Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6ª SECÇÃO | ||
Relator: | PINTO DE ALMEIDA | ||
Descritores: | PROCESSO DE INSOLVÊNCIA DAÇÃO EM PAGAMENTO RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE | ||
Data do Acordão: | 10/07/2014 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CAUSAS DE EXTINÇÃO DAS OBRIGAÇÕES ALÉM DO CUMPRIMENTO. DIREITO FALIMENTAR - EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA / RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE. | ||
Doutrina: | - Ana Prata, Morais Carvalho e Rui Simões, CIRE Anotado, 354 e segs.. - Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7ª ed., 171. - Brandão Proença, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, 24 e segs. - Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 2ª ed., 523 e segs.. - Cunha de Sá, Modos de extinção das obrigações, em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor I. Galvão Teles, Vol. I, 185 e segs.. - Gravato Morais, Resolução em Benefício da Massa Insolvente, 48 e segs., 132. - Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 3ª ed., 178 e segs.. - Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 212 e segs. - Vaz Serra, Responsabilidade Patrimonial, em BMJ 75-243. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 837.º. CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE), APROVADO PELO DL Nº 53/2004, DE 18/03, COM A REDACÇÃO DADA PELO DL 200/2004, DE 18/08: - ARTIGOS 120.º, N.ºS 2, 3 E 4, 121.º, N.º1, AL. G), 123.º, N.º 1, 125.º | ||
Sumário : | I. Embora a dação em pagamento constitua um modo normal de extinção de obrigações, o devedor não tem obrigação de efectuar essa prestação de substituição, não podendo esta ser imposta unilateralmente por qualquer das partes. II. A dação em pagamento de todo o património do devedor, em benefício de um único credor – representando uma liquidação antecipada e instantânea de todo esse património em favor deste –, não pode considerar-se usual no comércio jurídico, nem poderia ser exigida por esse credor. III. Assim, tendo essa dação ocorrido dentro dos seis meses anteriores à data do início do processo de insolvência, ela é resolúvel em benefício da massa insolvente, nos termos do art. 121º nº 1 g) do CIRE. | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]:
I. AA – …, SA intentou esta acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra a MASSA INSOLVENTE DA BB – ..., LDA.
Pediu a revogação da resolução em benefício da massa insolvente notificada pelo administrador de insolvência e relativa à dação em cumprimento, outorgada em 22.6.2011; e que, em consequência, se mantenha o direito de propriedade da Autora sobre o imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob o artigo ….
Como fundamento, alegou que recepcionou uma carta, remetida pelo administrador de insolvência da Ré, invocando os requisitos constantes dos art.ºs. 120.º, 121.º e 123.º do CIRE para justificar a resolução daquele negócio. Em 01.03.2009, Autora e BB ..., Lda, formalizaram um contrato de fornecimento, comodato e imagem, através do qual, em exclusividade, e através do seu posto de abastecimento em ..., esta sociedade se obrigou a comprar para revenda os produtos que lhe eram fornecidos pela Autora. Em 10.3.2009 a Ré deu hipoteca à Autora, que aceitou, o prédio urbano descrito na CRP da ... sob o n.º …, para garantia do pagamento de montante de 450.000,00€. Em 30.11.2010, a dívida da Ré para com a Autora cifrava-se no montante de 744.476,17€ e, por isso, em 22.06.2011, foi outorgada a escritura de dação em cumprimento, em que a Ré se confessou devedora à Autora da quantia de 743.720,97€. A A. desconhecia então a existência de qualquer processo de insolvência e muito menos a existência de dívidas da Ré a terceiros; não estão, assim, preenchidos os requisitos dos artigos 120.º e 121.º do CIRE.
Citada, a Ré contestou, contrapondo que a dação em pagamento de um prédio da ora insolvente impossibilitou a satisfação dos credores, diminuindo e frustrando as suas expectativas de virem a ser ressarcidos do montante máximo dos seus créditos; a impugnante sabia que a devedora se encontrava em situação de insolvência iminente face ao incumprimento generalizado das suas obrigações para com os credores; bem como, não podia deixar de conhecer que o acto em si era prejudicial aos restantes credores, nomeadamente quanto ao 1º credor hipotecário; acrescendo que o real valor do dito prédio é muito superior ao que lhe foi atribuído, o que redunda em prejuízo efectivo para a massa insolvente e respectivos credores. Concluiu pela improcedência da acção.
Percorrida a tramitação normal, foi proferida sentença a julgar a acção totalmente procedente, em consequência do que se declarou a ilicitude da resolução em benefício da massa insolvente efectuada pelo administrador de insolvência e relativa à dação em cumprimento outorgada em 22.06.2011 entre AA – ..., S.A. e BB ..., Lda.
Inconformada, a Ré interpôs recurso de apelação que a Relação julgou procedente, revogando a sentença e julgando a acção improcedente, absolvendo a Ré do pedido formulado.
Vem agora a autora pedir revista, apresentando alegações e concluindo com esta única questão que importa aqui resolver: - Saber se a dação em cumprimento em questão se enquadra no pressuposto para a resolução em benefício da massa insolvente, nos termos da al. g) do art. 121º do CIRE.
