Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
154/22.5T8TMR.E1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: DOMINGOS JOSÉ DE MORAIS
Descritores: NULIDADE DA SENTENÇA
AUDIÊNCIA PRÉVIA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 05/24/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :

I– Ao contrário da regra no direito processual civil, no direito processual laboral a audiência prévia apenas é marcada quando a complexidade da causa o justifique.


II– Não há violação do princípio do contraditório quando a questão em causa tenha sido discutida pelas partes nos articulados da acção ou quando o resultado final da decisão for o mesmo, com ou sem a notificação prevista no artigo 3.o, n.o 3 do CPC.

Decisão Texto Integral:


Processo n.o 154/22.5T8TMR.E1.S1


Recurso de revista


Relator: Conselheiro Domingos Morais


Adjuntos: Conselheiro Mário Belo Morgado


Conselheiro Júlio Gomes


Acordam os Juízes na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça


I.Relatório


1. - AA, Lda., interpôs recurso de revista excepcional do acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 15 de dezembro de 2022, proferido sobre a sentença da 1.a Instância, de 12 de julho de 2022.


O acórdão do Tribunal da Relação decidiu pela improcedência da apelação e manteve a decisão recorrida.


2. - No despacho inicial, o Relator consignou:


Decorre dos pontos 1) a 18) das conclusões do recurso de revista que a recorrente apenas invocou a nulidade da sentença da 1.a Instância, por violação do princípio do contraditório, sendo que tais pontos das conclusões correspondem ipsis verbis às mesmas dezoito conclusões do recurso de apelação.


Ora, no recurso de revista, o Supremo Tribunal de Justiça aprecia a decisão do Tribunal da Relação e não a sentença da 1.a Instância.


No entanto, na última conclusão - ponto 20) - a recorrente alega que “o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora entende não existir tal nulidade.”, ou seja, tal alegação permite que se considere, ainda que de forma inapropriada, que a recorrente está a pôr causa a decisão proferida pelo Tribunal da Relação quanto à nulidade da sentença da 1.a Instância.


E quanto a este segmento decisório autónomo não se pode falar, verdadeiramente, em dupla conforme, como ocorre quanto ao mais decidido pelas Instâncias.


Se é certo que o Tribunal de 1.a Instância se pronunciou quanto às nulidades no despacho de 05.09.2022, fê-lo depois da decisão recorrida, no despacho que admitiu o recurso e ao abrigo do disposto no artigo 617.o, n.o 1 do Código de Processo Civil.


Salvo melhor opinião, a verificação da dupla conforme não pode ficar dependente de um acto posterior à interposição do recurso.


[cfr., nesse sentido, o acórdão do STJ, de 16.12.2021, proferido no processo n.o 4260/15.4T8FNC-E.L1.S1: “É óbvio que, pela sua própria natureza, esta questão (...), não foi objecto de qualquer pronúncia em 1a instância (como logicamente, por força das próprias circunstâncias que envolvem a situação sub judice, não podia ter acontecido)”].


Acresce que apenas quando o despacho é no sentido do suprimento da nulidade, este passa a ser parte integrante da sentença (artigo 617.o, n.o 2).


Assim, considerando, como se considera, que inexiste dupla conforme, nos termos do artigo 672.o, n.o 5 do CPC, é admitido o recurso de revista nos termos gerais.”.


2. - Notificadas as partes da admissão do recurso de revista, não responderam.


3. - O Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência da revista, por considerar “que a sentença de 1.a instância não incorreu na alegada nulidade prevista no art. 615.o do CPC.”.


II. – Fundamentação de direito


1. - Do objeto do recurso de revista


- Da nulidade da sentença da 1.a instância, por força do disposto no artigo 615.o, n.o 1, alínea d), do Código de Processo Civil (CPC): (i) não convocação da audiência prévia e (i) violação do disposto no artigo 3.o, n.o 3, do CPC.


