Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1562/17.9T8PVZ.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: REMANESCENTE DA TAXA DE JUSTIÇA
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA
LEGITIMAÇÃO
Data do Acordão: 05/24/2022
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário :
I - A publicidade dos acórdãos uniformizadores de jurisprudência proferidos pelo STJ, consubstanciando uma exigência do princípio do Estado de direito democrático, tem a ver, fundamentalmente, com o direito de os cidadãos tomarem conhecimento do sentido interpretativo fixado relativamente às normas que os regem em situações de conflito de jurisprudência; não, com a obrigatoriedade do respectivo acatamento.
II - Não foi atribuída aos acórdãos uniformizadores força obrigatória geral, nem sequer vinculativa para a organização judiciária. Não obstante, a jurisprudência uniformizada deve ser respeitada pelos tribunais de instância e pelo próprio STJ, uma vez que a aplicação do direito não pode ser alheada dos valores da igualdade, da segurança e da certeza jurídicas, pressupostos da própria legitimação da decisão.
III - O valor persuasivo dos acórdãos uniformizadores encontra respaldo em normas processuais de admissibilidade dos recursos, como é o caso da al. b) do n.º 2 do art. 629.º do CPC.
IV - A linha interpretativa fixada nos acórdãos uniformizadores só deverá ser objecto de desvio, no âmbito do mesmo quadro legal, perante diferenças fácticas relevantes e/ou (novos) argumentos jurídicos que não encontrem base de ponderação nos fundamentos que sustentaram tais arestos.
V - Estando em causa nos autos determinar o momento a partir do qual se mostra precludido o direito de a parte requerer a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, impõe-se ter presente e acatar o sentido interpretativo que foi fixado pelo AUJ n.º l/2022 ao art. 6.º, n.º 7, do RCJ.
Decisão Texto Integral:




Acordam na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça,

I – Relatório                                                                               

1. AA intentou (em 03-11-2017) acção declarativa com processo comum[1] contra BB, deduziu a intervenção provocada de P.…, Lda. e de três sócios desta sociedade, pedindo a condenação do Réu a pagar:

a) à sociedade:

- o valor recebido da venda do imóvel e das quotas da sociedade O.…, no montante global de 1.177.724,77 €;

- o valor de 3.144.891,29€, correspondente ao arrendamento dos espaços nos anos de 2003 a 2017 de que o Réu indevidamente se apropriou;

- a quantia referente a existências, no valor 262.795,46 €, que o Réu indevidamente de locupletou, acrescida de 19.988,44 € de juros de mora referente à acumulação da divida da sociedade I.…, Lda.

b) ao Autor

- a quantia de 53.910,00€ correspondente a despesas com documentos, despesas com patrocínio judicial, despesas com deslocações em consequência do comportamento lesivo do Réu para com a sociedade e os seus sócios

Atribuiu à acção o valor de 4.774.487,72€ e pagou a título de taxa de justiça inicial o montante de 1.632,00€, bem como, a igual título e pelo incidente de intervenção principal, o montante de 408,00€.

2. O processo foi remetido ao Juízo de Comércio ....

3. o Réu (em 20-02-2018), contestou, invocando, para além do mais, a falta de legitimidade do Autor.

4.O processo foi remetido ao Juízo de Comércio ... por se considerar ser o competente para o conhecimento da acção (despacho de 09-07-2018).

5. Foi proferido saneador (em 24-09-2018) onde foi julgada procedente a excepção dilatória de ilegitimidade do Autor, com absolvição do Réu da instância e condenação do Autor nas custas (sem menção a qualquer dispensa de taxa de justiça remanescente).

6. Após trânsito em julgado da referida decisão (que não foi objecto de recurso ou reclamação), os autos foram remetidos à conta (em 09-11-2018).

7. Foi elaborada a conta de custas final (em 11-12-2018), resultando na liquidação o valor total de 28.764,00€ que, descontado das taxas de justiça já pagas (2.040,00€), determinou como valor ainda em dívida a pagar pelo Autor o montante de 26.724,00€.

8. Em 12-12-2018 o Autor foi notificado da conta, tendo-lhe sido remetida a respectiva guia para pagamento até 14-01-2019.

9. Em 07-01-2019, o Autor, abrigo do disposto no n.º 7 do artigo 6.º do Regulamento das Custas Processuais, veio requerer a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça.