II.
Vêm provados os seguintes factos:
1. Por escritura pública datada de 22.06.2011[2], sob a epígrafe “Dação Em Cumprimento”, outorgada no Cartório Notarial sito na Dr. CC, n.º … …, ..., freguesia de ..., concelho de Ourém, em que intervieram como primeiros outorgantes DD, EE e FF, na qualidade de sócios e os dois primeiros também como gerentes da sociedade comercial por quotas sob a firma “BB ..., Lda.”, como segundos GG, HH e II, na qualidade de Presidente e vogais, respectivamente, do Conselho de Administração da sociedade anónima sob a firma “AA – ..., SA”, pelos primeiros outorgantes foi dito: 2. Por sentença proferida no processo principal em 07/12/2011 e transitada em julgado em 06/01/2012, BB – ..., Lda., pessoa colectiva n.º … foi declarada insolvente, tendo sido nomeado Administrador da Insolvência o Sr. Dr. JJ. 3. JJ, na qualidade de administrador da insolvência de BB – ..., Lda., em 20/01/2012, emitiu e enviou missiva à Autora, com o seguinte teor: 4. Mediante a Ap. 7 de 2007/08/27 foi registada hipoteca voluntária a favor da Caixa KK, para garantia do capital máximo de €150.000,00, incidente sobre o prédio urbano, situado em ..., Estrada de ..., composto de placa de abastecimento de combustíveis e logradouro, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º…, da freguesia de ..., e inscrito na respectiva matriz predial sob o n.º…. 5. Mediante a Ap. 937 de 2009/03/10 foi registada hipoteca voluntária a favor da Autora, para garantia do capital máximo de €450.000,00, incidente sobre o prédio urbano, situado em ..., Estrada de ..., composto de placa de abastecimento de combustíveis e logradouro, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º…, da freguesia de ..., e inscrito na respectiva matriz predial sob o n.º…. 6. Aquando da celebração da escritura de dação em cumprimento referenciada em 1), a administração da Autora sabia que os bens objecto da citada dação eram os únicos detidos pela insolvente e que a mesma possuía dívidas à Segurança Social, as quais a gerência da insolvente se comprometeu a proceder ao seu pagamento.
III.
Discute-se neste recurso se a dação em cumprimento celebrada entre a autora e a insolvente é subsumível na previsão do art. 121º nº 1 g) do CIRE, isto é, se a mesma traduz uma forma de extinção da obrigação efectuada em termos não usuais no comércio jurídico e que o credor não poderia exigir.
A resolução em benefício da massa insolvente visa a reconstituição do património do devedor, permitindo "de forma expedita e eficaz, a destruição de actos prejudiciais a esse património"[3].
Dispõe o art. 120º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo DL nº 53/2004, de 18/03, com a redacção dada pelo DL 200/2004, de 18/08[4]: 4. Salvo nos casos a que respeita o artigo seguinte, a resolução pressupõe a má fé do terceiro (…).
No art. 121º, prevê-se a resolução (incondicional), em benefício da massa insolvente, dos actos aí indicados nas als. a) a i) do nº 1, sem dependência de quaisquer outros requisitos. No caso, está em causa a situação prevista na al. g): pagamento ou outra forma de extinção de obrigações efectuados dentro dos seis meses anteriores à data do início do processo de insolvência em termos não usuais no comércio jurídico e que o credor não pudesse exigir.
Nestes casos de resolução incondicional, a prejudicialidade à massa insolvente é presumida juris et de jure (art. 120º nº 3), não carecendo a resolução da demonstração da má fé do terceiro interveniente no acto objecto de resolução (art. 120º nº 4). Fora do âmbito de previsão do art. 121º nº 1, ou seja, nos casos de resolução condicional, terá de ser demonstrada a prejudicialidade à massa insolvente (art. 120º, nº 2) e, bem assim, a má fé do terceiro, sendo essa má fé presumida, juris tantum, quanto a actos cuja prática ou omissão tenha ocorrido dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência e em que tenha participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com o insolvente, ainda que a relação especial não existisse a essa data (art. 120º nº 4).
Nos termos do art. 123º nº 1, a resolução pode ser efectuada pelo administrador da insolvência, por carta registada com aviso de recepção, nos seis meses seguintes ao conhecimento do acto, mas nunca depois de decorridos dois anos sobre a data da declaração de insolvência. A resolução pode ser impugnada pela outra parte no acto resolvido ou por terceiro afectado pela resolução, a quem incumbe o ónus de intentar a acção correspondente, que corre por dependência do processo de insolvência (art. 125º). Está em causa nesta acção a inexistência do fundamento da resolução operada[5].
Está aqui em causa, como se disse, o fundamento de resolução previsto no citado art. 121º nº 1 g), e, em especial, o sentido a atribuir às expressões (forma de extinção de obrigações…) em termos não usuais no comércio jurídico e que o credor não pudesse exigir.
