Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4823/15.8T8GMR.G1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
ATROPELAMENTO
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
EXCESSO DE VELOCIDADE
Data do Acordão: 09/29/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
É de manter a repartição da culpa de 50% para cada um dos intervenientes num acidente em que o peão iniciou a travessia da via, da esquerda para a direita, sem tomar as devidas precauções e em passo acelerado, sendo embatido quando já havia percorrido 5 metros da largura de faixa de rodagem (cuja largura é de 6 metros) por um veículo animado da velocidade de 60 Km/h, que transitava de noite, em estrada com piso molhado, de inclinação descendente, ladeada por habitações e comércio e à qual afluíam entroncamentos e cruzamentos.
Decisão Texto Integral:

PROC. 4823/15.8T8GMR.G1.S1

6ª SECÇÃO (CÍVEL)

REL.147[1]

                                                           *

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I.          RELATÓRIO

AA intentou acção declarativa, com processo comum, emergente de acidente de viação, contra a Companhia de Seguros Açoreana, S.A., que passou a designar-se Seguradoras Unidas, S.A., pedindo que esta seja condenada:

a) A pagar, a título de indemnização, a quantia líquida de € 57.755,66, por todos os danos sofridos em resultado do acidente de que foi vítima, quantia essa a actualizar de acordo com o índice de variação dos preços ao consumidor, sem habitação (I. N. E.) …

b) … e acrescida de juros à taxa legal supletiva desde a citação;

c) A ministrar diretamente, no futuro, todo o tipo de tratamentos, internamentos, acompanhamento médico e medicamentoso, suportando ainda os custos e encargos com as intervenções cirúrgicas, internamentos, das valências de psiquiatria/psicologia e estomatologia (onde se inclui a intervenção anual de revisão e ainda as substituições de 20 ou 30 anos das próteses) ou,

d) A suportar aqueles custos e encargos com todo o tipo de tratamentos, internamentos, acompanhamento médico e medicamentoso, suportando ainda os custos e encargos com as intervenções cirúrgicas, internamentos, tratamentos, ou,

e) Em alternativa, e por estes danos não poderem ser determinados ou quantificados nesta data, requer-se seja a sua liquidação remetida para execução de sentença (cfr. artºs. 564º e 569º do C. Civil e 556º, nº 1, al. b) e nº 2 e 358º, todos do C. P. Civil),

f) Sem prejuízo do valor da perda de retribuição que a demandante irá sofrer, quer no período de clausura hospitalar, quer no período de recuperação,

g) Sendo que, por estes danos não poderem ser determinados ou quantificados nesta data, requer-se seja a sua liquidação remetida para execução de sentença (cfr. artºs. 564º e 569º do C. Civil e 556º, nº 1, al. b) e nº 2 e 358º, todos do C. P. Civil).

A ré contestou, pedindo a improcedência da acção.

Foi elaborado despacho saneador, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova.

Procedeu-se a julgamento e foi proferida sentença que decidiu julgar a acção improcedente e, em consequência, absolveu a ré de todos os pedidos formulados pela autora.

Inconformada com a sentença proferida, a autora recorreu para o Tribunal da Relação de Guimarães, que, concedendo parcial provimento à apelação, condenou a ré:

a)      A pagar à autora e apelante a quantia de €15.102,42, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação, até integral pagamento e, no mais peticionado, improcedente, nesta parte se absolvendo a ré;

b)   A suportar metade das despesas com os tratamentos, intervenções, consultas, internamentos e medicamentos acima referenciados relacionadas com o acidente, do qual sejam uma consequência normal, típica, causal, das lesões sofridas e que se mostrem necessários para debelar as respetivas lesões ou consequências, a quantificar em sede de liquidação, no mais improcedendo a pretensão da autora, dela absolvendo a ré.

 

Quem desta vez se não conformou foi a ré seguradora, que apresentou recurso de revista em que alinhou as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto do douto acórdão que, julgando a apelação parcialmente procedente, condenou a Seguradora Ré, ora Recorrente:

a) A pagar à Autora e apelante a quantia de €15.102,42, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação, até integral pagamento e, no mais peticionado, improcedente, nesta parte se absolvendo a Ré;

b) A suportar metade das despesas com os tratamentos, intervenções, consultas, internamentos e medicamentos relacionados com o acidente, do qual sejam uma consequência normal, típica, causal, das lesões sofridas e que se mostrem necessárias para debelar as respectivas lesões ou consequências, a quantificar em sede de liquidação, no mais improcedendo a pretensão da autora, dela absolvendo a Ré.

2. Salvo o devido respeito, a Seguradora aqui Recorrente não pode concordar com os fundamentos que sustentam a douta decisão proferida.

3. Desde logo porque se entende, e sempre com o máximo respeito, que a decisão proferida no diz respeito à determinação da responsabilidade pela ocorrência do acidente, com imputação de culpa a ambos os intervenientes (condutor e peão) em igual proporção é demasiado penalizadora para a conduta estradal da condutora do veículo de matrícula 00-00-LG.

4. Entende-se, pois, que deverá ser repristinada a decisão proferida na 1.ª instância que, fundada na mesma base factual, havia considerado que o evento rodoviário dos autos apenas se deveu à conduta imprevidente e culposa da Autora peão, tendo excluído a responsabilidade da condutora do LG, e o direito à indemnização peticionada pela Autora, por aplicação do disposto no art.º 570.º do Código Civil e, consequentemente, absolvida a Seguradora ora Recorrente dos pedidos contra si formulados.

5. Não se conforma, pois, a Seguradora aqui Recorrente com o entendimento vertido no douto acórdão recorrido no sentido da atribuição de culpas concorrentes paritárias à condutora do LG e à Autora peão.

6. Considera a Seguradora Recorrente que, e sempre com o máximo respeito por entendimento diverso, a decisão proferida na 1ª instância, que havia considerado que o evento danoso em causa se deu apenas e só fruto da conduta estradal do peão, cujo atravessamento da via, nas circunstâncias fácticas supra descritas, foi a única causa adequada do mesmo, é a decisão justa e adequada para o caso em apreço.

