Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08B1445
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
Nº do Documento: SJ20080527014457
Data do Acordão: 05/27/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Sumário :
1. O disposto no nº 4 do artigo 690º-A do Código de Processo Civil é instrumental em relação ao que estabelece o artigo 712º, nºs 1 a 5, do mesmo diploma.
2. A omissão pela Relação, no recurso de apelação, do conhecimento da impugnação da decisão da matéria de facto deduzida, implica a anulação do acórdão e que lhe seja devolvido o processo para a suprir.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I

AA com apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo concedido por despacho proferido no dia 14 de Setembro de 2001, intentou, no dia 16 de Maio de 2002, contra BB e CC, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo a condenação do réu a indemnizá-la nos montantes de € 119 714, 48, correspondentes a € 74 822, 68 relativos uma participação societária que não ingressou no seu património, a € 19 951,91 concernentes a danos não patrimoniais e € 24 939,89 atinentes ao necessário para recomeçar a sua vida profissional.
Motivou a sua pretensão no compromisso do réu a dar forma jurídica de sociedade por quotas à situação de facto de sociedade que ambos tinham criado ou a celebrar mais tarde esse contrato e no seu comportamento de infracção de deveres de conduta, defraudando as suas expectativas de celebrar um contrato de sociedade em que tivesse 50% do respectivo capital social, nos danos não patrimoniais disso derivados e na circunstância de ter sido forçada a recomeçar a sua actividade profissional, com os inerentes custos.
O réu, em contestação, negou os factos alegados pela autora e pediu a condenação desta por litigância de má fé a indemnizá-lo no montante de € 20 000, e a última replicou, reafirmando o conteúdo da petição inicial, impugnou o pedido de condenação por litigância de má fé pediu a condenação do autor a esse título, a indemnizá-la, e o réu contestou tal pedido e reafirmou o alegado na contestação.
Realizado o julgamento, depois de suspensão da instância a requerimento das partes e de adiamentos, foi proferida sentença no dia 7 de Abril de 2007, por via da qual a acção foi julgada improcedente e o réu absolvido do pedido e condenado na multa de € 100 com fundamento na litigância de má fé, e, quanto à ré, foi a petição inicial julgada inepta, anulado todo o processo e absolvida da instância.
Apelou a autora, e a Relação, por acórdão proferido no dia 20 de Novembro de 2007, negou-lhe provimento ao recurso.

Interpôs a apelante recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- a Relação não conheceu do recurso da decisão da matéria de facto, pelo que violou os artigos 668º, nº 1, alínea d), e 716º do Código de Processo Civil;
- nem conheceu da confissão produzida pelo recorrido, pelo que foram violados os artigos 342º, 356º e 358º do Código Civil;
- ao concluir pela não aplicação ao caso dos artigos 227º e 334º do Código Civil, violou-os;
- foram violados os artigos 483º, 562º a 564º e 566º do Código Civil, por serem claros os pressupostos indemnizatórios, incluindo o dano.

Respondeu o recorrido, em síntese de conclusão:
- o acórdão versou sobre as questões suscitadas pela recorrente, incluindo a da confissão do recorrido, fez correcto e justificado enquadramento legal, e não está afectado qualquer dos vícios invocados pela recorrente;
- o recurso da matéria de facto dependia de a recorrente referir, nas conclusões do recurso de apelação, os pontos concretos a alterar e a respectiva motivação, e não o fez;
- o Supremo Tribunal de Justiça não pode julgar a matéria de facto fixada pela Relação ainda que esta se tenha limitado a concordar com o decidido no tribunal da primeira instância;
- deve manter-se o conteúdo do acórdão recorrido.

