Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4292/1999.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: AZEVEDO RAMOS
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
JOGO DE FUTEBOL
TRANSMISSÃO TELEVISIVA
ILICITUDE
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 04/29/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário : :

I –A legítima expectativa dos clubes de futebol no que respeita à assistência dos espectadores dos jogos que organizam é uma mera expectativa de facto, que não goza de qualquer protecção jurídica.

II - Se é legítimo entender-se que um clube de futebol espere que a assistência dos espectadores aos jogos em que é interveniente não seja perturbada pelos associados que estão vinculados pelas regras estabelecidas pela UEFA, já não é compreensível que esse clube de futebol possa exigir que tal expectativa se estenda a entidades terceiras (como a RTP), que nenhuma relação têm com a UEFA.

III – A UEFA é uma organização privada, regida pelo ordenamento jurídico suíço, cujo poder regulamentar apenas é susceptível de vincular pessoas singulares ou colectivas que integram tal organização.

IV – O art. 14 do Estatuto da UEFA (na redacção vigente em Setembro de 1997) sobre transmissão televisiva de jogos de futebol , assim como o Regulamento de Transmissões Televisivas elaborado em aplicação de tal preceito estatutário, não são vinculativos para terceiros, designadamente para empresas que exercem a actividade de transmissão televisiva.

V- Por isso, tendo a RTP adquirido a um clube os direitos de transmissão televisiva de um determinado jogo de futebol, para determinado horário, e tendo procedido à transmissão do mesmo jogo nos termos que acordara, não pratica nenhum facto ilícito, mesmo que tal transmissão tenha lugar fora do condicionalismo previsto na Regulamentação da UEFA.

VI- Nem resulta da factualidade provada que a RTP tivesse exercido o direito de transmissão do jogo em apreço em termos clamorosamente ofensivos dos limites impostos pela boa fé.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


Em 4-5-99, AA (V...... e BB (F....) instauraram a presente acção ordinária contra a ré CC, S.A., pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de 29.210.000$00, a título de danos patrimoniais, e de 25.0000$00, a título de danos não patrimoniais, acrescidas de juros.
Alegaram que no dia 16-9-97, às 19h30, teve lugar a realização do jogo de futebol Bastia /Benfica, e às 21 horas o jogo de futebol VSC/Lazio .
Entre a conclusão do primeiro jogo e o início do segundo havia apenas um intervalo de 15 minutos, sendo que a ré RTP não obteve a necessária autorização para tal transmissão, como obrigavam os Regulamentos da UEFA.
O facto da ré ter transmitido o jogo causou danos patrimoniais e não patrimoniais ao autor VSC, pelos quais este considera ter direito a ser indemnizado.

A ré contestou e alegou que as disposições invocadas não são susceptíveis de a vincular e que, além disso, violam o tratado da CEE e o Acordo da EEA, no que respeita às regras da concorrência.
A obtenção da autorização da BB para transmissão do jogo pela televisão incumbia à Federação de Futebol Francesa.

Os autores replicaram.
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Realizado o julgamento e apurados os factos, foi proferida sentença, que condenou a ré a pagar ao autor AA a quantia de 49.879,80 euros, por danos patrimoniais, acrescida de juros de mora.
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Apelou a ré, com êxito, pois a Relação de Lisboa, através do seu Acórdão de 10-11-09, concedeu provimento à apelação, revogou a sentença recorrida e absolveu a ré do pedido.
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Inconformado, o autor AA pede revista, onde conclui:
1 – Constitui legítima expectativa do autor que o nível de assistência dos espectadores aos jogos que promove seja respeitado por todos quantos têm interesses ligados à prática de futebol.
2 – A ré beneficia dessa expectativa criada aos clubes de futebol, na medida que o investimento por estes efectuados permite àquela aumentar o retorno obtido com as transmissões televisivas.
3 – A transmissão pela ré de um jogo de futebol de forma a interferir com a assistência ao jogo organizado pelo autor, na medida em que constitui a violação de uma expectativa criada ao autor, expectativa essa que, ainda que indirectamente, beneficia ré, constitui uma actuação contrária aos limites impostos pela boa fé e, portanto, em abuso do direito, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 334 do C.C., e nessa medida, constitui uma actuação ilícita.
4 – Encontrando-se preenchidos os demais requisitos da responsabilidade civil extracontratual, deve a ré ser condenada a indemnizar a autor pelos danos causados por este acto, em quantia a ser apurada em sede de execução de sentença.
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A ré contra-alegou em defesa do julgado.
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Corridos os vistos, cumpre decidir.

