incêndio, raio ou explosão, com uma cobertura base de €581.790,28

3) Em 17.08.2016, pelas 01.54 horas, na sua oficina da autora ocorreu um incêndio, quando não se encontrava ninguém na oficina, nem nas instalações, que teve origem numa máquina retroescavadora de marca JCB 3CX TED de matricula ..-NP-.., com o número de série ...60;

4) (…) ocasionado por curto circuito na instalação elétrica da cabine, ao nível médio do lado direito do painel de instrumentos, mais especificamente na zona da junção da ficha de ligação da cablagem elétrica.

5) A máquina era propriedade da sociedade M..., Lda., que se encontrava no interior das instalações a reparar.

6) O fogo propagou-se pelo veículo, gerando uma vultosa carga térmica e consequente elevada desenfumagem, provocando danos em toda a infraestrutura e recheio.

7) O incêndio foi objeto de inquérito crime (proc.n.º 1137/16.... do DIAP ..., ... Secção), contra desconhecidos, no âmbito do qual foi proferido despacho de arquivamento.

8) Do incêndio resultaram danificados, entre outros bens materiais, a própria maquina retroescavadora JCB 3CX TED, os sistemas de deteção automática contra intrusão e incêndio, videovigilância e a central telefónica da oficina da autora.

9) A Ré assumiu a responsabilidade pelo ressarcimento dos prejuízos sofridos pela autora em decorrência do sinistro;

10) (…) tendo-lhe efetuado o pagamento da quantia €132.158,33, em duas tranches;

11) (…) deduzido no pagamento efetuado autora a franquia de € 100,00.

12) O pagamento antes referido foi efetuado após insistência da autora, através de três cartas registadas com aviso de receção, datadas de 30.12.2016, 12.01.2017e 30.01 2017;

13) A autora em 13.01.2017 efetuou o pagamento à proprietária da máquina destruída pelo incendio, marca JCB modelo 3CXTED série n.º 2100160, no valor de € 38.564,00,

14) A ré acordou com a autora o pagamento €1.450,00, pelos serviços de vigilância, prestados pela sociedade “C... – P..., S.A.”.

15) A ré acordou com a autora o pagamento de €12.765,50, do valor de €18.690,50 da fatura emitida pela sociedade “E..., Lda.”, em nome da autora em 2016/146, pela prestaçãode serviço de alarmes.

16) No contrato de seguro celebrado entre autora e ré constam as cláusulas especiais relativas aos capitais, e para os “itens” que, para a presente ação, relevam seguintes:

a) mobiliário diverso: €10.264,95;

b) máquinas, ferramentas e utensílios: €10.264,95;

c) benfeitorias: € 10.264,95;

d) outras mercadorias (acima não designadas): €205.299,00;

e) Veículos em garagem: € 25.000,00;

f) bens propriedade de terceiros: € 0,00;

g) outros bens ao ar livre: €100.000,00;

h) outros bens não designados: € 37.980,32;


17) A empresa de peritagem “A...” procedeu, a solicitação da ré, à contabilização dos danos resultantes do sinistro/incêndio dos autos. No relatório que elaborou, incluiu nos danos a indemnizar, os bens propriedade de terceiros, clientes da autora.

18) A ré excluiu nos danos a indemnizar à autora, os bens propriedade de terceiros, clientes da autora, com fundamento na cláusula das condições especiais da apólice referida em 16), al. f), “bens propriedade de terceiros”, com fundamento na falta de verba inscrita.

19) Todas as restantes verbas contabilizadas no relatório referido em 17), realizado pela sociedade “Advanta”, foram incluídas na indemnização a pagar à autora, por estarem contempladas na proposta de seguro, nas respetivas condições particulares, terem sido reclamadas pela autora, e merecido a anuência da autora.

Concretamente, A.: Conteúdo – cobertura base

- mobiliário diverso: €908,89

- máquinas, ferramentas e utensílios: €8.764,96

- benfeitorias: €2.519,06

- outras mercadorias (acima não designadas): € 50.153,33

- veículos em garagem: €900,00

- outros bens não designados: €13.496,79.

- Despesas de guarda e vigilância – 5% do capital seguro para edifício e/ou conteúdo com limite máximo de €10.000,00;


20) Às descritas verbas acresceu, o pagamento de €1.764,00, a título de limpezas (integrado na rúbrica – cobertura base), e o montante de €1.450,00, a título de despesas de guarda e vigilância, por esta última estar contida na cobertura (...), quantia à qual foi deduzida a franquia contratual de € 100,00.

