Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08B505
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SANTOS BERNARDINO
Descritores: CONTENCIOSO DA NACIONALIDADE
COMPETÊNCIA MATERIAL
CONHECIMENTO OFICIOSO
Nº do Documento: SJ20080710005052
Data do Acordão: 07/10/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: DECLARÇÃO INCOMPETÊNCIA
Sumário :
1. Actualmente, e desde 15 de Dezembro de 2006, por força do disposto nos arts. 26º da Lei da Nacionalidade (na redacção introduzida pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de Abril) e 62º do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, aprovado pelo Dec-lei 237-A/2006, de 14 de Dezembro, a competência em matéria de contencioso da nacionalidade radica nos tribunais administrativos e fiscais.

2. Esta alteração de competência, anteriormente cometida ao Tribunal da Relação de Lisboa, é aplicável aos processos pendentes naquela data (a de entrada em vigor daqueles diplomas), como dispõem o art. 5º da referida Lei Orgânica e o art. 4º do mencionado Regulamento.

3. Por via de uma lei de grau superior, como é a Lei Orgânica n.º 2/2006, e deste seu preceito, fica afastada, neste domínio do contencioso da nacionalidade, a regra do art. 22º, n.º 1 da LOFTJ, constituindo aquele art. 5º, bem como o art. 4º do Regulamento, verdadeiras disposições transitórias especiais/excepcionais, distributivas da competência jurisdicional, e que afastam o princípio da perpetuatio jurisdictionis vazado naquela norma da LOFTJ.

4. Assim, a remessa de processo atinente a esta matéria, posteriormente a 15.12.2006, para o Tribunal da Relação de Lisboa, e a apreciação, por este, da matéria em causa, traduz uma infracção das regras de competência material, de acordo com o dito regime transitório especial, sendo irrelevante o facto de em causa estar recurso interposto em data anterior àquela.

5. O STJ deve conhecer oficiosamente desta excepção, nos termos do n.º 1 do art. 102º do CPC, não constituindo impedimento o disposto no n.º 2 do mesmo normativo, que não se aplica no confronto entre tribunais pertencentes a ordens judiciais diferentes.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1.