7. Da análise das condutas estradais dos dois intervenientes no sinistro, parece resultar dos factos provados que a condutora do LG não se apercebeu da presença da Autora antes do infeliz atropelamento.

8. Mas tal sucedeu porque as condições de visibilidade assim o não permitiam.

9. E para uma redução drástica da visibilidade, contribuiu decisivamente a própria actuação da Autora aqui Recorrida, que atravessou a estrada, passando por de trás da carrinha da ... e de onde saiu.

10. Com o que, desde logo, retirou pelo menos, cerca de 2,5 metros de visibilidade para um veículo que, como o LG, por ali circulasse (correspondente à largura da carrinha que a Autora teve de circundar de forma totalmente despercebida para um veículo automóvel colocado na posição do LG).

11. Acresce que a única infracção cometida pela condutora do LG – como se referencia na decisão proferida na 1ª instância – foi o facto de circular com velocidade excessiva para o local num excesso equivalente a 10 km/hora, diferença essa que, tal como se anota na douta sentença proferida na 1.ª instância, não foi nem significativa nem era de molde a alterar o desfecho do acidente.

12. Portanto, não foi adequadamente causal do evento.

13. No douto acórdão recorrido, opera-se o cálculo do tempo necessário para o veiculo percorrer 30 metros a 60 km/h e a 50 km/h, para concluir, sem mais, que se o LG seguisse a velocidade inferior, viria mais atrás e provavelmente nem teria ocorrido o acidente.

14. Porém, olvida o Meritíssimo Tribunal a quo que também se impõe fazer aqui o cálculo - como muito bem se fez na decisão da 1.ª instância - do tempo que o peão demorou a atravessar a via e o tempo de reacção respectivo.

15. E compatibilizando estes cálculos, somos levados a concluir – como se fez na decisão da 1ª instância - que era absolutamente indiferente, nas concretas condições dos autos, o LG circular a 50km/h ou a 60km/h, pois o infeliz resultado seria o mesmo, atenta a distância a que o LG poderia avistar o peão.

16. Acresce que, e quanto à Autora peão, importa reter o seguinte:

- a Autora saiu a correr da parte de trás de uma carrinha;

- chegou ao eixo da via e não parou nem cuidou de verificar se circulava algum veículo no sentido de onde provinha a condutora do LG;

- o local da travessia não é uma passadeira;

- face às condições de visibilidade e, sobretudo de luminosidade, e tendo em conta que o veículo trazia as luzes de cruzamento ligadas, a A. conseguiria avistar o veiculo LG muito antes da respectiva condutora ter condições para a avistar e portanto, sempre se poderá dizer que poderia ter evitado o atropelamento se, desde logo, se tivesse rodeado de cautelas antes do atravessar a via (nomeadamente olhando para ambos os lados, a fim de se certificar que não circulava qualquer veículo), o que não fez.

17. Salvo o devido respeito por diverso entendimento, sempre se diga que andou bem a douta sentença recorrida na 1.ª instância ao censurar a conduta da Autora ora Recorrida pois esta não adoptou os cuidados exigíveis a um peão medianamente prudente, sobretudo quando atravessa a via naquelas condições.

18. Sendo certo que em face da factualidade demonstrada, somos levados a crer que se  o peão se tivesse certificado devidamente se podia atravessar a via em segurança, o evento dos autos não se teria dado.

19. Nos termos do disposto no art.º 3.º, n.º 2 do Código da Estrada as pessoas devem abster-se de actos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança ou a comodidade dos utentes das vias.

20. Adicionalmente, nos termos do disposto no art.º 99.º, n.ºs 1 e 2 do Código da Estrada, os peões devem transitar pelos passeios, pistas ou passagens a eles destinados ou, na sua falta, pelas bermas podendo, no entanto, transitar pela faixa de rodagem, com prudência e por forma a não prejudicar o trânsito de veículos, unicamente nas situações expressamente previstas.

21. E nos termos do disposto no art.º 101º, n.º 1 do Código da Estrada, determina-se que “[os] peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respectiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente”.

22. Impunha-se à Autora aqui Recorrida a adopção de adicionais cautelas e fazer cumprir os normativos aplicáveis ao atravessamento de peões.

23. Prescrições estas que a Autora não observou minimamente.

24. Um facto considera-se causal na medida em que faça acrescer, de modo considerável, a possibilidade da realização do resultado.

25. Dúvidas inexistem de que, in casu, o comportamento estradal da Autora Recorrida foi o único causal do evento.

26. Discordando-se, pois, do entendimento divergente vertido no douto acórdão aqui objecto de recurso.

27. No que diz respeito à velocidade de que o LG vinha animado, sempre se diga que o facto da mesma não estar dentro do limite legal, só por si não pode ser visto como causa determinante deste acidente.

28. De facto, impunha-se à Autora que se rodeasse de especiais cautelas antes e durante o atravessamento da via, perante a chuva que se fazia sentir, a ausência de passadeira, a

fraca luminosidade e, sobretudo, atendendo a que saía por detrás de uma viatura – carrinha – parada junto ao limite da faixa de rodagem.

29. É que atravessar a rua é, também em si, um comportamento que envolve risco.

30. E se, de facto, se impunha à condutora do LG que estivesse atenta e se rodeasse de cuidados, e que, porventura, circulasse a velocidade inferior à que trazia, certo é que não se pode concluir que lhe era expectável contar com a travessia da Autora naquelas condições de modo e lugar.

31. Sendo que, nos termos que supra se explanou e brilhantemente aduzidos na douta decisão proferida na 1.ª instância, a circunstância do LG circular a velocidade ligeiramente superior ao máximo legalmente permitido para aquele local não foi, no caso concreto, a manobra causal do atropelamento.

32. O evento infortunístico em causa nos presentes autos proveio pois, apenas e só, da actuação pouco diligente do peão que agiu em desconformidade com as mais elementares regras estradais, designadamente as supra enunciadas e contidas nos artigos 3.º, 99.º e 101.º, todos do Código da Estrada.

33. Ao contemplar diverso entendimento, o douto acórdão recorrido sustenta um entendimento que desrespeita o critério da culpa plasmado do art.º 487.º, n.º 2 do Código Civil, pelo que, nessa medida, deverá o mesmo ser revogado nos termos supra expostos e substituído por outra que, repristinando a douta decisão da 1.ª instância, determine a absolvição da Seguradora recorrente.