21) Em decorrência do sinistro, as instalações do local de risco ficaram sem a devida proteção, pelo facto da cobertura estar aberta e do sistema de deteção e alarme contra intrusão, terem ficado inoperacionais.

22) O valor de €1.450,00 foi acordado entre a autora e o interlocutor da empresa de peritagem, Sr. AA, para o serviço de vigilância durante 15 dias, com um turno diário, tido como necessário e suficiente para fazer face àquelas omissões.

23) O mesmo sucedeu com os itens sistema contra intrusão e CCTV e deteção de incêndio, integrados na rúbrica: outros bens acima não designados.

24) Aquando da averiguação, foi reclamado pela autora o montante de €12.142,50, com base num orçamento da sociedade “E..., Lda.”;

25) (…) após análise do orçamento apresentado verificou-se a inclusão de componentes extra, para além dos danificados, situação essa comunicada ao representante da autora o que determinou o respetivo acerto, tendo sido considerado para o sistema contra intrusão, o valor de € 2.162,50 e para o sistema de vigilância o valor de € 4.055,00, ambos num total de €6.217,50.

26) Quanto ao sistema de deteção de incêndios e monóxido de carbono, a reclamação efetuada de €6.548,00, foi considerada ajustada aos preços normais de mercado, vindo a ser atendido o valor reclamado de €6.217,50.

27) As divergências entre autora e ré relativas à cobertura de “bens propriedade de terceiros”, atrasaram o processo de regularização do presente sinistro, porquanto a apólice emitida não fazia referência a qualquer verba inscrita nessa cobertura.

28) Através de carta, datada de 25/11/2016, a ré comunicou à autora a falta de verba, para grande parte dos danos reclamados, a título de bens propriedade de terceiros (máquinas que se encontravam na oficina para serem reparadas e que se encontravam danificadas).

29) A autora respondeu à ré, manifestando apreensão e surpresa, por estar ciente de que existia essa cobertura.

30) Depois de analisada a situação e muitas reuniões entre ambas as partes, a ré assumiu o erro do gestor comercial, no preenchimento da proposta para emissão e distribuição do capital seguro por rubrica e procedeu à correção da apólice, desde a data de início, e no que tange à distribuição de capitais, afetando o capital seguro (€100.000,00) à rubrica de bens propriedade de terceiros/veículos em reparação, ao invés de bens ao ar livre.

31) A ré excluiu a máquina retroescavadora que deu origem ao sinistro da indemnização dos bens propriedade de terceiros, porquanto defendeu (e nessa medida fez exercer os seus direitos na ação de reembolso, mas que não obteve vencimento) que a anomalia elétrica verificada na retroescavadora seria da responsabilidade da sua proprietária, e/ou respetiva seguradora, consoante os seguros em vigor;

32) (…) à indemnização de €90.535,30 a ré retirou o valor da máquina retroescavadora, perfazendo o valor global de €52.571,30.

33) No dia 25/11/2016, foi emitido um recibo de indemnização, em nome da autora, na qualidade dupla de segurada e de beneficiária da indemnização, e cujo risco afetado se circunscrevia ao conteúdo – cobertura base, no valor de € 79.857,03.

34) Depois de assinado o recibo, a ré efetuou o pagamento daquele valor, dando a autora que deu quitação total.

35) No dia 18.01.2017, foi emitido um recibo de indemnização, em nome da autora, na qualidade dupla de segurada e de beneficiária da indemnização, e cujo risco afetado se circunscrevia e ao conteúdo – cobertura base, com a observação seguinte: adicional referente a bens propriedade de terceiros, no valor de €52.571,30

36) Depois de assinado o recibo, a ré pagou aquele valor à autora que deu quitação total.

37) No dia 17/08/2016, por volta das 01:54 horas, deflagrou no interior da oficina da “Agrifer”, o incêndio que serve de causa de pedir nos presentes autos.

38) Nessa altura, não se encontrava ninguém na oficina, nem nas imediações da mesma.

39) O incêndio foi detetado automaticamente por sistema eletrónico e comunicado, via telemóvel, ao sócio gerente da autora, BB.

40) O qual deu alerta imediato aos Bombeiros.

41) Cerca de 10 minutos após a perceção do sinal de alerta, o sócio gerente da A. chegou ao local.

42) Pelas 02.16 horas, chegaram os Bombeiros Sapadores ...;

43) (…) nessa altura, já as chamas se haviam propagado a várias máquinas parqueadas no interior da oficina.

44) Dada a concentração de materiais combustíveis e outras matérias altamente inflamáveis, o incêndio desenvolveu chamas que se alastraram às paredes do edifício.