Sobre o sentido dessas expressões legais, afirmam Carvalho Fernandes e João Labareda[6]: "Esta fórmula legal envolve uma anormalidade do ato extintivo que tem de ser aferida em função da natureza da obrigação. Por outras palavras, a obrigação que concretamente se extinguiu não é usualmente extinta pelo modo por que o foi. Este modo não é usual em si mesmo ou atendendo às circunstâncias que o rodearam. Além disso, pois estamos em presença de requisitos cumulativos, o modo não usual de extinção não podia ser exigido pelo credor. Do nosso ponto de vista, o legislador teve aqui em mente a hipótese de, por força de lei especial ou excecional ou de convenção, esse modo anormal estar previsto no caso concreto em que ocorrer. Mais uma vez, a feição anormal que o ato reveste, justifica a sua resolubilidade incondicional, pois revela que ele se prende com o presuntivo favorecimento dos credores".
Como sublinha Gravato Morais[7], "são os modos atípicos do cumprimento da obrigação que geram a desconfiança do legislador quanto ao acto extintivo em causa. Presume-se assim que a actuação atípica do devedor insolvente gera dano aos credores da insolvência".
Na fundamentação do acórdão recorrido, afirma-se, a este respeito, o seguinte: "Sopesando a densidade do objecto da dação, que incluiu um conjunto de bens e direitos de apreciável importância, e a circunstância de se extrair do facto provado em 6 que todos os bens da devedora foram dados em cumprimento da dívida que sobre ela a A. detinha, só podemos qualificar aquela dação como uma liquidação antecipada e instantânea do património respectivo em proveito de um único credor. É patente que houve o intuito de satisfazer um único credor, no caso a A. na presente acção, sem qualquer cautela ou salvaguarda para os demais, em que se incluía a Segurança Social e a Caixa KK (este também credor hipotecário). A liquidação por acordo de todo o património de devedor em proveito de um único dos credores constituiu, por isso, um acto que a este credor não seria permitido exigir. Pelo que o acto em causa tem de ser qualificado de não usual no comércio jurídico e que o credor por ele avantajado não poderia exigir. E nessa conformidade a resolução operada pelo administrador de insolvência pela carta de 20.01.2012 foi legítima ao ter na sua base a situação descrita na alínea g) do nº 1 do art.º 121 do CIRE".
Subscreve-se, sem qualquer reserva, esta fundamentação. A dação em pagamento consiste na realização de uma prestação diferente da que é devida, com o fim de, mediante acordo do credor, extinguir imediatamente a obrigação (cfr. art. 837º do CC)[8]. Tem assim como efeito a extinção da obrigação, mediante a realização, com o acordo do credor, de uma prestação diferente da devida; "envolve, de forma simultânea e recíproca, um efeito transmissivo de um bem para o património do credor e o efeito extintivo de um crédito de que este era titular no confronto com o devedor".
Constituindo a dação em pagamento um modo normal de extinção de obrigações, será de notar, contudo, que o credor não pode forçar o devedor a prestar algo diverso daquilo que deve[9]. O devedor não tem a obrigação de efectuar essa prestação de substituição. A dação em pagamento tem natureza contratual: o devedor e o credor acordam em fazer extinguir o crédito deste através de uma prestação diferente da devida. Esta prestação, diferente (aliud pro alio), não pode ser assim imposta unilateralmente por qualquer das partes.
Por outro lado, parece também que a dação em pagamento de todo o património do devedor, no circunstancialismo provado, não é evidentemente conforme aos usos dos negócios[10]. Saliente-se que a devedora é uma sociedade que tem por actividade a venda de ... e que a dação – de todo o património, como se provou –, teve por objecto um prédio urbano (composto pela placa de abastecimento de combustíveis e logradouro), o direito à exploração do posto de abastecimento de combustíveis (incluindo bombas abastecedoras, tanques no subsolo, pala de cobertura e loja de apoio), o respectivo alvará e um veículo automóvel.
Ora, sendo estes os únicos bens de que insolvente era proprietária, a que foi, aliás, atribuído valor apreciável, a dação de todos esses bens constitui, como se observa no acórdão recorrido, uma liquidação antecipada e instantânea de todo o património da insolvente, o que não pode considerar-se normal. Essa liquidação inviabilizaria a continuidade da própria actividade que constitui o objecto social da insolvente. E, para mais, constitui uma liquidação em benefício apenas de um credor, a autora, e que esta, por isso, também nesta perspectiva, não poderia exigir, por ser evidente o prejuízo que daí decorreria para os demais credores, com violação do princípio da par conditio creditorum. Assim, satisfeito o requisito temporal (dação celebrada dentro dos seis meses anteriores à data do início do processo de insolvência) e os demais requisitos previstos no citado art. 121º nº 1 g) – a referida dação em pagamento de todo o património da insolvente, em benefício apenas da autora, não é usual no comércio jurídico, nem poderia ser exigida por esta – deve concluir-se que foi legítima a resolução operada, no caso, pelo administrador de insolvência. O acórdão recorrido não merece, pois, qualquer censura.
IV.
Em face do exposto, nega-se a revista, confirmando-se o acórdão recorrido. Custas pela Recorrente.
Lisboa, 7 de Outubro de 2014 Pinto de Almeida (Relator) Nuno Cameira Salreta Pereira
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