34. Na eventualidade de assim não ser doutamente entendido – o que por mero dever de patrocínio se cogita – e se considerar que a conduta da condutora do LG foi também ela causal do evento rodoviário em apreço, então sempre se dirá que sopesados os comportamentos de ambos os intervenientes no sinistro, sempre se impunha decidir no sentido de diversa repartição da culpa.

35. Entende a Seguradora recorrente, numa perspectiva de concorrência de culpas, que em face dos comportamentos em concreto, o atravessamento da via pela Autora nas condições vertidas no elenco dos fatos provados, é merecedor de muito maior censurabilidade do que o da condutora do LG.

36. Ora, volvendo ao caso sub judice, temos que, de facto, se impunha à Autora aqui Recorrida enquanto peão, que se rodeasse de especiais cautelas antes e durante o atravessamento da via, perante a ausência de passadeira, a fraca luminosidade, a

chuva miudinha e o facto de já estar escuro, que limitava a visibilidade e, sobretudo, atendendo a que saía da parte de trás de uma carrinha que ocupava grande parte da faixa de rodagem, elemento esse que, só por si, retirava a visibilidade a quem, como a condutora do LG, circulasse em sentido oposto.

37. E, de facto, apenas se pode concluir que à condutora do LG apenas há a apontar o desrespeito pela velocidade máxima permitida para o local, que era de 50 km/hora

(sendo que circulava a 60).

38. Sendo inegável que a Autora poderia e deveria ter visto o veículo LG a uma distância muito superior àquela que seria avistada pelo veículo, atentos, desse logo, os faróis que aquele trazia acesos.

39. Urge considerar que a conduta inopinada da Autora foi determinante para a ocorrência do acidente e produção do dano, sendo que em face das circunstâncias repentinas em que a mesma atravessa a estrada, provinda da parte de trás de uma carrinha, e das condições de tempo – chuva - e fraca luminosidade a condutora do LG

viu-lhe ser retirada a hipótese de parar no espaço livre e visível à sua frente, de modo

a evitar o impacto com o peão.

40. A Seguradora aqui Recorrente está em crer que deverá considerar-se muito mais censurável a conduta de um peão que, naquelas circunstâncias supra descritas, decida atravessar a rua, em passo acelerado, sem sequer ter o cuidado de olhar primeiro para ambos os lados da via, por forma a verificar se por ali não circulava qualquer veículo.

41. Quando em contraponto com um veículo que circula dentro da sua faixa de rodagem, e a que apenas se pode apontar circular a velocidade superior à permitida para o local.

42. Reputa a Seguradora Recorrente por justo e adequado, no caso em concreto, fixar a proporção de culpa efectiva na produção do evento e dos danos em 20% para a condutora do veículo seguro e 80% para a Autora peão.

43. Ao contemplar diverso entendimento, o douto acórdão recorrido incorreu em manifesta violação do disposto nos artigos 487.º, n.º 2 e 570,º, ambos do Código Civil.

44. Por tal motivo deverá ser revogado, e substituído por outra que, em face do supra expendido, fixe a proporção de culpa na produção do acidente em 20% para a condutora do LG, e 80% para a Autora.

45. O que aqui se deixa expressamente alegado para todos os devidos efeitos legais.

            A Autora contra-alegou, batendo-se pela manutenção do decidido no acórdão recorrido.

                                                                       *

            Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões da recorrente, o que cumpre discutir é saber se há concorrência de culpas dos intervenientes no acidente, e, em caso afirmativo, se deve manter-se a forma como foram distribuídas no acórdão recorrido, ou seja, 50% para a Autora (peão) e 50% para a condutora da viatura atropelante.

*

II.        FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

Das instâncias vem provada a seguinte matéria de facto:

1.         Por contrato de seguro titulado pela apólice nº 0000 BB transferiu para a ré a responsabilidade pela circulação pelo veículo ligeiro de mercadorias Ford Transit 120 S 2.5 D TN TO matrícula 00-00-LG [alínea A) do despacho em referência e documento de fls. 86 a 88].

2.         No dia 12 de Fevereiro de 2014, pelas 18h00, o veículo identificado em 1. circulava na Rua ..., freguesia de ..., concelho de ... [alínea B) do despacho em referência].

3.         O LG pertencia a BB [alínea C) do despacho em referência].

4.         No momento referido em 2., o LG era conduzido por CC, funcionária de BB, no sentido ... – ... [alínea D) do despacho em referência].

5.         No momento referido em 2. chovia miudinho [alínea E) do despacho em referência].

6.         A via, com piso betuminoso, estava molhada [alínea F) do despacho em referência].

7.         A Rua ... tem dois sentidos de trânsito, 6 metros de largura, estando o eixo da via delimitado por linha longitudinal descontínua [alínea G) do despacho em referência].

8.         No sentido ... – ... a via tem inclinação descendente [alínea H) do despacho em referência].

9.         No local, a via está ladeada por habitações, para habitação e comércio, com saída para a via pública [alínea I) do despacho em referência].

10.       Ao longo da Rua ... existem diversos entroncamentos – entroncando antes do local naquela via, a Rua ... e, posteriormente, um acesso ao ... – e cruzamentos [alínea J) do despacho em referência].

11.       O local forma uma recta com cerca de 1.000 metros de comprimento, de ampla visibilidade [alínea O) do despacho em referência].

12.       No momento referido em 2. estava escuro devido à chuva [resposta aos artigos 3º da petição inicial, 24º da contestação].

13.       A condutora do LG imprimia-lhe velocidade de cerca de 60 km/h [resposta aos artigos 19º da petição inicial, 15º da contestação].

14.       No momento referido em 2., a condutora do LG deslocava-se em cumprimento de instruções da sua entidade patronal [resposta ao artigo 27º da petição inicial].

15.       O LG circulava no interior da hemifaixa referida em 4., com as luzes de médios acesas [resposta ao artigo 15º da contestação].

16.       A Autora saiu de uma carrinha de uma ... que parou na Rua ... na hemifaixa destinada ao sentido EN – ... [resposta ao artigo 20º da contestação].