II

É a seguinte a factualidade considerada provada no acórdão recorrido:
1. A autora iniciou a sua actividade de cabeleireira há mais de 15 anos, tendo vindo a exercer de forma contínua tal actividade, e frequentou dois cursos de acção de formação, e o réu é cabeleireiro, tendo exercido, até 1997, a sua profissão em França, onde residia.
2. Em 1997, a autora trabalhava numa cerâmica, e o réu propôs-lhe, então, que desenvolvessem em conjunto o exercício da prestação de serviços de cabeleireiro, proposta que ela aceitou, e concordaram em sediar a sua actividade nas instalações de Mimosa Portugal, esteticista, sitas na Avenida .... em Águeda, tendo-a iniciado, nos termos acordados, em meados de 1998.
3. No Banco Comercial Português, SA, Nova Rede, foi aberta uma conta solidária, de que eram titulares a autora e o réu, e a actividade de ambos começou desde logo a obter sucesso, pelo que passavam cada vez mais tempo ocupados com a mesma.
4. No exercício dessa actividade, a autora e o réu, indiscriminadamente, lavavam cabeças, aplicavam máscaras, faziam cortes, secavam cabelos, cobravam os serviços, recebiam os fornecedores e pagavam a estes.
5. Os fornecedores eram pagos através de cheques da conta bancária referida em 4, utilizando-a ambos, e a autora e réu utilizaram sempre em conjunto a grife tendance co, bem como, em conjunto, utilizavam os seus nomes profissionais, respectivamente, Nanda e Jean.
6. A autora tinha e o réu, seu primo, como grande amigo, pelo que concordou que fosse apenas ele a celebrar com Mimosa Portugal o negócio sobre a utilização das instalações daquela para o desenvolvimento da actividade de cabeleireiros que se propuseram levar a cabo.
7. Mais tarde, autora e réu passaram a desenvolver aquela mesma actividade de cabeleireiros num novo salão situado na Praça do Município, em Águeda, e com a mudança para o aludido salão, o relacionamento profissional entre autora e réu manteve-se nos mesmos termos.
8. A autora e réu não tinham horário certo, e ambos davam instruções às empregadas e supervisionavam o trabalho das mesmas, e as clientes tanto se dirigiam à autora como ao réu para se aconselharem e para efectuarem os seus pagamentos, e ambos tinham a chave do estabelecimento.
9. A autora e o réu continuaram a utilizar a mesma grife, os mesmos nomes profissionais e o mesmo cartão para promoção dos seus serviços.
10. Entre o réu como 1º outorgante e a autora, como 2º outorgante, foi celebrado aquilo a que denominaram de “contrato de trabalho sem termo”, tendo-se aí estipulado as seguintes cláusulas: o 1° outorgante admite ao seu serviço a 2ª outorgante com a categoria profissional de ajudante de cabeleireira; a retribuição mensal a auferir pela 2 outorgante será de 63 800$; o local da prestação do trabalho será no estabelecimento do 1° outorgante, sito na Praça ..., Loja C - Águeda, ou qualquer lugar onde este venha a exercer a sua actividade; e o presente contrato terá o seu início em 2 de Maio de 2000 e é feito por tempo indeterminado.
11. A autora trabalhou nos dois salões referidos durante três anos, seis dias por semana, as horas que se mostrassem necessárias, de forma afincada, porque acreditou estar a construir um empreendimento seu.
12 A autora, através da sua mandatária, enviou ao réu uma carta, datada de 9 de Abril de 2001, na qual escreveu, entre o mais: “venho por este meio instá-lo à realização da escritura do contrato de sociedade que dará forma legal ao contrato estabelecido entre V. Exa. e a minha constituinte desde 1997”.
13. A autora, através da sua mandatária, enviou ao réu a carta de 17 de Junho de 2001, inserta a folhas 24, onde, entre o mais, escreveu: “V. Exa. não se pronunciou quanto à redução à forma legal do contrato de sociedade que por vontade de V. Exa. e da minha constituinte se estabeleceu (...). Tal facto altera por completo as relações entretanto estabelecidas, pelo que a minha constituinte não encontra as condições necessárias e suficientes para continuar a colaborar com V. Exa. no local de prestação de serviços de cabeleireiro estabelecido por ambos”.
14. Em resposta a tal carta, o réu enviou à autora a carta de 27 de Junho de 200 1, inserta a folhas 25, onde escreveu que a autora “não é sócia da empresa, mas funcionária como pode verificar através da fotocópia de contrato de trabalho sem termo assinado em 2 de Maio de 2000, pela v/mesma cliente”.
15. Em Julho de 2001, o réu procurou a autora e ofereceu-lhe 1 000 000$, pela sua parte no Tendance Co.
16. A autora estabeleceu-se como cabeleireira, na Avenida ..., em Águeda, e no documento junto a folhas 13 a 21 - extracto de agenda - encontram-se inscritas diversas quantias monetárias escritas pelo réu.

III

A questão essencial decidenda é a de saber se a recorrente tem ou não direito a exigir do recorrido a indemnização no montante € 119 714, 48 por não aumento do seu património, dispêndio com o recomeço da actividade profissional e danos não patrimoniais.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação da recorrente e do recorrido, sem prejuízo de a solução dada a uma poder prejudicar o conhecimento de outra ou outras, a resposta à referida questão pressupõe a análise das seguintes subquestões:
- síntese da causa de pedir e do pedido formulados pela recorrente na acção;
- está ou não o acórdão recorrido afectado de nulidade por omissão de pronúncia?
- infringiu ou não a Relação as regras da confissão ou da distribuição do ónus da prova?
- natureza e efeitos do contrato celebrado entre a recorrente e o recorrido;
- revelam ou não os factos disponíveis a responsabilidade civil pré-contratual do recorrido?
- agiu ou não o recorrido com abuso do direito?

Vejamos, de per se, cada uma das referidas subquestões.

