Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
414/13.6TBFLG.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO JOAQUIM PIÇARRA
Descritores: RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DA REVISTA
DUPLA CONFORME
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
ADVOGADO
PERDA DE CHANCE
FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE
CULPA
NEXO DE CAUSALIDADE
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DA RELAÇÃO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS
CONSTITUCIONALIDADE
ACESSO AO DIREITO
Data do Acordão: 04/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO / RECURSO DE REVISTA.
DIREITO CONSTITUCIONAL – DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS.
Doutrina:
-António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4.ª Edição, Almedina, p. 349 a 352;
-Carlos Lopes do Rego, Acesso ao direito e aos tribunais, in Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, 1993, p. 83;
-Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume II, 2015, Almedina, p. 497, 501 e 502;
-J.O. Cardona Ferreira, Guia de Recursos em Processo Civil, 6.ª Edição, Coimbra Editora, p. 210 e 211.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 640.º, 662.º E 674.º, N.º 1.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 20.º, N.º 4.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 28-04-2014, PROCESSO N.º 473/10.3TBVRL.P1-A.S1;
- DE 18-09-2014, PROCESSO N.º 630/11.5TBCBR.C1.S1;
- DE 28-05-2015, PROCESSO N.º 1340/08.6TBFIG.C1.S1;
- DE 16-06-2016, PROCESSO N.º 551/13.7TVPRT.P1.S1;
- DE 29-06-2017, PROCESSO N.º 398/12.8TVLSB.L1.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - Não existe fundamentação essencialmente diferente, para efeitos de admissibilidade do recurso de revista, quando as decisões da 1.ª e da 2.ª instância se inscreveram no mesmo quadro normativo – regime do mandato forense e responsabilidade da ré advogada pelo negligente exercício do mandato forense que os autores lhe confiaram – e mantiveram-se fiéis ou conformes no modo como afastaram a responsabilização da ré, com fundamento no não preenchimento dos respectivos pressupostos.

II - A circunstância de na sentença se concluir pela falta de culpa da ré, dispensando-se, nessa medida, a apreciação dos restantes pressupostos da responsabilidade civil, e o acórdão recorrido, por seu turno, assentar na inexistência de nexo causal para afastar a responsabilidade da ré, não configura, nem constitui fundamentação essencialmente diferente susceptível de abrir aos recorrentes a normal porta recursória para o STJ.

III - A arguição de nulidades do acórdão da Relação ou o erro na apreciação da prova, não implicam, por si só, a admissibilidade do recurso de revista; podem é constituir fundamentos deste, como se alcança do art. 674.º, n.º 1, do CPC, se for admissível, o que é bem diferente.

IV - Só em relação aos aspectos adjectivos atinentes ao exercício ou não dos poderes da Relação no tocante à impugnação da matéria de facto impetrada na apelação (arts. 640.º e 662.º do CPC) é que não se verifica a limitação recursória derivada da dupla conforme.

V - A exigência de um processo equitativo, consagrada no art. 20.º, n.º 4, da CRP, não afasta a liberdade de conformação do legislador na concreta modelação do processo. Impõe apenas que, no seu núcleo essencial, os regimes adjectivos proporcionem aos interessados meios efectivos de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, bem como uma efectiva igualdade de armas entre as partes no processo, não estando o legislador autorizado a criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva.

Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça:



I – AA e seu marido, BB, residentes em …, F…, intentaram acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra CC, advogada, com escritório em F…, alegando, em síntese, que:

Em finais de Novembro de 2004, a sociedade DD, Lda - cujo capital se encontrava inscrito em nome da Autora que, também, exercia a respectiva gerência - era simultaneamente devedora e credora da sociedade "EE, Lda" de quantias diversas fruto do relacionamento existente entre ambas sociedades.