17.       De seguida, deslocou-se para a traseira da mesma e iniciou a travessia a passo acelerado, passando pela frente de um veículo que seguia da retaguarda do aludido em 16. [resposta ao artigo 21º da contestação].

18.       Depois, transpôs o canto esquerdo traseiro da carrinha da ..., sempre em passo acelerado [resposta aos artigos 17º, 23º, 27º da contestação].

19.       Após, transpôs o eixo da via, prosseguindo sem olhar [resposta aos artigos 17º, 22º, 23º da contestação].

20.       No momento referido em 19., o LG encontrava-se a cerca de 30 metros de distância [resposta aos artigos 14º da petição inicial, 18º, 23º da contestação].

21.       A carrinha da ... ocultava a presença da autora na sua traseira, antes de esta ter transposto o seu canto esquerdo [resposta ao artigo 25º da contestação].

22.       A autora atravessou a Rua ... da esquerda para a direita, atento o sentido ... – ... [alínea K) do despacho em referência].

23.       Quando já havia percorrido cerca de 5 metros na faixa de rodagem, a autora foi abalroada pelo LG [alínea L) do despacho em referência].

24.       O embate ocorreu a cerca de 0,50 m da berma que margina a via do lado direito, considerando o sentido ... – ... [alínea M) do despacho em referência].

25.       Antes do local referido em 22. e 23.  existe sinalização vertical de limitação de velocidade a 50 km/h (C13) e de aproximação de entroncamento sem prioridade (B9b) [alínea N) do despacho em referência].

26.       O atropelamento da autora ocorreu fora de passadeira para peões, que não existia no local [resposta ao artigo 11º da contestação].

27.       Em consequência do acidente a autora sofreu:

- traumatismo crânio-encefálico, com contusão da região frontal e parietal direita, hematoma epicraniano dessa região e amnésia para o sucedido;

- traumatismo da face, com hematomas, escoriações, fractura radicular dos incisivos superiores 11 e 21 e fratura coronária dos incisivos 12 e 22;

- traumatismo da mão esquerda, com escoriações várias nos 3º, 4º e 5º dedos;

- traumatismo do pé direito que consistiu em fractura articular da 1ª falange do halux;

- escoriações várias e dores por todo o corpo [resposta ao artigo 46º da petição inicial].

28.       Após o embate a Autora foi transportada para o Centro Hospitalar ..., em ... [alínea Q) do despacho em referência].

29.       Aí foi submetida a TAC e raio-X bem como a tratamento conservador da fractura do halux direito com tala de Zimmer [resposta aos artigos 48º e 49º].

30.       Foi-lhe dada alta, medicada e com indicação de vigilância de sinais de alteração orientação para a consulta de estomatologia [resposta ao artigo 50º da petição inicial].

31.       A partir de 14 de Fevereiro de 2014, a autora passou a ser assistida por Dr. DD na Clínica Integrada de Saúde Oral da ... [resposta ao artigo 51º da petição inicial].

32.       Em 14 de Fevereiro de 2014 foi assistida pela médica de família [resposta ao artigo 52º da petição inicial].

33.       Na data referida em 32. a autora foi submetida a raio-X peri-apicais, ortopantomografia e ortopantomografia 3D, que revelaram duas fracturas na zona apical dos dentes 11 e 21 [resposta aos artigos 53º, 54º da petição inicial].

34.       A localização das fracturas determinou a perda irreversível dos dentes 11 e 21 que foram de imediato extraídos [resposta aos artigos 55º, 57º da petição inicial].

35.       Devido à existência de edemas e de sensibilidade da zona, apenas em 21 de Fevereiro seguinte foi realizada cirurgia com enxerto ósseo e colocação dos implantes no local dos referidos dentes, com colocação de coroas provisórias em 24 de Fevereiro [resposta aos artigos 56º, 57º, 75º da petição inicial].

36.       Em 30 de Maio de 2014 foram colocadas coroas cerâmicas definitivas nos implantes [resposta ao artigo 73º da petição inicial].

37.       Em 9 de janeiro de 2015, devido a reabsorção óssea, foi realizada cirurgia para colocação de novo enxerto ósseo e gengival, este último extraído do palato [resposta aos artigos 74º, 75º da petição inicial].

38.       Os dentes 22 e 12 apresentavam fractura da coroa, o primeiro com exposição [resposta aos artigos 58º, 60º da petição inicial].

39.       Foi realizada endodontia e posterior colocação de coroa fixa no dente 22 [resposta ao artigo 59º da petição inicial].

40.       No dente 12 foi colocada faceta cerâmica [resposta ao artigo 60º da petição inicial].

41.       A autora usou a tala de Zimmer durante três semanas [resposta ao artigo 61º da petição inicial].

42.       No período referido em 41., a autora esteve em repouso, privada da sua normal mobilidade e a necessitar de ajuda para deslocações e higiene [resposta aos artigos 62º, 67º, 76º, 77º, 78º, 86º da petição inicial].

43.       Devido às dores que sentia, pelo menos nos dias subsequentes ao acidente, a autora sentia desconforto que dificultava o descanso nocturno [resposta aos artigos 79º, 80º, 84º, 87º da petição inicial].

44.       A autora não voltou a frequentar as aulas no ano letivo 2013-2014, inicialmente por se encontrar a recuperar das lesões e, após três semanas, por sentir vergonha de se apresentar com o rosto edemaciado e com os dentes provisórios, acabando por perder esse ano [resposta aos artigos 63º, 64º, 65º, 66º da petição inicial].

45.       Por se sentir desconfortável com o seu aspecto, a autora refugiou-se em casa, com humor depressivo, deixando de sair e conviver [resposta aos artigos 68º, 69º, 70º da petição inicial].

46.       O tratamento dentário ficou concluído, com a consolidação das lesões em 4 de Fevereiro de 2015 [resposta aos artigos 71º, 72º da petição inicial].

47.       Até à colocação das coroas definitivas a autora apenas ingeria alimentos frios em estado líquido [resposta aos artigos 81º, 82º da petição inicial].

48.       Devido à alimentação referida em 47., a autora emagreceu [resposta ao artigo 83º da petição inicial].

49.       A autora sofreu dores de grau 5 numa escala de 1 a 7 [resposta aos artigos 79º, 91º, 101º § 7 da petição inicial].

