Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
775/15.2T8STS-C.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: JOSÉ RAINHO
Descritores: INSOLVÊNCIA
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
CRÉDITO DA SEGURANÇA SOCIAL
CRÉDITO PIGNORATÍCIO
CREDITO LABORAL
INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA
Data do Acordão: 09/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - O n.º 2 do art. 204.º do CRCSPSS, aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16-09, deve ser interpretado restritivamente, sendo aplicável apenas quando a graduação de créditos envolve exclusivamente créditos pignoratícios e créditos da Segurança Social.
II - Concorrendo na mesma graduação créditos garantidos por penhor, créditos com privilégio mobiliário geral emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, e créditos com privilégio mobiliário geral da Segurança Social por contribuições e quotizações, a ordem de prioridade que compete a esses créditos é aquela que, em geral, estabelece a lei, ou seja: 1.º- o crédito pignoratício; 2.º - o crédito laboral; 3.º - o crédito da Segurança Social.
Decisão Texto Integral:


Processo n.º 775/15.2T8STS-C.P1.S1

Revista

Tribunal recorrido: Tribunal da Relação ……

                                                           +

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

I - RELATÓRIO

Tendo sido declarada (em 17 de novembro de 2017) a insolvência de Arco Têxteis- Empresa Industrial de Santo Tirso, S.A., apresentaram-se os credores a reclamar os respetivos créditos, na sequência do que veio, a final, a ser proferida sentença que os graduou.

No que para efeitos do presente recurso interessa, foi decidido (isto em sede de reforma da sentença) graduar os créditos para satisfação pelo produto da venda dos bens móveis apreendidos (com exceção dos constantes nas verbas n.ºs 526, 527, 530, 531, 534, 536, 539, 541 e 542) da forma seguinte:

1º) Os créditos garantidos por penhor e reclamados por BPI, S.A., Banco Comercial Português, S.A., Novo Banco, S.A, Caixa Económica Montepio Geral, Banco Popular Portugal, S.A. e Caixa Geral de Depósitos, S.A., sendo entre si, em pé de igualdade e rateadamente;

2º) Os créditos privilegiados reconhecidos aos ex-trabalhadores identificados sob os nºs 1 a 4, 6 a 16, 18 a 60, 62 a 67, 69 a 72, 75 a 77, 83 a 87, 90 a 94, 98 a 101, 103 a 113, 115 a 118, 120, 121, 123, 124, 126 a 132, 134 a 142, 144, 146 a 148, 151, 153, 156 a 165, 167 a 172, 174, 176 a 182, 186, 187, 190 a 192, 194 a 196, 199 a 263, 266, 267, 269, 270, 272 a 376, 378, 380 a 383, 386 a 390, 392 a 394, 396 a 401, 403 a 408, 417, 419, 421 a 425, 427 a 438, 440 a 444, 447 a 450, 452, 455, 458 a 463, 465 a 467, 475, 477 e 478, sendo entre si, em pé de igualdade e rateadamente;

3º) O crédito privilegiado do Instituto da Segurança Social, IP, no montante de €1.144.434,14;

4º) Os créditos comuns, em pé de igualdade e rateadamente;

5º) Os créditos subordinados, pela ordem prevista no artº 48º do CIRE.

Foram interpostos recursos de apelação contra a sentença, nomeadamente (e entre outros credores) pelos credores Instituto da Segurança Social, IP, e AA e BB.

A Relação …. julgou improcedentes as apelações interpostas pelos mencionados credores, confirmando a sentença recorrida.

Mantendo-se inconformados, pedem os credores AA e BB revista.

Introduziram o seu recurso como revista excecional.

A competente Formação admitiu o recurso assim interposto.

Importa, pois, conhecer do seu objeto.

                                                           +

São as seguintes as conclusões que os Recorrentes extraem da sua alegação (não se transcrevem as conclusões, apresentadas sob “II. Dos Fundamentos da Revista Excecional”, que se reportam unicamente à admissibilidade da revista excecional, questão já ultrapassada):

I. Questão Prévia: da Legitimidade dos Recorrentes

11.1. Os recorrentes têm legitimidade para recorrer atentas as razões indicadas nas seções 1.1. e 1.2. das presentes alegações que aqui se dão por reproduzidas.

III. Da correta interpretação do artigo 204.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social quando conjugado com a alínea a) do n.º 2 do artigo 333.º do Código do Trabalho e com os artigos 666.º, 747.º n.º 1 e 749.º do Código Civil

III.I. Das normas jurídicas mais relevantes em discussão nos autos e da sua conjugação

11.17. Num “conflito” bilateral entre créditos por impostos com privilégio mobiliário geral e créditos garantidos por penhor, estes últimos serão graduados em primeiro lugar – ver artigos 666.º, 747.º e 749.º do CC.