AA, cidadão cabo-verdiano, residente na Estrada Militar, n.º ..., Alto da ..., ..... – Amadora, requereu, em 28 de Janeiro de 2006, a concessão da nacionalidade portuguesa, alegando para tanto que reside em Portugal desde 1993 e é portador de autorização de residência em fase de renovação.
Organizado e instruído o processo administrativo, o pedido do requerente foi objecto de proposta de indeferimento, a qual veio a ser acolhida pelo Secretário de Estado Adjunto e da Administração Interna que, no uso de competência delegada do Ministro da Administração Interna, e tendo por base o parecer do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras – no qual se concluiu pela não verificação do requisito previsto na al. e) do n.º 1 do art. 6.º da Lei da Nacionalidade – indeferiu, por despacho de 17 de Julho de 2006, o dito pedido.
Inconformado, o requerente interpôs, em 30 de Setembro de 2006, recurso contencioso de anulação para o Tribunal da Relação de Lisboa, pedindo a anulação do acto administrativo (despacho) de indeferimento do seu pedido de concessão de nacionalidade por naturalização.
O recurso foi interposto e apresentado no Ministério da Administração Interna, onde, por despacho de 18 de Dezembro de 2006, o respectivo Secretário de Estado manteve inalterado o despacho recorrido.
O processo respectivo foi remetido, nessa mesma data, ao Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão proferido em 12 de Abril de 2007, anulou o acto administrativo que indeferiu o pedido de concessão de nacionalidade portuguesa por naturalização ao recorrente.
Irresignado, o requerido Ministério da Administração Interna interpôs recurso para o Supremo Tribunal Administrativo (fls. 36), tendo o mesmo sido recebido como de revista, a subir para o Supremo Tribunal de Justiça, e com efeito devolutivo (fls. 37).
Recebidos os autos neste Supremo Tribunal, foi o recorrente convidado a suprir a falta das conclusões das alegações da revista, sob pena do não conhecimento do objecto desta, convite este que foi aceite.
Formulou, então, o recorrente/requerido as seguintes conclusões:
1ª - A sentença recorrida anulou o acto administrativo porque ele acolheu o princípio ínsito no art. 9º, al. b), da Lei da Nacionalidade (redacção da Lei n.º 95/94);
2ª - Ao fazê-lo, porém, contraria a jurisprudência dominante na matéria, que sempre entendeu que tal princípio era adequado «para preencher um conceito vago, altamente indeterminado, como o de idoneidade moral e cívica (...)» (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19 de Outubro de 2006 – Proc. 6158/06-8ª);
3ª - E opõe-se igualmente à ideia-força desse mesmo sector dominante da jurisprudência: «(...) se a prática de crime a que corresponda moldura penal abstracta superior a três anos de prisão é fundamento para a oposição pelo MºPº à aquisição da nacionalidade portuguesa a que título deverá deixar de relevar em caso de concessão de tal nacionalidade pelo Governo?»;
4ª - Mas a sentença recorrida incorre ainda em erro de direito quando estabelece uma equivocada diferenciação radical entre os pressupostos da «aquisição da nacionalidade por efeito da vontade» e a «aquisição da nacionalidade por naturalização»;
5ª - Essa diferenciação – no que à relevância do princípio ínsito no referido artigo 9º, al. b) diz respeito – não existia na redacção da Lei n.º 25/94 e tal interpretação é confirmada na versão vigente, da Lei Orgânica n.º 2/2006. De facto,
6ª - O requisito (agora) fixado na al. d) do n.º 1 do art. 6º corresponde integralmente à norma do art. 9º, al. b), da anterior Lei da Nacionalidade, sendo certo que o referido art. 6º fixa precisamente os requisitos de «aquisição da nacionalidade por naturalização»;
7ª - Acrescente-se que o fundamento apresentado pelo acórdão recorrido para afirmar a referida «diferenciação radical» é inteiramente improcedente: dizer que «o cidadão que pretenda aceder à nacionalidade portuguesa, por via da naturalização, tem subjacente uma ligação à comunidade nacional traduzida em factos duradouros e essenciais à identificação sociológica do homem como cidadão português (...) que o transformam, na prática, sem mais, em cidadão português» não tem em devida conta o facto de o legislador ter distinguido claramente o requisito da «ligação efectiva» (cfr. art. 6º, n.º 1, al. d)) e o da «idoneidade cívica» (cfr. art. 6º, n.º 1, al. e) da Lei da Nacionalidade).

O recorrido-requerente apresentou as suas contra-alegações, tendo afirmado o acerto da decisão sob censura e pugnado pela sua manutenção.

Posteriormente, na sequência de novo despacho do relator, foram as partes notificadas nos termos e para os efeitos do disposto no art. 3.º, n.º 3, do CPC, a fim de se pronunciarem sobre a questão (reputada de conhecimento oficioso) da incompetência material dos tribunais judiciais para o conhecimento do mérito dos presentes autos.
Apenas o Ministério da Administração Interna deu resposta à notificação, sustentando, em síntese, o seguinte:
O recurso interposto pelo requerente foi apresentado – como na altura se impunha – no MAI, em 25.09.2006, data em que ainda vigorava o regime agora revogado.
E, uma vez recebido o recurso pelo Tribunal da Relação de Lisboa – que não suscitou a questão e conheceu do mérito – deve a questão ser encarada e decidida até ao seu termo de acordo com o regime que vigorou até 15.12.2006.
Não se verifica, pois, no caso, a situação prevista no art. 101º do CPC; e, por outro lado, mesmo que assim não fosse, verificar-se-ia a situação a que alude o n.º 2 do art. 102º do mesmo Código, já não podendo ser suscitada oficiosamente a incompetência, não logrando aplicação o disposto no n.º 1 do art. 105º, ainda do CPC.

Foram corridos os vistos legais, cumprindo agora decidir.

2.

