Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1329/14.6T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ROSA RIBEIRO COELHO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
CONHECIMENTO OFICIOSO
INCAPACIDADE
ATESTADO MÉDICO
BOA FÉ
EQUILÍBRIO DAS PRESTAÇÕES
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
UTILIZAÇÃO ABUSIVA
ERRO DE JULGAMENTO
RECURSO DE REVISTA
OBJECTO DO RECURSO
OBJETO DO RECURSO
ALEGAÇÕES DE RECURSO
CONTRA-ALEGAÇÕES
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
EXCESSO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 11/30/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL / INTERPRETAÇÃO E INTEGRAÇÃO.
Doutrina:
-Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4.ª Edição, 325;
-Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 4.ª Edição revista e atualizada, Volume I, 223.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 636.º.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 236.º, N.º 1.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 71.º, N.º 2.
CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS, APROVADO PELO DL N.º 446/85, DE 25 DE OUTUBRO: - ARTIGOS 1.º, 12.º E 15.º.
REGIME JURÍDICO DO CONTRATO DE SEGURO, APROVADO PELO DL N.º 72/2008, DE 16 DE ABRIL: - ARTIGO 1.º E 51.º.
LEI DE DEFESA DO CONSUMIDOR, APROVADA PELA LEI N.º 24/96, DE 31 DE JULHO: - ARTIGO 9.º, N.ºS 2, ALÍNEA B) E 3.
REGIME DE AVALIAÇÃO DE INCAPACIDADE DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA, APROVADO PELO DL N.º 202/96, DE 23 DE OUTUBRO, REPUBLICADO PELO DL N.º 291/2009, DE 12 OUTUBRO.
REGIME JURÍDICO DA PREVENÇÃO, HABILITAÇÃO, REABILITAÇÃO E PARTICIPAÇÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA, APROVADO PELA LEI Nº 38/2004, DE 18 DE AGOSTO.
Sumário :
I – No julgamento de recursos os tribunais superiores devem emitir pronúncia sobre as questões suscitadas pelo recorrente ao alegar e pelo recorrido ao contra-alegar, este último em oposição às formuladas pelo primeiro ou por ampliação nos termos do art. 636º do CPC.

II – Se houver indevida desconsideração ou desacertada valoração do conteúdo de cláusula contratual aplicável, isso envolverá erro de julgamento, mas não afeta a regularidade formal do acórdão.

III – A alusão do acórdão a uma eventual junção de um atestado médico de incapacidade multiuso, o qual não fazia parte das questões levantadas no recurso, mas sem que se afirme a necessidade de apresentação do mesmo para prova da incapacidade invocada pelo recorrente, é um “obiter dictum” que não traduz um excesso de pronúncia.

IV – A problemática da nulidade das cláusulas contratuais gerais, apesar de não invocada na apelação, pode ser suscitada no recurso de revista, uma vez que se trata de questão de direito, de conhecimento oficioso.

V - Através de um contrato de seguro o segurador cobre um risco determinado (do tomador do seguro ou de outrem), assumindo a obrigação de realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência de um evento aleatório previsto no contrato, e o tomador contrai a obrigação de pagar o prémio correspondente, que é a contrapartida da cobertura acordada.

VI - Fazendo as próprias condições particulares referência expressa à aplicabilidade das condições gerais, não tem fundamento a afirmação de que a consideração do que destas consta, quanto à definição do que se considera uma incapacidade, traduz uma exigência manifestamente abusiva, desproporcional e contrária à boa fé.

VIII – Uma interpretação do contrato que dificulta à pessoa segura o preenchimento dos requisitos de que depende o funcionamento da garantia complementar a que a mesma se acha com direito não envolve, por si só, um desequilíbrio, e, muito menos, um desequilíbrio significativo face ao que o contrato lhe impõe.

IX – O atestado médico de incapacidade multiuso é previsto na lei para um fim vinculado, de interesse público, que justifica a intervenção de um sector específico da Administração Pública para garantir a eficácia das medidas de apoio a deficientes.

X – A exigência deste atestado por um segurador, como meio indispensável para o cumprimento, por este, de uma prestação a que está, eventualmente, obrigado perante um particular por contrato de seguro, constitui uso abusivo deste instrumento legal.

XI – A obrigatoriedade estabelecida a este propósito no contrato de seguro, apesar da eventualidade de, por razões várias, a pessoa segura não estar em condições de obter o dito atestado e de, por isso, lhe ser impossível satisfazer essa exigência contratual, constitui violação da boa fé, tornando a correspondente estipulação contratual proibida e, por isso, nula, à luz das disposições combinadas dos arts. 15º e 12º do DL nº 446/85.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DA JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL


I - AA intentou a presente ação declarativa contra BB Companhia de Seguros, S.A., pedindo a sua condenação a pagar-lhe o montante de € 60.480,00 acrescido de juros à taxa legal desde 23.01.2012 até integral pagamento.

Alegou, em síntese, que:

- Foi entre 01/03/1984 e 31/03/2012 trabalhador da CC, S.A., a qual celebrou com a Ré um contrato de seguro, do Ramo Vida, que visava a compensação dos trabalhadores por perda de rendimentos caso se encontrasse incapacitado para o trabalho e fosse reformado por invalidez;

  - Foi considerado pelo Instituto de Segurança Social em situação de incapacidade relativa e foi-lhe atribuída a respetiva pensão por invalidez, com inicio a 23/01/2012, tendo sido considerado incapaz para o exercício da sua profissão;

   - É portador de uma incapacidade para o trabalho superior a 2/3, apresentando incapacidade de, pelo menos, 69% de acordo com a tabela nacional de incapacidades para o trabalho;

   - O contrato de seguro contém cláusulas contrárias à lei e que de modo desproporcionado protegem a ré em prejuízo dos beneficiários do seguro, sendo o que acontece com o art. 2º, pontos 2 e 3 das condições especiais, constituindo uma cláusula contratual abusiva e proibida.

    - Requereu à Ré o pagamento do capital seguro e, tendo-lhe entregue a documentação comprovativa de ter sido reformado por invalidez, assim como os relatórios médicos, esta não só não pagou, como tem vindo a exigir a apresentação de um atestado de incapacidade multiuso.