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A Relação considerou provados os factos seguintes :

1 – O AA, na época de 1996/97, disputou o Campeonato Nacional da 1ª Divisão, obtendo uma classificação que lhe permitiu disputar a Taça UEFA, o que, desde logo, motivou o interesse da respectiva massa associativa e simpatizantes.

2 – E, 16-9-97, teve lugar a realização do jogo Bastia /Benfica e, na mesma data, pelas 21 horas, realizava-se o jogo VSC/Lazio .

3 – A R... contratou com a Olivedesportos o direito de transmissão televisiva do jogo de futebol Bastia/Benfica .

4 – A F...., em 1-9-97, questionou a UEFA sobre a forma como se poderia opor à transmissão televisiva do jogo Bastia/Benfica.

5 – A Olivedesportos só em 15-9-97 confirmou à R... a possibilidade de transmissão televisiva do jogo Bastia/Benfica, comunicando-lhe a aquisição dos respectivos direitos.

6 – A UEFA remeteu à F.... o fax junto a fls 134, traduzido a fls 244.

7 – Em 12-9-09, o V...remeteu à F.... um fax, onde refere, além do mais, que “este club teve conhecimento que o jogo supra mencionado iria ser alvo de transmissão televisiva para Portugal. Como o horário desse jogo coincide com o encontro Vitória/Lazio, informamos essa Federação que não autorizamos essa transmissão ”.

8 – Tendo em conta a posição assumida pelo V.., a F.... diligenciou junto da R... no sentido de impedir a transmissão do jogo Bastia/ Benfica .

9 – A F...., a pedido da R..., enviou-lhe via fax, a regulamentação sobre o art. 14 dos estatutos da UEFA.

10 – A F.... enviou à R... um fax em 16-9-07, onde se refere, alem do mais, que “… nestas condições, lamentamos informar V.Ex. que não autorizamos a referida transmissão ao abrigo do Estatuto no Regulamento de Aplicação do art. 14 do Estatuto da UEFA.

11 – O primeiro jogo (Bastia/Benfica), que se iniciara às 19 h30, foi transmitido pela R..., tendo findado às 21 h15, pelo que entre a conclusão do primeiro jogo e o i9nício do jogo do autor mediava um hiato temporal de 15 minutos.

12 – Não foi observado pela ré o 9intervalo de 45 minutos entre a transmissão televisiva de um jogo e o outro jogo .

13 – Houve grande expectativa por parte da direcção do V.., aquando da marcação do jogo VSC/Lazio, o que a levou a requisitar à F.... a emissão de 16.200 bilhetes.

14 – O primeiro autor apenas conseguiu vender 9.571 bilhetes.

15 – Os dirigentes do autor esperavam um número mais elevado de pessoas do que aquele que esteve presente, deixando o V.. de receber um quantitativo não apurado correspondente à diferença entre os bilhetes vendidos e aqueles que seriam vendidos se não tivesse havido a transmissão do jogo Bastia/Benfica .

16 – Se não tivesse havido a transmissão do jogo Bastia/Benfica teria, afluído ao Estádio Afonso Henriques mais pessoas do que as que estiveram presentes para o evento VSC/Lazio, em quantidade não determinada .

17 – O primeiro autor só arrecadou 19.631.500$00.

18 – Ao transmitir o referido jogo, a ré tinha perfeito conhecimento que a transmissão do aludido encontro seria causa directa de ausência de um maior número de espectadores no estádio do primeiro autor.

19 – Os sócios do VSC não são habitualmente sócios do SLB.