45) A onda de calor e fumo alastrou-se ao armazém de peças e aos escritórios instalados no 1º andar daquele edifício;

46) (…) bem como à sua cobertura em policarbonato, que acabou por ceder perante o calor.

47) O incêndio foi considerado extinto por volta das 3:30 horas.

48) Ao local compareceu a Guarda Nacional Republicana, que elaborou o correspondente Auto de Notícia, sob o NUIPC 001137/16.....

49) O edifício onde deflagrou o incêndio, e onde a autora mantém o seu estabelecimento comercial, é propriedade da “B..., Lda.”.

50) A através do contrato de Seguro Multirriscos Empresas PME, titulado pela apólice n.º ...64, a ré assumiu a responsabilidade pelos danos causados a tal edifício (sito no n.º ... da Travessa ..., freguesia ..., concelho ...) propriedade da “B...”.

51) Na sequência da ocorrência do referido incêndio, tanto a “B...” (enquanto proprietária do edifício), como a “AGRIFER” participaram o sinistro à “MAPFRE”, acionando as respetivas apólices que, à data, se encontravam válidas e em vigor.

52) Assim que lhe foram apresentadas as ditas participações, a “MAPFRE”, procedeu à abertura do correspondente processo de sinistro, e mandatou uma entidade especializada para, em seu nome e por sua conta, apurar as causas do mesmo

53) Na sequência das diligências realizadas em sede de averiguação, veio-se a constatar que o incêndio teve origem na máquina retroescavadora “JCB 3CX TED”, devida a uma anomalia de natureza elétrica.

54) A autora para além das atividades referidas em 1) dedica-se, também, com escopo lucrativo à atividade profissional de reparação de máquinas equipamentos agrícolas e industriais.

55) Em agosto/2016, a empresa “M..., Lda.”, acordou com a autora a reparação mecânica do sistema de transmissão da máquina retroescavadora “JCB 3CX TED.

56) (…) no dia 14/08/2016, a máquina deu entrada na oficina da autora instalada no edifício sito no n. º... da Travessa ..., da freguesia ... e ..., do concelho ...;

57) A reparação teve o seu início no dia 16/08/2016, com a desmontagem do diferencial e eixo traseiro da aludida máquina por um dos técnicos mecânicos, funcionário da Agrifer.

58) Não logrando concluir a reparação nesse próprio dia, o técnico mecânico ao serviço da “AGRIFER” deixou a sobredita máquina devidamente no interior da oficina, apoiada nas suas próprias sapatas estabilizadoras, e para continuação de reparação no dia seguinte.

59) Não fora a presença da máquina de matrícula ..-NP-.. nas instalações da A., o incêndio não teria ocorrido, nem se teriam produzido os danos dele resultantes.

60) Para ressarcimento dos danos causados pela máquina retroescavadora de matrícula ..-NP-.., como consequência direta e necessária do incêndio ocorrido, e em cumprimento da responsabilidade emergente do Contrato de Seguro Multirriscos Empresas PME a reconvinte liquidou diretamente à “B...” uma indemnização no montante global de €141.780,18.

61) A autora pagou á sociedade M..., Lda., o valor da máquina porque os agentes da ré a informaram que o dinheiro de uma forma ou de outra lhe seria pago.

62) A intervenção realizada pela Agrifer foi de natureza mecânica e restrita ao diferencial e eixo traseiro da máquina.

63) A autora não efetuou intervenção (mexeu) no painel de instrumentos onde se verificou a anomalia de natureza elétrica ou componentes elétricas do veículo.

64) A reconvenção foi deduzida em 07.10.2019 e notificada à autora nos autos em 10.10.2019.

65) A ré notificou a reconvenção à autora, antes da efetuada no processo, através de notificação judicial avulsa com os números 4156/19.... e 4157/19...., a correr nos juízos locais cíveis 4 e 3 respetivamente.”


O direito.

A questão que cumpre apreciar é a de saber se a Autora/reconvinda, enquanto proprietária de uma oficina onde deflagrou um incêndio com origem numa máquina retroescavadora que ali se encontrava para reparação, é responsável nos termos do art. 503º, nº1 do CC, pelos prejuízos causados pelo incêndio.


Defende a Recorrente que a Autora tinha a direcção efectiva do veículo, sendo responsável pelos danos causados pelo incêndio, um  risco próprio do veículo, estando, por isso, obrigada a ressarci-la do valor que, ao abrigo do contrato de seguro, pagou ao proprietário do imóvel como indemnização pelos danos causados com origem no veículo sobre o qual tinha direcção efectiva.


Esta pretensão soçobrou nas instâncias, que afastaram a aplicação do regime do art. 503º do CCivil, enquadrando a situação no âmbito de um contrato de empreitada cujo objecto era a reparação da retroescavadora, sem que possa ser imputada à autora/empreiteira responsabilidade pelo incêndio.