50.       Apesar dos tratamentos a que se submeteu,  a autora ficou a padecer definitivamente de perda dos dentes incisivos 11 e 21, compensados com a aplicação de dois implantes, existência de coroa fixa no incisivo 22 e de faceta no incisivo 12, o que corresponde a défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 1 ponto [resposta aos artigos 88º, 90º, 101º § 6 da petição inicial].

51.       A autora apresenta vestígios cicatriciais esbranquiçados no dorso da articulação interfalângica proximal do quinto e quarto dedos da mão esquerda [resposta ao artigo 88º da petição inicial].

52.       A autora verbaliza ansiedade, assim como labilidade emocional quando relata os tratamentos dentários e o uso de implantes [resposta ao artigo 89º da petição inicial].

53.       Devido às cicatrizes e ao uso de implantes a autora ficou a padecer de dano estético de grau 1 numa escala de 1 a 7 [resposta ao artigo 101º § 8 da petição inicial].

54.       A durabilidade média dos implantes corresponde a 10 anos [resposta ao artigo 96º da petição inicial].

55.       A autora irá necessitar de acompanhamento por estomatologia com revisão anual de controlo semestral e, se necessário, correção de eventuais problemas peri-apicais, periimplantites, fracturas de próteses e reabsorções ósseas, através de tratamentos da especialidade e medicação, com os custos daí advenientes [resposta aos artigos 100º, 116º, 118º, 119º, 121º da petição inicial].

56.       A roupa e calçado que a autora usava no momento do acidente ficaram inutilizados, ascendendo a valor que não foi possível apurar [resposta ao artigo 129º da petição inicial].

57.       Despendeu € 5.104,83 em consultas, medicamentos e tratamentos [resposta ao artigo 129º da petição inicial].

58.       A autora nasceu a 13 de outubro de 1995 [alínea P) do despacho em referência e documento de fls. 55 a 57].

O DIREITO

A revista apresentada pela ré seguradora tem como principal objectivo ilibar a condutora do veículo LG de qualquer responsabilidade no atropelamento da autora, conforme se decidira na 1ª instância. No caso de tal não se mostrar possível, pretende a recorrente que se altere a forma como o acórdão recorrido doseou as responsabilidades da autora e da condutora do veículo atropelante.

Entende, assim, que deve regressar-se ao decidido na 1ª instância, pedindo a revogação do acórdão recorrido que distribuiu a culpa do acidente em igual medida por ambos os intervenientes, ou então que se atribua 80% da responsabilidade à autora e 20% à condutora do LG.

Veja-se, para já, como é que a 1ª instância justificou a isenção de qualquer responsabilidade da condutora do veículo atropelante:

“No dia 12 de Fevereiro de 2014, pelas 18h00, CC tripulava o LG na Rua ... na freguesia de ..., concelho de ..., no sentido ... – ..., local que tem inclinação descendente, comporta dois sentidos de trânsito, 6 metros de largura, cujo eixo se mostrava delimitado por linha longitudinal contínua; a artéria em causa apresenta configuração de reta, com alguns entroncamentos, o primeiro dos quais, atento o sentido do LG, destinado ao acesso de e para a Rua ..., sem prioridade.
No momento, o pavimento em betuminoso encontrava-se molhado devido à chuva que se fazia sentir e estava escuro, levando a que o LG seguisse com as luzes de médios ligadas.
Não obstante a velocidade máxima estar limitada a 50 km/h, a velocidade de circulação do LG correspondia a 60 km/h.
Por sua vez, a Autora saiu de uma carrinha de uma ... que parou na Rua ... na hemi-faixa destinada ao sentido EN – ... e, deslocando-se para a sua traseira, iniciou a travessia daquela artéria, da esquerda para a direita, a passo acelerado, passando pela frente de um veículo que seguia na retaguarda daquele de onde saíra.
De seguida, transpôs o canto esquerdo traseiro da carrinha da ..., que a ocultava, sempre em passo acelerado, prosseguindo para o eixo da via, que transpôs no momento em que o LG se encontrava a cerca de 30 metros de distância.
A Autora não se imobilizou no eixo da via, como impunha a cautela, antes avançou sem olhar e, quando já tinha percorrido um total de cerca de 5 metros do total da faixa de rodagem, que correspondia a 6 metros, foi colhida pelo veículo a cerca de 50 cm do passeio.
Se é certo que no local não existia passadeira para peões, poderia a demandante levar a cabo a travessia, conquanto tomasse os devidos cuidados: ainda na berma, olhar para os dois sentidos de trânsito, verificar o tráfego do momento, aguardar a passagem dos veículos que ali circulassem ou verificar se se encontravam a uma distância que permitisse transpor com segurança a distância de 6 metros e, só depois, dar início à marcha.
Porventura, a chuva do momento motivou a sua aceleração, tanto mais que estava escuro e, eventualmente, frio, por ser Fevereiro; no entanto, a Autora não tomou as mínimas precauções, agindo de forma temerária na medida em que transpôs o eixo da via sem olhar, descurando a presença do LG que se encontrava a cerca de 30 metros.
Coloca-se a questão de saber se a velocidade de circulação do LG, a 60 km/h, em vez dos 50km/h regulamentares, contribuiu para o atropelamento.
A resposta é negativa.
A faixa de rodagem no local tem a largura de 6 metros, o que corresponde a 3 metros para cada hemi-faixa.
A velocidade de circulação a 50 km/h corresponde a 13,88889 metros por segundo, ao passo que 60 km/h corresponde a 16,66667 m/s. Ponderando que um passo acelerado corresponde a uma velocidade de 5 a 6 km/h, a velocidade de deslocação da Autora correspondia a um intervalo entre 1,38889 m/s e 1,66667 m/s, o que significa que transpôs num lapso temporal entre 3,472225 e 4,166675 segundos os cerca de 2,50 metros que separavam o eixo da via do local onde foi embatida.
Encontrando-se a cerca de 30 metros, caso circulasse a 50 km/h, o LG percorria essa distância em 2,1599998 segundos, ao passo que, circulando a 60 km/h, fazia-o em 1,799996 segundos.
Ponderando o tempo de reação, particularmente porque era noite, estava a chover e, inicialmente a Autora estava oculta pela carrinha da ..., podemos concluir que, mesmo que a velocidade fosse de 50 km/h, o atropelamento teria ocorrido porque a distância de 30 metros era manifestamente insuficiente para a realização da travessia.
De resto, não podemos sequer usar o argumento que era possível um desvio para a esquerda na medida em que a faixa contrária à de circulação do LG estava ocupada por um veículo e que, na hipótese de a Autora optar por se imobilizar ao aperceber-se da presença do LG, haveria poucas hipóteses de o resultado nefasto vir a ser evitado.
O artigo 570º nº 1 do Código Civil estatui que quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao Tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída; o nº 2 prevê que se a responsabilidade se basear numa simples presunção de culpa, a culpa do lesado, na falta de disposição em contrário, exclui o dever de indemnizar.
Assim, não obstante a presunção de culpa da condutora do LG e o excesso de velocidade de 10 km/h em relação ao limite previsto para o local, a conduta assaz negligente assumida pela Autora, roçando a temeridade – num momento em que já estava escuro, com chuva miudinha, transpor o eixo da via sem olhar quando podia ver a aproximação do veículo, alertada pelas luzes emitidas pelos faróis intermédios, corresponde a nível de grave imputação subjetiva, merecedor de elevada censura –, determina a exclusão da indemnização”.