A dívida da DD, Lda, encontrava-se titulada por um cheque no valor de € 10.00.0,00 - sacado pela Autora sobre o Banco FF - e por uma letra de câmbio no valor de €7.035,00, esta subscrita pelo Autor em 05/05/2004 com vencimento para 05/08/2004 e que, por exigência da sacadora, na data do respetivo vencimento foi substituída por uma outra letra de câmbio de igual valor mas subscrita por ambos os Autores e com vencimento para 15/10/2004, e que, mais tarde, foi sendo amortizada parcialmente até ao montante de, pelo menos, €6.417,00.

Em Novembro de 2004 estava a correr termos pelo 3° Juízo do Tribunal Judicial de F…, sob o n° 2552/04.7TBFLG, uma execução contra os Autores para cobrança da quantia de € 10.000,00, que tal cheque titulava.

Pretendendo pôr fim a essa execução e, bem assim, obter o acerto global das contas entre as duas sociedades, em meados de Novembro de 2004, intervindo por si, pela mulher e pela referida sociedade desta, o Autor contactou a Ré, com quem reuniu, para desta obter o necessário aconselhamento e, sobretudo, mandatar - como mandatou - para o tratamento jurídico relativo à negociação extrajudicial com vista ao pagamento do saldo credor que se viesse a apurar a favor da sociedade "EE, Lda".

A Ré desenvolveu negociações com o advogado da "EE, Lda." que vieram a culminar num acordo a colocar ponto final no contencioso entre as duas sociedades e também eles, nos termos das seguintes cláusulas:

a) Os Autores, de uma só vez, pagariam à "EE, Lda" a quantia única de € 10.000,00 (dez mil euros);

a.1) A DD, Unipessoal, Lda." abdicaria do seu direito indemnizatório, cujo valor seria compensado com o remanescente do crédito da "EE, Lda.";

b) Por sua vez, a "EE", contra tal pagamento, ficava obrigada a:

b.1) Desistir da supra identificada execução e, bem assim, a requerer o desentranhamento do, também, supra identificado cheque;

b.2) Devolver à Ré - a fim de os mesmos, por intermédio desta, serem entregues aos Autores - todos os restantes títulos que tinha na sua posse, nomeadamente as letras de câmbio, inicial e a substituta e reformas subsequentes; e

b.3) Entregar o respectivo recibo de quitação da totalidade da dívida resultante das supra aludidas negociações extra judiciais e subsequente acerto de contas.

Contrariamente ao acordado e agindo com negligência grave, consubstanciada na confiança que depositava no Colega mandatário da "EE, Lda", a Ré entregou àquele a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros) recebida do Autor, sem que, em troca, dele recebesse os mencionados títulos cambiários e o respetivo recibo de quitação.

Da descrita conduta negligente da Ré resultaram graves danos patrimoniais e não patrimoniais para os Autores, uma vez que, não obstante terem procedido ao pagamento nos termos acordados, a "EE, Lda." endossou duas letras de câmbio - a originária e a substituta - à sociedade GG, Lda que as deu à execução, em 22 de Fevereiro de 2005, o que importou para os Autores o pagamento do montante global de €16.404,37, para além de encargos judiciais no valor de €5.434,13, a que acrescem juros moratórios vencidos no montante de €3.848,53.

Sofreram ainda incómodos, humilhações, vergonha, perturbação do sono e constrangimentos vários perante a penhora e anúncio da venda de prédios seus penhorados no âmbito das execuções movidas com base nos títulos cambiários não recolhidos pela Ré, o que lhes confere o direito a serem indemnizados pela Ré em quantia nunca inferior a €5.000,00.

Com tais fundamentos concluíram por pedir a condenação da Ré a pagar-lhes a quantia global de €30.687,03, acrescida dos juros de mora vincendos à taxa legal até integral e efectivo pagamento, bem como a quantia que, a final, os Autores tiverem de despender com despesas e honorários com a presente ação e que, após convite, fixaram em €5 000,00.

A Ré apresentou contestação a pugnar pela improcedência da acção, sustentando assentar em pressupostos inexactos e não ser responsável pelos invocados danos, desse modo, concluindo pela sua absolvição do pedido.