11.18. Num “conflito” bilateral entre créditos por impostos e créditos laborais que gozem todos de privilégio mobiliário geral, estes últimos serão graduados em primeiro lugar por força do disposto nas alíneas a) dos n.ºs 1 e 2 do artigo 333.º do CT.

11.19. Num “conflito” trilateral entre créditos por impostos que gozem de privilégio mobiliário geral, créditos laborais que também gozem de privilégio mobiliário geral e créditos garantidos por penhor, já serão os credores pignoratícios que terão que ser graduados em primeiro lugar por força da conjugação dos artigos 666.º, 747.º e 749.º do CC com as alíneas a) dos n.ºs 1 e 2 do artigo 333.º do CT.

11.20. A redação do n.º 2 do artigo 204.º do CRCSPSS é igual ao n.º 2 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de maio que lhe tinha precedido.

11.21. Num “conflito” bilateral entre créditos laborais que gozem de privilégio mobiliário geral e créditos do Instituto da Segurança Social constituídos nos 12 meses anteriores ao início do processo de insolvência, terão que ser os créditos dos trabalhadores a serem graduados em primeiro lugar, uma vez que os mesmos têm que ser graduados antes dos referidos no n.º 1 do artigo 747.º do CC – cfr. alíneas a) dos n.ºs 1 e 2 do artigo 333.º do CT e bem ainda o artigo 204.º do CRCSPSS e a alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (“CIRE”).

11.22. Num “conflito” bilateral entre créditos garantidos por penhor e créditos do Instituto da Segurança Social constituídos nos 12 meses anteriores ao início do processo de insolvência já serão estes últimos que deverão ser graduados em primeiro lugar, uma vez que este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior, pelo que têm que ser graduados à frente de todos os credores (credor pignoratício e credores que gozem de um privilégio mobiliário geral) – ver, a este propósito, excerto do acórdão-fundamento reproduzido na secção 5.4. supra das presentes alegações.

III.II. Da falta de fundamento e de razoabilidade dos argumentos em que o acórdão recorrido se alicerçou para proferir a sua decisão: das contradições entre o acórdão recorrido e a jurisprudência maioritária, da qual se destaca o acórdão-fundamento

11.23. A jurisprudência tem-se dividido em duas correntes em relação à forma como deverá ser feita a graduação quando concorra um crédito garantido por penhor mercantil, um crédito do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P. constituído nos doze meses anteriores à declaração da insolvência e um crédito de trabalhadores que gozem de privilégio mobiliário geral.

11.24. O acórdão recorrido alicerça a sua decisão, apenas, nos argumentos aduzidos no Acórdão da Relação de Guimarães de 25-05-2017 e no Acórdão da Relação do Porto de 11-09-2018, os quais se podem resumir em três argumentos:

(i) os privilégios creditórios em geral assumem uma natureza excecional e sendo normas excecionais não podem ser aplicadas por analogia e, como tal, o credor pignoratício é o primeiro beneficiário da aplicação da alínea a) do n.º 2 do artigo 333.º do CT quando conjugada com o artigo 204.º do CRCSPSS e com os artigos 666.º, 747.º n.º 1 e 749.º do CC;

(ii) o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 363/202 declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas constantes do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de maio, e do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 512/76, de 3 de julho, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nelas conferido à segurança social prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751.º do CC;

(iii) a interpretação do artigo 204.º do CRCSPSS em sentido diverso da sustentada no acórdão recorrido pode violar os princípios da igualdade e da confiança entre os credores.

11.25. O primeiro desses argumentos (os privilégios creditórios em geral assumirem uma natureza excecional e sendo normas excecionais não poderem ser aplicadas por analogia) é, desde logo, contrariado pela própria letra do artigo 204.º do CRCSPSS, conforme resulta, igualmente, do acórdão-fundamento.

11.26. A regra é a de que os créditos da Segurança Social por contribuições, quotizações e respetivos juros de mora, constituídos nos doze meses anteriores à declaração da insolvência, gozam de privilégio mobiliário geral, graduando-se nos termos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 747.º do CC - cfr. n.º 1 do artigo 204.º do CRCSPSS e alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º do CIRE.

11.27. O desvio à regra (cfr. n.º 2 do artigo 204.º do CRCSPSS) só pode ser interpretado como a vontade do legislador em garantir que o privilégio mobiliário geral dos créditos do Instituto da Segurança Social, constituídos nos doze meses anteriores à declaração da insolvência, jamais sairia\sairá prejudicado pelo facto de a devedora poder dar algum bem móvel em penhor, mesmo que em data anterior ao “nascimento” daqueles créditos: por força deste desvio à regra, este crédito da Segurança Social já não é graduado nos termos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 747.º do CC, mas sim à frente do credor pignoratício e, necessária e consequentemente, à frente de todos os credores que gozem de um privilégio mobiliário geral, inclusive dos créditos dos trabalhadores.

11.28. O n.º 2 do artigo 204.º do CRCSPSS não é alheio aos objetivos e princípios do Instituto da Segurança Social – ver, a este propósito, secção 7.1.2. supra das presentes alegações que aqui se dá por reproduzida.