           

            A ré contestou.

               Alegou, em síntese nossa, que:

   - Celebrou um contrato de seguro com a CC, cabendo a esta o dever de informar os segurados sobre o conteúdo do contrato;

    - A obrigação exigida à ré pressupõe o preenchimento dos requisitos que enuncia nos artigos 17º e 18º da contestação, cabendo ao segurado o cumprimento das obrigações mencionadas no art. 19º da mesma peça processual;

   - O autor até à data não facultou o atestado médico de incapacidades multiusos e os serviços clínicos da Ré não dispõem de toda a documentação necessária para aceitar ou não o grau de incapacidade de que o A. diz padecer, pelo que é de entender que não se encontra afetado de incapacidade definitiva de exercer a sua profissão ou outra atividade remunerada compatível com os seus conhecimentos e aptidões.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença que, julgando a ação procedente, condenou a Ré no pedido.

Inconformada, a ré interpôs recurso de apelação que a Relação de … julgou procedente, absolvendo a ré do pedido.


Na revista que interpôs, o autor pede a revogação deste acórdão e formula as conclusões que passamos a transcrever:

I - O contrato de seguro em causa nos presentes autos compõe-se de Condições Particulares, resultantes de discussão e negociação entre as partes, e de Condições Gerais, estas sujeitas ao regime das cláusulas contratuais gerais previsto no Dec.-Lei 446/85 de 25/10, sendo que aquelas, pela sua especialidade e por isso mesmo resultar do contrato de seguro se sobrepõem a estas últimas.

II - Nos presentes autos discute-se a situação de incapacidade permanente por doença, do recorrente, risco este que se encontra coberto pelo contrato de seguro e que nas respectivas Condições Particulares está estabelecida nos seguintes temos: "pagamento do capital seguro previsto nas Condições Particulares ou no Certificado de adesão em caso de Invalidez Total e Permanente, de grau de desvalorização igual ou superior a 2/3, por doença ocorrida durante a vigência da adesão (art° 4o, ai. b) das Condições Particulares."

III - O acórdão recorrido omitiu por completo a análise de tal Condição Particular, não tendo procedido à sua interpretação e aplicação ao caso concreto com vista à apreciação da verificação das condições de que, nos termos contratuais, dependia o pagamento do capital seguro, pelo que não se pronunciou sobre questão que devia apreciar, com a sua consequente nulidade nos termos previstos na al. d) do n° 1 do art° 615o do CPC.

IV - A mencionada Condição Particular, constante da al. b) do art° 4o, para além do constante no seu enunciado, não impõe qualquer outra exigência ou requisito, seja por remissão para qualquer tabela de incapacidades seja exigência a nível da extensão da incapacidade profissional, de que dependa o funcionamento da ali prevista cobertura por incapacidade permanente resultante de doença natural.

V - Pretender-se que, para além do estabelecido no enunciado daquela Condição Particular, a verificação do risco de incapacidade total e permanente por doença depende do cumprimento de outros requisitos ali não previstos, designadamente dos que o acórdão recorrido extrai das Condições Gerais do contrato, sempre importa, para além de errónea interpretação do contrato, uma exigência manifestamente abusiva, desproporcional, e violadora da boa-fé contratual, com a inerente proibição da cláusula ínsita nas Condições Gerais do contrato que tal estabeleça, cf. decorre do disposto nos art°s 15° e 16° do Dec.-Lei n° 446/85 e art° 9o da Lei n° 24/96.

VI - No que concerne ao requisito de incapacidade para o exercício de qualquer actividade remunerada compatível com as aptidões e conhecimentos do recorrente, caso os Ex.m°s Desembargadores entendessem que tal incapacidade não estava devidamente exposta na sentença recorrida, apesar de nesta expressamente se fundamentar a decisão apreciando e dando como comprovada tal situação e considerando também que tal situação não consta como facto dado como não provado, sempre deveriam ter mandado baixar os autos à 1a instância para ali ser removida qualquer dúvida que, apesar da fundamentação da sentença, ainda pudesse existir.

VII - O seguro em causa nos autos vem previsto no Manual do Empregador disponibilizado pelo tomadora do seguro e com ele visou-se garantir aos trabalhadores o pagamento de um valor compensatório da sua situação de invalidez, em caso de incapacidade para o trabalho e consequente reforma por invalidez resultante de doença natural que ocasione uma situação de desvalorização que qualitativamente seja igual ou superior a 2/3.

VIII. - Para um declaratário normal uma situação de invalidez total e permanente é aquela que se traduz na sua incapacidade, para o resto da sua vida, de exercer a sua actividade remunerada, sendo neste sentido e com a finalidade de conceder ao beneficiário do seguro um valor complementar que melhor lhe permita encarar a sua incapacidade, que o contrato de seguro em causa nos autos deve ser interpretado.

IX - O relatório pericial junto aos autos, elaborado pelo Instituto de Medicina Legal, conclui que o recorrente, para além das demais patologias, "padece de um quadro depressivo crónico (F33 da CID-10), num fundo de personalidade onde revela uma acentuação de traços ansiosos e anancásticos", o que levou à conclusão de que as sequelas de que padece são impeditivas do exercício da actividade profissional habitual e que o recorrente tem dependência permanente de ajudas: acompanhamento médico e ajudas medicamentosas.

X - O recorrente foi reformado por invalidez resultante de doença natural devidamente avaliada pela Comissão de verificação de Incapacidades da Segurança Social, tendo sido considerado incapaz, por invalidez, o que implica que lhe tenha sido reconhecido que não pode auferir mais de 1/3 da remuneração ao seu exercício normal, ou seja de que, no mínimo, tem 2/3 de incapacidade para o trabalho, cf. previsto no art° 14°, n° 1 do Dec.-Lei n° 187/2007.

XI - Qualquer cláusula contratual que exija que o recorrente, para além do grave e incapacitante estado de saúde que concretamente o afecta e o impossibilita de trabalhar, ter também de apresentar uma incapacidade de acordo com a TNI, traduz-se em cláusula que frontalmente viola a confiança depositada pelo tomador do seguro e pelo beneficiário do mesmo quanto ao sentido, finalidade e objectivo do contrato de seguro em causa e, ademais, ocasiona um injustificado e grave desequilíbrio dos interesses das partes, em prejuízo do beneficiário do seguro, e é manifestamente violadora da boa-fé contratual.