Além de contestar, a Ré provocou também a intervenção principal da Companhia de Seguros HH, S.A., II - Companhia de Seguros, S.A., 0ra designada por JJ - Companhia de Seguros, S.A., DD, Lda, KK e LL.

Admitidas as intervenções principais das Seguradoras e acessórias da DD, Unipessoal, Lda e KK, contestaram, autonomamente, as primeiras chamadas, aderindo à contestação da Ré e sustentando não lhes caber responder pelos alegados danos dos Autores.

Estes replicaram a manter a sua posição inicial.

Na sequência da normal tramitação processual veio a ser proferida sentença a julgar totalmente improcedente a acção e a absolver a Ré dos pedidos e as chamadas da instância.

Inconformados, apelaram os Autores, sem êxito, tendo a Relação do Porto confirmado, por unanimidade, o sentenciado em 1ª instância (cfr. fls. 1088 a 1134).

Persistindo inconformados, os Autores interpuseram recurso de revista a pugnar pela revogação do acórdão da Relação e a Ré e as intervenientes principais apresentaram contra-alegações a suscitar a inadmissibilidade da revista e, para o caso de vir a ser admitida, a sustentar a ampliação do seu objecto e o seu insucesso.

O recurso foi admitido na Relação (cfr. fls. 1284), mas o relator proferiu a decisão datada de 24.01.2018 que constitui folhas 1286 a 1289, cujo teor aqui se tem por reproduzido, na qual entendeu que o recurso de revista é inadmissível e não será de conhecer do seu objecto.

É desta decisão que vem interposta a presente reclamação para a conferência, insistindo os Recorrentes (ora, reclamantes), nos termos constantes de folhas 1304 a 1311, cujo teor aqui se tem por reproduzido, pela admissibilidade do recurso de revista que interpuseram.

Não foi oferecida resposta à reclamação.


II - Perante os passos processuais atrás enunciados, há que apreciar, agora, do (des)acerto da decisão do relator de não admitir o impetrado recurso de revista, tendo presente, desde logo, que, muito embora as decisões judiciais sejam impugnáveis por meio de recurso (artigo 627º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil), a admissibilidade deste está condicionada, através de limites objectivos fixados na lei[1].

Como se sabe, a natural escassez dos meios disponibilizados para administrar a Justiça e a necessidade da sua racionalização impõem que se coloquem alguns condicionamentos na admissibilidade ilimitada de recursos, em especial para o Supremo Tribunal de Justiça, que constitui o grau superior de jurisdição na hierarquia dos tribunais judiciais. Daí que o referido princípio geral da recorribilidade das decisões judiciais sofra várias excepções, mormente no acesso ao topo da hierarquia, entre elas figurando, por disposição legal (artigo 671º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil), a chamada “dupla conforme” instituída com o deliberado objetivo de racionalizar o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça e acentuar as suas funções de orientação e uniformização da jurisprudência e que é traduzida numa pronúncia com o mesmo sentido decisório das duas instâncias[2] a tornar inadmissível o recurso do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância[3].

A dupla conforme constitui, pois, uma relevante exceção à regra plasmada no n.º 1 do artigo 671º, do Cód. Proc. Civil de que “cabe revista do acórdão da Relação que tenha incidido sobre uma decisão da 1ª instância que conheça do mérito da causa ou tenha posto termo ao processo”.

Da análise e cotejo das decisões da 1ª instância (fls. 828 a 885) e da Relação (fls. 1088 a 1134) resulta que ambas as instâncias convergiram na improcedência da acção e nas absolvições da Ré dos pedidos e das intervenientes principais (as Seguradoras) da instância. Existe, assim, dupla conforme, na medida em que há total conformidade ou coincidência entre a decisão da 1ª instância e o acórdão da Relação que, frise-se, foi tirado, por unanimidade e com fundamentação essencialmente idêntica, como se alcança do seu teor e está evidenciado na decisão do relator. Em resultado disso, o impetrado recurso de revista normal ou revista-regra, não é obviamente admissível, por força da regra da dupla conforme, e, não obstante ter sido recebido na Relação, por decisão que não vincula este Tribunal (artigo 641º, n.º 5, do Cód. Proc. Civil), entende-se que, como bem decidiu o relator, não será de tomar conhecimento do seu objecto.