Por seu turno, a Relação de Guimarães entendeu repartir a culpa em partes iguais com base nas seguintes razões:

            “No que se refere à decisão propriamente jurídica, não podemos concordar com a douta decisão recorrida que entendeu que a conduta da autora determina a exclusão da indemnização, na medida em que, da matéria de facto apurada, resulta a existência de culpas concorrentes da autora – que transpôs a traseira da carrinha da ..., da qual havia saído e, em passo acelerado, transpôs o eixo da via, prosseguindo sem olhar e, quando havia percorrido cerca de 5 metros, tendo a via 6 metros, foi colhida pela viatura LG que seguia no sentido ... - ... – e da condutora do LG –, que seguia a uma velocidade de cerca de 60 km/hora, sendo certo que no local a velocidade máxima permitida é de 50 km/hora.

Importa atentar que, no local, atento o sentido de circulação do LG a via tem uma inclinação descendente, está ladeada por habitações e comércio, existem diversos entroncamentos, nomeadamente naquele mesmo local, no momento do sinistro estava escuro e chovia.

Não pode haver dúvidas quanto à culpa da autora na produção do acidente, por ter violado o disposto no artigo 101º do Código da Estrada que estabelece que,

‘1. Os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respetiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente.

2. O atravessamento da faixa de rodagem deve fazer-se o mais rapidamente possível.

3. Os peões só podem atravessar a faixa de rodagem nas passagens especialmente sinalizadas para esse efeito ou, quando nenhuma exista a uma distância inferior a 50 m, perpendicularmente ao eixo da faixa de rodagem.

…’

Ora, inexistindo passadeira no local, era lícito à autora atravessar a faixa de rodagem, observado as regras referidas, isto é, certificando-se previamente que tendo em conta a distância a que se encontrava do LG e de outros veículos que circulassem na via, podia efetuar o atravessamento, o que a autora não fez.

Por outro lado, no que se refere à condutora do LG, circulava com velocidade excessiva (60 km/hora), quer na medida em que ultrapassava o limite legal, que no local era de 50 km/hora, quer atendendo a que chovia e estava escuro, além de existirem no local habitações e comércio, o que impunha que, tendo em conta tais circunstâncias, circulasse com velocidade moderada e adequada ao local e às condições da via e do tráfego, o que não fez.

Com efeito, estabelece o artigo 24º nº 1 do Código da Estrada que ‘o condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.’

Por sua vez o artigo 25º estabelece que “sem prejuízo dos limites máximos de velocidade fixados, o condutor deve moderar especialmente a velocidade:

c)  Nas localidades ou vias marginadas por edificações;

h) Nas curvas, cruzamentos, entroncamentos, rotundas, lombas e outros locais de visibilidade reduzida;

j) Nos troços de via em mau estado de conservação, molhados, enlameados ou que ofereçam precárias condições de aderência;

…’

E não se pode afirmar que a conduta da condutora do LG não tenha sido causal do acidente, por circular numa via molhada, dado que chovia, com 6 metros de largura, à noite, com visibilidade reduzida, numa zona com habitações e comércio, num entroncamento, com inclinação descendente, atento o seu sentido de marcha, que se encontrava a cerca de 30 metros do local onde a autora efetuou o atravessamento da via, significa que, para percorrer essa distância, necessitou apenas de 1,8 segundos [(60km (=60.000m) está para 1 hora (=3.600seg), assim como 30metros está para x], o que denota que contribuiu decisivamente para a ocorrência do acidente, caso seguisse a uma velocidade inferior, mais adequada para o local e para as concretas condições da via, teria mais tempo para reagir e minorar, senão mesmo evitar, o sinistro, basta pensar que se assim acontecesse viria mais atrás e, muito provavelmente, nem teria ocorrido o acidente dado que quando chegasse ao local, a autora já teria atravessado a via.

Assente que o acidente ocorreu por culpa concorrente da autora e da condutora do LG, sobre esta, aliás, recaindo a presunção de culpa, por força do disposto no artigo 503º nº 3 Código Civil, que se mostra afastada pela concorrência de culpas (cfr. artigo 570º e 350º nº 2 Código Civil), tendo em conta o circunstancialismo apontado, afigura-se devermos considerar que a responsabilidade dos intervenientes deverá recair para cada uma das partes, autora e condutora do LG, na proporção de metade, sendo que a responsabilidade da indemnização devida pela circulação do LG, se mostra transferida para a ré, que a deverá suportar”.

Concordamos com o entendimento seguido no acórdão recorrido.

Apesar de ser incontroverso, tal como assente nas duas instâncias, que o peão desrespeitou a norma do artigo 101º, n.º 1, do CE, temos também como certo que a condutora do veículo atropelante, além de transitar a uma velocidade objectivamente excessiva (seguia a cerca 60 Km/h, num local onde o limite máximo era de 50 Km/h) desrespeitou as regras do n.º 1 do artigo 24º e 25º, n.º 1, alíneas c), h) e j) do mesmo diploma.