XII - Tal cláusula sempre se inseriria na previsão do disposto nos art°s 15° e 16° do referido Dec.-Lei 446/85 de 25/10, bem como na previsão art° 9°, n° 2 e n° 3 da Lei n° 24/96 de 31/07, pelo que seria proibida.

XIII - Ao questionar a exigência de apresentação, pelo recorrente, de atestado médico multiusos, o douto acórdão recorrido aprecia questão que lhe estava vedado conhecer dado que a Apelação não teve como fundamento a falta de apresentação de tal documento;

XIV - Ao proceder à apreciação de tal questão o acórdão recorrido conheceu de questão que, por não ter sido objecto de recurso, lhe estava vedado conhecer, com a sua consequente nulidade - cf. al. d) do n° 1 do art° 615° do CPC.

XV - O atestado médico de incapacidade multiusos encontra-se previsto no Dec.-Lei n° 202/96 de 23/10, alterado e republicado pelo Dec.-Lei n° 291/2009 de 12/10, e traduz-se em documento destinado à obtenção de benefícios fiscais previstos legalmente, não podendo por isso ser requerido para finalidade diferente daquela, designadamente para obtenção de pagamento de capitais resultantes de contrato de seguro.

XVI - A exigência de tal atestado para prova de situação de incapacidade em causa nos autos, para além de se traduzir na exigência de documento legalmente previsto para finalidades alheias a contratação de seguros, sempre se traduziria em exigência manifestamente abusiva, tanto mais que há que ter em consideração a comprovada situação de incapacidade que o recorrente, mesmo antes da proposição da acção judicial, apresentou à, aqui recorrida.

XVII - A cláusula contratual que faça depender o pagamento de capital seguro da apresentação do referido atestado, traduz-se em exigência de cumprimento de obrigações que dificultam e/ou impossibilitam o recebimento do capital indemnizatório previsto no contrato de seguro, o que acontece apesar de o beneficiário já ter visto a sua incapacidade apreciada para efeitos de reforma por invalidez, requisito este cujo comprovativo a recorrida já exige.

XVIII - Tal exigência é manifestamente desproporcional e coloca a recorrida/seguradora numa posição de manifesta e injustificada superioridade face ao beneficiário do seguro/consumidor, pelo que tal cláusula contratual, por aplicação das mesmas disposições legais já supra enunciadas é igualmente abusiva e proibida.

XIX - Ao considerar que o recorrente não cumpre as condições constantes da apólice de que depende o pagamento do capital seguro, o acórdão recorrido violou, para além do disposto nas Condições Particulares do contrato de seguro, o disposto nos art°s 15° e 16° do Dec.-Lei nº 446/85 de 25/10, o disposto no art° 9o, n° 2 e n° 3 da Lei n° 24/96 de 31/07, bem como o disposto nos art°s 236° e 237° do C.C.

        

    A recorrida contra-alegou defendendo a improcedência do recurso.


    Colhidos os vistos cumpre decidir, sendo questões sujeitas à nossa apreciação as de saber se:

  - o acórdão recorrido se mostra afetado das nulidades que o recorrente lhe atribui;

  - quanto ao mérito, é de dar procedência à pretensão formulada pelo autor.

 

    II – Os factos considerados pelas instâncias são os seguintes:

     1 - Entre a "CC, SA, como segurado, e a Ré, como seguradora, foi celebrado um contrato de seguro, do ramo Vida Grupo, contrato esse a que corresponde a apólice n° 11…2 (apólice n° 1…/50…9-Adesão 4472), e que teve o seu início a partir de 01.01.1992, cujas "Condições Gerais" encontram-se a fls. 93/103, as "Condições Particulares" a fls. 104/107 dos autos, e a "Ata adicional n° 1/2009" a fls. 108 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido.

     2 - O contrato de seguro referido em 1) tinha, e tem, como pessoas seguras e beneficiários os trabalhadores efetivos da "CC, S.A".

     3 - O autor foi trabalhador efetivo da "CC, S.A", situação em que se manteve de 01.03.1984 a 31.03.2012, data em que, por força de reforma por invalidez, o autor cessou aquela qualidade de trabalhador.

    4 - Enquanto se manteve como trabalhador da "CC, S.A" o autor exerceu, desde a sua admissão até 31.12.1988, a atividade de carpinteiro e desde essa data até à cessação do contrato de trabalho a atividade de profissional de construção civil.

     5 - Por ofício datado de 17.02.2012, o "Instituto da Segurança Social, IP" comunicou ao autor que "(...). Informo V.Exa que, no uso da competência delegada pelo Diretor deste Centro, o requerimento de pensão oportunamente apresentado foi deferido ao abrigo da legislação acima indicada. A pensão por invalidez relativa tem início em 2012.01.23, sendo o seu valor Atual de € 1.609,58. (...)", conforme consta a fls. 36 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido.

       6 - Nas "Condições Particulares" referidas em 1) consta, para além do mais, "Artigo 1o Objeto do Seguro: O presente contrato de seguro cobre os riscos de morte, invalidez total e permanente por doença e invalidez total e permanente por acidente, garantindo o pagamento dos capitais seguros aos beneficiários designados pelas Pessoas Seguras.

Artigo 2° Pessoas Seguras: 1. São Pessoas Seguras todos os empregados do Tomador do Seguro, e que satisfaçam as seguintes condições: (...).

Artigo 4° Riscos Cobertos: 0 que está coberto: 1. O Contrato de Seguro abrange as seguintes garantias: (...) b) Garantia Complementar - Invalidez Total e Permanente por Doença - Tipo B: Pagamento do capital seguro previsto nas Condições Particulares ou no Certificado de Adesão em caso de Invalidez Total e Permanente, de grau de desvalorização igual ou superior a 2/3, por doença ocorrida durante a vigência da adesão. (...). Capital Seguro: 1. 0 Capital Base Seguro corresponde, para cada Pessoa Segura, a: (...); b) Garantia Complementar de Invalidez Total e Permanente por Doença -Quarenta e duas vezes o vencimento mensal; (...)".