São as conclusões da alegação do recorrente que delimitam o objecto do recurso, pelo que o tribunal ad quem, exceptuadas as que lhe cabem ex officio, só pode conhecer as questões contidas nessas mesmas conclusões (arts. 684º/3 e 690.º do CPC).
No caso vertente, a questão substancial colocada no recurso consiste em saber se deve ser ou não mantida a decisão da Relação que anulou o acto administrativo do Secretário de Estado Adjunto e da Administração Interna que indeferiu o pedido de concessão da nacionalidade portuguesa, por naturalização, ao recorrido.
Todavia, perfila-se, como questão prévia, uma outra, suscitada no despacho, acima aludido, do relator: a questão da incompetência material dos tribunais comuns para conhecer do mérito dos presentes autos (arts. 102.º, n.º 1, do CPC).
Por ela terá, necessariamente, de começar a análise deste Tribunal.
Antes, porém, importa fixar os factos provados, que são os seguintes:
a) Por decisão transitada em julgado, proferida em 13 de Maio de 1998, em autos de processo comum singular que correram termos na 1ª Secção do 5º Juízo do Tribunal Criminal de Lisboa, o recorrido foi condenado na pena de 72 dias de multa à taxa diária de 200$00 (o que perfez a multa de 14.400$00) e, subsidiariamente, na de 48 dias de prisão, pela prática, como autor material, de um crime de uso de documento falsificado, p. e p. nos arts. 228º, n.os 1, al. c), e 3, do Código Penal de 1982, com referência ao art. 229º do mesmo Código (correspondente aos arts. 256º, n.os 1, al. c), e 3, do Código Penal de 1995, com referência ao art. 255º deste Código).
b) Em 28 de Janeiro de 2006, o recorrido apresentou um pedido de concessão de nacionalidade portuguesa por naturalização, o qual foi autuado com o n.º M-65/06.
c) O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras considerou preenchidos os requisitos previstos nas alíneas a), b), c), d) e f) do art. 6º da Lei da Nacionalidade.
d) Por despacho de 17 de Julho de 2006, o Secretário de Estado Adjunto e da Administração Interna indeferiu o pedido formulado pelo recorrido, por entender que, em face da decisão referida em a), não se mostra preenchido o requisito a que alude a al. e) do art. 6º da Lei da Nacionalidade.
e) Em 30 de Setembro de 2006, o requerente interpôs recurso contencioso de tal despacho denegatório, dirigido ao Tribunal da Relação de Lisboa e apresentado no MAI (cfr. carimbo aposto a fls. 9 – cabeçalho).
f) Por despacho de 18 de Dezembro de 2006, o Secretário de Estado da Administração Interna manteve inalterada a decisão recorrida (fls. 7).
g) Os presentes autos deram entrada em juízo, no Tribunal da Relação de Lisboa, em 19 de Dezembro de 2006 (cfr. carimbo aposto a fls. 2 – canto superior direito).
3.