Vejamos mais de perto.

A Autora iniciou o atravessamento da Rua ... da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do veículo LG, num local onde não existe qualquer passadeira para peões – cfr. pontos 22. e 26. Podia fazê-lo desde que, conforme prescrito no n.º 1 do artigo 100º do CE, se certificasse previamente de que, tendo em conta a distância que a separava do veículo que nela transitava e a respetiva velocidade, o pudesse fazer sem perigo de acidente. Mas a verdade é que não tomou as devidas precauções e avançou, sem olhar e em passo acelerado, num momento em que o LG já se aproximava do local. Quando já tinha percorrido 5 (cinco) metros da largura da faixa de rodagem, cuja largura total é de 6 (seis) metros, foi embatida a cerca de 0,50 m. da berma do lado direito, atento o sentido de marcha do veículo LG – cfr. pontos 7., 23. e 24.

Por seu turno, a condutora do LG, além de seguir a uma velocidade superior à ali permitida, desconsiderou as circunstâncias particulares em que conduzia o referido veículo: estava escuro, em virtude da chuva miúda que caía; a via estava molhada; a estrada, no local, tem inclinação descendente e é ladeada por habitações e espaços para comércio com saída para a via pública, existindo também diversos entroncamentos e cruzamentos (cfr. 5., 6., 8., 9., 10., 11. e 12.).

Face às específicas condições climatéricas (tempo de chuva e escuro), ao estado da via (molhada) e à própria configuração desta (inclinação descendente, com habitações e lojas de comércio deitando para a via pública, havendo ainda diversos entroncamentos e cruzamentos), impunha-se que a condutora moderasse a velocidade e redobrasse a atenção posta na condução de forma a evitar o embate com pessoas ou coisas.

Com efeito, o artigo 24º, n.º 1, do CE, que estabelece um princípio geral em matéria de velocidade, determina que o condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis (peões, ciclistas, menores e pessoas com as capacidades sensoriais ou de locomoção diminuídas), às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente. Também o artigo 25º, n.º 1, impõe ao condutor que modere especialmente a velocidade, de entre outras situações, nas localidades ou vias marginadas por edificações, nos entroncamentos e cruzamentos e nas vias molhadas – cfr. alíneas c), h) e j) do n.º 1 desse preceito.

Sustenta, porém, a recorrente que a condutora do LG não se apercebeu da presença da autora antes do atropelamento, em virtude de esta ter iniciado o atravessamento da via, da esquerda para a direita (considerando o sentido de marcha do LG), passando por trás da carrinha da ... de onde tinha saído (que tinha parado na hemifaixa correspondente ao sentido de marcha contrário), e que esse facto logo retirou 2,5 metros de visibilidade, por ser essa a largura da dita carrinha – cfr. conclusões 7 a 9. Diz também a recorrente que a autora atravessou a estrada a correr – cfr. conclusão 16. – afirmação que não tem a mínima sustentação na factualidade provada.

Com o devido respeito, entendemos que o facto de a autora ter iniciado o atravessamento da estrada, em passo acelerado (e não a correr), a partir da traseira do veículo de onde saiu, não pode servir de circunstância excludente da culpa da condutora do LG, embora tenha ficado demonstrado que essa carrinha ocultava a presença da autora na sua traseira antes de ela transpor o seu canto esquerdo – cfr. ponto 21.  Independentemente de também não constar da factualidade provada que o espaço ocupado pela carrinha da condução fosse de 2,5 metros (conforme agora alegado pela recorrente) e que fosse também essa a medida do corte de visão da condutora do LG em relação à largura da via, temos de atentar sobretudo no facto do ponto 20., esse, sim, determinante. Ficou aí provado que, no momento em que a autora transpôs o eixo da via e prosseguiu, sem olhar, a travessia desta, o LG encontrava-se a cerca de 30 metros de distância – cfr. ponto 20. Ora, como o LG seguia com as luzes ligadas nos médios (luzes de cruzamento), o alcance da projecção dessas luzes permitia à sua condutora um campo de visão dessa ordem de grandeza, sendo certo que nada indica que houvesse qualquer alteração das possibilidades visuais da condutora do LG– cfr. artigo 60º, n.º 1, alínea b) do CE.  

São sempre possíveis exercícios matemáticos, baseados nas leis da física, para aferir a distância percorrida em unidades de tempo, bem como os tempos de travagem, de reacção, etc. No entanto, esses exercícios, no caso da sentença da 1ª instância (que usou os conversores de velocidade do sítio www.calkoo/com/pt), não têm qualquer préstimo para a hipótese de velocidade excessiva subjectiva que a Relação adoptou e com a qual concordamos. Não é pelo facto de ser permitido à autora circular a 50 km/h que se deve ter como adequada essa velocidade nas circunstâncias de tempo e lugar acima descritas, e fazer, a partir daí, os cálculos de distância percorrida pelo LG a essa mesma velocidade.

Moderasse a condutora do LG a velocidade em função dessas circunstâncias (tempo escuro, piso molhado por chuva miúda, via com inclinação descendente, ladeada por habitações e comércio, proximidade de entroncamentos e cruzamentos) e teria conseguido parar o veículo a tempo de evitar a colisão com a autora.

A Relação de Guimarães ajuizou, portanto, acertadamente ao concluir pela concorrência de culpas do Autora e da condutora do LG, pois não é pelo facto de a primeira não ter observado o dever prévio de cautela no atravessamento da via que a segunda fica dispensada dos cuidados exigíveis no exercício da condução, nomeadamente o de controlar a velocidade de modo a que, atendendo às características e estado da via e às condições climatéricas, conseguir imobilizar o veículo no espaço livre e visível na presença do obstáculo que se lhe apresentou.

Havendo culpa de ambas, falta saber qual a proporção de cada uma delas.