      7 - Nas "Condições Gerais" referidas em 1) consta, para além do mais, "Artigo 1o. (...). Invalidez Total e Permanente: A limitação funcional permanente e sem possibilidade clínica de melhoria em que, cumulativamente, estejam preenchidos os seguintes requisitos: a) A Pessoa Segura fique completa e definitivamente incapacitada de exercer a sua profissão ou qualquer outra atividade remunerada compatível com os seus conhecimentos e aptidões; b) Corresponda a um grau de desvalorização igual ou superior à percentagem definida em Condições Particulares, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais em vigor na data da avaliação da desvalorização sofrida pela Pessoa Segura, não entrando para o seu cálculo quaisquer incapacidades ou patologias preexistentes; c) Seja reconhecida previamente pela instituição de Segurança Social pela qual a Pessoa Segura se encontra abrangida ou pelo Tribunal de Trabalho ou, caso a Pessoa Segura não se encontre abrangida por nenhum regime ou Instituição de Segurança Social, por Junta Médica; (...). 2.2. Obrigações do Tomador do seguro, pessoa segura e beneficiário: (...). C) 2. Em caso de Invalidez: - Promover o envio a médico designado pelo Segurador de relatório do médico assistente que indique as causas, a data do início, a evolução e as consequências da lesão corporal e ainda a informação sobre o grau de invalidez verificada e a sua provável duração. A divergência entre o médico da Pessoa Segura e o médico designado pelo Segurador quanto ao grau de invalidez, pode ser decidida por um médico nomeado por ambas as partes; - Documento comprovativo do reconhecimento da invalidez emitido pela instituição de Segurança Social ou pelo Tribunal de Trabalho, bem como, em caso de Invalidez Absoluta e Definitiva, de documento comprovativo da necessidade da Pessoa Segura ser acompanhada por terceira pessoa por forma a efetuar as atividades diárias normais; -Documento descrevendo a atividade profissional ou ocupação principal exercida pela Pessoa Segura antes de ter sido afetada pela Invalidez; -Atestado médico de incapacidade multiusos. (...)".

     8 - Após a sua reforma por invalidez, o autor enviou à ré, e esta recebeu, o relatório de avaliação de incapacidade e os relatórios médicos elaborados pelo Dr. DD e pelo Dr. EE e do psicólogo Dr. FF.

     9 - A ré solicitou ao autor a apresentação do Atestado Médico de Incapacidade Multiuso.

     10 -    O autor nasceu em 19.07.1955.

     11 - À data da reforma o autor auferia o vencimento base de € 1.440,00 mensais.

      12 - A ré foi notificada em 26.07.2013, através de notificação judicial avulsa, para cumprir o pagamento do valor de capital indemnizatório no montante de € 60.480,00.

      13 - Pelo menos desde 31-03-2012 que o autor é portador de várias patologias, designadamente do foro psiquiátrico, ortopédico e digestivo.

       14 - Efetuada a avaliação clinica do autor baseada na Tabela Nacional de Incapacidades de Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais e considerando o valor global da perda funcional decorrente de sequelas e o facto de estas serem de sofrimento físico e psíquico, bem como de limitação funcional, com repercussões na autonomia daquele, tornando-o dependente de ajudas medicamentosas, foi-lhe atribuída uma Incapacidade Permanente Geral de 20,05750%.

     15 - Tais sequelas são impeditivas para o exercício da atividade
profissional habitual.

     16 - O autor tem dependências permanentes de ajudas: acompanhamento médico e ajudas medicamentosas.

      17 - O A. esteve três vezes internado no Hospital Psiquiátrico de …, uma em 2011 e duas em 2012.

      18 - O A. tem como habilitações literárias o 6o ano de escolaridade.

      19 - O A. não apresentou à Ré o Atestado Médico de Incapacidade Multiuso.

       20 - À data da subscrição do contrato de seguro referido em 1), a Ré e a "GG", corretora do mesmo grupo da "CC, S.A", negociaram as condições do mesmo, a mando e no interesse desta última.

      21 - Na data de subscrição do seguro referido em 1), a Ré e a GG discutiram as condições particulares do contrato de seguro, mas não as gerais.


        III – Passemos agora a analisar as questões sujeitas à nossa apreciação.

Importa, antes de mais, atentar nos argumentos e raciocínio que estruturaram a decisão emitida no acórdão.

Podemos resumi-los do seguinte modo:

- A seguradora sustenta que não estão verificados todos os requisitos que poderiam conceder ao segurado a cobertura de invalidez total e permanente por doença, nos termos em que a mesma vem definida nas condições gerais e particulares do contrato – cfr. o art. 1º daquelas e o art. 4º destas;

- A matéria apurada – padecer o segurado de uma incapacidade para a atividade profissional habitual de 100% e geral de 20,05750% desde 31.3.2012, encontrando-se dependente de acompanhamento médico e ajudas medicamentosas – não preenche aqueles requisitos, nomeadamente que: a) a pessoa segura fique completa e definitivamente incapacitada de exercer qualquer outra atividade remunerada compatível com os seus conhecimentos e aptidões; b) o grau de desvalorização seja, pelo menos igual, ou superior a 2/3 de acordo com a TNI;

- Cabia ao segurado o ónus de provar a verificação destes requisitos, sem o que não pode beneficiar da cobertura invocada;

- Estava o segurado, ao ser-lhe concedida a pensão por invalidez, prestes a completar 57 anos de idade, com uma incapacidade total para o exercício da sua profissão habitual e com uma incapacidade de cerca de 20% para o exercício de qualquer profissão, e está agora quase a completar sessenta e dois anos de anos de idade num quadro de saúde físico e mental de evolução incerta;

- Porém, tais sequelas não bastam para que se afirme que o segurado se encontra totalmente incapaz de exercer qualquer atividade remunerada compatível com os seus conhecimentos e aptidões, o que seria possível com a junção do atestado médico multiusos;

- Por isso se impõe revogar a sentença, por o segurado não reunir as condições contratuais exigidas para ser considerado numa situação de Invalidez Total e Permanente.