Vejamos, então, a questão prévia acima aludida.
O objecto da presente revista consiste na avaliação da legalidade do acto administrativo de indeferimento de um concreto pedido de concessão da nacionalidade portuguesa, por naturalização. Está-se, pois, perante um verdadeiro contencioso da nacionalidade, cuja regulamentação nuclear tem assento na Lei da Nacionalidade (aprovada pela Lei 37/81, de 3 de Outubro, alterada pela Lei 25/94, de 19 de Agosto, pelo Dec-lei 322-A/2001, de 14 de Dezembro, na redacção dada pelo Dec-lei 194/2003, de 23 de Agosto, pela Lei Orgânica n.º 1/2004, de 15 de Janeiro, e pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de Abril) e no Regulamento da Nacionalidade Portuguesa (aprovado pelo Dec-lei 237-A/2006, de 14 de Dezembro).
Até 14 de Dezembro de 2006, o Tribunal da Relação de Lisboa era o competente em matéria de contencioso da nacionalidade. Tal competência decorria expressamente do estatuído não só no art. 26º da Lei da Nacionalidade (na redacção anterior àquela que lhe foi dada pelo art. 1º da Lei Orgânica n.º 2/2006), como ainda nos arts. 23º, 36º/4 e 38º/3 do anterior Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, aprovado pelo Dec-lei 322/83, de 12 de Agosto, e alterado pelos Dec-lei 117/93, de 13 de Abril, 253/94, de 20 de Outubro, e 37/97, de 31 de Janeiro, e pela Lei 33/99, de 18 de Maio.
Actualmente, porém, e desde 15 de Dezembro de 2006 (arts. 3º e 9º da Lei Orgânica n.º 2/2006, e 4º/1 do Dec-lei 237-A/2006, respectivamente), a mencionada competência radica nos tribunais administrativos e fiscais, à luz dos novos arts. 26º da Lei da Nacionalidade e 62.º do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa.
Esta alteração de competência (material), desencadeada pela Lei da Nacionalidade actualmente em vigor (1). (2). e aplicável aos processos pendentes e à respectiva tramitação (arts. 5º da Lei Orgânica n.º 2/2006 e 4º do Dec-lei 237-A/2006), reflecte as consequências decorrentes da assunção do novo perfil da jurisdição administrativa que, depois da publicação da Lei 37/81, começou a impor-se com a revisão constitucional de 1982 e acabou por se concretizar com a revisão constitucional de 1989, que, num novo artigo relativo aos tribunais administrativos e fiscais, definiu a competência destes de modo a abranger o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais (art. 212º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa). O âmbito material desta jurisdição foi depois definido pelo art. 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (aprovado pela Lei 13/2002, de 19 de Fevereiro, e alterado pelas Leis n.os 4-A/2003, de 19 de Fevereiro e 107-D/2003, de 31 de Dezembro), nele se incluindo desde logo a apreciação dos litígios que tenham por objecto a tutela de direitos fundamentais, o que implicava a inclusão, neste domínio, da matéria da nacionalidade, dada a natureza que lhe é reconhecida (3).
Não se ignora que em regra, a competência jurisdicional, ou seja, a medida de jurisdição de um tribunal, é aferida segundo determinados elementos (como o objecto ou as partes do litígio) tal como eles se apresentam no momento da propositura da acção (art. 22º, n.º 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ) aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13-01), sendo irrelevantes, em princípio, quaisquer modificações de facto ou de direito posteriores à fixação deste pressuposto processual (regra da perpetuatio fori).
Porém, esta regra não é absoluta, já que pode comportar excepções. No domínio do contencioso da nacionalidade, e como já se deixou salientado, o legislador entendeu aplicar o regime preconizado pela Lei Orgânica n.º 2/2006 aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor – solução que expressou no art. 5º deste diploma. Ou seja, por via de uma lei de grau superior (4), afastou a aplicação da regra inserta no art. 22º da LOFTJ, criando assim uma norma atributiva de competência de natureza especial/excepcional, aplicável aos processos em curso.
O citado art. 5º, bem como o art. 4º do Dec-lei 237-A/2006, ao determinarem a aplicabilidade aos processos pendentes das novas regras modificativas da competência em matéria de contencioso da nacionalidade, constituem verdadeiras disposições transitórias especiais/excepcionais distributivas da competência jurisdicional e aplicam-se à situação em apreço, que deste modo escapa aos efeitos do princípio da perpetuatio jurisdictionis vazado no art. 22º da LOFTJ (5).