10.O Ministério Público opôs-se a tal pretensão com fundamento na extemporaneidade do requerido.

11. Em 03-06-2020 o tribunal de 1.ª instância proferiu despacho com o seguinte teor:

Nos termos do disposto no art. 6º, n.º 7 do RCP, “Nas causas de valor superior a (euro) 275.000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento”.

Atenta a redação do dispositivo legal que acaba de se transcrever, a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça pressupõe que a apresentação daquele pedido seja realizada antes da elaboração da conta.

Ora, conforme assinala o Ministério Público na douta promoção que antecede, aquele pedido foi formulado pelo autor já depois de elaborada a conta e da notificação para o pagamento das custas a seu cargo, pelo que o mesmo revela-se extemporâneo (neste sentido cfr., entre outros, o Ac. TRG, de 27-06-2019, processo n.º 523/14.4TBBRG-H.G1, disponível em www.dgsi.pt).

Pelo exposto e sem necessidade de outras considerações, indefiro o requerido.”.

12. O Autor interpôs recurso de apelação, tendo o tribunal da Relação ..., em 15-12-2021, proferido acórdão que julgou o recurso procedente decidindo:

a) Recusar a aplicação, no caso dos autos, por violação do princípio constitucional da proporcionalidade (ou de proibição do excesso), decorrente dos princípios do Estado de Direito e da tutela jurisdicional efetiva (artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 2.ª parte, e 20.º, da Constituição da República Portuguesa), da norma do art. 6.º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais, interpretada no sentido de não ser processualmente possível, em respeito pelo princípio da preclusão, após a notificação da conta final de custas, a requerimento das partes ou oficiosamente pelo tribunal, proferir decisão de dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça;

b) Revogar a decisão recorrida;

c) Conceder ao Autor a requerida dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, nos termos do art. 6.º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais;

d) Determinar que a conta de custas da ação seja alterada em conformidade com o decidido em C);

9.O Ministério Público veio interpor revista nos termos dos artigos 629.º, n.º 1 e 2, alínea c), 631.º, n.º 1, 671.º, n.º 1 e 674.º, n.º 1, alínea a), do CPC, concluindo nas suas alegações (transcrição):

1.º - A única questão de direito a decidir nesta Revista é a de saber se foi ou não tempestivo o requerimento formulado pelo A. AA, para dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, nos termos do art.º 6.º, n.º 7, do RCP, já depois de ter sido notificado da conta final; ou, por outras palavras, se já estava precludido o direito de requerer essa dispensa de pagamento na data em que o fez (07/01/2019).

2.º - Na ação declarativa n.º 1562/17…, no valor de 4.774.487,72€ (quatro milhões setecentos e setenta e quatro mil oitocentos e quarenta e sete euros e setenta e dois cêntimos) o Réu foi absolvido da instância no despacho saneador proferido em 24/09/2018, com custas a cargo do Autor (AA) - sem menção a qualquer dispensa de taxa de justiça remanescente.

3.º - O Autor pagou a taxa de justiça inicial respeitante à ação, no valor de 1.632,00€, e de €408,00 respeitante ao incidente de intervenção principal – no valor total de € 2.040,00, mas não pagou qualquer quantia a título de remanescente da taxa de justiça previsto no n.º 7 do art.º 6.º do RCP.

4.º - O despacho saneador transitou em julgado (sem recurso ou reclamação) e os autos foram remetidos à conta em 09/11/2018.

5.º - Tendo em conta o referido valor da ação (€4.774.487,72) resultou da conta de custas final, elaborada em 11/12/2018, a liquidação do valor total de €28.764,00€ - que, descontado das taxas de justiça já pagas – €2.040,00 -, determinou o valor ainda em dívida de €26.724,00, a pagar pelo Autor, AA.

6.º - Este foi notificado da referida conta de custas em 12/12/2018, e foi-lhe remetida a respetiva guia para pagamento, até 14/01/2019.

7.º - Porém, só em 07/01/2019, o Autor (AA) veio requerer a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, ao abrigo do disposto no n.º 7 do artigo 6.º do Regulamento das Custas Processuais – o qual foi objeto de indeferimento, por ser extemporâneo, por despacho judicial proferido em 03/06/2020 pelo Juiz do Comércio ... - J....