Vejamos de que lado está a razão.

O nº1 do citado art. 503º sob a epígrafe Acidentes causados por veículos, estatui:

Aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.


Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, pag. 514:

“Dentro desta fórmula legal cabem não só os danos provenientes dos acidentes provocados pelo veículo em circulação (atropelamento de pessoas, colisão com outro veículo, destruição ou danificação de coisas), como pelo veículo estacionado (choque ou colisão provocada por veículo parado fora de mão ou estacionado em lugar indevido, acidente causado por porta do veículo que ficou indevidamente aberta, explosão do depósito de gasolina (…), sendo irrelevante, por outro lado, que o acidente ocorra nas vias públicas ou fora delas.”


Quanto ao conceito de “veículo em circulação”, ensina Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral, I, 10ª edição, pag. 667:

“Tanto faz que ele circule em via pública, aberta ao trânsito em geral, como em qualquer recinto privado, apenas franqueado ao trânsito dos veículos de certa empresa, ou de outros habitantes do imóvel”.


No mesmo sentido Vaz Serra “deve reputar-se acidente de viação toda a ocorrência lesiva de pessoas ou bens provocada por veículo sempre que este manifeste os seus riscos especiais” – RLJ, nº 104º, pag. 46.


Fizeram aplicação destes princípios os acórdãos citados pela Recorrente. O indicado como acórdão-fundamento (Relação do Porto de 20.11.2014), considerou risco próprio do veículo o incêndio que, sem causa determinada, nele deflagrou quando estava estacionado;  o acidente provocado por uma máquina retroescavadora quando circulava num caminho municipal (Ac. Rel. Guimarães de 15.02.2018); o acidente provocado pelo resvalamento também de uma retroescavadora (Ac. Rel. Coimbra de 27.02.2019); provocado por um tractor na realização de trabalhos agrícolas (Ac. STJ de 08.05.2013).


Todas as situações apontadas têm em comum encontrar-se o veículo causador dos danos a ser utilizado em proveito do seu proprietário, ou pelo menos, de quem detinha a sua direcção efectiva, entendido o conceito de direcção efectiva como o poder real, de facto, sobre o veículo.


É que a responsabilidade pelo risco, em caso de veículo de circulação terrestre, como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, pag. 513, depende de duas circunstâncias: i) ter a pessoa a direcção efectiva do veículo causador do dano; ii) estar o veículo a ser utilizado no seu próprio interesse.


No caso de veículo entregue para reparação a uma oficina, o STJ já decidiu que nesses casos a direcção efectiva se transfere do proprietário para o garagista, sobre este recaindo a obrigação de indemnizar se verificados os pressupostos do nº1 do art. 503º.

Foi o caso do Acórdão de 21.04.2009, P. 1550/06, assim sumariado:

I - Aquando da entrega de um veículo na oficina, para reparação (revisão ou até inspecção) a direcção efectiva transfere-se do proprietário para o garagista durante o período de trabalho e fases prévias de diagnóstico ou de teste final;

II - O empregado mecânico da oficina que conduz o veículo nas fases de diagnóstico ou de teste final, fá-lo na qualidade de comissário do garagista;

III - O garagista está sujeito à obrigação de segurar (art. 6º, nº3 do DL nº 291/2007), sendo o seguro de responsabilidade civil para garantir a utilização do veículo enquanto tiver a sua direcção efectiva, isto é, o utilizar por virtude das suas funções e no exercício da sua actividade profissional. 


No mesmo sentido decidiu o Ac. STJ de 28.06.2007, P. 07B1707,

O proprietário do veículo automóvel que o entregou na oficina para reparação, deixa de ter a direcção efectiva e o proveito da circulação durante o período da reparação da mesma, uma vez que a circulação durante o período necessário para verificar as irregularidades a reparar, ocorre no interesse da reparadora.” 


Por ser assim, por passar a ter a direcção efectiva do veículo que lhe é entregue para reparação, sobre o garagista impende também a obrigação de segurar, como preceitua o nº3 do art. 6º do DL nº 291/2007 de 21.08, que aprovou o regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel:

Estão ainda obrigados os garagistas, bem como quaisquer pessoas ou entidades que exerçam a actividade de fabrico, montagem ou transformação, de compra e ou venda, de reparação, de desempanagem ou de controlo do bom funcionamento do veículo, a segurar a responsabilidade civil em que incorrem quando utilizem, por virtude das suas funções, os referidos veículos no âmbito da sua actividade profissional.