Assim sendo, e concluindo nesta parte, a competência para o conhecimento da reacção contenciosa contra quaisquer actos relativos à atribuição, aquisição ou perda da nacionalidade portuguesa pertence aos tribunais administrativos e fiscais desde o dia 15 de Dezembro de 2006 e abrange os processos pendentes. A remessa dos autos, em data posterior, para um tribunal judicial (a Relação de Lisboa) e a apreciação, por este, da matéria em causa, traduz uma infracção das regras de competência material, de acordo com o sobredito regime transitório especial, sendo irrelevante o facto de a interposição do recurso, ocorrida em 30 de Setembro de 2006, ter obedecido ao quadro legal ao tempo vigente.
Fica, assim, demonstrada a sem-razão do primeiro argumento ex adversu aduzido pelo recorrente, na sua pronúncia sobre esta questão.
Vejamos o segundo.
Defende ainda o recorrente que o art. 102º/2 do CPC impede este Supremo Tribunal de conhecer oficiosamente da excepção da incompetência material dos tribunais comuns, questão esta que a Relação não apreciou.
Mas sem razão.
O art. 102º do CPC consagra, no seu n.º 1, genericamente, a possibilidade de arguição pelas partes de todos os casos de incompetência absoluta, estabelecendo também o dever de o tribunal os conhecer oficiosamente. Prescreve ainda que a arguição ou conhecimento oficioso da excepção em causa podem ter lugar em qualquer estado do processo, seja em 1.ª instância, seja em sede de recurso, enquanto não houver sentença de mérito transitada em julgado.
O n.º 2 do mesmo normativo estabelece uma restrição à regra geral do n.º 1, na parte relativa à oportunidade do conhecimento da excepção da incompetência em razão da matéria, limitando o momento processual até ao qual é possível suscitar e apreciar tal questão, mas apenas quando se trate de causa que deve ser efectivamente apreciada no âmbito da ordem dos tribunais judiciais, ou seja, nos casos em que a acção seja instaurada em determinado tribunal judicial com preterição da competência de outro tribunal judicial. Assim, e nesses casos, a questão da incompetência em razão da matéria apenas pode ser promovida/suscitada até à prolação do despacho saneador ou, a ele não havendo lugar, até ao início da audiência de discussão e julgamento, após o que, não tendo sido levantada, se sana o vício, tornando-se o tribunal competente se não o fosse.
A ratio do preceito é evidente: procura-se obviar a uma suscitação tardia da excepção de incompetência, quando se trate de causa que deve ser efectivamente apreciada no âmbito da ordem dos tribunais judiciais (6).
Não se aplica, pois, este n.º 2 no confronto entre tribunais pertencentes a diferentes ordens judiciais. Assim, é aplicável o regime do n.º 1 quando a causa seja da competência material de outra ordem jurisdicional, nomeadamente dos tribunais administrativos e fiscais (7).
É o que sucede, como já ficou demonstrado, no caso em análise.
A causa é da competência material de outra ordem jurisdicional que não a dos tribunais judiciais. Como tal, deve prevalecer a aplicação da regra geral contida no art. 102º/1 do CPC, ou seja, a possibilidade do conhecimento oficioso da excepção em apreço pelo Supremo Tribunal de Justiça.
E, revelando os factos provados, como já foi evidenciado, que os presentes autos deram entrada em juízo, no Tribunal da Relação de Lisboa, em 19 de Dezembro de 2006, não resta senão concluir pela ocorrência no caso concreto da excepção dilatória da incompetência absoluta, proveniente da infracção de regra de competência material, pois os autos foram remetidos para um tribunal comum, que naquela data já não era competente, ratione materiae, para deles conhecer.
Ao Supremo impõe-se extrair a consequência, prevista nos arts. 105.º, n.º 1, 288.º, n.º 1, al. a), 493.º, n.º 2, e 494.º, al. a), todos do Código de Processo Civil, decorrente de tal conclusão, qual seja, a da absolvição do recorrente/requerido da instância.
O que, como é manifesto, prejudica o conhecimento das questões cuja apreciação o recorrente pretendia, relativas à avaliação da legalidade do acto administrativo de indeferimento do pedido de concessão da nacionalidade portuguesa, por naturalização, formulado pelo recorrido.