11.29. Como resulta do acórdão-fundamento, a sustentabilidade da Segurança Social, “pela sua enorme repercussão social, sobreleva aos direitos individuais decorrentes dos restantes créditos” – ver Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 21-05-2019, junto como documento n.º 1.

11.30. No mesmo sentido, ver Acórdão da Relação de Coimbra de 11-12-2012, em que foi relator o Juiz Desembargador Freitas Neto (Processo n.º 241/11.5TBNLS-B.C1), que, por sua vez, transcreveu uma passagem, muito elucidativa, do também já citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-12-2009, em que foi relator o Juiz Conselheiro Fernando da Costa Soares (Processo n.º 727/2000.P1.S1 - 7.ª Secção), sobre o papel da Segurança Social na nossa sociedade - ver reprodução destes acórdãos efetuada na secção 7.1.4. supra das presentes alegações que aqui se dá por reproduzido.

11.31. Sendo certo que jamais um credor pignoratício pode, em detrimento dos próprios trabalhadores, beneficiar de uma disposição do Código do Trabalho, de que não é destinatário, para ver o seu crédito ser graduado à frente do privilégio mobiliário geral dos créditos do Instituto da Segurança Social, constituídos nos doze meses anteriores à declaração da insolvência, e dos créditos laborais, em total violação do n.º 2 do artigo 204.º do CRCSPSS.

11.32. Os n.ºs 1 e 2 do artigo 204.º do CRCSPSS não são cumulativos.

11.33. Quando numa graduação concorra um crédito garantido por penhor mercantil, um crédito de trabalhadores que goze de privilégio mobiliário geral e um crédito do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P., constituído nos doze meses anteriores à declaração da insolvência, dever-se-á observar, apenas e tão só, ao n.º 2 do artigo 204.º do CRCSPSS - ver reprodução do acórdão-fundamento efetuada na secção 7.2.2. supra das presentes alegações.

11.34. O acórdão recorrido, para afastar a aplicação do último preceito (cfr. n.º 2 do artigo 204.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social) ao caso “sub judice”, acaba por aplicar, erradamente, o n.º 1 do artigo 204.º do CRCSPSS.

11.35. Os três Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça citados no acórdão recorrido (Ac. STJ de 17/01/1995, 30/05/2006 e 10/05/2007) não têm aplicabilidade ao caso concreto, uma vez que não versam sobre concretos concursos em que concorram, em simultâneo, um penhor, um privilégio mobiliário geral da Segurança Social e outro privilégio mobiliário geral (seja do Estado ou dos trabalhadores).

11.36. O acórdão recorrido está, pelas razões expostas, em contradição com o que tem vindo a ser decidido pela jurisprudência de modo maioritário (ver, a esse respeito, as decisões citadas nas secções 7.3.1. a 7.3.7. das presentes alegações que aqui se dão por reproduzidas) e, em especial, com o acórdão-fundamento (ver a decisão citada na secção 7.3.8. das presentes alegações que aqui se dá por reproduzida).

11.37. O segundo argumento (decisão proferida no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 363/202) tem desde logo a fragilidade do referido acórdão não ter aplicação ao caso concreto (ver nota de rodapé n.º 2 do acórdão-fundamento), já que através do mesmo foi declarada a inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas constantes do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de maio, e do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 512/76, de 3 de julho, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nele conferido à segurança social prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751.º do Código Civil.

11.38. O Tribunal Constitucional já se pronunciou no sentido de que os fundamentos que levaram a que fosse declarada a inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas constantes do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de maio (privilégio imobiliário geral), e do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 512/76, de 3 de julho não eram, nem são, extensíveis ao artigo 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de maio (privilégio mobiliário geral) – ver Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 108/2009, de 10 de março (processo n.º 634/08), em que foi relatora a Juiz Conselheira Maria João Antunes, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt.

11.39. A constitucionalidade do n.º 2 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de maio já foi apreciada e cuja redação é igual à do n.º 2 do artigo 204.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, tendo sido decidido não julgar inconstitucional o referido “artigo 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio, enquanto faz prevalecer sobre qualquer penhor o privilégio mobiliário geral de que gozam os créditos da segurança social por contribuições e os respetivos juros de mora” – ver Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 64/2009, de 10 de fevereiro (processo n.º 411/08), em que foi relatora a Juiz Conselheira Maria João Antunes, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt.

11.40. O próprio Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão proferido em 17-12-2009, ou seja, já após os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 64/2009 e 108/2009, decidiu graduar em primeiro lugar o crédito do Instituto da Segurança Social, não obstante o mesmo estar a concorrer com créditos laborais com privilégio mobiliário geral e com créditos garantidos com penhor mercantil – ver reprodução do acórdão efetuada na secção 7.3.1. supra das presentes alegações que aqui se dá por reproduzido.

