Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
473/14.4T8SCR.L1.S2
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
ÓNUS DE INICIATIVA PROCESSUAL
HABILITAÇÃO DOS SUCESSORES DO AUTOR
Data do Acordão: 02/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO EM GERAL / INSTÂNCIA / EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA / INCIDENTES DA INSTÂNCIA / HABILITAÇÃO.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 281.º, N.º1 E 351.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 20-09-2016, PROCESSO N.º 1742/09;
- DE 14-12-2016, PROCESSO N.º 105/14, AMBOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I. Com a notificação ao mandatário constituído pelo A. de que, por motivo do óbito do A., ficaria suspensa a instância, passou a recair sobre os respetivos sucessores o ónus de requererem a sua habilitação (art. 351º, nº 1, do CPC).

II. O decurso do prazo de 6 meses a partir daquela notificação sem que tenha sido requerida a habilitação ou apresentada alguma razão que impedisse ou dificultasse o exercício desse ónus tem como efeito a extinção da instância, por deserção, nos termos do art. 281º, nº 1, do CPC.

III. Constituindo a habilitação de sucessores um ónus que, além do mais, recai sobre os sucessores (art. 351º, nº 1, do CPC), em face da clareza quer do início do prazo de 6 meses, quer das respetivas consequências, a declaração de extinção da instância por deserção em tais circunstâncias não tinha que ser precedida de despacho a indicar tal cominação.

IV. Não tendo sido requerida a habilitação, nem tendo sido indicado qualquer motivo que tivesse impedido ou dificultado o exercício desse ónus no prazo de 6 meses, é de considerar que a inércia é imputável aos sucessores do falecido A.

Decisão Texto Integral:

I - AA, representado pelo seu tutor provisório BB, veio demandar CC, DD, EE e FF em ação declarativa com vista à declaração de anulação de uma procuração que o A. outorgou e declaração de nulidade de um contrato de compra e venda que foi outorgado ao abrigo dessa procuração, alegando para o efeito que estava afetado de incapacidade de facto aquando da outorga daquela procuração.

Foi apresentada contestação.

Em 9-5-16 foi apresentado pelos RR. um requerimento que acompanhava uma certidão de óbito do A. que ocorreu em 18-2-16.

Em 11-5-16 foi proferido o despacho de fls. 217 no qual, convocando o art. 269º, nº 1, al. a), do CPC, foi declarada a suspensão da instância, ficando expresso que esta manter-se-ia até ser notificada a decisão que julgasse habilitados os sucessores do falecido autor (art. 276º, nº 1, al. a), do CPC).

Em 23-11-16, verificando-se que não fora requerida a habilitação dos sucessores do A., foi proferido despacho que, partindo do pressuposto de que o anterior despacho fora notificado às partes e de que entretanto já ter decorrera o prazo de 6 meses sem que tivesse sido requerida a habilitação, decidiu: “face à negligência manifestada e ao abrigo do disposto nos arts. 281º, nº 1, e 277º, al. c), do CPC, declaro a extinção da instância por deserção”.

Deste despacho foi apresentada a “reclamação” de fls. 219 e ss., por BB, na sua qualidade de testamenteiro e cabeça de casal da herança de AA, a qual foi indeferida por despacho de 13-1-17, segundo o qual “está vedado ao requerente lançar mão do meio processual de reclamação para reagir contra um despacho que reputa ilegal pois que o meio adequado para tanto será a interposição do competente recurso. Com tais fundamentos indefiro a reclamação ora deduzida (…)”.

Contra este despacho foi interposto recurso de apelação por BB, na referida qualidade.

A Relação, conquanto tenha admitido que a “reclamação” anteriormente apresentada deveria ter sido convolada para a figura do recurso de apelação, julgou este improcedente.

Verificando-se que, apesar de ter sido confirmado, sem voto de vencido, o resultado que a 1ª instância declarara, a fundamentação empregue no acórdão era substancialmente diversa, foi interposto recurso de revista que foi admitido como revista normal, nos termos do art. 671º, nº 3, do CPC.

Em tal recurso insurgem-se os recorrentes contra o entendimento adotado pelas instâncias, defendendo que, antes de ser declarada a extinção da instância, por deserção, os interessados deveriam ter sido notificados desse efeito jurídico-processual e que, de todo o modo, tal efeito apenas opera em casos de negligência, sem que haja nos autos elementos que permitam a formulação de tal juízo.

Cumpre decidir.


II – Decidindo:

1. Considerando a demonstração do óbito do A. na pendência da ação, foi declarada suspensa a instância, ao abrigo do art. 269º, nº 1, al. a), do CPC. Efetivamente o aludido o óbito não determinava a impossibilidade ou a inutilidade superveniente da lide, já que o interesse na questão litigada, em torno da validade de uma procuração outorgada pelo A. e de uma escritura de compra e venda que em seu nome foi celebrada, se comunicava aos sucessores do A.