        

Das nulidades da decisão:

São duas as nulidades que o recorrente atribui ao acórdão recorrido.

A primeira delas - a omissão de pronúncia prevista no art. 615º, nº 1, alínea d) do CPC -, como se vê das conclusões II a IV, é por ele radicada na alegada circunstância de o acórdão não ter analisado a condição particular constante do art. 4º, nº 1, al. b), do contrato de seguro, abstendo-se de a interpretar e aplicar ao caso concreto, com vista à apreciação das condições de que dependia, nos termos contratuais, o pagamento do capital seguro.

A segunda é, como resulta das conclusões XIII e XIV, o excesso de pronúncia, vício caraterizado na parte final da mesma norma, e que, na tese do recorrente, afetará o acórdão por ter apreciado a exigência da apresentação de um atestado médico multiusos, apesar de a apelação se não ter fundado nessa falta de apresentação.

        

Da omissão de pronúncia

Tem interesse para a análise desta questão procedermos a uma breve resenha das vicissitudes processuais que podem influenciar a sua apreciação.

É o que passamos a fazer.

O autor, ora recorrente, invoca, em fundamentação do pedido que formula na p. i., a cobertura assegurada pelo contrato referido em 1., o qual, segundo aí alegou, é integrado por cláusulas contrárias à lei e que protegem, de modo desproporcionado e leonino, a seguradora; é o que sucede, segundo disse, com o art. 2º, pontos 2 e 3, das Condições Especiais – a fls. 17 –, na medida em que deles consta:

- a exigência de que um médico da seguradora reconheça que a pessoa segura está afetada de uma invalidez total e permanente;

- a exigência de uma perda de capacidade de ganho superior a 2/3.

     Alegou ainda que a imposição de apresentação de um atestado médico de incapacidade multiuso não corresponde ao que foi contratado.

     Todavia, ficou demonstrado que o instrumento contratual aplicável à pretensão formulada pelo autor não tem o conteúdo que este lhe atribuiu, por haver sido substituído pelas disposições contratuais referidas nos nºs 6 e 7 da factualidade julgada como provada, das quais se destacam:

a) a exigência, nas condições particulares, de um grau de desvalorização igual ou superior a 2/3 para o pagamento da garantia complementar por invalidez total e permanente por doença;

b) a exigência, nas condições gerais, de apresentação, pelo tomador, pessoa segura e beneficiário, de atestado médico de incapacidade multiuso.

         Na sentença proferida entendeu-se que, havendo nos autos “(…) toda a documentação necessária para se poder afirmar que o A. padece de uma incapacidade para a actividade profissional habitual de 100% e geral de 20,05750% desde 31/03/2012, encontrando-se dependente de acompanhamento médico e ajudas medicamentosas (…)”, sabendo-se que a incapacidade relativa foi reconhecida pela Segurança Social e tendo-se apurado em julgamento “(…) que o A. não tem nem habilitações literárias, nem capacidade psico-emocional que lhe permita desenvolver outra qualquer profissão (…)”, era de afirmar a existência do direito invocado pelo autor e, nessa conformidade, julgou-se a ação procedente.

         A ré, na apelação que interpôs contra esta decisão, sustentou - fls. 282 – que, não havendo elementos que permitam concluir que a IPP de 20,0575% impede o segurado de exercer outra atividade remunerada compatível com os seus conhecimentos, e não tendo este satisfeito o ónus que sobre si impendia de demonstrar a existência dessa sua incapacidade mais extensa, se impõe a revogação da sentença e a sua absolvição do pedido.

    Contra-alegando o aí apelado, ora recorrente, defendeu a manutenção da sentença.

     O art. 608º, nº 2 manda que o juiz resolva todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, sob pena de, não o fazendo, incorrer em omissão de pronúncia.

E, transpondo-se esta disciplina para o julgamento de recursos nos tribunais superiores, estes devem emitir pronúncia sobre as questões suscitadas pelo recorrente ao alegar e pelo recorrido ao contra-alegar, este último em oposição às formuladas pelo primeiro ou por ampliação nos termos do art. 636º.[1]

Questão a decidir pela Relação era, pois, a de saber se, em face das disposições contratuais aplicáveis, entre as quais a constante do art. 4º, nº 1, b) das condições particulares da apólice, ao autor assiste, ou não, o direito a receber da ré a quantia pedida.

     E esta questão foi indesmentivelmente decidida, havendo a Relação negado a existência desse direito, com absolvição da ré do pedido.

Se existir indevida desconsideração ou desacertada valoração do conteúdo da referida cláusula contratual, isso envolverá erro de julgamento que, repercutindo-se negativamente no mérito da decisão, em nada afetará a regularidade formal do acórdão.


         Do excesso de pronúncia

     No recurso de apelação foi pedido pela apelante, seguradora, que a Relação afirmasse a não verificação dos pressupostos contratualmente exigidos para o reconhecimento do direito invocado pelo segurado, tendo este, por seu lado, defendido o contrário.

Da fundamentação jurídica elaborada no acórdão faz parte a seguinte passagem: “Certo é também que atualmente está quase a completar sessenta e dois anos de anos de idade num quadro de saúde físico e mental de evolução incerta, mas tais factos não têm o condão de preencher os requisitos objetivos contantes das Condições Gerais e Particulares da Apólice que se encontram em falta e não nos permitem também afirmar que tais sequelas são determinantes de o A./Apelado, reformado por invalidez pela Segurança Social, encontrar-se totalmente incapaz de exercer qualquer atividade remunerada compatível com os seus conhecimentos e aptidões - o que seria possível com a junção do atestado médico multiusos -, com o que também por esta via, não se encontra preenchido outro dos requisitos exigidos pela Apólice de Seguro junta aos autos para que lhe pudesse ser reconhecido o direito a ser pago pela Ré/Apelante pelo capital ali garantido.” (sublinhado nosso)

      A passagem que deixámos sublinhada é a única referência ao atestado médico de incapacidade multiuso que consta do acórdão recorrido.

       E é evidente que a mesma não integra um excesso de pronúncia.

Nem pode dizer-se, como se diz na conclusão XIII, que nesta passagem o acórdão recorrido questiona a exigência da apresentação desse atestado pelo recorrente.