11.41. O terceiro argumento (possível violação dos princípios da igualdade e da confiança entre os credores) é, desde logo, refutado pelo próprio Tribunal Constitucional – ver conclusões 11.38. e 11.39. supra.

11.42. Este argumento ignora ainda que a sustentabilidade da Segurança Social, “pela sua enorme repercussão social”, deve ter primazia em relação “aos direitos individuais decorrentes dos restantes créditos” – ver, nesse sentido, o acórdão-fundamento.

11.43. A Segurança Social “é, em última análise, o último baluarte da confiança que os cidadãos depositam no Estado (…) e, pelos altos valores sociais que este último prossegue - valores cujo correspondente direito se encontra consagrado no citado art. 63.º da Constituição - é logicamente inevitável que são eles que”, em caso de um aparente conflito normativo, devem prevalecer – ver Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-12-2009, em que foi relator o Juiz Conselheiro Fernando da Costa Soares (Processo n.º 727/2000.P1.S1 - 7.ª Secção).

11.44. No caso concreto, mesmo que parte do crédito do Instituto da Segurança Social seja graduado em primeiro lugar (cerca de 1.100.000 Euros), os credores pignoratícios, graduados em segundo lugar, irão receber uma quantia superior àquela que caberá ao primeiro, pois a venda de todos os bens móveis da insolvente ascendeu a cerca de 3.500.000,00 Euros (três milhões e quinhentos mil euros).

11.45. Credores pignoratícios que não podem beneficiar de uma disposição do Código do Trabalho, de que não são destinatários, para verem o seu crédito ser graduado à frente dos demais, inclusive dos próprios trabalhadores, em clara violação do n.º 2 do artigo 204.º do CRCSPSS.

11.46. A graduação dos créditos em relação aos demais bens móveis sobre que incide o aludido penhor mercantil (i.e. verbas n.ºs 1 a 525, 528, 529, 532, 533, 535, 537, 538, 540 e 543) deverá ser a seguinte:

1.º Os créditos do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P. constituídos nos 12 meses anteriores ao início do processo de insolvência da “Arco”;

2.º Os créditos garantidos por penhor, sendo entre si, em pé de igualdade e rateadamente;

3.º Os créditos privilegiados reconhecidos aos ex-trabalhadores identificados sob os nºs 1 a 4, 6 a 16, 18 a 60, 62 a 67, 69 a 72, 75 a 77, 83 a 87, 90 a 94, 98 a 101, 103 a 113, 115 a 118, 120, 121, 123, 124, 126 a 132, 134 a 142, 144, 146 a 148, 151, 153, 156 a 165, 167 a 172, 174, 176 a 182, 186, 187, 190 a 192, 194 a 196, 199 a 263, 266, 267, 269, 270, 272 a 376, 378, 380 a 383, 386 a 390, 392 a 394, 396 a 401, 403 a 408, 417, 419, 421 a 425, 427 a 438, 440 a 444, 447 a 450, 452, 455, 458 a 463, 465 a 467, 475, 477 e 478, sendo entre si, em pé de igualdade e rateadamente;

4.º Os créditos comuns, em pé de igualdade e rateadamente; e

5.º Os créditos subordinados, pela ordem prevista no art. 48º do CIRE.

11.47. Decidindo, como decidiu, o acórdão recorrido violou as seguintes normas: o artigo 204.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, o artigo 333.º do Código do Trabalho e os artigos 666.º e 747.º do Código Civil.

                                                           +

Os credores Caixa Geral de Depósitos, S.A. e BTL Ireland Acquisitions II DAC contra-alegaram, concluindo pela improcedência do recurso.

                                                           +

II - ÂMBITO DO RECURSO

Importa ter presentes as seguintes coordenadas:

- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;

- Há que conhecer de questões, e não das razões ou argumentos que às questões subjazam;

- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.

                                                           +

É questão a conhecer:

- Se o crédito da Segurança Social prefere (ou não prefere) ao crédito pignoratício e aos créditos dos trabalhadores.

                                                           +

Questão prévia

Nas suas contra-alegações suscitaram os credores Caixa Geral de Depósitos, S.A. e BTL Ireland Acquisitions II DAC a questão prévia da falta de legitimidade dos Recorrentes para efeitos do presente recurso.

Os Recorrentes, e como se vê da conclusão 11.1., sustentam precisamente o contrário.

Exatamente como já havia decidido o relator no seu despacho de 18 de maio de 2021 (mas que não foi notificado às partes), tal questão prévia não pode proceder.

Isto porque os ora Recorrentes viram julgada improcedente pelo acórdão recorrido a apelação que interpuseram, pelo que está assegurada automaticamente a sua legitimidade para o presente recurso (art. 631.º, n.º 1 do CPCivil).

Termos em que se julga improcedente a questão prévia.

                                                          

III - FUNDAMENTAÇÃO

Como sobredito, está em causa saber qual a ordem por que devem ser graduados entre si os créditos do Instituto da Segurança Social, I.P., dos ex-trabalhadores e dos credores pignoratícios relativamente aos bens móveis em questão.