Em face de tal evento, o prosseguimento da instância ficou necessariamente dependente da habilitação dos sucessores, como, aliás, ficou expresso na respetiva decisão. Tal incidente da instância, atento o disposto no art. 351º do CPC, poderia, aliás, ser despoletado tanto pelo R. como por qualquer dos sucessores do falecido A.

Tratava-se de um ónus processual, já que, por um lado, do seu exercício dependia a definição dos sucessores do falecido A. para ocuparem a respetiva posição processual na instância e, por outro, o prosseguimento da instância na ação principal dependia da prolação da sentença de habilitação dos sucessores, nos termos que claramente o define o art. 276º, nº 1, al. a), do CPC, o que, como se disse, ficou bem explícito naquele despacho que declarou a suspensão da instância.

Acresce que este despacho foi notificado a quem deveria sê-lo: ao R. (na pessoa do seu mandatário) e ao mandatário que havia sido constituído pelo tutor provisório do falecido A., de modo que, a partir desse momento, cada um deles ficou ciente não só de que fora declarada a suspensão da instância, como ainda de que essa situação apenas cessaria, retomando-se o curso processual na ação principal, com o trânsito em julgado da sentença que viesse a habilitar os sucessores do R.

Nestes pontos não existe qualquer divergência.

Mas tal notificação continha em si uma outra consequência extraída por via indireta, ou seja, que a inércia dos interessados no prosseguimento da ação que perdurasse por mais de 6 meses determinaria um efeito mais gravoso, isto é, o efeito extintivo da instância, nos termos do art. 281º, nº 1, do CPC.

É a interpretação deste preceito que está na génese deste recurso de revista em torno da necessidade ou não de a referida notificação ser acompanhada do anúncio de que a inércia na promoção do incidente de habilitação por mais de 6 meses determinaria a extinção da instância. Importa ainda apreciar a necessidade de, em face deste quadro processual, se averiguar se a inércia foi efetivamente devida a negligência dos interessados na promoção da habilitação de sucessores ou se esta decorre da simples ausência de qualquer justificação no prazo de suspensão que a lei determinava.


2. Os recorrentes consideram, a este respeito, que, para que fosse declarada a deserção da instância deveriam ter sido expressamente notificados com tal cominação.

Não têm razão na sua argumentação.

No regime anterior que emanava do CPC de 1961, quando o prosseguimento da causa dependesse de alguma iniciativa das partes, a inércia apenas produzia efeitos quando ultrapassasse um ano, ocasião em que se iniciava um outro prazo intermédio de 2 anos, após o qual operava o efeito extintivo da instância com fundamento em deserção.

O efeito extintivo da instância decorrente da inércia das partes na promoção do seu andamento estava dependente da emissão de uma decisão de interrupção da instância com fundamento na paralisação do processado durante um ano, a partir da qual decorria o prazo de 2 anos até operar a deserção da instância.

Ou seja, perante qualquer paralisação da instância imputável à parte interessada que perdurasse por mais de um ano, determinava a lei que operava o efeito interruptivo, o qual se convolaria em efeito extintivo da instância quando a referida interrupção perdurasse por mais de 2 anos (arts. 285º e 291º, nº 1, do anterior CPC).

Com o NCPC, o legislador atuou em dois segmentos diferenciados: para além de reduzir para 6 meses o período de inércia inconsequente, extraiu dessa inércia um efeito extintivo imediato, sem a intermediação de qualquer período de interrupção da instância.

O regime que ficou consagrado revela claramente que se pretendeu penalizar as partes pela inércia processual, atribuindo maior relevo ao princípio do dispositivo (no que concerne ao ónus de promoção da tramitação processual) e fazendo emergir de forma mais substancial a autorresponsabilidade das partes.

Por um lado, reduziu-se acentuadamente o período situado entre o momento em que se constitui sobre a parte o ónus de promover o andamento da causa (art. 281º, nº 1) (ou, nos termos do nº 3, de qualquer incidente de que dependa o prosseguimento da ação principal, como ocorre no caso da habilitação de sucessores) e aquele em que ocorre a extinção da instância; por outro, foi abandonada a opção que fazia depender o efeito extintivo do decurso de um (largo) período de 2 anos de interrupção da instância, em que, na realidade, a instância ficava “adormecida”.

Com o novo regime processual foi abolida a figura da interrupção da instância (apesar de ter mantido a redação do art. 332º, nº 2, do CC, que, relativamente à caducidade, continua a atribuir relevo a essa ultrapassada figura), passando-se de imediato da mera situação de inércia, com ou sem suspensão da instância, para a extinção da instância, desde que a inércia seja imputável à parte sobre quem recai o ónus de promoção da atividade processual.


3. Poderá haver situações em que porventura o ónus de promoção da atividade processual não seja claro ou mesmo em que, sem embargo da atuação da parte nesse sentido, recaia também sobre o Tribunal o dever de cooperar com as partes exercendo o dever de gestão processual nas diversas dimensões que designadamente emergem do art. 6º do CPC.