O acórdão sob recurso de modo algum afirmou a necessidade de tal atestado para a verificação da incapacidade sustentada pelo recorrente, pelo que a menção que assim lhe foi feita não ultrapassa a natureza de um “obiter dictum” – uma afirmação avulsa feita de passagem, dispensável dentro da linha de raciocínio seguida e sem qualquer efeito na decisão a proferir.

     Por isso, não tendo havido conhecimento de questão que exorbitasse o campo daquelas que foram submetidas à apreciação da Relação, afirma-se, também, a inexistência desta nulidade.


         Sobre o mérito da decisão:

Sustentando que deve ser proferida decisão que reconheça o direito que invoca, o recorrente socorre-se, essencialmente, das seguintes razões:

- a al. b) do nº 1 do art. 4º das condições particulares não impõe qualquer requisito que não esteja no  seu próprio texto, pelo que a exigência de outros ali não previstos, nomeadamente extraídos das condições gerais, é abusiva, desproporcional e violadora da boa fé contratual, o que gera a proibição da cláusula constante das condições gerais nos termos previstos nos arts. 15º e 16º do DL nº 446/85 e no art. 9º da Lei nº 24/96 – conclusões IV e V;

- com o seguro em causa visou-se garantir aos trabalhadores o pagamento de um valor compensatório da sua situação de invalidez, em caso de incapacidade para o trabalho e consequente reforma por invalidez resultante de doença natural que ocasionasse uma situação de desvalorização que qualitativamente seja igual ou superior a 2/3, sendo que, para um declaratário normal, uma situação de invalidez total e permanente é aquela que se traduz na sua incapacidade, para o resto da sua vida, de exercer a sua actividade remunerada, sendo assim que o contrato de seguro em causa nos autos deve ser interpretado – conclusões VI e VII;

- a cláusula contratual que exige que o recorrente apresente também uma incapacidade de acordo com a TNI, viola frontalmente a confiança depositada pelo tomador do seguro e pelo beneficiário do mesmo quanto ao sentido, finalidade e objectivo do contrato de seguro em causa, ocasionando um injustificado e grave desequilíbrio dos interesses das partes, em prejuízo do beneficiário do seguro, e sendo manifestamente violadora da boa-fé contratual – conclusões XI e XII;

- o atestado médico multiuso, que é previsto no DL nº 202/96, de 23/10, não pode ser pedido para obter pagamentos de capitais resultantes de contrato de seguro, sendo abusiva e desproporcional a sua exigência pela seguradora, tanto mais que perante esta foi já feita prova da incapacidade do recorrente, apreciada para efeitos da reforma por invalidez – conclusões XV a XVIII.


     O que acima dissemos a respeito da nulidade por omissão de pronúncia evidencia que na discussão desenvolvida no recurso de apelação nenhuma das partes abordou a problemática das cláusulas contratuais gerais.

Isso não impede, todavia, o recorrente de agora a suscitar, uma vez que se trata de questão de direito, de conhecimento oficioso.

Passamos, assim, a analisar estes argumentos.

        

O primeiro deles não tem, ressalvado o devido respeito, sustentação bastante.

    A lei – nomeadamente o regime jurídico do contrato de seguro, aprovado pelo DL nº 72/2008, de 16.4 – não define o que é um contrato de seguro.

Porém, do seu art. 1º pode inferir-se que, através dele, o segurador cobre um risco determinado (do tomador do seguro ou de outrem), assumindo a obrigação de realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência de um evento aleatório previsto no contrato, e o tomador contrai a obrigação de pagar o prémio correspondente, que é, como reza o seu art. 51º, a contrapartida da cobertura acordada.

     Estas partes contratantes – Companhia de Seguros HH, S. A., (agora BB Companhia de Seguros, SA), enquanto segurador, e CC, S. A., na qualidade de tomador – celebraram o contrato de seguro em discussão nos autos, o qual nas respetivas condições particulares é qualificado como contrato de seguro de vida grupo, não contributivo, regulado pelas condições gerais do seguro de vida grupo – temporário anual renovável, e pelas referidas condições particulares.[2]

Como consta do facto provado nº 1, estas "Condições Gerais" e estas "Condições Particulares", nele dadas como reproduzidas, encontram-se a fls. 93-103 e a fls. 104-107, respetivamente, dos autos.

     No nº 1 do art. 4º das condições particulares, enumerando os riscos cobertos, menciona-se uma garantia principal – morte – e duas garantias complementares – a invalidez total e permanente por doença – Tipo B, por um lado, e a invalidez total e permanente por acidente, de grau igual ou superior a 50%, por outro.

      É à garantia de invalidez por doença que se dirige a pretensão do recorrente, por isso importando relembrar o seu conteúdo, tal como consta da referida condição particular:

“Pagamento do capital seguro previsto nas Condições Particulares ou no Certificado de Adesão em caso de Invalidez Total e Permanente, de grau de desvalorização igual ou superior a 2/3, por doença adquirida durante a vigência da adesão.”

      Articulando-se expressamente no contrato, como se viu, as condições gerais com as condições particulares, tem de compulsar-se a definição que no art. 1º das condições gerais é feita desse tipo de invalidez.

       Este artigo, com a epígrafe “Definições” tem, na parte que aqui releva, o seguinte teor:

“Neste seguro entende-se por:

(…)

Invalidez Total e Permanente

A limitação funcional permanente e sem possibilidade clínica de melhoria em que, cumulativamente, estejam preenchidos os seguintes requisitos:

a) A Pessoa Segura fique completa e definitivamente incapacitada de exercer a sua profissão ou qualquer outra actividade remunerada compatível com os seus conhecimentos e aptidões;

b) Corresponda a um grau de desvalorização igual ou superior à percentagem definida em Condições Particulares, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais em vigor na data da avaliação da desvalorização sofrida pela Pessoa Segura, não entrando para o seu cálculo quaisquer incapacidades ou patologias preexistentes;

c) Seja reconhecida previamente pela Instituição de Segurança Social pela qual a Pessoa Segura se encontra abrangida ou pelo Tribunal do Trabalho ou, caso a Pessoa Segura não se encontre abrangida por nenhum regime ou Instituição de Segurança Social, por Junta Médica (…)”.