Como qualquer outro juízo avaliativo, a tarefa de medir a culpa de cada um dos intervenientes em acidente de viação, nas situações em que ambos concorrem para a sua verificação, reveste sempre algum melindre, na medida em que não escapa a uma certa margem de subjectividade. A repartição de culpas dependerá largamente da factualidade apurada e da forma e intensidade como foram infringidos os deveres estradais, mas, nessa mesma tarefa, estará sempre presente uma componente subjectiva, ligada à sensibilidade do julgador. Daí que seja prudente utilizar exemplos jurisprudenciais, escolhidos de situações com maior similitude factual com o caso concreto, de modo a estabelecer-se uma orientação que confira alguma homogeneidade no tratamento da questão da concorrência de culpas.

Eis, então, os exemplos, todos do STJ:

- “Ocorrendo o embate com o peão, que atravessava de noite, em passo acelerado, a faixa de rodagem, da esquerda para a direita segundo o sentido de marcha do veículo - que vinha a 60 quilómetros por hora, mais dez do que o permitido no local, com os faróis médios acesos, em zona de boa visibilidade natural e de iluminação pública fraca - a meio da mão de trânsito do veículo, com três metros e meio de largura, a culpa do peão supera a do condutor do veículo em dez por cento” – acórdão de 06.07.2006, no processo n.º 2216/06 – 7ª Secção (Salvador da Costa), em “A culpa nos acidentes de viação na jurisprudência das secções cíveis do Supremo Tribunal de Justiça”, fls. 51 - Sumários de Acórdãos de1996 a Setembro de 2014, em www.stj.pt.

 

- “É adequada a repartição da culpa na percentagem de 50% para cada um dos intervenientes no acidente quando este se verificou porque o condutor do veículo atropelante conduzia a velocidade inadequada relativamente ao local onde circulava, numa cidade e junto de uma escola e porque o A. se decidiu a atravessar a rua, sem que previamente tivesse olhado à sua esquerda, assegurando-se de que o podia fazer sem perigo” – acórdão de 15.02.2005, processo n.º 4667/04 – 6ª Secção (Ponce de Leão), loc. cit., fls. 37.

- “Provando-se que o condutor do veículo seguro na Ré, transitava a velocidade entre 70 e 80 Km horários, quando não podia circular no atravessamento da localidade a mais de 60 Km/h, e que o Autor, vítima de atropelamento pelo referido veículo, não efectuou a travessia da estrada pela passagem de peões existente a 20 metros do local, resultando ainda dos factos que iniciou a travessia sem previamente se certificar de que o podia fazer sem perigo e sem perturbar a circulação do veículo, julga-se adequado distribuir a culpa do acidente na proporção de 50% para o Autor e 50% para o condutor do aludido veículo” – acórdão de 11.10.2005, no processo n.º 2488/05 – 6ª Secção (Azevedo Ramos), loc. cit., fls. 41.

- “Se o condutor da viatura circulava com excesso de velocidade ‘subjectivo’, um excesso que não lhe permitiu parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente (art. 24.º, n.º 1, do CEst), concorreu em termos causais para a verificação do facto -atropelamento - porque a paragem teria sido possível se circulasse mais devagar, uma vez que o piso estava seco, a visibilidade era perfeita e apercebeu-se da autora a atravessar a faixa de rodagem a uma distância de pelo menos 31 metros. II -A vítima, contudo, também deu causa ao acidente, na medida em que encetou a travessia da rua quando o sinal luminoso estava na posição de verde para os veículos e claramente fora da passadeira para os peões, que se encontrava a mais de duas dezenas de metros de distância, procedimento em infracção ao disposto nos arts. 102.º, n.º 1, e 104.º, n.º 3, do CEst, e que não pode reputar-se indiferente à eclosão do acidente, antes devendo considerar-se integrado no seu processo causal. III -Tudo ponderado, entende-se que é justo repartir as culpas na proporção de 50% para a vítima e 50% para o condutor do veículo, por ser sensivelmente idêntica a contribuição de um e do outro para o sucedido” – acórdão de 06.05.2008, processo n.º 1055/08 – 6ª Secção (Nuno Cameira), loc. cit. fls. 70.

Mais recentemente, e com maior afinidade com a situação dos autos (o veículo seguia a uma velocidade não inferior a 60 kms/h; era noite; seguia numa via dentro de uma localidade, a qual era marginada por casas de habitação; o peão iniciou a travessia da via sob a incidência directa de um foco de luz emanado de um poste de iluminação pública existente no local; o acidente ocorreu numa recta de cerca de 1 km com boa visibilidade), veja-se o acórdão de 30.03.2017, no processo n.º 2443/14.3T8BRG.G1 (Abrantes Geraldes), disponível em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário quanto à concorrência de culpas:

- “Procedendo o peão à travessia de via pública sem atentar na aproximação de um veículo automóvel, mas circulando este numa localidade, em período nocturno, a uma velocidade que excedia em, pelo menos, 10 kms/h a velocidade máxima permitida para o local, o atropelamento do peão é de imputar em partes iguais a este e ao condutor do veículo automóvel”.

Com excepção do primeiro exemplo[2], em que se atribuiu ao peão uma percentagem de culpa superior em 10% à do condutor do veículo (55% para o peão e 45% para o condutor do veículo), todos os outros, em situações mais ou menos idênticas, distribuem a culpa, em partes iguais, pelo peão e pelo condutor do veículo atropelante. Refira-se, ainda, que, no citado primeiro exemplo, as condições e morfologia da via eram bem diferentes das demonstradas no caso em apreço, não só porque o tempo estava bom, mas também porque não há qualquer indicação de que existissem habitações e lojas de comércio a ladeá-la ou entroncamentos e cruzamentos.

Cremos, portanto, que se mostra bem ajustada ao caso concreto a forma como a Relação de Guimarães graduou a culpa dos intervenientes no acidente de que a autora saiu vítima.

                                                                       *

III.      DECISÃO

Face ao exposto, nega-se provimento à revista.

                                                                       *

Custas pela Ré recorrente.

                                                                       *

LISBOA, 29 de Setembro de 2020

Henrique Araújo (Relator)

Maria Olinda Garcia

Ricardo Costa

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

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[1] Relator:       Henrique Araújo
  Adjuntos:     Maria Olinda Garcia
                       Ricardo Costa
[2] Consultável, também, em www.dgsi.pt.