8.º - O Autor apelou deste despacho, o qual veio a ser revogado pelo Acórdão da Relação ... proferido em 15/12/2021 - de que ora se recorrre.

9.º - O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 10 de novembro de 2021 – no Recurso Extraordinário para Uniformização de Jurisprudência n.º 1118.16.3T8VRLB.G1.S1-A - estabeleceu jurisprudência no sentido de que “ A preclusão do direito de requerer a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, a que se refere o n.º7 do artigo 6.º do Regulamento das Custas Processuais, tem lugar com o trânsito em julgado da decisão final do processo”– sublinhado nosso.

10.º - O Acórdão ora recorrido não seguiu esta Jurisprudência e também violou, por errada interpretação, o disposto no n.º 7 do art.º 6.º do Regulamento das Custas Processuais (na versão introduzida pela Lei n.º 7/2012, de 13/02).

11.º- Como também se escreve, com muita clareza, no referido Acórdão Uniformizador de Jurisprudência - sob o título “Da Constitucionalidade da Posição seguida” - o artigo 6.º do RCP, na redação consagrada pela Lei n.º 7/2012, de 13 de fevereiro, que lhe aditou o n.º 7, não viola normas ou princípios constitucionais.

12.º - Contrariamente ao decidido pelo Acórdão ora recorrido, este n.º 7 do art.º 6.º do RCP não é inconstitucional, quando interpretado no sentido de não ser processualmente possível, em respeito pelo princípio da preclusão, após a notificação da conta final de custas, a requerimento das partes ou oficiosamente pelo tribunal, proferir decisão de dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça - designadamente por violação do princípio constitucional da proporcionalidade (ou de proibição do excesso), decorrente dos princípios do Estado de Direito e da tutela jurisdicional efetiva (artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 2.ª parte, e 20.º da Constituição da República Portuguesa).

13.º - Ao decidir de modo diverso – como decidiu - o Acórdão recorrido violou o disposto nestes preceitos legal e constitucionais – para além da jurisprudência fixada pelo citado Acórdão Uniformizador.”.

10. Em contra alegações o Autor pugna pela manutenção do acórdão recorrido defendendo, essencialmente, que na situação dos autos não se verifica o fundamento da recorribilidade invocado pelo Recorrente previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 629.º do Código de Processo Civil, por considerar que o AUJ n.º 1/2022 (publicado em DR de 03-01-2022) não assume aplicação no caso concreto [i) porque quando do proferimento da decisão recorrida ainda não havia sido publicado e, nessa medida, não teria de ser levado em conta pelo tribunal da Relação; ii) porque a particularidade do caso concreto não encontra enquadramento na situação objecto de uniformização (no caso ocorreu a falta de proferimento de despacho que fixou o valor da acção[2])].

Concluiu no sentido de que o caso evidencia uma situação de grave iniquidade e desproporção, que permite a reponderação pelo julgador em obediência aos princípios da proporcionalidade e da proibição do excesso, ainda que fosse de considerar que o prazo se encontrava excedido.

II – APRECIAÇÃO DO RECURSO

De acordo com o teor das conclusões das alegações (que delimitam o âmbito do conhecimento por parte do tribunal, na ausência de questões de conhecimento oficioso – artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil - CPC), mostra-se submetida à apreciação deste tribunal a seguinte questão:
ü Da tempestividade da pretensão do Autor para dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, ao abrigo do artigo 6.º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais (RCP)

 

1. Os factos provados

As ocorrências processuais indicadas no Relatório supra constituíram a base fáctica da decisão recorrida, consubstanciando a realidade factual a atender neste âmbito.

2. O direito

Em causa está a decisão do tribunal da Relação que deferiu o pedido do Autor de dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, revogando o despacho de 1.ª instância que havia considerado tal pretensão intempestiva.