A menção, feita nesta al. a), a outra atividade remunerada compatível com os conhecimentos e aptidões da pessoa segura mostra que no juízo a formular sobre a existência de invalidez total e permanente não está em causa saber apenas se existe, e em que medida, invalidez para a atividade profissional que aquela vinha desenvolvendo; importa ainda saber se essa invalidez se estende também a outra atividade profissional cujo desempenho esteja ao alcance da pessoa segura, atentos os seus conhecimentos e aptidões.

Fazendo as próprias condições particulares, como se viu, referência expressa à aplicabilidade das condições gerais, carece em absoluto de fundamento a afirmação, feita pelo recorrente, de que a consideração do que destas consta traduz uma exigência manifestamente abusiva, desproporcional e contrária à boa fé.

Não seria, na verdade, minimamente justificado fazer da cobertura descrita nas condições particulares uma interpretação diversa daquela para que aponta a definição expressamente adotada no contrato.

É o que necessariamente resulta da regra básica da interpretação das declarações de vontade, ínsita no art. 236º, nº 1 do CC, norma segundo a qual “o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante”, excetuando-se apenas “os casos de não poder ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido (nº 1) ou de o declaratário conhecer a vontade real do declarante (nº 2).[3]

A dita cláusula inserta no art. 1º das condições gerais é, de facto, uma cláusula contratual geral, enquanto convenção elaborada pela Seguradora sem prévia negociação individual e que tem como destinatários pessoas indeterminadas que se limitam a aceitá-la – art. 1º do Dec. Lei nº 446/85.

Mas nada consente, pelo exposto, que quanto a ela se reconheça a existência da proibição e consequente nulidade a que aludem os arts. 15º (na redação dada pelo DL nº 220/95, de 31.8 e 12º do DL nº 446/85, de 25.10.[4]


Também a invocação do nº 2, al. b) e do nº 3 do art. 9º da Lei nº 24/96, de 31.7[5], não invalida o regime contratual acabado de ponderar.

No caso, apenas se poderia fazer apelo a estas normas[6] se houvesse elementos de facto que convencessem da existência de um significativo desequilíbrio em detrimento do consumidor, desequilíbrio que, para ser afirmado, imporia uma comparação entre o conteúdo das posições de ambas as partes no contrato, o que não é sequer ensaiado pelo recorrente.

É evidente que a interpretação acima feita do contrato dificulta à pessoa segura o preenchimento dos requisitos de que depende o funcionamento da garantia complementar a que o recorrente se acha com direito.

Todavia, essa maior dificuldade não envolve, por si só, um desequilíbrio, e, muito menos, um desequilíbrio significativo face ao que o contrato lhe impõe.


Também o segundo dos argumentos expostos pelo recorrente não merece acolhimento.

À densificação, contratualmente fixada, do conceito de invalidez total e permanente - a que acabámos de referir-nos -, o recorrente opõe o que fez constar das conclusões VII e VIII, ou seja, que com o seguro em causa se visou garantir aos trabalhadores o pagamento de um valor compensatório da sua situação de invalidez, em caso de incapacidade para o trabalho e consequente reforma por invalidez, sendo esta a incapacidade, para o resto da sua vida, de exercer a sua actividade remunerada, e não também qualquer outra para a qual tenha capacidade e aptidão.

Não faz parte da matéria de facto julgada como provada que o contrato haja sido celebrado pelas partes contratantes com este objectivo, e a correspondente alegação, feita no art. 6º da p. i., foi impugnada no art. 35º da contestação, pelo que se não trata de facto que haja sido admitido por acordo.

O objetivo a que o recorrente alude apenas poderia contribuir para o sucesso da sua tese se fosse comum às partes contratantes – segurador e tomador –, e assim evidenciasse o que seria a sua vontade real, nos termos do nº 2 do art. 236º, o que não está demonstrado, pelo que soçobra este argumento.


O terceiro argumento está centrado na confiança depositada pelo tomador e pela pessoa segura no sentido, finalidade e objectivo do contrato de seguro, o que nos remete, de novo, para a questão que acabámos de analisar: a expetativa de que o seguro garantia uma compensação por uma invalidez que seria aferida apenas em função da atividade exercida, e não de uma outra atividade que ainda fosse possível.

Por isso, e exactamente pela razão que invocámos – não estar demonstrado que esse objetivo fosse comum a ambas as partes contratantes –, trata-se de argumento que improcede.


Defende finalmente o recorrente que a exigência de um atestado médico de incapacidade multiuso é abusiva e desproporcional, matéria que a recorrida não abordou na sua contra-alegação.

Já atrás dissemos que a invalidez total e permanente, cuja verificação é pressuposto da garantia complementar a que o recorrente diz ter direito é a definida nas condições gerais da apólice.

A aplicabilidade das condições gerais[7], como parte integrante do conteúdo da vinculação recíproca das partes contratantes, leva também a que estas devam ser observadas, na parte em que estatuem sobre os procedimentos a desenvolver com vista à verificação dessa invalidez, sem prejuízo de as exigências nelas feitas poderem suscitar um juízo crítico se não forem conformes ao regime das cláusulas contratuais gerais.

A questão levantada a este propósito pelo recorrente respeita à matéria constante do facto provado nº 7, com passagens relativas às obrigações do tomador, da pessoa segura e do beneficiário, que esclarecemos agora, fazem parte do art. 8º das condições gerais.

Aí exige-se sucessivamente, na parte que agora interessa – 2.2 c)2 –, o envio de:

- relatório do médico assistente que indique as causas, a data do início, a evolução e as consequências da lesão corporal e ainda a informação sobre o grau de invalidez verificada e a sua provável duração;

- documento comprovativo do reconhecimento da invalidez emitido pela instituição de Segurança Social ou pelo Tribunal de Trabalho, bem como, em caso de Invalidez Absoluta e Definitiva, de documento comprovativo da necessidade da Pessoa Segura ser acompanhada por terceira pessoa por forma a efetuar as atividades diárias normais;

- documento descrevendo a atividade profissional ou ocupação principal exercida pela pessoa segura antes de ter sido afetada pela Invalidez;

- atestado médico de incapacidade multiuso.