Os Recorrentes (ora, reclamantes) discordam dessa evidência e persistem em pugnar pela inverificação da apontada limitação recursória, sustentando, em primeiro lugar, que a fundamentação das duas decisões é essencialmente diferente, o que lhe abriria a porta de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça.

Não têm, porém, razão.

Com efeito, para que o recurso de revista seja admissível, mesmo quando o acórdão da Relação confirma integralmente a sentença do tribunal de 1.ª instância, sem voto de vencido, é necessário que a fundamentação da sentença e do acórdão seja diversa e que tal diversidade tenha natureza essencial, desconsiderando-se, para este efeito, discrepâncias marginais, secundárias ou periféricas, que não representem efetivamente um percurso jurídico diverso[4], e bem ainda a mera diferença de grau, no tocante à densidade fundamentadora, e divergências meramente formais ou de pormenor[5]

Perfilhando essa orientação doutrinária, o Supremo Tribunal de Justiça tem observado repetidamente[6] que “só pode considerar-se existente uma fundamentação essencialmente diferente quando a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radicalmente ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada – ou seja, quando tal acórdão se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1.ª instância”.

No caso, o sentido decisório é absolutamente coincidente nas decisões de ambas as instâncias (improcedência da acção e absolvições da Ré dos pedidos e das intervenientes da instância) e não se vê que entre elas exista diversidade essencial na fundamentação, na medida em que ambas afastam a responsabilidade da Ré pelos alegados danos derivados do negligente exercício do mandato forense que lhe confiaram.

Como se alcança do cotejo de fls. fls. 828 a 885 e 1088 a 1134, as decisões da 1ª e 2ª instâncias inscrevem-se no mesmo quadro normativo (regime do mandato forense – art.ºs 1157º, 262º do Cód. Civil e 36º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil -, e responsabilidade da Ré pelo negligente exercício do mandato forense que os Autores lhe confiaram) e mantém-se fiéis ou conformes no modo como afastam a não responsabilização da Ré, com fundamento no não preenchimento dos respectivos pressupostos, o que nos leva a considerar que, ao invés do que defendem os Recorrentes (ora, reclamantes), não existe fundamentação essencialmente diferente.

Aliás, como é explicitado pelo relator, no despacho reclamado, ambas as instâncias enquadraram a situação factual e analisaram-na no âmbito do regime do mandato forense/responsabilidade da Ré pelo exercício negligente do mandato conferido, concluindo que a Ré não deverá ser responsabilizada a esse título, uma vez inverificados os respectivos pressupostos, o que encerra uma verdadeira sobreposição de decisões geradora de dupla conforme.

A discrepância referida pelos Recorrentes (ora, reclamantes) e na qual radicam a pretensa diferente fundamentação (na sentença a falta de culpa e no acórdão recorrido a falta de nexo causal) não corresponde a alicerce ou trilho jurídico essencialmente diferente entre as duas decisões capaz de abrir a porta de acesso ao terceiro grau de jurisdição.

A circunstância de na sentença se concluir pela falta de culpa da Ré, dispensando-se, nessa medida, a apreciação dos restantes pressupostos da responsabilidade civil (cfr. fls. 884), e o acórdão recorrido, por seu turno, assentar na inexistência de nexo causal (cfr. fls. 1132 e 1133), para afastar a responsabilidade da Ré, não configura, nem constitui fundamentação essencialmente diferente susceptível de abrir aos Recorrentes (ora, reclamantes) a normal porta recursória para este Alto Tribunal. Pelo contrário, as duas decisões fundam-se, na essência, nos mesmos motivos que, como já referido, se resumem à falta ou inverificação dos pressupostos da responsabilidade contratual, daí resultando a limitação recursória derivada da dupla conforme e a inadmissibilidade do recurso interposto, tanto mais que os Recorrentes (ora, reclamantes) não se socorreram também da via atípica ou especial, para ver tal porta de acesso aberta, dado não terem invocada (nem ocorrer) qualquer situação em que o recurso é sempre admissível (artigo 629º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil) e muito menos pela via excepcional (artigo 672º do Cód. Proc. Civil) que não foi sequer accionada.