20 – Os jogos de futebol, em termos de assistência de público, para serem comparáveis entre si, têm de atender a diversos factores, designadamente, a equipa contra a qual se vai jogar e a maior ou menor popularidade da mesma junto do público, a existência (quando se trata de equipas estrangeiras) de jogadores portugueses no plantel da equipa adversária, o clima, a hora do jogo.

21 – O AA foi declarado de utilidade pública .

22 – A F.... é uma pessoa colectiva de direito privado com utilidade pública desportiva, sem fins lucrativos, que tem como objecto promover, regulamentar, organizar e controlar o ensino e a prática do futebol em todas as especialidades e competições.

23 – A ré é uma sociedade anónima que se dedica, fundamentalmente, ao exercício da actividade de televisão, sendo concessionária de serviço público de televisão.
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A única questão a decidir consiste apenas em saber se a referida transmissão do jogo Bastia/Benfica por parte da ré R... constitui violação da legítima expectativa do autor V.. de que o nível de assistência aos jogos que promove seja respeitado e se representa actuação contrária aos limites impostos pela boa fé, configurando uma actuação ilícita, por abuso do direito, nos termos do art. 334 do C.C.

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No Acórdão recorrido, foi entendido não haver ilicitude na conduta da R..., no que concerne à transmissão do mencionado jogo Bastia/Benfica.
Como é sabido, a ilicitude pressupõe que o facto imputado ao agente constitua violação de direitos subjectivos ou de norma legal destinada a proteger interesses alheios ( art. 483 do C.C.).
Argumentou-se que, no caso concreto, a R... adquiriu à Olivedesportos o direito de transmissão televisiva deste jogo para o território nacional, direito esse que fora adquirido por esta sociedade ao club de futebol Bastia.
Nenhum acordo existia entre a R... e a F.... ou entre a R... e o V.. relativamente ao condicionalismo a que obedeceria a transmissão televisiva do jogo Bastia /Benfica, não se verificando a violação de qualquer cláusula contratual susceptível de fundar responsabilidade civil.
Acrescentou-se que, “ ainda que a transmissão do jogo Bastia /Benfica tenha sido causal da redução do número de espectadores no estádio do V.., com repercussão na receita de bilheteira, tal é manifestamente insuficiente para responsabilizar a R... pela frustração dos lucros esperados, por total ausência de base legal que permita qualificar como ilícita a sua actuação no que concerne à transmissão daquele jogo de futebol.
Num mercado livre e concorrencial, o autor V.. não podia ter a veleidade de beneficiar da exclusividade quanto ao horário em que ocorreu o jogo VSC/Lazio ou da necessidade de obter autorização prévia da F.... para referida transmissão, não tendo o autor V.. legitimidade para exigir de terceiros que se abstivessem de transmitir, dentro do mesmo horário ou em horário sensivelmente idêntico, outro jogo de futebol.
Também não se descortina a violação de normas de protecção que o autor pudesse invocar perante a ré .
Sendo verdade que a F.... , a sua congénere francesa (FFF) e os clubes em ambas filiados estavam submetidos à referida regulamentação da UEFA (art. 14 dos Estatutos da UEFA, que vigorava em Setembro de 1997, em conjugação com o Regulamento de Transmissões Televisivas de jogos de futebol, aprovado pela UEFA em 18-9-93), tal revela-se insuficiente para extrair um dever de abstenção geral oponível à R... e cuja violação seja causa de responsabilidade civil .
Nenhuma entidade de cariz particular pode ter a veleidade de inibir ou condicionar outros agentes económicos no que concerne ao exercício de qualquer actividade, sob pretexto de que isso lhe causa danos “ ( fls 927).

Agora, na revista, o recorrente V.. vem sustentar que a transmissão do jogo efectuada pela ré violou uma expectativa criada ao mesmo autor e representa uma actuação contrária aos interesses impostos pela boa fé, pelo que, nessa medida, constitui uma actuação ilícita, por praticada com abuso do direito, nos termos do art. 334 do C.C.