2. - No Acórdão da Relação pode ler-se:


Considera a Apelante que a sentença é nula por terem sido cometidas duas nulidades processuais previstas no art. 194.o, n.o 1, do Código de Processo Civil, a primeira por não ter sido convocada a audiência prévia, e a segunda por violação do disposto no art. 3.o, n.o 3, do Código de Processo Civil, visto que, ao não ter sido convocada a audiência prévia, não se pronunciou sobre as questões decididas no saneador sentença.


(...)


(i) Não convocação da audiência prévia.


Ora, como resulta dos artigos citados, e independentemente daquilo que decorra no Código de Processo Civil para a convocação da audiência prévia, no caso da ação de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, relativamente à convocação da audiência prévia, aplica-se o disposto no n.o 1 do art. 62.o do Código de Processo do Trabalho, por força do disposto no n.o 1 do art. 98.o-M do mesmo Diploma Legal.


E, a ser assim, só é convocada a audiência prévia quando a complexidade da causa o justifique, sendo a sua convocação a exceção e não a regra.


(...).


Deste modo, não tendo o tribunal a quo convocado a audiência prévia não cometeu qualquer irregularidade. Atente-se que nem a Apelante invoca que, no caso em apreço, a causa a decidir é complexa, invocando apenas a obrigatoriedade de audiência prévia, em face das disposições legais existentes no Código de Processo Civil, não aplicáveis ao processo laboral.


Pelo exposto, e quanto à invocada irregularidade processual por não convocação da audiência prévia, improcede a pretensão da Apelante.”.


(ii) Violação do disposto no art. 3.o, n.o 3, do Código de Processo Civil


Considera a Apelante que não foi dado cumprimento ao disposto no art. 3.o, n.o 3, do Código de Processo Civil, uma vez que, ao não ter sido convocada a audiência prévia, não se pronunciou sobre as questões decididas no saneador sentença.


(...)


Da análise concertada dos referidos artigos [arts. 3.o, 60.o, n.o 5, 61.o, n.o 2, do CPC, e art. 98-J, n.o 3, do CPT] resulta que a inexistência de apresentação pela entidade empregadora do procedimento disciplinar implica, por parte do tribunal a quo, a prolação imediata de decisão de ilicitude do despedimento do trabalhador, sem necessidade de previamente dar cumprimento ao disposto no art. 3.o, n.o 3, do Código de Processo Civil, e isto porque tal sanção se mostra expressamente prevista na lei e é de uma evidência absoluta, subsumindo-se naquilo a que no n.o 3 do referido art. 3.o designa de “manifesta desnecessidade”.


(...).


Deste modo, e apesar de as decisões finais proferidas em sede de despacho saneador pressuporem a audição prévia das partes, (...) a não apresentação pela entidade empregadora do procedimento disciplinar determina a prolação imediata pelo juiz de uma decisão a declarar a ilicitude do despedimento do trabalhador, por se tratar de uma daquelas situações, dada a sua simplicidade de apreciação, de manifesta desnecessidade de prévia audição.


(...)


É igualmente verdade que a conclusão de que o procedimento disciplinar não se mostra junto pela entidade empregadora na sua totalidade resulta da resposta apresentada pelo Autor, bem como pela documentação junta. No entanto, a entidade empregadora teve a possibilidade de impugnar tal documentação, como, aliás, fez com outros documentos juntos pelo Autor, e não procedeu à sua impugnação, pelo que, dada a facilidade na perceção da situação, por manifesta desnecessidade, é igualmente de aplicar, de imediato, o disposto no art. 98.o-J, n.o 3, do Código de Processo do Trabalho, sem proceder a prévia audição das partes.


Pelo exposto, inexistindo qualquer omissão de ato que a lei prescreva, indefere-se também nesta parte a nulidade invocada pela Apelante.”. – fim de citação.


3. – Nas conclusões do seu recurso, a Recorrente apresentou, rigorosamente, os mesmos argumentos que alegou no recurso interposto para o Tribunal da Relação de Évora, e invocou ainda a existência de um acórdão em sentido diferente à decisão recorrida: o acórdão do TRL de 09.10.2014, proc. n.o 2164/12.1TVLSB.L1-2, que juntou como acórdão-fundamento.