1.
Comecemos pela síntese da causa de pedir e do pedido que a recorrente formulou na acção no confronto do recorrido.
O pedido é o efeito jurídico pretendido pelo autor no confronto do réu e a causa de pedir a factualidade concreta abstractamente prevista na previsão da normatividade substantiva concedente daquele efeito.
Trata-se, como é natural, dos dois elementos essencialmente estruturais da causa a apreciar pelo tribunal.
No caso vertente temos um pedido formulado pela recorrente de condenação do recorrido no pagamento de € 119 71,48.
A causa de pedir que lhe está subjacente é, por um lado, o incumprimento de uma cláusula contratual no sentido de ele dar forma jurídica a uma sociedade por ambos instituída e actuada em conformidade.
E, por outro, em danos derivados desse incumprimento traduzidos na perda de aquisição de uma participação de cinquenta por cento do capital dessa sociedade, no custo do recomeço pela recorrente da sua actividade profissional de cabeleireira e no sofrimento ou transtorno disso resultante.
E, finalmente, na sua quantificação nos montantes correspondentes, respectivamente, a € 74 822, € 24 939,89 e € 19 951,91.
A recorrente enquadrou os referidos factos no disposto nos artigos 227º, 483º, 496º e 563º do Código Civil, ou seja, elegeu como instituto aplicável o da responsabilidade civil pré-contratual, referindo-se ao dano negativo e positivo, portanto à margem da exigência de cumprimento da invocada prestação de facto positivo, isto é, da acção de cumprimento a que se reporta o artigo 817º daquele diploma.

2.
Prossigamos, agora com a análise da questão de saber se o acórdão recorrido está ou não afectado de nulidade por omissão de pronúncia.
O acórdão da Relação é nulo quando deixe de se pronunciar sobre questões de que devia conhecer (artigos 668º, nº 1, alínea d), e 716º, nº 1, do Código de Processo Civil).
O juiz deve, com efeito, resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (artigo 660º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Importa, porém, ter em linha de conta que uma coisa são os argumentos ou as razões de facto e ou de direito e outra, essencialmente diversa, as questões de facto ou de direito.
As questões a que se reporta a alínea d) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil são os pontos de facto e ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às excepções.
Julgada procedente a nulidade decorrente de omissão de pronúncia ou de falta de fundamentação da decisão da matéria de facto, ou de direito, pela Relação, impõe-se a baixa do processo a fim de aquele Tribunal operar a reforma do acórdão, porque este Tribunal não tem competência funcional para a suprir (artigo 731º do Código de Processo Civil).
A recorrente motiva a nulidade do acórdão na omissão de pronúncia sobre a impugnação da decisão da matéria de facto, incluindo a confissão que atribuiu ao recorrido dita por ele feita no articulado de contestação a propósito do registo do serviço de cabeleireiro por ambos realizado.
Ela impugnou, com efeito, a resposta aos quesitos 2, 14 a 17, 18, 35 a 37, 39 a 42 e 44 a 48, referiu-se à localização da gravação e formulou uma conclusão no sentido de que tais factos devem ser dados por provados, cumprindo, por isso, o disposto no artigo 690º-A, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Todavia, a Relação, só considerou objecto do acórdão as questões de direito que constavam das alegações do recurso de apelação, a da nulidade da sentença por reconhecer a celebração do contrato de sociedade e considerar provado o seu objecto e decidir em contrário desse reconhecimento, a da sua violação dos artigos 227º, por um lado, e 496º, nº 3 e 562º a 564º, por outro, todos do Código Civil, por admitir a ruptura culposa das negociações pelo recorrido e não haver considerado a obrigação de indemnizar nem o respectivo quantitativo.
Não considerou a alegação e a respectiva conclusão formuladas no recurso de apelação no âmbito da impugnação da matéria de facto, constantes na primeira à sétima páginas do instrumento de alegação.
Por isso, não apreciou a decisão da matéria de facto proferida no tribunal da primeira instância nos termos nº 4 do artigo 690º-A do Código de Processo Civil, instrumental em relação ao que se prescreve no artigo 712º, nºs 1 a 5, daquele diploma.
A conclusão é, por isso, no sentido de que o acórdão recorrido está afectado de nulidade por omissão de pronúncia a que se reporta a alínea d) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil.

3.
Finalmente a solução para o caso em análise, dada a anulação do acórdão recorrido e a remessa à Relação a fim de suprir a omissão de apreciação da decisão da matéria de facto proferida pelo tribunal da primeira instância.
A referida solução implica considerar prejudicado o conhecimento por este Tribunal das subquestões de saber se a Relação infringiu ou não as regras da confissão ou da distribuição do ónus da prova, da natureza e efeitos do contrato celebrado entre a recorrente e o recorrido, da verificação ou não dos pressupostos responsabilidade civil pré-contratual do recorrido e de saber se este agiu ou não com abuso do direito (artigos 660º, nº 2, 713º, nº 2 e 726º do Código de Processo Civil).
A responsabilidade pelo pagamento das custas do recurso de revista em causa será da parte que a final ficar vencida, caso não beneficie do apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

IV
Pelo exposto, anula-se o acórdão recorrido e determina-se a remessa do processo à Relação, a fim de conhecer da impugnação da decisão da matéria de facto proferida pelo tribunal da primeira instância e, subsequentemente, das questões de direito envolventes em causa, e condena-se no pagamento das custas do recurso a parte que a final ficar vencida, na proporção em que o for, se não beneficiar do apoio judiciário nessa modalidade.

Lisboa, 27 de Maio de 2008

Salvador da Costa (relator)
Ferreira de Sousa
Armindo Luis