Sustenta o tribunal a quo a decisão recorrida de fazer aplicar, no caso, o factor correctivo da desproporcionalidade (gerada pela interpretação do artigo 6.º, n.º 7, do RCJ com o sentido que lhe foi dado na decisão de 1.ª instância[3]), na seguinte ordem de argumentos:

- ocorre uma situação de muito simples actividade processual com conduta de cada uma das partes inteiramente conforme às regras da boa-fé processual;

- mostra-se intolerável (quer sob uma perspectiva de justiça social, quer ainda no contexto jurídico-processual onde não é clara e rigorosa a definição legal acerca do momento temporal da prática do acto) fazer corresponder o serviço prestado pelo tribunal, que foi parco, a um custo de 28.764,00€, num país em que o ordenado mínimo não vai ainda além dos 700,00€ mensais;

- a matéria das custas processuais é (como sempre foi) assumida com menor cuidado e ponderação pelo tribunal e pelas partes (face às demais questões processuais ou substantivas), sendo de concluir que, no caso, não foram minimamente representados por ambos (apenas com a liquidação da conta final de custas é tomada a consciência da verdadeira dimensão da responsabilidade em matéria de custas processuais) os custos efectivos para o Autor.

A valia desta argumentação não pode, porém, ser acolhida nos autos. 

2.1 Sem colocar a questão da (in)admissibilidade do recurso, o Recorrido invoca falta de fundamento da revista alicerçada na alínea c) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC, nos termos da qual é sempre admissível o recurso, independentemente do valor da causa e da sucumbência, das decisões proferidas contra jurisprudência uniformizada do STJ.

Alega o Autor que o tribunal da Relação não se encontrava obrigado a acatar o sentido interpretativo do artigo 6.º, n.º 7, do RCJ atribuído pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (AUJ) n.º 1/2022, uma vez que na data da prolação do acórdão recorrido aquele AUJ não se encontrava ainda publicado.

Trata-se, porém, de uma questão que não assume relevância porquanto, independentemente do facto de, aquando da prolação da decisão recorrida, o AUJ n.º 1/2022 não estar ainda publicado,[4] nunca poderia estar em causa a vinculação obrigatória do mesmo, uma vez que, ao invés da figura dos anteriores assentos, não foi atribuída aos acórdãos uniformizadores força obrigatória geral, nem sequer vinculativa para a organização judiciária.

Não obstante a jurisprudência uniformizada possuir apenas uma natureza persuasiva, a mesma deve ser respeitada pelos tribunais de instância e pelo próprio STJ, pois a aplicação do direito não pode ser alheada dos valores da igualdade, da segurança e da certeza jurídicas, pressupostos da própria legitimação da decisão[5]. Assim, a linha interpretativa fixada nos acórdãos uniformizadores só deverá ser objecto de desvio, no âmbito do mesmo quadro legal, perante diferenças fácticas relevantes e/ou (novos) argumentos jurídicos que não encontrem base de ponderação nos fundamentos que sustentaram tais arestos.

Nessa medida, a natureza persuasiva dos acórdãos uniformizadores encontra respaldo em normas processuais de admissibilidade dos recursos (como é o caso da alínea b) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC) visando a natural aceitação e acatamento da respectiva jurisprudência pelos tribunais inferiores e pelo próprio Supremo Tribunal de Justiça[6].

2.2 Conforme já sublinhado, a questão a conhecer nesta sede é a de saber se o requerimento do Autor (visando alcançar a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, nos termos do artigo 6.º, n.º 7, do RCP, apresentado após ter sido notificado da conta final elaborada no processo e para efectuar o pagamento das respectivas custas) podia (ou não) ser apreciado.

As instâncias, perante a disposição a aplicar ao caso – artigo 6.º, n.º 7, do RCP – deram resposta divergente, pois que o tribunal de 1.ª instância considerou-o extemporâneo, tendo o tribunal a quo procedido à sua apreciação por entender que não se encontrava precludido o pedido de dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça; nessa medida, conheceu-o e deferiu-o.

Estando, assim, em causa a interpretação do artigo 6.º, n.º 7, do RCP[7], cabendo determinar o momento a partir do qual se mostra precludido o direito de a parte requerer a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, uma vez que o tribunal não o fez, oficiosamente, na decisão final, impõe-se ter presente e acatar o sentido interpretativo que lhe foi fixado pelo acórdão Uniformizador n.º1/2022: “A preclusão do direito de requerer a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, a que se refere o n.º7 do artigo 6.º do Regulamento das Custas Processuais, tem lugar com o trânsito em julgado da decisão final do processo”, já que, no caso, não se encontram razões (fácticas e/ou jurídicas) para não poder ser acolhido.