As normas legais que, nuclearmente, importam ao caso são as seguintes:

- art. 666.º, n.º 1 do CCivil:

“O penhor confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros (…), com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel (…)”;

- art. 204.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado pela Lei nº 110/2009 de 16 de setembro:

“1 - Os créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respectivos juros de mora gozam de privilégio mobiliário geral, graduando-se nos termos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil.

2 - Este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior”.

- art. 747.º, n.º 1, do CCivil:

“Os créditos com privilégio mobiliário graduam-se pela ordem seguinte:

a) Os créditos por impostos, pagando-se em primeiro lugar o Estado e só depois as autarquias locais;

(…)”

- art. 749.º, n.º 1, do CCivil:

“O privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente.”

- art. 333.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro:

“1. Os créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação gozam dos seguintes privilégios creditórios:

a) Privilégio mobiliário geral;

(…)

2. A graduação dos créditos faz-se pela ordem seguinte:

a) O crédito com privilégio mobiliário geral é graduado antes de crédito referido no n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil;

(…)”.

Deste conjunto normativo resulta literalmente que o crédito garantido pelo penhor tem preferência sobre o crédito laboral, mas não sobre o crédito da Segurança Social; que o crédito laboral tem preferência sobre o crédito da Segurança Social, mas não sobre o crédito garantido pelo penhor; que o crédito da segurança Social tem preferência sobre o penhor, mas não sobre o crédito laboral.

Se a graduação compreender apenas uma díade destes créditos, a forma de os graduar antolha-se como linear. Porém, quando a mesma graduação compreenda todos os três tipos de créditos em causa salta imediatamente à vista que estamos perante uma triangulação conflituante entre si. Numa das possíveis formulações que evidenciam esse conflito, basta observar que se o crédito da Segurança Social se gradua ao nível da alínea a) do n.º 1 do art. 747.º do CCivil[1], então não tem prioridade sobre o crédito laboral, que, por sua vez, não tem prioridade sobre o crédito garantido pelo penhor, mas apesar disso o crédito da Segurança Social acaba por ter precedência sobre o penhor. Inconciliável.

Esta contradição normativa não é de hoje. Já se colocava com reporte a legislação pregressa, e desde então que na jurisprudência se vem discutindo sobre como solucionar um tal conflito.

É sabido e consabido que na jurisprudência estão formadas duas correntes interpretativas, que levam a resultados totalmente opostos.

Para uns (caso dos acórdãos da Relação do Porto de 16 de junho de 2020, processo n.º 2720/18.4T8STS-C.P1, da Relação de Coimbra de 21 de maio de 2019, processo n.º 4705/17.9T8VIS-B.C1, da Relação de Coimbra de 28 de maio de 2019, processo n.º 3810/17.6T8VIS-B.C1, disponíveis em www.dgsi.pt, e do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de dezembro de 2009, com sumário disponível em www.stj/jurisprudência, isto para citar apenas alguns) importaria graduar em primeiro lugar o crédito da Segurança Social, a seguir o crédito garantido pelo penhor e depois o crédito laboral.

Para outros (caso dos acórdãos da Relação de Lisboa de 13 de outubro de 2016, processo n.º 81/13.7TYLSB-B.L1, da Relação do Porto de 11 de setembro de 2018, processo n.º 1211/17.5T8AMT-E.P1 e da Relação de Guimarães de 8 de julho de 2020, processo n.º 159/15.2T8VLN-B.G1, isto para citar apenas alguns de entre uma vasta coleção de outros) importaria graduar em primeiro lugar o crédito pignoratício, a seguir o crédito laboral e depois o crédito da Segurança Social. Está em linha com esta perspetiva o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de junho de 2006 (processo n.º 06B998, disponível em www.dgsi.pt), que numa situação paralela à presente[2] decidiu que havia que dar prioridade aos créditos garantidos pelo penhor.

Que dizer?

Uma possível forma de solucionar o apontado conflito normativo poderia passar pela desconsideração das normas conflituantes e pela criação de uma norma reguladora que estivesse em linha com os princípios gerais do sistema.

De facto, quando se surpreenda uma contradição insanável entre normas da mesma hierarquia e igualmente em vigor, poderá falar-se naquilo a que Baptista Machado (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, p. 96) apelida de “lacuna de colisão”. Trata-se de um espaço jurídico à primeira vista duplamente ocupado, mas que fica a constituir um espaço jurídico desocupado, uma lacuna. Cremos que com conexão a esta matéria se poderá citar também Oliveira Ascensão (O Direito, Introdução e Teoria Geral, p. 369 e 370), quando, em tema de interpretação ab-rogante, refere o seguinte: “Podemos chegar também à interpretação ab-rogante. Aí o intérprete não mata a regra, verifica que ela está morta. Após a busca do sentido possível, tem de concluir que há uma contradição insanável, donde não resulta nenhuma regra útil. A fonte tem, pois, de ser considerada como inexistente. (…) O que acontece é que, por ter escapado ao legislador uma incongruência na regulamentação ou uma incompatibilidade entre vários textos, há desde o início uma falta de sentido. (…) se conflito de fontes, pode chegar a considerar as duas fontes estéreis, afinal”.