Cumpre decidir.


4. - Da não convocação da audiência prévia.


4.1. - O artigo 591.o - Audiência prévia – do CPC:


1 - Concluídas as diligências resultantes do preceituado no n.o 2 do artigo anterior, se a elas houver lugar, é convocada audiência prévia, a realizar num dos 30 dias subsequentes, destinada a algum ou alguns dos fins seguintes:


(...).”.


Por sua vez, o artigo 62.o - Audiência prévia – do Código de Processo do Trabalho (CPT) dispõe:


1 - Concluídas as diligências resultantes do preceituado no n.o 1 do artigo anterior, se a elas houver lugar, é convocada uma audiência prévia quando a complexidade da causa o justifique.”. (negrito nosso)


Decorre, pois, da conjugação dos citados normativos que, no âmbito do direito processual laboral, a audiência prévia apenas deve ser convocada “quando a complexidade da causa o justifique” e não, por regra, como determina o artigo 591.o, n.o 1, do CPC.


A sentença da 1.a instância foi proferida ao abrigo do disposto no artigo 98.o-J, n.o 3, do CPT, dado que “a Ré não juntou aos autos a totalidade do processo disciplinar (ou dos processos disciplinares, em número de 4, visto não se ter visto qualquer decisão de apensação de todos os processos disciplinares num só) que instaurou ao A..


A lei comina essa omissão com a declaração da ilicitude do despedimento do trabalhador, sem necessidade de qualquer consideração ou apreciação ulterior.”.


Ou seja, o objeto da ação não só não comporta complexidade relevante – a declaração da ilicitude do despedimento, por não junção aos autos da totalidade do procedimento disciplinar, e suas consequências decorrem da própria lei -, como a Ré recorrente também não alegou que a causa de pedir fosse complexa.


Sobre o acórdão do TRL, de 09.10.2014, proc. n.o 2164/12.1TVLSB.L1-2, que a recorrente juntou como acórdão-fundamento, importa dizer que foi proferido no âmbito de uma ação declarativa de condenação na forma ordinária, na área civil, em que foi aplicável à audiência prévia o regime previsto nos artigos 597.o e 591.odo CPC, diferente do regime previsto e aplicável na área laboral, como supra referenciado.


Nada a opor, pois, nesta parte, ao decidido pelas instâncias.


4.2. - Da violação do disposto no artigo 3.o, n.o 3, do CPC.


No acórdão do STJ, de 19 de outubro de 2022, processo n.o 13358/20.6T8LSB.S1, in www.dgsi.pt, escrevemos:


“O princípio do contraditório, enquanto princípio estruturante do processo civil, exige que se dê a cada uma das partes a possibilidade de deduzir as suas razões “de facto e de direito”, de “oferecer as suas provas”, de “controlar as provas do adversário” e de “discretear sobre o valor e resultados de umas e outras”.


[cf. acórdão do T. Constitucional n.o 177/2000, DR, II série, de 27.10.2000].


A norma do n.o 3 do artigo 3.o do CPC, introduzida pela Reforma de 1995/96, veio ampliar o âmbito tradicional do princípio do contraditório, como garantia de uma discussão dialéctica ou polémica entre as partes no desenvolvimento do processo.


A uma concepção válida, mas restritiva, substitui-se hoje uma noção mais lata de contraditoriedade, com origem na garantia constitucional do “rechtliches Gehõr” germânico, entendida como garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontram em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para decisão.


O escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de influir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo.


[cf. Lebre de Freitas, in Introdução ao Processo Civil, Conceitos e Princípios Gerais à luz do Código Revisto", 1996, pág. 96].


Mesmo relativamente às questões de direito, a norma proíbe, como sublinha este Autor, as decisões-surpresa, ou seja, decisões baseadas “em fundamento que não tenha sido considerado previamente pelas partes”, enquanto violadoras do princípio do contraditório, conforme entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal de Justiça.