Sublinhe-se também que a arguição de nulidades do acórdão da Relação ou o erro na apreciação da prova, outros dos pretextos a que os Recorrentes (ora, reclamantes) lançaram âncora para alicerçar a recorribilidade daquela decisão, não implicam, por si só, como defendem os reclamantes, a admissibilidade do recurso de revista. Podem é constituir fundamentos deste, como se alcança do artigo 674º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, se for admissível, o que é bem diferente. A admissibilidade é prévia e está condicionada a pressupostos que nada têm a ver com os fundamentos do próprio recurso. Aliás, as nulidades devem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a decisão e, só no caso de ser admissível recurso ordinário, é que poderão constituir fundamento do mesmo (artigos 613º, n.º 2, e 615º, n.º 4, do Cód. Proc. Civil).

Por outro lado, a inexistência da dupla conforme quanto à decisão referente à matéria de facto, não envolve propriamente esta, como supõem os reclamantes, mas sim e exclusivamente o modo como a Relação exercitou ou não os seus poderes próprios e privativos. Só em relação aos aspectos adjectivos atinentes ao exercício ou não desses poderes no tocante à impugnação da matéria de facto impetrada na apelação (artigos 640.º e 662.º do Cód. Proc. Civil) é que não se verifica a limitação recursória derivada da dupla conforme. Esta é a jurisprudência corrente e pacífica do Supremo Tribunal de Justiça que reiteradamente tem afirmado que, no âmbito do recurso de revista, é sindicável a recusa, pela Relação, da reapreciação da prova bem como a incorrecção ou insuficiência da sua efectivação, por tal constituir uma violação da lei processual e, nessa medida, envolver matéria de direito, sem que, no entanto, tal implique qualquer valoração dos critérios empregues nessa reapreciação.

Não questionando os reclamantes a observância desses normativos, ponto em que na realidade inexiste sobreposição decisória conducente à limitação recursória decorrente da dupla conforme, não colhe a sua argumentação, apesar do reconhecido esforço, no sentido da inverificação dessa limitação. Os reclamantes discordam é da valoração probatória feita, coincidentemente pelas instâncias, área excluída da sindicância do Supremo Tribunal de Justiça (artigo 662º, n.º 4, do Cód. Proc. Civil), o que inviabiliza o recurso de revista «normal» interposto, tanto mais que inexiste qualquer questão de direito apreciada, em exclusivo e em primeira mão pela Relação, relativamente à qual se deva entender que não há sobreposição decisória susceptível de obstar ao funcionamento da limitação recursória decorrente da chamada dupla conforme.

É certo que, como já dito, tanto a arguição de nulidades como a temática colocada pelos reclamantes em relação à validade/extensão da confissão constitui matéria sindicável em sede de recurso de revista (artigos 674º, n.ºs 1 e 3, e 682º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil), mas só se este for admissível, questão que obviamente é prévia. Quer dizer ou explicitando melhor, tais matérias suscitadas pelos reclamantes no recurso de revista podem ser objecto desse recurso, mas não impõem, por si só, a admissibilidade do mesmo, que está consabidamente subordinada a outros pressupostos ou condicionamentos, designadamente, a limitação resultante da dupla conforme. E, no caso, tendo as duas instâncias entendido admitir a produção de prova por confissão que coincidentemente valoraram há também, quanto a essa questão, sobreposição decisória obstativa do recurso de revista «normal».