Foi dentro deste registo que se moveu o acórdão da Relação de Coimbra de 23 de abril de 1996 (Coletânea de Jurisprudência, ano XXI, 1996, tomo II, p. 36 a 39), secundado, aliás, pelo supra citado acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 8 de junho de 2006[3].

A verdade é que falar em “lacuna de colisão” numa situação como aquela de que aqui estamos a tratar, e a partir daí, recorrer à criação de uma norma de preenchimento, parece não se ajustar ao disposto no art. 9.º do CCivil, e por isso será de rejeitar uma tal solução[4].

O caminho adequado é o de partir do princípio de que o legislador não entrou em contradição, sendo apenas aparente - e não insanável - o conflito entre as normas em questão. Partindo deste pressuposto, há que encontrar uma justificativa que compatibilize as normas jurídicas envolvidas no suposto conflito.

Supomos que a resolução da (aparente) contradição normativa em causa só pode ser encontrada numa interpretação restritiva do n.º 2 do art. 204.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social e numa ponderação de interesses segundo as regras que embasam a normalidade do sistema de preferências creditórias. Não se antolha qualquer outra solução satisfatória. De resto, com maior ou menor detalhe, é nesse sentido que se direciona a (vasta) jurisprudência que sustenta que numa situação como a que aqui temos pela frente deverá ser reconhecida prioridade ao crédito pignoratício sobre o crédito da Segurança Social (e preferindo a este o crédito dos trabalhadores).

Deste modo, quando a graduação implique unicamente uma díade formada pelo crédito pignoratício e pelo crédito da Segurança Social a solução não poderá desconsiderar o estabelecido no n.º 2 do citado art. 204.º: o crédito da Segurança Social prefere ao crédito pignoratício. Neste sentido vai Salvador da Costa (O Concurso de Credores, 2ª ed., p. 252) quando (com referência ao n.º 2 do art. 10.º do então vigente D.L. n.º 103/80[5]) escreve: “- no concurso entre o direito de crédito das instituições de segurança social garantido pelo referido privilégio mobiliário geral e o direito de crédito garantido por um direito de penhor, prevalece o primeiro.”

Não pode haver dúvidas de que no confronto desses dois tipos de créditos a lei pretendeu dar prioridade ao crédito destinado a cumprir um desígnio social sobre um crédito destinado a cumprir um desígnio puramente (pelo menos na esmagadora maioria dos casos) particular e quase sempre brotado do espaço empresarial[6]. Na ponderação dos dois interesses em jogo, o legislador entendeu definir desse modo as coisas, privilegiar o público (social) sobre o particular, e não cabe ao intérprete discutir essa opção. Trata-se aqui, todavia, de um singular desvio à regra que vale para a normalidade, pois que essa regra (tal como fixada no Código Civil) estabelece o princípio da prioridade do penhor sobre todo e qualquer privilégio creditório mobiliário geral.

Mas quando de permeio se encontram créditos de trabalhadores, do Estado e das autarquias locais por impostos[7] já aquela opção não terá sido mantida pelo legislador.

E isso, bem vistas as coisas, nada tem de estranho ou contraditório.

Pois que não são apenas os créditos da Segurança Social que são de interesse público e social. Também os interesses creditórios do Estado e das autarquias locais por impostos são, por definição, interesses públicos e sociais, da mesma forma que os interesses creditórios laborais não deixam de se resolver em interesses públicos e sociais indiretos ou reflexos, na medida em que são relacionáveis com prestações que o setor público pode ser chamado a suportar para com os trabalhadores e suas famílias em situação de carência económica.

E daqui que se possa intuir que em caso de concurso desses outros créditos com os da Segurança Social o legislador tenha optado por uma solução que não inverta o paradigma que ele próprio estabeleceu como regra em atenção .aos diversos interesses em jogo.

Sendo tudo isto assim, como nos parece que é, cremos ser razoável supor que nesta última hipótese (concurso que coenvolve créditos pignoratícios, créditos dos trabalhadores, créditos do Estado e das autarquias locais e créditos da Segurança Social) o legislador se limitou a deixar a solução das preferências para as regras que enformam a traça normal dos créditos em confronto, procurando desse modo obviar à preterição desproporcionada (em beneficio injusto da Segurança Social) dos interesses de um conjunto mais alargado de outros credores, nomeadamente dos trabalhadores.