[cf. Acórdão do STJ de 15.10.2002, in wwwdgsi.pt).


No dizer de António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Almedina, pp. 19 e seguintes: “Ao princípio do contraditório subjaz a ideia de que repugnam ao nosso sistema processual civil, decisões tomadas à revelia de algum dos interessados (...). Tal como o princípio do contraditório não deve obscurecer o objetivo da celeridade processual, também esta não pode conduzir a uma dispensa do contraditório sob o pretexto da sua desnecessidade. Tal dispensa é prevista a título excecional, de modo que apenas se justificará quando a questão já tenha sido suficientemente discutida ou quando a falta de audição das partes não prejudique de modo algum o resultado final.”. (negrito nosso)


Como resulta do histórico do processo, a recorrente não juntou aos autos o procedimento disciplinar completo, mas apenas alguns documentos do mesmo, o que motivou a prolação da sentença recorrida, nos termos do artigo 98.o-J, n.o 3, do CPT, ou seja, a condenação imediata da Recorrente, nos termos prescritos em tal normativo.


Na verdade, como escreve o Exmo. Sr. Procurador Geral Adjunto no seu Parecer, “a omissão de qualquer uma das situações previstas no n.o 3 do artigo 98.o-J do CPT implica, em bom rigor, um efeito cominatório pleno, penalização ou sanção que o legislador entendeu impor nessas situações de revelia ou equiparadas” e “essa condenação imediata não pode ter surpreendido a recorrente – ou, pelo menos, não a deveria ter surpreendido -, uma vez que se encontra expressamente consagrada na lei, não estando previsto qualquer aviso prévio para tal.”.


E por se tratar de norma de carácter imperativo, que cabe na excepção da “manifesta desnecessidade” – cfr. artigo 3.o, n.o 3, do CPC -, a sua eventual ignorância/desconsideração não isenta a Recorrente das consequências nela estabelecidas, atento o disposto no artigo 6.o do Código Civil.


Tanto mais que, aquando da sua citação, foi expressamente advertida “(...) de que, caso não compareça na audiência de partes e/ou na inexistência de acordo, tem o prazo de 15 dias a contar daquela data, para apresentar articulado para motivar o despedimento, juntar o procedimento disciplinar ou os documentos comprovativos do cumprimento das formalidades exigidas, apresentar o rol de testemunhas e requerer quaisquer outras provas, sob a cominação de ser declarada a ilicitude do despedimento do trabalhador - cfr. artos 98o-G no1 al. a), 98o-I no 4 al. a) e 98o-J no 3 todos do C.P.T.- (DL no295/2009, de 13/10), ...”. - Referência 89041471, Data: 28-01-2022. (negrito nosso)


E em relação à questão do procedimento disciplinar não ter sido junto na sua totalidade, foi a recorrente confrontada com essa situação e respetivas consequências no requerimento de resposta do recorrido (cfr. contestação apresentada pelo recorrido, em 30.03.2022), tendo tido, pois, a oportunidade de se pronunciar, como o fez, de resto, em relação a outros documentos.


Assim, no caso em apreço, não tem qualquer justificação o cumprimento do n.o 3 do artigo 3.o do CPC, por manifesta desnecessidade, não só porque a questão já tinha sido discutida pelas partes nos respectivos articulados, mas também porque a falta de audição da Recorrente não a prejudicou quanto ao resultado final da sentença, proferida ao abrigo do artigo 98.o-J no 3 do CPT.


Com ou sem notificação, o resultado final da decisão é o que consta na sentença recorrida, não impugnado pela Recorrente.


Improcede, pois, o recurso de revista.


Custas a cargo da Ré.


IV. - Decisão


Atento o exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Social do STJ julgar improcedente o recurso de revista.


Custas a cargo da Ré.


Lisboa 24 de maio de 2023


Domingos José de Morais (Relator)


Mário Belo Morgado


Júlio Gomes