      É a conformidade da exigência deste último documento com o regime das cláusulas contratuais gerais que o recorrente questiona.    Vejamos.

O atestado em causa está previsto no DL nº 202/96, de 23.10, republicado pelo DL nº 291/2009, de 12.10, no seguimento das alterações que então nele foram introduzidas.

      Como se lê no seu art. 1º, este diploma rege a avaliação das incapacidades das pessoas com deficiência, para efeitos de acesso às medidas e benefícios previstos na lei, designadamente na Lei nº 38/2004, de 18.8, para facilitar a sua plena participação na comunidade.

      As pessoas com deficiência devem apresentar os respetivos requerimentos de avaliação de incapacidade através de estruturas públicas da saúde – nomeadamente o delegado de saúde da sua residência habitual – com vista à sua submissão a uma junta médica, após o que o presidente desta emite o atestado médico de incapacidade multiuso, em que se indica expressamente qual a percentagem de incapacidade do avaliado, tudo isto de acordo com os arts. 3º e 4º do diploma referido.      Trata-se, pois, de um atestado previsto na lei para um fim vinculado, de interesse público, o que justifica a intervenção de um sector específico da Administração Pública para garantir a eficácia das medidas de apoio a deficientes.

       Porém, no caso em apreço não se verifica esta justificação para a intervenção da Administração Pública.

A exigência deste atestado por um segurador, como meio indispensável para o cumprimento, por este, de uma prestação a que está, eventualmente, obrigado perante um particular por contrato de seguro, constitui uso abusivo de um instrumento legal que é concebido pelo Estado para uma finalidade específica, na linha do imperativo constante do art. 71º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual “O Estado obriga-se a realizar uma política nacional de prevenção e de tratamento, reabilitação e integração dos cidadãos portadores de deficiência (…)”.

       Está, na verdade, fora deste contexto legal o pedido de emissão desse atestado para efeitos da sua apresentação ao segurador, e não para acesso a medidas e benefícios legais.

       Seria admissível uma cláusula prevendo que a pessoa segura pudesse apresentar esse atestado ao segurador se o mesmo já tivesse sido emitido em seu favor, sem que na apólice se previsse a obrigatoriedade dessa apresentação.

        Mas a obrigatoriedade estabelecida a este propósito no contrato de seguro, apesar da eventualidade de, por razões várias, a pessoa segura não estar em condições de obter o dito atestado e de, por isso, lhe ser impossível satisfazer essa exigência contratual, constitui violação da boa fé, tornando a correspondente estipulação contratual proibida e, por isso, nula, à luz das disposições combinadas dos arts. 15º e 12º do DL nº 446/85.

      Saliente-se que a assim demonstrada nulidade do segmento do art. 8º, 2.2 c) 2 das condições gerais da apólice, na parte em que consagra a obrigação, por parte da pessoa segura (e também do tomador e do beneficiário), de envio do atestado médico de incapacidade multiuso, não põe, de modo algum, em crise o julgamento emitido no acórdão sob recurso.

       A conclusão a que neste se chegou – não haver elementos que permitam afirmar que o aqui recorrente se encontra totalmente incapaz de exercer qualquer atividade remunerada compatível com os seus conhecimentos e aptidões – não é contrariada, de forma idónea, pela tese do recorrente, que apenas pretende fazer vingar a ideia segundo a qual basta para a existência do direito a que se arroga a sua demonstrada invalidez para o exercício da atividade profissional habitual.

       Esta tese, porém, não tem sustentação nos factos provados e na sua correta valoração jurídica, como se viu.

Com efeito, sintetizando o que resulta de tudo o já exposto, é de afirmar que da necessária combinação das cláusulas constantes do nº 1 do art. 4º das condições particulares e do art. 1º das condições gerais, nos segmentos acima transcritos, resulta, sem margem para dúvida razoável, que a invalidez total e permanente relevante para a garantia complementar em discussão é a completa e definitiva incapacidade da pessoa segura – com um grau de desvalorização igual ou superior a 2/3 - para exercer a sua profissão ou qualquer outra atividade remunerada compatível com os seus conhecimentos e aptidões.

E estes pressupostos não estão, como bem se explicita no acórdão recorrido, preenchidos.

 

IV – Pelo exposto, negando-se a revista, confirma-se o acórdão recorrido.

Custas da revista a cargo do recorrente.

Lisboa, 30.11.2017

Rosa Maria M. C. Ribeiro Coelho (Relatora)

João Bernardo

Oliveira Vasconcelos

_________


[1] Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4ª edição, pg. 325.
[2] Diz-se, com efeito, na parte introdutória das condições particulares:
Entre (…) e (…) É celebrado o presente contrato de seguro de Vida grupo, não contributivo, que se regula pelas Condições Gerais do seguro de Vida Grupo – Temporário Anual Renovável e por estas Condições Particulares da apólice, de harmonia….
[3] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 4ª edição revista e atualizada, volume I, pág. 223.
[4] Com a seguinte redação:
“12º As cláusulas contratuais gerais proibidas por disposição deste diploma são nulas nos termos nele previstos.

“15º São proibidas as cláusulas contratuais gerais contrárias à boa fé”.

[5] Com a seguinte redação:
Art. 9º
(…) 2 - Com vista à prevenção de abusos resultantes de contratos pré-elaborados, o fornecedor de bens e o prestador de serviços estão obrigados:
b) À não inclusão de cláusulas em contratos singulares que originem significativo desequilíbrio em detrimento do consumidor.
(…)
3 - A inobservância do disposto no número anterior fica sujeita ao regime das cláusulas contratuais gerais.
[6]2 - Com vista à prevenção de abusos resultantes de contratos pré-elaborados, o fornecedor de bens e o prestador de serviços estão obrigados:

a) À redacção clara e precisa, em caracteres facilmente legíveis, das cláusulas contratuais gerais, incluindo as inseridas em contratos singulares;

b) À não inclusão de cláusulas em contratos singulares que originem significativo desequilíbrio em detrimento do consumidor.
3 - A inobservância do disposto no número anterior fica sujeita ao regime das cláusulas contratuais gerais.

[7] Que são, como dissemos já, cláusulas contratuais gerais