Está aqui encontrado um racional que justifica uma interpretação restritiva do n.º 2 do art. 204.º do citado Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, cuja letra diz mais do que aquilo que terá sido o propósito ou o querer do legislador[8]. O que significa que se impõe restringir a aplicação dessa norma aos casos em que apenas estejam em concurso créditos pignoratícios e créditos da Segurança Social. E não já quando, para além destes, concorram na mesma graduação créditos dos trabalhadores, do Estado e das autarquias locais. O que, diga-se de passagem, retira fundamento à crítica frequentemente avançada por quem defende ponto de vista diferente, e que é a de que não faz sentido que a posição relativa do crédito da Segurança Social fique dependente da circunstância aleatória de haver ou não créditos em concurso dos trabalhadores, do Estado ou das autarquias locais.

E tais regras (as que enformam a traça normal dos créditos em confronto) determinam que o penhor prevalece sobre o privilégio creditório mobiliário geral da Segurança Social e sobre o privilégio mobiliário geral dos trabalhadores, e este último sobre o da Segurança Social. E compreende-se perfeitamente que o penhor deva ter preferência sobre os privilégios mobiliários gerais[9], na medida em que constitui uma garantia de natureza real (firmada necessariamente por contrato, e sobre que a parte credora estabeleceu as suas legítimas expetativas garantisticas), que beneficia de sequela e é oponível erga omnes, enquanto o privilégio mobiliário geral (que não tem natureza real) está talhado para conferir uma mera preferência de pagamento relativamente aos créditos comuns.

É tudo isto que representa a normalidade do sistema em sede de preferências creditórias, sendo de presumir, em caso de conflito de normas e na dúvida, que o legislador adotou a solução que está estabelecida como constituindo a normalidade, e não a solução decorrente da exceção (desvio) a essa normalidade.

Também neste domínio se poderá convocar aqui o entendimento de Salvador da Costa (ob. cit., pp. 251 e 252), e que, mutatis mutandis, depõe claramente no sentido de que num conflito como aquele que aqui temos pela frente a devida interpretação da lei deverá levar à preferência do crédito pignoratício sobre o crédito com privilégio mobiliário geral da Segurança Social. Depois de aludir à natureza excecional da norma (então vigente) do n.º 2 do art. 10.º do D.L. n.º 103/80, expende o autor o seguinte:

“O que releva essencialmente é o disposto no artigo 666.º, n.º 1 do Código Civil, segundo o qual o penhor confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos não susceptíveis de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro.

Há que ter por outro lado em linha de conta que os privilégios creditórios em geral assumem natureza excepcional, certo que, à margem do princípio da autonomia privada, afectam o princípio da igualdade entre os credores (artigo 604.º, n.º 1, do CC).

Como se trata de normas excepcionais não podem ser aplicadas por analogia e deve prevalecer o critério da sua interpretação restritiva.

Tendo em conta estes princípios e o que resulta do confronto do disposto nos artigos 10.º, n.º 2, Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio, 666.º, n.º 1, e 747.º, n.º 1, do Código Civil, a solução que nos parece a resultante da lei é a seguinte:

(…)

- no concurso entre o direito de crédito garantido pelo direito de penhor, o direito de crédito derivado de impostos da titularidade do Estado ou das autarquias locais garantido por privilégio mobiliário geral e o direito de crédito da titularidade de instituições de segurança social derivado de taxa contributiva garantido por privilégio mobiliário geral, a prevalência opera por essa ordem.”

Conclusão: concorrendo na mesma graduação créditos garantidos por penhor, créditos com privilégio mobiliário geral emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, e créditos com privilégio mobiliário geral da Segurança Social por contribuições e quotizações, a ordem de prioridade que compete a esses créditos é aquela que em geral estabelece a lei, ou seja: 1.º- o crédito pignoratício; 2.º - o crédito laboral; 3.º - o crédito da Segurança Social.

O que vem de ser dito opõe-se expressa, direta e frontalmente à tese defendida pelos Recorrentes, que é no sentido de que o crédito com privilégio creditório mobiliário geral do credor Instituto da Segurança Social, IP prefere aos créditos pignoratícios de diversos outros credores (e, por tabela, aos créditos dos trabalhadores).

O que significa, sem necessidade de considerações adicionais, que improcede o recurso, sendo de confirmar o acórdão recorrido.

IV - DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.

Regime de custas:

Os Recorrentes são condenados nas custas do presente recurso.

                                                           +

Lisboa, 22 de setembro de 2021

José Rainho (Relator)

Graça Amaral

Maria Olinda Garcia

                                                           ++

Sumário (art.s 663.º, n.º 7 e 679.º do CPCivil).