No caso específico de uma máquina retroescavadora, aceita-se que integre o tipo de veículos a que alude o nº2 do art. 109º do Código da Estrada: “máquina industrial, com motor de propulsão, de dois ou mais eixos, destinada à execução de obras ou trabalhos industriais e que só eventualmente transite na via pública, sendo pesado ou ligeiro, consoante o seu peso bruto exceda ou não os 3.500 Kg.”


Como assim, não pode excluir-se que estando o veículo retroescavadora entregue para reparação ocorra um acidente por cujos danos responde o garagista nos termos do nº1 do art. 503º. Pense-se na hipótese de um mecânico colocar a retroescavadora a circular na fase de diagnóstico/testagem e nessas circunstâncias, ainda que sem culpa, cause danos a terceiros. Justifica-se nestes casos a responsabilidade objectiva do garagista por ser a pessoa, que pela situação de facto em que se encontra, especialmente incumbe tomar as providências para que o veículo funcione sem causar danos a terceiros. (Ac. STJ de 09.03.2010, P. 698/09).


Postos estes princípios é altura de voltar ao caso dos autos, começando por recordar o quadro factual relevante:

- O veículo foi entregue pela sua proprietária na oficina da Autora no dia 14/08/2016, para reparação mecânica do sistema de transmissão;

- A reparação teve início no dia 16/08/2016, com a desmontagem do diferencial e eixo traseiro da máquina por um dos técnicos mecânicos funcionário da Agrifer;

-  Não tendo concluído a reparação naquele dia, o técnico mecânico deixou a sobredita máquina no interior da oficina, apoiada nas suas próprias sapatas estabilizadoras, e para continuação de reparação no dia seguinte;

- Pelas 01.54 horas do dia 17/08/2016, ocorreu um incêndio (…) com origem na máquina retroescavadora;

- Ocasionado por curto circuito na instalação elétrica da cabine, ao nível médio do lado direito do painel de instrumentos, mais especificamente na zona da junção da ficha de ligação da cablagem elétrica;

- A intervenção realizada pela Agrifer foi de natureza mecânica e restrita ao diferencial e eixo traseiro da máquina.

- A autora não efetuou intervenção (mexeu) no painel de instrumentos onde se verificou a anomalia de natureza elétrica ou componentes elétricas do veículo.


Deste conjunto de factos é de afastar a responsabilidade objectiva da Autora.

Já vimos que a responsabilidade pelo risco de veículos de circulação, nos termos do nº1 do art. 503º, depende da prova de duas circunstâncias: a) ter a pessoa a direcção efectiva do veículo causador do dano; b) estar o veículo a ser utilizado no seu próprio interesse.


Na análise destas circunstâncias deve ter-se uma perspectiva casuística, com ponderação da factualidade concretamente apurada e até do que foi acordado entre o proprietário do veículo e o responsável pela oficina, como referido no citado Acórdão de 21.04.2009.


Ora, aceitando que o incêndio constitui um risco próprio do veículo, a Autora, que recebeu a retroescavadora, no âmbito de uma relação contratual de empreitada para nela fazer uma reparação mecânica no diferencial e eixo traseiro, e a isso se limitou a sua intervenção, não pode ser responsabilizada por um curto circuito na instalação eléctrica da cabine, especificamente na cablagem eléctrica, pois que não tendo sido alertada pelo proprietário da máquina sobre a existência de qualquer problema elétrico, não tinha nenhum dever de controlo sobre este componente da máquina.


Tal risco de incêndio, que como observado no acórdão fundamento, constitui “um  risco próprio, específico, típico, de um veículo automóvel, mesmo estacionado, que decorre das suas sofisticadas componentes mecânicas, sensível rede eléctrica e complexos dispositivos electrónicos”, não se transferiu para a Autora, mantendo-se na  proprietária da máquina, a quem, em primeira linha, cabe a responsabilidade pela manutenção e bom funcionamento dos diversos componentes (mecânico, electrónico, pneus), do veículo.


Demonstrando-se que o incêndio nenhuma relação teve com a intervenção da Autora no veículo, e que sobre ela não recaía nenhum dever de vigilância/manutenção da parte eléctrica do veículo, terá de concluir-se que a Autora não pode ser responsabilizada objectivamente pelos danos provocados pelo incêndio nos termos do art. 503º, nº1 do CCivil.


Por estas razões, deve improceder o recurso interposto pela Ré Mapfre Seguros Gerais, S.A.  


Decisão

Termos em que se nega a revista e se confirma o acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente.


Lisboa, 15.09.2022


Ferreira Lopes (Relator)

Manuel Capelo

Tibério Nunes da Silva