Mas não é assim.

Para que o exercício de um direito seja abusivo “ é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder.
É preciso, como acentuava Manuel de Andrade, que o direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça “ ( Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 8ª ed. pág. 553).
Ora, da factualidade provada, não resulta que a recorrida tenha exercido o direito de transmissão do jogo em apreço em termos clamorosa e manifestamente ofensivos dos limites impostos pela boa fé .
De resto, nem algo foi invocado pelo recorrente a tal respeito, embora o abuso do direito seja de conhecimento oficioso.
Com efeito, a recorrente limita-se a tecer considerações acerca da legítima expectativa dos clubes de futebol no que respeita à assistência dos espectadores aos jogos que organizam, nada concretizando relativamente ao pretenso exercício abusivo do direito de transmissão do jogo em questão.
Mas nem todas as expectativas gozam de protecção jurídica.
Há que distinguir entre expectativas de facto e expectativas jurídicas.
“A expectativa de facto traduz-se numa mera aspiração ou previsão de certo facto ou efeito jurídico. A expectativa de facto corresponde ao sentido vulgar da palavra e não beneficia de qualquer protecção jurídica ( …)
A expectativa jurídica, ao invés, é uma posição de expectação, à qual o direito confere protecção, designadamente através de permissões atribuídas ao sujeito expectante, em ordem à defesa da probabilidade de efectivação do seu desejo” ( Maria Raquel Rei, Da Expectativa Jurídica, Revista da Ordem dos Advogados, 1994, Vol. I, pág. 149 e segs) .
Ora, afigura-se que a expectativa invocada pelo recorrente é meramente fáctica, pelo que não goza de qualquer protecção jurídica.
Conforme resultou provado, a recorrida adquiriu os direitos de transmissão televisiva do jogo Bastia/ Benfica à Olivedesportos, tendo procedido à transmissão do mesmo jogo nos termos que acordara.
Não tinha razões para duvidar que a Olivedesportos não tivesse assegurado a observância das formalidades legalmente exigíveis para a transmissão televisiva do jogo, pelo que a recorrida tinha a expectativa de poder exercer validamente os direitos adquiridos e de obter receitas com a indicada transmissão, sem interferência de terceiros.
Não se vislumbra qualquer justificação para ser entendido que a expectativa do recorrente V.. deva prevalecer sobre as expectativas de todos os que seriam directamente prejudicados com a não transmissão televisiva do jogo Bastia/Benfica, naquele dia .
Com efeito, se é legítimo entender-se que o recorrente espere que a assistência dos espectadores aos jogos em que é interveniente não seja perturbada pelos associados que estão vinculados pelas regras estabelecidas pela UEFA, já não é compreensível que o recorrente possa exigir que tal expectativa se estenda a entidades terceiras (como é o caso da R...), que nenhuma relação têm com a UEFA ou com o clubes de futebol e que, em última instância, não são obrigadas a conhecer a regulamentação respeitante à transmissão televisiva de jogos .
A UEFA é uma organização privada, regida pelo ordenamento jurídico suíço, cujo poder regulamentar apenas é susceptível de vincular pessoas singulares ou colectivas que integram tal organização.
O invocado art. 14 do Estatuto da UEFA (na redacção vigente em Setembro de 1997) sobre transmissão televisiva de jogos de futebol, assim como o Regulamento de Transmissões Televisivas elaborado em aplicação de tal preceito estatutário, não são vinculativos para terceiros, designadamente para empresas que exercem a actividade de transmissão televisiva.
Por isso, a transmissão, pela R..., de um jogo de futebol fora do condicionalismo previsto em tal regulamentação, não constitui facto ilícito.
E, face ao circunstancialismo provado, não é de concluir que tivesse havido manifesto abuso do direito na transmissão televisiva do jogo em questão, por parte da ré, que gere qualquer dever de indemnizar o VSC.
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Termos em que negam a revista.
Custas pelo recorrente.

Lisboa, 29 de Abril 2010

Azevedo Ramos (Relator)
Silva Salazar
Nuno Cameira