Resta, por fim, acrescentar que a indicada limitação recursória e o entendimento aqui seguido não enfermam, contrariamente ao invocado pelos reclamantes, de inconstitucionalidade, por violarem o direito ao recurso e à tutela jurisdicional efectiva (artigo 20º da CRP). Tal preceito garante a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos (n.º 1), impondo ainda que esse direito se efective através de um processo equitativo (n.º 4) e que, para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegure aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos (n.º 5).

A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido que o direito de acesso aos tribunais ou à tutela jurisdicional implica a garantia de uma protecção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efectiva, cujo âmbito normativo abrange, nomeadamente, o direito de agir em juízo através de um processo equitativo, o qual deve ser entendido não só como um processo justo na sua conformação legislativa, mas também como um processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais.

Todavia, a exigência de um processo equitativo, consagrada no artigo 20º, n.º 4, da Constituição, não afasta a liberdade de conformação do legislador na concreta modelação do processo. Impõe apenas que, no seu núcleo essencial, os regimes adjectivos proporcionem aos interessados meios efectivos de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, bem como uma efectiva igualdade de armas entre as partes no processo, não estando o legislador autorizado a criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva.

No caso em apreço, não se está perante uma situação de negação de acesso aos tribunais, mas sim de restrição do acesso, em via de recurso, a um determinado tribunal – o Supremo Tribunal de Justiça. O direito ao recurso foi, nos termos gerais, reconhecido e efectivamente exercido, pois a decisão da 1ª instância pôde ser questionada perante o Tribunal da Relação. Negado foi apenas o acesso recursório ao Supremo Tribunal de Justiça, limitação normativa que não fere aqueles direitos, na medida em que, por um lado, a Constituição não impõe, directa ou indirectamente, o direito ao triplo grau de jurisdição em matéria civil, e, por outro, cabe na discricionariedade do legislador a definição dos casos em que se justifica o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, sendo que o critério (a celeridade, rápida estabilização das decisões coincidentes, racionalidade no acesso ao Supremo Tribunal de Justiça de forma a acentuar as suas funções de orientação e uniformização da jurisprudência) a que o mesmo fez apelo para a limitação desse acesso, não se apresenta arbitrário, desrazoável ou sequer desproporcionado.

Nesta conformidade, não assiste razão aos reclamantes em se insurgirem contra a decisão do relator de não admitir o recurso de revista que interpuseram, soçobrando a argumentação que ex adversu delinearam, com o fito de justificar a sua admissibilidade e conhecimento do seu objecto, o que implica o total inêxito da reclamação e a inerente confirmação do despacho reclamado.


III – Decisão

Nos termos expostos, indefere-se a reclamação e confirma-se o despacho reclamado, fixando em 4 UC a respetiva taxa de justiça a cargo dos reclamantes, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.

Notifique.


*

Lisboa, 12 de Abril de 2018


António Joaquim Piçarra (relator)

Fernanda Isabel Pereira

Olindo Geraldes

_________


[1] Cfr. Carlos Lopes do Rego, Acesso ao direito e aos tribunais, in Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, 1993, pág. 83.
[2] Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, in Direito Processual Civil, Volume II, 2015, Almedina, pág. 497.
[3] António Santos Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª edição, Almedina, pág. 349, e J.O. Cardona Ferreira, in Guia de Recursos em Processo Civil, 6ª edição, Coimbra Editora, págs. 210 e 211.
[4] Cfr., neste sentido, António Santos Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª edição, Almedina, págs. 349 a 352.
[5] Cfr., neste sentido, Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, in Direito Processual Civil, 2015, Almedina, págs. 501 e 502.
[6] Cfr., a este propósito e a título de exemplo, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Abril de 2014 (proc. nº 473/10.3TBVRL.P1-A.S1), de 18 de Setembro de 2014 (proc. nº  630/11.5TBCBR.C1.S1), de 28 de Maio de 2015 (proc. nº 1340/08.6TBFIG.C1.S1), de 16 de Junho de 2016 (proc. nº 551/13.7TVPRT.P1.S1), e de 29 de Junho de 2017 (proc. n.º 398/12.8TVLSB.L1.S1, todos acessíveis através de www.dgsi.pt.