Para se poder divergir de tal sentido interpretativo, impunha-se que a situação registasse especificidades relevantes ao nível fáctico e/ou, em termos de argumentação jurídica, que não tivessem sido levadas em conta no acórdão uniformizador.

Tal, porém, não acontece, pois, ao invés do que parece defender o Autor, a circunstância de o tribunal de 1.ª instância não ter proferido despacho de fixação do valor da causa mostra-se irrelevante porque em nada altera os pressupostos de facto analisados no acórdão uniformizador[8]. Com efeito, independentemente de nestes autos não ter sido proferido despacho a fixar o valor à causa, há que considerar que o valor da causa se encontra definitivamente fixado, atento o disposto nos artigos 305.º, n.ºs 1 e 4 e 306.º, ambos do CPC.

Por outro lado, a argumentação tecida no acórdão recorrido justificativa do afastamento da interpretação do artigo 6.º, n.º 7, do RCP, segundo a orientação que veio a ser fixada pelo AUJ n.º 1/2022, não se mostra juridicamente relevante por não se revestir de qualquer “novidade” face ao que foi considerado no referido AUJ na abordagem tecida acerca da questão da constitucionalidade da posição perfilhada, conforme se mostra evidenciado pelo excerto que aqui se deixa transcrito:

(…) a posição aqui sustentada relativamente à interpretação do nº 6 do artº 7º do RCP, não padece de qualquer inconstitucionalidade, seja por violação do princípio da proporcionalidade, seja do princípio do direito de acesso à justiça (note-se que o direito de acesso aos tribunais não compreende um direito a litigar gratuitamente, sendo legítimo ao legislador impor o pagamento dos serviços prestados pelos tribunais [67]) e do direito de tutela jurisdicional efectiva.

Da mesma forma, o Tribunal Constitucional tem entendido, de forma uniforme, que a reclamação da conta não é meio adequado a fazer valer uma isenção, pois que tal meio processual se destina apenas a reagir à elaboração irregular da conta, não sendo esse o caso quando ela se mostra conforme à decisão condenatória, transitada em julgado, e à lei [68], raciocínio este que, por identidade de razão, vale para o pedido de dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça.

(…) Ao que acresce que a Constituição da República não proíbe a existência de prazos preclusivos para o exercício de direitos. Bem pelo contrário: conforme se refere no Ac. do TC nº 527/2016, “é evidente o interesse na fixação de um momento preclusivo para o exercício da faculdade de requerer a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça (…)” [70].

Sendo que o Tribunal Constitucional já afirmou em diversas ocasiões os termos em que é admissível a imposição de ónus processuais associados a efeitos preclusivos, questão que se insere, desde logo, no âmbito do artigo 20.º, n.º 4, da Constituição.

(…) Assim, portanto, as partes não podem dizer que ficaram surpreendidas ao serem confrontadas, na conta, com a obrigação de pagar o remanescente da taxa de justiça, pois (como referido) tiveram tempo mais que razoável para requerer a dispensa de pagamento desse remanescente: até ao trânsito em julgado da decisão.

Ou seja, como diz o Tribunal Constitucional no aresto acabado de citar, a parte - mais a mais quando representada por advogado -, «agindo com a diligência devida e ponderando as correntes jurisprudenciais, podia e devia ter contado com a interpretação afirmada pelo tribunal»

Assim sendo, não se verificando razões para não acatar o sentido interpretativo fixado pelo AUJ n.º 1/2022, o Autor ao formular pretensão para dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça depois de ter sido notificado da conta final, fez precluir o seu direito de a requerer, pelo que a mesma, tal como decidido pelo tribunal de 1.ª instância, terá de ser objecto de indeferimento.

Procedem, por isso, as conclusões do recurso.

           

IV. DECISÃO
Nestes termos, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar procedente a revista, pelo que revogam o acórdão recorrido, repristinando-se a decisão de 1.ª instância que indeferiu, por extemporaneidade, a pretensão do Autor de dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça.
Custas pelo Recorrente.

Lisboa, 24 de Maio de 2022

Graça Amaral (Relatora)

Maria Olinda Garcia

Ricardo Costa (Voto a decisão e a sua fundamentação, sem prejuízo de não concordar com o expendido sobre o ponto referente ao regime processual do “valor da causa”, uma vez que o poder-dever atribuído pelo art. 306º, 1 e 2, prevalece sobre a actuação das partes configurada no art. 305º, 1 e 4, do CPC.)