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[1] A menção que se surpreende no n.º 1 do supra citado art. 204.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social a “graduando-se nos termos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil” não resulta clara, pois que “os termos” desta última norma nada esclarecem sobre como operacionalizar uma tal graduação. Esta falta de clareza tem levado a jurisprudência das Relações a interpretações díspares acerca do alcance da remissão: para uns (caso do acórdão da Relação de Guimarães de 8 de julho de 2020, citado no texto) da remissão resulta que os créditos da Segurança Social deverão ser pagos imediatamente a seguir aos do Estado, a par dos créditos das autarquias; para outros (caso do acórdão da Relação de Coimbra de 21 de maio de 2019, também citado no texto), a remissão significa o mesmo que era dito no art. 10.º do D.L. n.º 103/80: que os créditos da Segurança Social se graduam após os créditos do Estado e das autarquias locais. Já no acórdão da Relação de Coimbra de 28 de maio de 2019, também citado no texto se supõe que os créditos da Segurança social são graduados a par dos créditos do Estado.
Para efeitos do presente acórdão não releva saber qual destas interpretações é a válida (não está aqui em causa definir a ordem de graduação de créditos do Estado e autarquias locais no confronto de crédito da Segurança Social), sendo bastante que se saiba que a alínea a) do n.º 1 do art. 747.º do CCivil também abrange (por remissão) os créditos da Segurança Social por contribuições, quotizações e respetivos juros de mora.
[2] Estava ali em causa graduação envolvendo créditos com privilégio mobiliário geral do Instituto do Emprego e Formação Profissional (a que se aplicava o n.º 2 do art. 10.º do D.L. n.º 103/80) e do Estado, e créditos garantidos pelo penhor mercantil. O acórdão verificou que existia um conflito de normas, a solucionar de modo a conferir prioridade aos créditos garantidos pelo penhor
[3] No primeiro destes acórdãos estava em causa uma graduação que compreendia créditos garantidos por penhor, créditos do Estado com privilégio mobiliário geral e créditos da Previdência a que se aplicava o art. 10.º do D.L. n.º 103/80. O acórdão concluiu, num raciocínio que valeria (e até a fortiori ratione, na medida em que o crédito laboral prefere ao do Estado) para um caso como o vertente (bastaria substituir o crédito do Estado pelo crédito laboral), que existia uma contradição normativa que levava a uma “lacuna de colisão”. Lacuna essa que só poderia ser preenchida através da criação de uma norma geral e abstrata que, partindo da consideração da situação concreta, “abstractize essa mesma situação e possa, em abstracto, ser tida como a mais indicada para resolver situações do mesmo tipo”.
[4] Oliveira Ascensão (ob. cit., p. 370) salienta que serão “raríssimas” as situações de conflito de fontes. Atento aquilo a que chama o princípio do aproveitamento das leis e da presunção da racionalidade da legislação, entende que o intérprete terá que partir do princípio de que a lei é acertada, procurando de todos os modos chegar a um sentido útil, e só em último recurso se resignará a desaproveitar a fonte, admitindo que dela nada de útil resultou.
Teixeira de Sousa (Introdução ao Direito, pp. 381 e 382) expende que “É frequente falar-se da interpretação ab-rogante a propósito da contradição entre regras jurídicas: a interpretação ab-rogante verificar-se-ia igualmente quando a interpretação concluísse pela vigência de duas regras contraditórias (…) e conduziria à eliminação simultânea de ambas as regras conflituantes. Esta concepção da interpretação ab-rogante pressupõe que existam conflitos normativos que sejam insusceptíveis de ser solucionados. Ora, já se demonstrou que que todos os conflitos normativos conseguem ser solucionados, recorrendo-se, em última análise, a uma ponderação de interesses para invalidar uma das leis conflituantes.”
[5] Norma esta de que o n.º 2 do art. 204.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social é cópia retinta.
[6] Como nos dizem Pires de Lima-Antunes Varela, (Código Civil Anotado, I, anotação ao artigo 666.º), “O penhor encontra-se industrializado e é de constituição rara como acto de direito civil”. Isto, aliás, ajusta-se ao caso vertente, pois que os credores pignoratícios são empresas bancárias.
[7] E seja qual for a interpretação que se dê à remissão a que se fez referência em nota anterior nunca os créditos do Estado e das autarquias locais são preteridos pelo crédito da Segurança Social. O mais que pode acontecer é andarem ao par.
[8] Tem lugar a interpretação restritiva quando se chega à conclusão de que a letra da lei está para além do seu verdadeiro sentido. Vem a propósito, aliás com proveito para o caso, citar a seguinte passagem de Oliveira Ascensão (ob. cit., p. 375): “Formou-se um brocardo, que circula como moeda válida no foro: ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus. Tal afirmação não tem qualquer verdade, pois ela levaria a que nos sujeitássemos inteiramente à letra da lei. Pode aparecer uma afirmação genérica, e verificar-se depois que a regra supõe uma distinção que o texto omitiu fazer”.
[9] Já as preferências estabelecidas entre os próprios privilégios creditórios mobiliários resultam da avaliação que a lei faz das prioridades dos interesses em jogo, embora (e como apontam Pires de Lima-Antunes Varela, ob. cit., anotação ao artigo 747.º) não se deixe de fazer intervir, em certa medida, o arbítrio.