4.
Pelo exposto, ACORDAM os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em declarar a incompetência absoluta, em razão da matéria, dos tribunais judiciais – maxime, da Relação de Lisboa e deste Supremo Tribunal – para o conhecimento do recurso, revogando a decisão recorrida e absolvendo o ora recorrente da instância.
Custas a cargo do recorrente, que foi quem lhes deu causa.

Lisboa, 08 de Abril de 2008

Santos Bernardino (Relator)
Bettencourt de Faria
Pereira da Silva

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(1) De acordo com a informação disponível em www.parlamento.pt, a Lei Orgânica n.º 2/2006 resultou da discussão conjunta da proposta de lei n.º 32/X (apresentada pelo Governo e publicada no Diário da Assembleia da República, II Série-A, n.º 36, de 22-07-2005, págs. 11 a 21) e dos projectos de lei n.ºs 18/X (apresentado pelo Bloco de Esquerda e publicado no Diário da Assembleia da República, II Série-A, n.º 4, de 02-04-2005, págs. 94 a 98), 31/X (apresentado pelo Partido Ecologista Os Verdes e publicado no Diário da Assembleia da República, II Série-A, n.º 8, de 02-04-2005, págs. 10 a 12), 40/X (apresentado pelo Partido Comunista Português e publicado no Diário da Assembleia da República, II Série-A, n.º 9, de 28-04-2005, págs. 14 a 17), 170/X (apresentado pelo Partido Social-Democrata e publicado no Diário da Assembleia da República, II Série-A, n.º 55, de 13-10-2005, págs. 50 a 61) e 173/X (apresentado pelo Centro Democrático e Social – Partido Popular e publicado no Diário da Assembleia da República, II Série-A, n.º 4, de 13-10-2005, págs. 75 a 78). Estes projectos e proposta de lei, uma vez admitidos, foram objecto de um relatório, conclusões e parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias. Posteriormente, foram discutidos na generalidade em 13-10-2005 (cfr. Diário da Assembleia da República, I Série-A, n.º 54, de 14-10-2005, págs. 2456 a 2480) e, depois de aprovados (cfr. Diário da Assembleia da República, I Série-A, n.º 54, de 14-10-2005, págs. 2483 a 2484), baixaram de seguida à referida Comissão para discussão na especialidade. Aí, após novo relatório, a proposta e vários projectos foram retirados, tendo a discussão e votação na especialidade incidido sobre os projectos de lei n.ºs 18/X e 173/X e sobre um texto de substituição elaborado pela mesma Comissão (cfr. Diário da Assembleia da República, I Série-A, n.º 91, de 17-02-2006, págs. 4308 a 4312). Seguiu-se a votação final (cfr. Diário da Assembleia da República, I Série-A, n.º 91, de 17-02-2006, pág. 4313), tendo o texto aprovado baixado à mencionada Comissão para redacção final.
(2) Dos projectos e proposta de lei apresentados, apenas o projecto de lei n.º 170/X estabelecia no seu art. 24.º a aplicação ao contencioso da nacionalidade do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e do Código de Processo nos Tribunais Administrativos. Referia a este propósito a exposição de motivos do referido projecto de lei o seguinte: “Importante inovação introduzida pelo presente projecto de lei é a aplicação do contencioso administrativo ao contencioso da nacionalidade, que se justifica não só por forma a assegurar uma melhoria no acesso à justiça, devido à extensa e moderna rede dos Tribunais Administrativos e Fiscais, mas também e sobretudo porque se trata de litígios que não deixam de emergir de relações jurídico-administrativas.” (cfr. Diário da Assembleia da República, II Série-A, n.º 55, de 13-10-2005, págs. 52).
(3) Cfr. Rui Manuel MOURA RAMOS, A Renovação do Direito Português da Nacionalidade pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de Abril, na Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 136.º, Março – Abril de 2007, n.º 3943, págs. 218 e 219.
(4) Contrariamente à LOFTJ, a Lei da Nacionalidade é uma lei de valor reforçado, já que respeita a matéria da área da reserva absoluta de competência da Assembleia da República e carece de aprovação, na votação final, por maioria absoluta dos deputados em exercício de funções – arts. 112.º, n.º 3, 164.º, al. f), 166.º e 168.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.
(5)A Relação de Lisboa vem, aliás, decidindo neste sentido (cfr. a decisão de 06.02.2007, e os acórdãos de 15.03.2007 e de 21.02.2008, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
(6)Cfr. LOPES DO REGO, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, pág. 125, e LEBRE DE FREITAS, JOÃO REDINHA e RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, Coimbra Editora, 1999, pág. 191.
(7) LOPES DO REGO, ibidem.