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

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[1] Endereçou a acção ao Tribunal Judicial da Comarca ..., Instância Central – …”, considerou competente o Juízo de Comércio ...

[2] Alega o Autor a este respeito que: “No Acórdão de Uniformização de Jurisprudência invocado pelo Recorrente, consta expressamente “que por despacho saneador datado de 23.11.2016, foi fixado o valor da causa (…) no caso dos presentes autos tal despacho não ocorreu pelo que não havendo despacho de fixação do valor da causa, seria sempre tempestivo ao Autor e ora Recorrido requerer a dispensa do pagamento da taxa adicional, uma vez que o valor da acção para efeitos da tabela A I a (a que se referem os artigos 6.º, 7.º, 11.º, 12.º e 13.º do Regulamento)”.
[3] Interpretação que o acórdão recorrido considera violadora do princípio da proporcionalidade (ou de proibição do excesso), decorrente dos princípios do Estado de Direito e da tutela jurisdicional efetiva.

[4] Atento o disposto nos artigos 119.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, e 3.º, n.º 2, alínea i), da Lei 74/98, de 11-11 (Lei Formulário), as decisões de uniformização de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça são objecto de publicação no Diário da República, estatuindo o n.º 1 do artigo 1.º da citada Lei 74/98, que “A eficácia jurídica dos atos a que se refere a presente lei depende da sua publicação no Diário da República.”.

Assim, a publicidade dos acórdãos uniformizadores de jurisprudência proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça, consubstanciando uma exigência do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º, da Constituição da Républica Portuguesa), tem a ver, fundamentalmente, com o direito de os cidadãos tomarem conhecimento do sentido interpretativo fixado relativamente às normas que os regem em situações de conflito de jurisprudência; não, com a obrigatoriedade do respectivo acatamento.
[5]Saindo beneficiados com a resolução ou prevenção de querelas jurisprudenciais os valores da segurança e certeza do direito e também o princípio da igualdade perante a lei interpretanda, o incremento dessa actividade judicativa repercutir-se-á também, em termos mediatos, na redução da litigância, ante a perspectiva da previsível resposta a determinada questão jurídica que tenha sido objecto de uniformização jurisprudencial. Também não devem ser desconsiderados os efeitos positivos na valorização da actividade do próprio Supremo no sistema judiciário e na sua visibilidade perante a sociedade. Através da uniformização de jurisprudência sai valorizada a competência que exclusivamente é atribuída ao Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista, traduzida através de acórdãos com valor para-legislativo, ao mesmo tempo que, sanando ou prevenindo polémicas jurisprudenciais, potencia os factores da segurança e da certeza na aplicação do direito, contribuindo também para a maior eficácia e celeridade do sistema judiciário.” – Conselheiro Abrantes Geraldes, UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA, acedido em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2015/07/painel_3_recursos_abrantesgeraldes.pdf
[6] Acórdão deste tribunal de 16-05-2016, proferido no âmbito do Processo n.º 982/10.4TBPTL.G1-A.S1, constando do seu sumário “Os Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência, conquanto não tenham a força obrigatória geral que era atribuída aos Assentos pelo revogado art. 2º do CC, têm um valor reforçado que deriva não apenas do facto de emanarem do Pleno das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça, como ainda de o seu não acatamento pelos tribunais de 1ª instância e Relação constituir motivo para a admissibilidade especial de recurso, nos termos do art. 629º, nº 2, al. c), do CPC. 2. Esse valor reforçado impõe-se ao próprio Supremo Tribunal de Justiça, sendo projectado, além do mais, pelo dever que recai sobre o relator ou os adjuntos de proporem ao Presidente o julgamento ampliado da revista sempre que se projecte o vencimento de solução diversa da uniformizada.”, a que se pode aceder através das Bases Documentais do ITIJ.
[7] Nos termos do qual. Nas causas de valor superior a (euro) 275 000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento.
[8] Que, quanto a este particular aspecto da fixação do valor da causa apenas se reporta à previsão do artigo 6.º, n.º 7, do RCJ, ou seja, circunscrito às causas superiores a (euro) 275.000.