Porém, num aresto em que se pretende apreciar um recurso de revista interposto de acórdão da Relação que apreciou uma concreta situação, é sobre esta que deveremos incidir, sem necessidade de assumir uma posição mais lata sobre outras situações que não estão em discussão nestes autos.

Ora, confrontados com a situação que emerge dos autos, a solução não poderia ser diferente daquela que foi adotada no acórdão recorrido, já que é clara tanto a distribuição do encargo da iniciativa processual como a identificação do responsável pela paralisação que excedeu o período legal máximo de 6 meses.

Tendo sido notificado às partes o despacho de suspensão da instância, com indicação de que tal situação apenas cessaria com a resolução do incidente de habilitação, não podem restar quaisquer dúvidas de que passou a incidir sobre as partes, maxime sobre os sucessores do A. que interveio na ação através do seu tutor provisório, o ónus de promoverem a respetiva habilitação, única forma de permitir que fosse reiniciada a instância na ação principal que fora declarada suspensa.

Em face da clareza quer do art. 270º, nº 1 (duração da suspensão da instância), quer do despacho que declarou a suspensão da instância, nada mais havia a fazer do que dar início ao referido incidente de habilitação de sucessores do falecido A. e promover com diligência o seu andamento com vista à prolação da sentença de habilitação que reconhecesse aos sucessores do A. a qualidade necessária para com eles prosseguirem os termos da demanda (art. 351º, nº 1).

Porém decorrido que foi o prazo de 6 meses, verificou-se que nenhuma iniciativa foi tomada pelos referidos sucessores e, além disso, não foi suscitada perante o Tribunal qualquer dificuldade que porventura existisse quanto à promoção daquele incidente de habilitação. Aliás, nem depois da prolação do despacho que declarou a extinção da instância os referidos sucessores invocaram qualquer facto que, em termos de razoabilidade, pudesse ser ponderado para efeitos de justificar de algum modo a posteriori a situação de objetiva inércia que se verificou quanto à iniciativa da sua habilitação.

Confrontados com a ausência objetiva de qualquer iniciativa e, a par disso, com a total omissão de invocação de qualquer motivo que pudesse constituir uma justificação atendível para a referida inércia processual, não poderemos deixar de considerar que esta inércia – que durou mais de 6 meses – é de imputar em exclusivo aos sucessores do A. que, assim, arcarão com o efeito extintivo que foi declarado.


4. Trata-se, aliás, de solução que encontra apoio claro em jurisprudência deste mesmo Supremo Tribunal de Justiça que, aliás, foi citada no acórdão recorrido e pura e simplesmente ignorada pelos recorrentes nas suas alegações.

Com efeito, decidiu-se no Ac. do STJ, de 14-12-16 (105/14), www.dgsi.pt, que:

- Suspensa a instância por óbito do autor e decorrido o prazo de 6 meses em que o processo se encontra a aguardar impulso processual, o tribunal deve proferir despacho a julgar deserta a instância (art. 281º do CPC), não impondo a lei que, antes de proferir a decisão, ouça as partes ou qualquer dos sucessores tendo em vista determinar as razões da sua inércia.

- Impendendo sobre as partes que sobreviveram ou qualquer dos sucessores o ónus do impulso processual, cumpre-lhes levar ao processo as circunstâncias que levam o tribunal a considerar que ocorre situação justificativa de que não se considere verificada inércia negligente.


Semelhante entendimento foi também adotado no Ac. do STJ, de 20-9-16, (1742/09), www.dgsi.pt:

- Limitando-se a A. a fazer juntar ao processo uma certidão de habilitação notarial dos herdeiros de réu falecido, nada promovendo em termos de incidente de habilitação de sucessores, não cumpre o ónus de impulso processual necessário a fazer cessar a suspensão da instância que havia sido declarada.

- Deixando a A. de impulsionar o processo, por mais de 6 meses, através da dedução do processo incidental de habilitação de sucessores e não tendo apresentado dentro desse período qualquer razão impeditiva da não promoção, estamos perante uma omissão de impulso a qualificar necessária e automaticamente como negligente e que implica a deserção da instância.

- A negligência a que se refere o nº 1 do art. 281º do CPC não é uma negligência que tenha de ser aferida para além dos elementos que o processo revela, pelo contrário, trata-se da negligência ali objetiva e imediatamente espelhada (negligência processual ou aparente).


5. Perante tão claras posições assumidas nos referidos arestos deste Supremo Tribunal de Justiça e concordando inteiramente com a fundamentação que em cada um deles foi usada para atingir o resultado declarado, mostram-se despiciendas outras considerações que correriam o risco de serem repetidas ou inócuas. Em qualquer dos casos, dispensáveis.


IV – Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas da revista a cargo do recorrente, na sua qualidade de cabeça de casal do primitivo A. AA.

Notifique.

Lisboa, 25-2-18


Abrantes Geraldes (Relator)

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo