Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1258/19.7T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: OFENSA DO CASO JULGADO
CASO JULGADO FORMAL
CASO JULGADO MATERIAL
AUDIÊNCIA PRÉVIA
NULIDADE PROCESSUAL
RECURSO DE APELAÇÃO
PRINCÍPIO DA OFICIOSIDADE
NULIDADE DA DECISÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
REVISTA EXCECIONAL
DUPLA CONFORME
Data do Acordão: 07/05/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I- O caso julgado, seja formal ou material, pressupõe o pronunciamento jurisdicional sobre uma determinada questão suscitada pelas partes ou decorrente dos poderes oficiosos do tribunal. A decisão jurisdicional conformadora de caso julgado tem necessariamente um objecto (a factualidade submetida à apreciação jurisdicional) e um conteúdo (o sentido da valoração judicial), que se traduz numa pronúncia anteriormente vinculativa (formal ou material) sobre o objecto da decisão proferida ulteriormente, que pudesse ser fundamento de ofensa de caso julgado.
II- Não constitui caso julgado formal o despacho sobre as vicissitudes e encerramento da audiência prévia, sem reclamação tempestiva junto do tribunal de 1.ª instância de alegada nulidade processual associada por falta da sua realização integral (para os fins do art. 591º, 1, do CPC), perante a decisão que, no momento posterior à interposição do recurso de apelação da sentença proferida em 1.ª instância, aprecia da nulidade da sentença recorrida, no âmbito dos poderes oficiosos atribuídos pelo art. 617º, 1, em articulação com o art. 641º, 1, do CPC, tendo como objecto a nulidade de decisão (art. 615º, 1, CPC) suscitada nesse recurso de apelação tendo em conta esse alegado vício da audiência prévia.
III- Sendo tal apreciação fundamentada expressamente pelo juiz nos termos do art. 617º, tal significa que essa apreciação absorveu ex professo a invocação da nulidade processual configurada à luz do art. 195º, 1, do CPC (desde logo então já afectada pelo regime de arguição tempestiva do art. 199º, 1, do CPC), resultando dessa absorção uma e uma só resposta a tal arguição de nulidade no âmbito do regime recursório próprio de apelação da sentença recorrida (arts. 644º, 3, e 660º do CPC).
IV- Sendo a alegada nulidade processual absorvida e consumida, a final, como nulidade de decisão ou julgamento (enquanto “excesso de pronúncia” pela falta do contraditório na tramitação processual inerente à audiência prévia e ofensa ao princípio da proibição de decisões surpresa, de acordo com o art. 3º, 3, do CPC, sancionada nos termos do art. 615º, 1, d), 2ª parte, CPC), a apreciação desta última não se encontra precludida, como se fosse decisão definitiva por sanação anterior do vício, pelo regime da nulidade processual e do seu eventual caso julgado, que, neste caso de coincidência de fundamento erigido em fundamento recursivo, não se constituiu como tal à luz do art. 620º, 1, do CPC.
V- Se esta qualificação (nulidade de decisão) é a que melhor se adequa à falta de exercício de alegação e contraditório pelas partes na tramitação processual e possa e deva ser conhecida e apreciada com competência funcional própria pelo tribunal de recurso, como vício autónomo e próprio à luz do catálogo do art. 615º, 1, do CPC, ao invés (e independentemente) de ser reclamada no tribunal recorrido, onde a alegada nulidade teria sido cometida, como deveria ser se apenas fosse vista como nulidade processual, então não estava o tribunal de 2.ª instância impedido (por esgotamento de poder jurisdicional) de apreciar o vício como nulidade da sentença, uma vez invocada por via do recurso interposto dessa decisão.
VI- Não se aplica ao caso o art. 625º, 2, do mesmo CPC, uma vez que não há uma coincidência sobre a mesma questão concreta processual, quando, num primeiro momento, se decide sobre os termos da audiência prévia (nomeadamente quanto à tentativa de conciliação das partes e manutenção da sua posição) e seu encerramento, sem qualquer conhecimento de nulidades, e, num segundo momento, se decide sobre a nulidade da sentença proferida em 1.ª instância e objecto de apelação (ainda que em consideração desse evento processual e suas finalidades legais).
VII- A decisão tomada pelo juiz do tribunal “a quo” quanto à nulidade invocada como fundamento da apelação não é susceptível de recurso autónomo, uma vez que já está abrangida no objecto recursivo da apelação (art. 617º, 1, in fine, CPC), nem, em qualquer caso, é imodificável, uma vez que não prejudica nem exclui a competência do tribunal “ad quem” para aferir e apreciar dessa nulidade como fundamento acessório e dependente da apelação interposta (arts. 615º, 4, 2ª parte, 641º, 5, CPC); logo, não se constituiu como caso julgado formal, que possa ser obstáculo à sua apreciação pelo tribunal de recurso em sede de apelação.
VIII- O acesso à revista excepcional (enquanto modalidade da revista para o STJ enquanto recurso ordinário) depende da verificação dos pressupostos (gerais e especiais) de recurso de revista normal ou regra, tendo em vista a natureza e/ou o conteúdo da decisão, especialmente em face (por princípio) do previsto no n.º 1 do art. 671º do CPC. Se o acórdão recorrido aprecia a nulidade imputada à sentença recorrida em apelação e decide anular esta decisão de 1.ª instância, determinando o prosseguimento dos autos, com a prolação de despacho a designar data para a continuação da audiência prévia, não se trata de acórdão que constitua decisão final sobre o mérito da causa ou decisão final de cariz processual que ponha termo ao processo (n.º 1), muito menos (se fosse de ponderar) de acórdão que aprecie directamente decisão interlocutória proferida em 1.ª instância com incidência sobre a relação processual (n.º 2), não encerrando uma completude decisória (mesmo que intercorrencial) que permita a revista, tal como exigido pelo crivo jusprocessual delimitado pelo art. 671º (em esp., n.º 1, do CPC).
IX- Também não é de admitir a revista excepcional pelo fundamento adicional de não se verificar a inexistência de “dupla conformidade” entre o acórdão recorrido e a sentença de 1.º grau sobre a questão/matéria apreciada pela Relação (que teria que repareciar algo decidido em 1.º grau para o efeito), condição legal da remessa dos autos à Formação Especial a que alude o art. 671º, 3, do CPC, para aferir da admissão dessa mesma revista excepcional quanto o fundamento da apelação que surge como fundamento acessório e dependente (e, por isso, apreciado em primeira linha perante os demais fundamentos e prejudicial dos restantes) do recurso para a Relação, como tal apreciado e ajuizado, não apresenta qualquer coincidência com o decidido em 1.ª instância e, por isso, não é convocável para aferir da “dupla conformidade” obstativa da revista normal.
Decisão Texto Integral:


Processo n.º 1258/19.7T8LSB.L1.S1
Revista – Tribunal recorrido: Relação ..., ... Secção


Acordam em conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça



I) RELATÓRIO

1. «SMLF –Actividades Hoteleiras, Lda.» intentou acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra AA e BB, enquanto gerentes da sociedade Autora, pedindo que os Réus sejam condenados a pagar solidariamente à Autora: (i) a quantia total de € 134.432,52, acrescida dos juros de mora à taxa legal de 4 %, aplicável às obrigações civis, contados desde a data da citação dos RR. e até integral e efectivo pagamento; (ii) e, ainda em juros capitalizados por períodos de um ano, caso o efectivo pagamento seja efectuado depois de decorrido mais de um ano após o vencimento (cfr. artigo 560.º do Código Civil), devendo, para o efeito, a citação considerar-se como notificação nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 560.º do Código Civil.
Em síntese, de acordo com o relatado pelas instâncias, foi alegado que a Autora é uma sociedade por quotas de que o 1.º Réu foi sócio e de que o 2.º Réu ainda é sócio, tendo ambos sido designados gerentes em 15/03/2013; os Réus não apresentaram as contas dos exercícios de 2013, 2014, 2015 e 2016 ao outro sócio, não tendo inclusive convocado assembleia para a respectiva aprovação relativamente aos anos de 2013 a 2015, não tendo sido disponibilizados os documentos de prestação de contas quanto ao exercício de 2016 e não tendo as mesmas sido apresentadas, apesar de registadas e depositadas na Conservatória; os Réus foram destituídos com justa causa na assembleia geral realizada em 23/07/2018, tendo na mesma assembleia sido deliberada a propositura de acção de indemnização pela sociedade contra aqueles; foram pagas várias dívidas relativas a fornecimentos anteriores à transição da gerência e existem dívidas à Autoridade Tributária; a sociedade foi alvo de inspecção tributária relativa ao exercício de 2013, que determinou uma correcção da matéria tributável, devida ao não registo/declaração de proveitos de € 97.865,15, tendo ficado privada desse montante e do posterior pagamento de IRC, IVA e de coima aplicada, o que consubstancia violação dos deveres previstos no art. 64º do CSC pelos Réus e determinou prejuízos à sociedade, que devem ser indemnizados.
Citados os Réus, o Réu AA apresentou Contestação, alegando: a excepção por prescrição do direito invocado, uma vez que os factos contra si invocados respeitam ao ano de 2013, tendo já decorrido, à data da propositura da acção, o prazo de cinco anos previsto no art. 174º do CSC; a excepção por inexistência de mandato a favor do sócio CC, que não é gerente da Autora e não a representa; a inexistência da deliberação de propositura da presente acção, na medida em que o n.º 1 do art. 260º do CSC é uma norma imperativa, sendo nula a deliberação que confira poderes de representação a um terceiro, devendo o tribunal declarar tal nulidade, daí resultando a ilegitimidade substantiva activa da Autora; ter sido intentada acção de impugnação da deliberação de destituição dos Réus, ainda pendente, que configura causa prejudicial, devendo a presente acção ser suspensa até decisão daquela. No mais defendeu-se por impugnação, alegando ter a gerência de facto da Autora sido exercida por terceiro até meados de 2015. Ademais, pediu a condenação da Autora como litigante de má fé e deduziu pedido reconvencional pedindo a condenação da Autora a pagar-lhe € 10.000,00, quantia por si pessoalmente disponibilizada para pagamento de encargos da sociedade.

2. Por despacho de 18/02/2020 foi ordenada a notificação do teor da contestação e documentos à Autora, nos termos do art. 575º do CPC. Não foi apresentada Resposta às excepções nem Réplica.

3. Por despacho de 13/07/2020, foi designada audiência prévia, nos seguintes termos:

“Audiência prévia nos termos do art. 591 do Código de Processo Civil no próximo dia 7-10-2020, pelas 14h, e não antes por indisponibilidade de agenda.

Notifique e convoque com observância do legal formalismo consignando o objecto aludido no art. 591 do Código de Processo Civil e cumprindo pela via mais expedita o art. 151 do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas.”

Realizada na data convocada, isto é, 7/10/2020, da acta da audiência prévia consta:

“Aberta a diligência pelas 14:30 horas, após preparativos vários, pela Mm.ª Juíza foi tentada a conciliação das partes, e no uso da palavra, foi dito pelas mesmas, manterem as posições vertidas nos autos.
**

Seguidamente, pela Mm.ª Juíza, foi proferido o seguinte,

DESPACHO

“Por motivo de marcação da continuação do julgamento de audiência final no processo 14268/18...., e auscultados os Ils. Mandatários, determino que os autos me sejam conclusos para ser proferido o competente despacho.
Notifique.”
*

Notificados os presentes, pelas 14:35 horas, a Mm.ª Juíza declarou encerrada a diligência.”

4. O Juiz ... do Juízo de Comércio ... proferiu sentença em 16/11/2020, na qual decidiu julgar procedentes “as excepções de prescrição dos factos invocados desde 2013 a 17-1-2014 e no mais ainda por falta de representação da A. e ilegitimidade activa da A., absolvendo-se os Réus da instância”.

5. Inconformada, em 8/1/2021, a sociedade Autora (i) requereu a nulidade da acta da audiência prévia (arts. 155º, 6 e 9, 591º, 4, CPC) e (ii) interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação ... (TR...), este com interposição no 3.º dia útil seguinte ao fim do prazo e correspondente pagamento da multa devida nos termos do art. 139º do CPC (cfr. Ref.ª n.º ...38), arguindo neste a nulidade da sentença por violação do princípio do contraditório em consequência da alegada não realização da audiência prévia (nos termos das respectivas Conclusões 2) a 11)).

6. Em cumprimento do art. 617º, 1 e 5, do CPC, o juiz de 1.ª instância proferiu despacho em 28/5/2021, que julgou manifestamente improcedente a nulidade arguida e admitiu o recurso de apelação.
Em acórdão proferido em 14/9/2021 pelo TR..., uma vez identificadas as questões decidendas (“nulidade da sentença; regularidade da representação da A. em juízo; validade da deliberação de propositura da presente ação e respetivas consequências quanto à legitimidade ativa da A.; prescrição da obrigação de indemnização, nos termos do disposto no art. 174º do CSC”), apreciou-se a primeira delas (“A recorrente alega a existência de nulidade por violação do princípio do contraditório, alegando não se ter realizado audiência prévia o que, no seu entender, acarreta nulidade da respetiva ata e inexistência da referida audiência.”) e julgou-se procedente a apelação, determinando “anular a decisão recorrida que deve ser substituída por despacho que designe data para a continuação da Audiência Prévia, nos termos em que esta já havia sido designada devendo na mesma ser observado o disposto no art.º 3º, nº 4 do Código de Processo Civil.”

7. Sem se resignarem, os Réus interpuseram recurso de revista para o STJ, normal e extraordinária a título principal (ofensa de caso julgado: art. 629º, 2, a), CPC) e excepcional a título subsidiário (nos termos do art. 672º, 1, a), do CPC).
Apresentaram as seguintes Conclusões:

“Da admissibilidade do recurso revista ao abrigo do disposto no art. 629.º n.º 2 a) do CPCivil
Da ofensa do caso julgado/Da intempestividade do recurso de apelação interposto pela autora/recorrida para o Tribunal da Relação ... e consequente trânsito em julgado da decisão da 1.ª Instância

a) A sentença da 1.ª Instância foi proferida em 15/10/2020, (ref.ª ...04) e foi notificada às partes em 20 de Novembro de 2020.
b) A autora/recorrida apresentou as suas alegações de recurso em 08 de Janeiro de 2021.
c) Constataram agora os recorrentes que a autora/recorrente, ao apresentar as suas alegações de recurso no Tribunal da 1.ª Instância, em 08 de Janeiro de 2021, fê-lo fora do prazo legal para o efeito.
d) O prazo de 30 dias que a autora tinha para interpor o recurso da decisão da 1.ª Instância (art.º 638.º n.º 1 do CPCivil, conjugado com o disposto no art.º 644.º n.º 1 a) do mesmo Código), cuja contagem se iniciou a 23 de Novembro de 2020 (dia imediatamente a seguir à notificação, já que os dias 21 e 22 de Novembro de 2020, foram, respectivamente Sábado e Domingo), correu continuamente (art.º 138º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil) e terminou a 05 de Janeiro de 2021.
e) Para além dessa data, a autora/recorrida ainda poderia praticar o acto se ocorresse comprovado justo impedimento (arts. 139º, n.º 4, e 140º do Cód. Proc. Civil) ou no prazo suplementar dos 3 dias úteis subsequentes (art.º 139º, n.ºs 5 a 7 do Cód. Proc. Civil), faculdade que também não exerceu.
f) O acórdão aqui em sindicância, ao conhecer das nulidades invocadas pela autora, ali recorrente, e aqui recorrida, violou o caso julgado, já que a sentença do Tribunal da 1.ª Instância já tinha transitado em julgado em 05 de Janeiro de 2021.
g) Devendo este Venerando Tribunal conhecer da aludida ofensa do caso julgado, e ser revogado o acórdão recorrido, com fundamento na violação do caso julgado formal, mantendo-se nos seus precisos termos, a sentença da 1.ª Instância, sendo o presente recurso admissível nos termos do disposto no n.º 2, al. a) do art. 629.º do CPCivil.

Sem prescindir/Ainda da violação do caso julgado
h) Ainda que assim não se entenda, o que apenas se admite à cautela de patrocínio, sempre se dirá que, em 08 de Janeiro de 2021, ou seja, volvidos quase três meses sobre a data da realização da audiência prévia no dia 07/10/2020, e cerca de dois meses sobre a data da notificação da sentença às partes, a autora/recorrida apresentou requerimento no Tribunal da 1.ª Instância com a ref.ª ..., nos termos do qual arguiu a alegada nulidade da acta da audiência prévia (nomenclatura conferida pela autora).
i) Tal requerimento da autora/recorrida veio a ser indeferido por despacho proferido pelo Tribunal da 1.ª Instância, no dia 28 de Maio de 2021, com a ref.ª ..., nos termos do qual este julgou “… manifestamente improcedente a nulidade, nos termos do art. 186 e segs. e 195.º do Código de Processo Civil”.
j) A autora/recorrida não recorreu do aludido despacho, despacho esse que, em teoria seria passível de recurso atento o disposto no art.º 630.º n.º 2 do CPC, in fine.
k) Por não ter havido recurso desse despacho, formou-se caso julgado formal.
l)      Dispõe o art. 620.º do CPC que “As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo”.
m) E o art. 625.º estatui que “1 Havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se o que passou em julgado em primeiro lugar. 2 – É aplicável o mesmo princípio à contradição existente entre duas decisões que, dentro do processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual”.
n) Assim sendo, dúvidas inexistem, salvo melhor opinião, que o acórdão recorrido, ao versar sobre a questão da nulidade processual, questão essa que já estava a coberto de anterior despacho judicial, já transitado em julgado, violou o disposto nos arts. 620.º e 625.º ambos do CPC.
o) Deste modo, havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, deve ser cumprida a que passou em julgado em primeiro lugar, neste caso, o despacho proferido em 28 de Maio de 2021, o qual deve ser confirmado, e em consequência, ser revogado o acórdão recorrido, com fundamento na violação do caso julgado formal, mantendo-se nos seus precisos termos, o citado despacho.
p) O que se requer a V/Exas., sendo o recurso admissível nos termos e ao abrigo do disposto no art. 629.º n.º 2 a).

Ainda sem prescindir/Da alegada nulidade da acta da audiência prévia por violação do princípio do contraditório plasmado no n.º 3 do art. 3.º do Código do Processo Civil – Da (in) admissibilidade da arguição da nulidade em sede de recurso
Da questão prévia/Da revista excepcional – Da sua admissibilidade

q) Na eventualidade de V/Exas. entenderem que não estamos perante a ofensa do caso julgado, conforme acima invocado, ou que a decisão recorrida não é passível (com excepção da invocada ofensa de caso julgado) de recurso de revista nos termos do disposto no art. 671.º do CPC, o que apenas se admite à cautela de patrocínio, sempre se dirá, que a decisão recorrida é ainda passível de revista excepcional prevista no art.º 672.º do CPC, pelas razões que se passam a demonstrar.
r) A cautela de patrocínio se deve ao facto da decisão recorrida ter decidido revogar a sentença recorrida, ordenando ao prosseguimento dos autos, o que poderá levar a crer que não estamos perante um acórdão susceptível de enquadrar no disposto no n.º 1 do art. 671.º do CPC.
s) Entendem os recorrentes que está aqui em causa a discussão sobre uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito (alínea a) do n.º 1 do art.º 672.º do CPC), e que cumpre, por conseguinte, os requisitos da revista excepcional.
t) O douto Tribunal a quo fez uma errónea interpretação e aplicação dos arts. 195.º e 199.º do CPC ao caso concreto.
u) Divergimos totalmente de tal entendimento, por considerar, salvo o devido respeito, que o mesmo não está correcto e viola disposições processuais, daí a razão do presente recurso de revista.
v) Ao invés, julgamos que a questão central a averiguar não é de todo a de saber, como entende o acórdão recorrido, se havia lugar a esta resposta às excepções na audiência prévia ou se o contraditório havia sido assegurado previamente, como considerou o Tribunal a quo”.
w) Sendo, por conseguinte, irrelevantes, salvo o devido respeito, as considerações tecidas a este propósito no acórdão recorrido.
x) Os recorrentes entendem que a autora/recorrida não poderia vir arguir tal nulidade através do recurso.
y) A simples leitura do que antecede evidencia ser necessária a admissão da revista para uma melhor aplicação do direito.
z) Com efeito, e desde logo, para que este Venerando Tribunal aprecie a questão de saber se era possível a arguição da nulidade processual aqui em causa, em sede de recurso, atendendo à tramitação processual antecedente, porque no entender da decisão recorrida, o mesmo estar a coberto de uma decisão judicial, ou ao invés, tal arguição, conforme a tese dos recorrentes, deveria ter sido feita no Tribunal da 1.ª Instâncias no prazo e termos estatuídos nos arts. 195.º e 199.º, sendo certo que, não se verifica a previsão contida no n.º 3 deste último preceito legal.
aa) Depois, para saber se o acórdão recorrido decidiu correctamente quando revogou a sentençadoTribunalde1.ª instância e mandou prosseguir os autos para a realização da audiência prévia.
bb) Daí que o presente recurso seja absolutamente necessário para uma melhor aplicação do direito, por quanto, o douto acórdão aqui em crise, salvo o devido respeito, incorre em erro de interpretação e aplicação normativa.
cc)A necessidade de uma melhor aplicação do direito justifica-se, porquanto, em face das características do caso concreto, existindo a possibilidade de este ser visto como um caso-tipo, não só porque contém uma questão bem caracterizada e passível de se repetir no futuro, como a decisão da questão se revela ostensivamente errada, juridicamente insustentável ou suscita fundadas dúvidas, o que gera incerteza e instabilidade na resolução dos litígios.
dd) Razões pelas quais se requer a V/Exas. se dignem admitir o presente recurso.

Do recurso propriamente dito

ee) É ponto assente, salvo melhor entendimento, que in casu não estamos perante uma nulidade da sentença, cujos pressupostos estão taxativamente elencados no art. 615.º do C. P. Civil.
ff) Dúvidas       inexistem        que      estamos       outrossim        perante       uma nulidade processual sujeita ao regime dos arts. 195.º e 199.º do C. P. Civil, podendo e devendo ser conhecida, quando arguida, no prazo legal de 10 dias após o seu conhecimento.
gg) Equivale a dizer que, a nulidade em causa nos presentes autos, tinha de ser arguida, pela autora/recorrida, no Tribunal da 1.ª Instância, no prazo de dez dias a contar, neste caso, da data da realização da diligência (sendo certo que o Tribunal ad quem considerou que efectivamente deu-se a realização da audiência prévia, embora apenas parcialmente e com a finalidade de conciliação das partes) atendendo que o Mandatário da parte que pretendia beneficiar de tal arguição, ou seja, o Mandatário da autora/recorrida estava presente aquando da realização da diligência.
hh) Isto porque, foi nessa data que a autora tomou conhecimento de que na audiência prévia (na tese da autora/recorrida a audiência não se realizou, enquanto que o Tribunal recorrido entende que a mesma se realizou, só que parcialmente, ou seja, apenas para a tentativa de conciliação das partes) que não lhe foi dada a possibilidade de se pronunciar sobre a matéria das excepções.
ii) Não tendo arguido tal nulidade dentro do prazo legal para o efeito, a autora/recorrida viu precludir o exercício de tal direito.
jj) A autora/recorrida tinha plena consciência de que tal arguição de nulidade teria de ser feita junto do Tribunal a quo.
kk) Tanto assim que o fez.
ll) Só que, a autora/recorrida arguiu tal nulidade através de requerimento junto aos autos em 08 de Janeiro de 2021, com a ref.ª ..., ou seja, volvidos quase três meses sobre data da realização da diligência do dia 15/10/2020, e mais de dois sobre a data da prolação da douta sentença proferida pelo Tribunal da 1.ª Instância.
mm) E viu o seu pedido indeferido por despacho, do qual não recorreu.
nn) A autora/recorrida tinha 10 dias para a invocar a nulidade perante o tribunal a quo (só a podendo invocar no tribunal ad quem nos termos do n.º 3 do art.º 199.º do C. P. Civil, o que não é manifestamente o caso), cujo termo ocorreu em 19 de Outubro de 2020.
oo)E sendo arguida a irregularidade em 08 de Janeiro de 2021, nas alegações de recurso, urge concluir que a autora/recorrida fê-lo fora do prazo legal de 10 dias, razão pela qual se mostra sanada a arguida nulidade – art. 199.º/1, tornando-se inútil saber se a irregularidade influiu na decisão em causa, com a consequente anulação da decisão recorrida.
pp)Não se sufraga igualmente o entendimento inserto no aliás douto acórdão recorrida que considerou que estaríamos perante preterição do contraditório, tendo sido violado o disposto no artigo 3.º n.º 3 do CPC.
qq) Como ensina o Professor Teixeira de Sousa, in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex, pág. 48, “ o art. 3.º, n.º3, 1.ª parte, “impõe ao juiz, de modo programático, o dever de observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório”, princípio que é corolário do princípio da igualdade das partes estabelecido no art. 3.º-A.
rr) E acrescenta que a violação deste princípio, inclui-se na cláusula geral sobre as nulidades processuais constantes do art.º 201.º/1 do C. P. Civil (atual art. 195.º), e que dada a sua importância é indiscutível que a sua inobservância pelo tribunal é suscetível de influir no exame ou decisão da causa.
ss) Trata-se assim, também, de uma nulidade processual sujeita ao regime do art.º 195.º e 199.º do C. P. Civil, podendo e devendo ser conhecida, quando arguida no prazo legal de 10 dias após o seu conhecimento.
tt) E não o tendo sido sanada ficou.
uu) Mas, ainda assim, indaga-se: Será o tribunal de 2ª instância competente para conhecer das arguidas nulidades?
vv)No Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 2, pags. 513 e 514, escreveu o Prof. Alberto dos Reis, a propósito do Código de Processo Civil de 1876, o seguinte: “as nulidades de que o interessado tivesse conhecimento depois da publicação da sentença ou acórdão final, e que fossem anteriores a essa publicação, poderiam ser apreciadas por ocasião do recurso interposto da mesma sentença ou acórdão. A razão deste desvio era a seguinte; entendia-se que, sendo as nulidades anteriores à sentença, a procedência delas podia ter como efeito a anulação da sentença e não se considerava admissível que o juiz tivesse o poder de anular a sua própria decisão”.
ww) Contudo, a propósito do Código de Processo Civil comentado (com preceitos semelhantes aos actuais, sobre esta matéria), escreveu o Prof. Alberto dos Reis, no seguimento: “O código actual não consignou este terceiro desvio, porque não aderiu à tese de que ao juiz não é lícito anular a sua própria sentença. Pelo contrário, depois de enunciar os princípios de que, proferida a sentença, fica esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria dacausa (art. 666º), acrescenta que o julgador pode suprir nulidades, rectificar erros materiais, esclarecer dúvidas e reformar a sentença quanto a custas e multa”.
xx)Em suma, o Código de Processo Civil, em vigor, admite a possibilidade do juiz, mesmo depois de proferida a sentença (não transitada em julgado), apreciar as questões indicadas pela lei, nomeadamente suprir nulidades – artigo 613º, nº2 do Código de Processo Civil.
yy) Proferida a sentença, apenas fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa – nº1 do aludido artigo 666º.
zz) Deste modo, há que concluir que a autora/recorrente deveria ter reclamado as arguidas nulidades processuais perante o tribunal onde as mesmas ocorreram (1ª instância).
aaa) Não o tendo feito, julgamos, salvo melhor entendimento, que houve um erro na forma processual usada. (Nesse sentido, veja-se o Acordão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14/12/2005, P. 04S4452 e o Acordão do Tribunal da Relação do Porto, de 1/3/2010, P.151/09.6TTGDM.P1, disponível in www.dgsi.pt e Acórdão da Relação de Évora, proferido no P.1027/11.2TTSTB.E1, de 18/10/2012.)
bbb) Daí poderia ter sido decidido, que os autos deveriam descer à 1ª instância para que aí se conhecesse a nulidade processual invocada.
ccc) O que, no caso, tal não seria possível, já que a arguida nulidade já havia sido anteriormente conhecida pelo Tribunal da 1.ª Instância, no sentido do seu indeferimento, não tendo a autora aqui recorrida, interposto recurso do respectivo despacho.
ddd) A solução do aproveitamento dos actos processuais foi também seguida pelo Acordão do Tribunal da Relação ..., supra identificado, bem como pelo Acordão desta Relação, supra identificado.
eee) Todavia, para que seja possível o aproveitamento do acto, mostra-se necessário que a arguição das nulidades tenha sido feita atempadamente, ou seja, que as mesmas não se encontrem sanadas.
fff) O que não se verifica no caso sub judice.
ggg) Por fim, dir-se-á que, perante o declarado pela autora/recorrida no seu requerimento de arguição de nulidade, datado de 08 de Janeiro de 2021, extrai-se que a mesma quis apenas deduzir incidente de falsidade da acta, com a arguição da nulidade consequente.
hhh) Quanto às nulidades processuais arguidas em sede de recurso, pretendeu mesmo a autora argui-las por esse meio e no prazo do recurso.
iii) E, assim sendo, é manifesto que tal arguição se mostra intempestiva.
jjj) Logo, não tendo a nulidade sido arguida no prazo legal, têm de se considerar sanadas, não sendo possível o aproveitamento do acto da sua arguição, por extemporâneo.
kkk) Por tal motivo, não seria sequer de ordenar a descida dos autos à 1ª instância para conhecimento das nulidades processuais arguidas.
lll) Entende-se assim que o douto acórdão recorrido ao ter julgado procedente a apelação da autora/recorrida e decidido anular a decisão da 1.ª instância no sentido da mesma ser substituída por despacho que designe data para a continuação da Audiência Prévia, com observância do disposto no art. 3.º n.º 4 do Código do Processo Civil, violou os arts. 195.ºe 199.ºdoC.P.Civil,razão pela qual deve ser revogado, mantendo-se nos seus precisos termos a decisão da 1.ª Instância.”

8. Confrontados os fundamentos recursivos – a título principal, revista normal e extraordinária baseada no art. 629º, 2, a), do CPC; a título subsidiário, revista excepcional nos termos do art. 672º, 1, a), do CPC –, foi proferido pelo aqui Relator despacho ao abrigo e para os efeitos do art. 655º, 1, ex vi art. 679º, do CPC, afigurando-se que o conhecimento do objecto do recurso pudesse não ser admitido tanto na vertente de revista normal extraordinária como na vertente da revista excepcional.

Os Recorrentes responderam, em particular para reiterar a ofensa de caso julgado e a consequente apreciação do recurso à luz do art. 629º, 2, a), do CPC.


9. O aqui Relator proferiu Decisão Singular, nos termos do art. 652º, 1, b) e h), aplicável ex vi art. 679º, do CPC, na qual julgou findo o recurso de revista por não haver lugar ao conhecimento do respectivo objecto, seja a título principal, seja a título subsidiário.

10. Uma vez mais inconformados, os Recorrentes deduziram Reclamação para a Conferência, requerendo que sobre a matéria da Decisão Singular recaia um acórdão, reiterando as razões que expuseram nas alegações da revista e na pronúncia em resposta ao despacho proferido no âmbito do art. 655º do CPC.

Foram dispensados os vistos legais.

Cumpre apreciar e decidir, servindo de factualidade relevante o que precede e se expôs no Relatório.

II) FUNDAMENTAÇÃO

11. A Decisão Singular reclamada analisou as questões levantadas pela revista em parcelas distintas.

           

11.1. Quanto à “ofensa de caso julgado pela intempestividade da apelação”, usou dos seguintes fundamentos:

“Os Réus Recorrentes alegam a intempestividade do recurso de apelação para o TR..., uma vez que não teria sido cumprido o prazo legal de 30 dias consignado pela lei.

Vistos os autos (cfr. referência ...38, consultável via Citius), comprova-se que tal recurso foi interposto em 8/1/2021, correspondente ao 3.º dia útil subsequente ao termo do prazo-regra, acrescido do pagamento imediato (para além da correspondente taxa de justiça) da multa(-condição) devida por tal interposição dentro do “prazo de complacência” oferecido por lei, tudo nos termos previstos e admitidos pelo art. 139º, 5, al. c), do CPC (em coordenação com os arts. 638º, 1, e 138º, 1, do CPC). 

Este comportamento processual exclui o efeito preclusivo do esgotamento do prazo peremptório correspondente ao “prazo normal” de interposição[1], evitando-se, deste modo, a constituição de caso julgado formal, por força do decurso do prazo de caducidade do direito à interposição do recurso, da sentença recorrida através da apelação para o 2.º grau de jurisdição, com a consequente legitimidade para apreciar do recurso pela Relação sem que a data da interposição o excluísse (art. 628º CPC).”

11.2. No que tange à ofensa do caso julgado pelo vício referido ao despacho proferido em sede de audiência prévia e pela apreciação da nulidade da sentença objecto da apelação”, fundamentou-se com o seguinte teor:


“A admissão da revista extraordinária tendo por base a “ofensa de caso julgado” implica (como seu pressuposto de recorribilidade) que a decisão recorrida seja proferida sem consideração ou violação de decisão anterior que se possa ter constituído como caso julgado, formal ou material, à luz do seu objecto e conteúdo.

Como se afirmou no Ac. do STJ de 26/5/2021[2], “[a] definição de caso julgado formal resulta da disposição do n.º 1 do artigo 620º do CPC onde se determina que as sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo. O caso julgado, seja formal ou material, pressupõe o pronunciamento jurisdicional sobre uma determinada questão suscitada pelas partes ou decorrente dos poderes oficiosos do tribunal. A decisão jurisdicional conformadora de caso julgado tem necessariamente um objeto (a factualidade submetida à apreciação jurisdicional) e um conteúdo (o sentido da valoração judicial).”


No caso, teremos que ver o iter processual em dois momentos e o objecto/conteúdo dos despachos/decisões pertinentes e entre si relacionadas.
Num momento mais próximo, a decisão que teria sido violada diz respeito, no momento posterior à interposição do recurso de apelação, à apreciação pelo juiz de 1.ª instância da nulidade alegada na apelação e decorrente da omissão do contraditório pela alegada falta de realização (pelo menos integral) da audiência prévia.
Por sua vez, (tal apreciação, na visão dos Recorrentes) estaria vedada – em relação a um momento anterior – pelo alegado caso julgado formal relativo ao despacho relativo às vicissitudes e encerramento da audiência prévia (sem a sua realização integral para os fins do art. 591º, 1, em esp. b)[3], do CPC) e à falta de reclamação tempestiva junto do tribunal de 1.ª instância de alegada nulidade processual associada, nos termos dos arts. 195º, 1, 196º e 199º do CPC (nulidades inominadas), tendo em conta a consequente sanação do erro de procedimento.
Tal apreciação nesse último momento resulta, por outro lado, dos poderes oficiosos atribuídos ao juiz no tribunal “a quo”, no âmbito desse recurso de apelação, exercidos de acordo com o n.º 1 do art. 617º do CPC (em conjugação com o art. 641º, 1, do CPC), tendo como objecto a nulidade de decisão (art. 615º, 1, CPC) suscitada no recurso interposto da sentença recorrida. E, sendo fundamentada expressamente pelo juiz nos termos do art. 617º, 1 e 5, do CPC, tal significa que essa apreciação absorveu ex professo a invocação da nulidade processual configurada à luz do art. 195º, 1, do CPC (desde logo então já afectada pelo regime de arguição do art. 199º, 1, do CPC), resultando dessa absorção uma e uma só resposta a tal arguição de nulidade no âmbito do regime recursório próprio de apelação da sentença recorrida (v. os arts. 644º, 3, e 660º do CPC[4]).
Sendo a alegada nulidade processual absorvida e consumida, a final, como nulidade de decisão ou julgamento (enquanto “excesso de pronúncia” pela falta do contraditório na tramitação processual inerente à audiência prévia e ofensa ao princípio da proibição de decisões surpresa, de acordo com o art. 3º, 3, do CPC, sancionada nos termos do art. 615º, 1, d), 2ª parte, CPC)[5], a apreciação desta última não se encontra precludida, como se fosse decisão definitiva por sanação anterior do vício, pelo regime da nulidade processual e do seu eventual caso julgado, que, neste caso de coincidência de fundamento erigido em fundamento recursivo, não se constituiu como tal à luz do art. 620º, 1. Resultado: se esta qualificação (nulidade de decisão) é a que melhor se adequa à falta de exercício de alegação e contraditório pelas partes na tramitação processual e possa e deva ser conhecida e apreciada com competência funcional própria pelo tribunal de recurso, como vício autónomo e próprio à luz do catálogo do art. 615º, 1, do CPC, ao invés (e independentemente) de ser reclamada (para o caso dos autos) no tribunal recorrido, onde a alegada nulidade teria sido cometida, como deveria ser se apenas fosse vista como nulidade processual, então não estava o tribunal de 2.ª instância impedido (por esgotamento de poder jurisdicional) de apreciar o vício como nulidade da sentença, uma vez invocada por via do recurso interposto dessa decisão.[6]
Ademais, não conta para a aplicação do art. 625º, 2, do mesmo CPC, pois não vemos que haja uma coincidência sobre a mesma questão concreta processual, quando, num primeiro momento, se decide sobre os termos da audiência prévia (nomeadamente quanto à tentativa de conciliação das partes e manutenção da sua posição) e seu encerramento, sem qualquer conhecimento de nulidades, e, num segundo momento, se decide sobre a nulidade da sentença proferida em 1.ª instância e objecto de apelação (ainda que em consideração desse evento processual e suas finalidades legais)[7].

O resultado dessa apreciação – a única que conta para o efeito da questão recursiva – foi o indeferimento da nulidade de decisão invocada e projectada pelos Recorrentes na sentença recorrida como fundamento da apelação. Ora, essa decisão não é susceptível de recurso autónomo, uma vez que já está abrangida no objecto recursivo da apelação (art. 617º, 1, in fine, CPC), nem, em qualquer caso, é imodificável, uma vez que não prejudica nem exclui a competência do tribunal “ad quem” para aferir e apreciar dessa nulidade como fundamento acessório e dependente da apelação interposta (arts. 615º, 4, 2ª parte, 641º, 5, CPC). Logo, não se constituiu de todo como caso julgado formal, que pudesse ser obstáculo à sua apreciação pelo tribunal de recurso – como foi, conduzindo ao dispositivo decisório que mereceu a reacção dos aqui Recorrentes.

Assim sendo, a “ofensa de caso julgado”, como vício, exige em termos recursivos a invocação de decisão ou decisões transitadas em julgado ou cobertas pela eficácia ou autoridade de caso julgado que contendam e/ou se sobreponham ao conteúdo e efeitos da decisão que alegadamente desrespeita esse caso anteriormente decidido.
Ora, não resulta dos autos termos decisões que pudessem viabilizar a pretendida “ofensa do caso julgado” pela decisão recorrida da Relação:
(i) Seja quanto à decisão constante do despacho de 7/10/2020, relativo às incidências e encerramento da audiência prévia, uma vez absorvida como nulidade da decisão final um seu alegado vício;
(ii) Seja quanto à decisão do tribunal de 1.ª instância de 28/5/2021, relativa à nulidade invocada no recurso de apelação aquando do despacho sobre a sua admissibilidade.
Assim é porque em nenhumas das decisões temos, nos termos vistos, objecto e conteúdo que tenham a virtualidade de constituir caso julgado formal (esgotante e excludente de pronúncia ulterior) que pudesse ser fundamento da revista por ofensa ou violação do mesmo. Nele ou neles não se vê(em) pronúncia anteriormente vinculativa (formal ou material) sobre o objecto da decisão proferida pelo acórdão recorrido – relativa à omissão e violação do princípio do contraditório em sede de audiência prévia –, que pudesse ser fundamento de excepção de caso julgado.
Logo, não resulta termos sob escrutínio a ofensa de um caso julgado já constituído sobre a questão decidida no acórdão recorrido, razão pela qual não pode ser admitida liminarmente a revista na sua feição excepcionalmente admitida pela lei, interposta a título principal, por (como requisito específico de admissibilidade deste recurso extraordinário) falta de invocação de decisão – ou decisões – que constituam, na feição processual contemplada e alegada nos autos, caso julgado e que tenha sido violado pela decisão recorrida. Não é de todo legítimo aos Recorrentes usar do art. 629º, 2, a), do CPC para contestar a bondade da decisão recorrida.”

10.3. Por fim, quanto à “revista excepcional interposta a título subsidiário”, a Decisão Singular pronunciou-se neste sentido:


“Os Recorrentes interpuseram subsidiariamente revista excepcional nos termos do art. 672º, 1, a), do CPC.
O acesso à revista excepcional (enquanto modalidade da revista para o STJ enquanto recurso ordinário) depende da verificação dos pressupostos (gerais e especiais) de recurso de revista normal ou regra, tendo em vista a natureza e/ou o conteúdo da decisão, especialmente em face (por princípio) do previsto no n.º 1 (e, eventualmente, n.º 2) do art. 671º do CPC. Esta sindicação compete, desde logo, ao Relator originário do processo, nos termos do Provimento do Presidente do STJ n.º 23/2019, em atenção ao art. 652º do CPC.[8]
No que interessa, o recurso de revista excepcional aqui almejado pelos Recorrentes apenas se admite para a impugnação de acórdão proferido pela Relação sobre decisão proferida na 1.ª instância que pudesse ser enquadrado nas previsões do art. 671º, maxime n.º 1, do CPC, acrescido da circunstância processual de o recurso para o STJ não poder ser admitido como revista normal em razão da existência de dupla conformidade decisória entre as duas decisões das instâncias inferiores.
Pois bem.
O acórdão recorrido apreciou a nulidade imputada à sentença recorrida em apelação e decidiu anular esta decisão de 1.ª instância, determinando o prosseguimento dos autos, com a prolação de despacho a designar data para a continuação da audiência prévia.
Assim: não se trata de acórdão que constitua decisão final sobre o mérito da causa ou decisão final de cariz processual que ponha termo ao processo (n.º 1), muito menos (se fosse de ponderar) de acórdão que aprecie directamente decisão interlocutória proferida em 1.ª instância com incidência sobre a relação processual (n.º 2).
Logo, em si mesma, a decisão recorrida não encerra uma completude decisória (mesmo que intercorrencial) que permita a revista, tal como exigido pelo crivo jusprocessual delimitado pelo art. 671º (em esp., n.º 1, do CPC)[9].

Ademais, verifica-se a inexistência de “dupla conformidade” entre o acórdão recorrido e a sentença de 1.º grau sobre a questão/matéria apreciada pela Relação (que teria que repareciar algo decidido em 1.º grau para o efeito), condição legal da remessa dos autos à Formação Especial a que alude o art. 671º, 3, do CPC, para aferir da admissão dessa mesma revista excepcional; antes estamos perante um fundamento da apelação que surge como fundamento acessório e dependente (e, por isso, apreciado em primeira linha perante os demais fundamentos e prejudicial dos restantes) do recurso para a Relação, como tal apreciado e ajuizado, sem qualquer coincidência com o decidido em 1.ª instância e [por essa razão] convocável para aferir da “dupla conformidade” obstativa da revista normal.”


11. Não trouxeram os Reclamantes na sua impugnação qualquer razão adicional que tivesse a virtude de infirmar o decidido singularmente, pelo que se confirma em conferência o que antes se decidira.
Serve, pois, esta para fazer recair acórdão sobre a decisão singular reclamada e confirmar o resultado decisório de não conhecimento do objecto do recurso, seja a título principal de revista normal extraordinária, apontada à “ofensa de caso julgado”, seja a título subsidiário de revista excepcional.

III) DECISÃO


Pelo exposto, acorda-se em indeferir a Reclamação e confirmar a decisão reclamada.
 
Custas pelos Reclamantes, que se fixa em taxa de justiça no montante correspondente a 3 UCs, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.


STJ/Lisboa, 5 de Julho de 2022

Ricardo Costa (Relator)

António Barateiro Martins

Luís Espírito Santo

SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).

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[1] ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/LUÍS PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil, Vol. I, Parte geral e processo de declaração, Artigos 1.º a 702.º, Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 139º, pág. 164, FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, Direito processual civil, Volume II, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, págs. 683-684.
[2] Processo n.º 672/14.9T8CTB.1.C1.S1, Rel. HENRIQUE ARAÚJO, sendo 2.º Adjunto o aqui Relator, in www.dgsi.pt (com sublinhado nosso); ainda do mesmo Rel., v. o Ac. do STJ de 23/3/2021, processo n.º 2551/18.1T8VCT.G1.S1, in www.dgsi.pt.
[3] «Facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar excepções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa».
[4] Neste sentido, v. ABRANTES GERALDES, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 644º, págs. 218-219 (“decisões que absorvam os efeitos de nulidades praticadas (v.g., quando não tenha existido violação do princípio do contraditório”; “abriu-se a possibilidade de a parte vencida introduzir no recurso da decisão final a reapreciação de decisões intercalares”; “a reapreciação da decisão final apenas seja prejudicada quando verdadeiramente se verifique que o erro decisório que afeta uma das decisões interlocutórias exerceu efetiva influência no resultado final da lide”).
[5] Com indiscutível adesão no STJ, v. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “Decisão-surpresa; nulidade da decisão”, Comentário ao Ac. da Relação de Évora de 10/4/2014 (processo n.º 500/12.0TBABF-KE1), com data de 10/5/2014: https://blogippc.blogspot.com/2014/05/decisao-surpresa-nulidade-da-decisao.html; “Nulidades do processo e nulidades da sentença: em busca da clareza necessária”, com data de 22/9/2020: https://blogippc.blogspot.com/2020/09/nulidades-do-processo-e-nulidades-da.html; “Por que se teima em qualificação a decisão-surpresa como uma nulidade processual”, com data de 12/10/2021: https://blogippc.blogspot.com/2021/10/por-que-se-teima-em-qualificar-decisao.html; “Artigo 3º”, CPC Online, Art. 1.º a 58.º, Blog do IPPC (https://blogippc.blogspot.com/2022/01/cpc-online-8.html), pág. 5. Convergente: ABRANTES GERALDES, Recursos… cit., sub art. 627º, págs. 26 e ss (com jurisprudência), salientando-se que, “designadamente quando a sentença traduza para a parte uma verdadeira decisão-surpresa (não precedida do contraditório imposto pelo art. 3.º, n.º 3), a mesma nem sequer dispôs da possibilidade de arguir a nulidade processual correspondente à omissão do ato, sendo o recurso a via mais ajustada a recompor a situação integrando no seu objeto a arguição daquela nulidade”.

[6] Muito elucidativos: Acs. do STJ de 16/12/2021, processo n.º 4260/15.4T8FNC-E.L1.S1, Rel. LUÍS ESPÍRITO SANTO, com jurisprudência de suporte desta última instância (v. Sumário: “I – Encontrando-se a nulidade processual coberta pela decisão judicial que a acolhe (in casu, o saneador-sentença recorrido), o meio adequado para invocar essa infracção às regras do processo é o recurso contra a decisão de mérito, a apresentar junto da instância superior (se for admissível), e não a sua reclamação directamente perante o juiz a quo. II – O conhecimento do pedido, em fase de saneamento dos autos[,] obriga, de forma imperativa, o juiz à designação de audiência prévia, a realizar nos termos e para os efeitos do artigo 591º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil, facultando às partes a possibilidade de alegarem de facto e de direito sobre a matéria de que irá conhecer. III – Havendo o juiz contrariado a tramitação processual até aí seguida (a audiência prévia foi designada várias vezes e entretanto adiada), procedido à (implícita) dispensa da realização da audiência prévia sem se encontrarem reunidos os respectivos requisitos processuais indispensáveis para esse mesmo efeito e passado ao conhecimento imediato do mérito da causa, a respectiva sentença é nula por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), 2ª parte do Código de Processo Civil. IV – A violação das regras processuais que consiste na omissão ilegal da realização de uma diligência obrigatória que deveria ter tido lugar nos autos (a audiência prévia), comunica-se à decisão de mérito subsequente que é proferida fora do momento próprio, numa altura em que ao juiz se encontrava expressamente vedada a possibilidade de tomar conhecimento dessa matéria.
V –
Tal decisão de dispensa da audiência prévia, que era no caso obrigatória, constituiu uma verdadeira decisão surpresa entendida enquanto “decisão que decide o que não pode decidir sem audiência prévia das partes”, surpreendendo as partes com o conhecimento que não poderia ter tido lugar antes de as mesmas exercerem o seu direito ao debate da matéria de fundo, de facto e de direito, não se circunscrevendo ao limitado e estrito âmbito da mera irregularidade procedimental, invocável nos comuns termos do artigo 195º, do Código de Processo Civil.”), e do TRL de 19/11/2020, processo n.º 3332/13.4TBTVD-B.L1-6, Rel. CRISTINA NEVES, sempre in www.dgsi.pt.
[7] V. TEIXEIRA DE SOUSA, “A eficácia da composição da acção”, Estudos sobre o novo processo civil, 2.ª ed., Lex, Lisboa,1997, pág. 572.
[8] V. ABRANTES GERALDES, Recursos… cit., sub art. 672º, págs. 387-388, 389-390.

[9] Para hipóteses análogas sobre tal (in)admissibilidade da revista, v. os Acs. do STJ de 10/12/2019, processo n.º 144/07.8TMBRG-C.G1.S1, e de 13/10/2020, processo n.º 27449/17.7T8PRT.P1.S1, tendo como Rel. RICARDO COSTA, assim como de 4/6/2019,  processo n.º 952/16.9T8PVZ-A.P1.S1, Rel. MARIA OLINDA GARCIA, com Sumário disponível in STJ – Sumários de Acórdãos das Secções Cíveis, 2019, https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2021/05/sumarios_civel_2019.pdf, e 11/2/2020, processo n.º 97/07.2TBVPA-A.G1.S2, Rel. RAIMUNDO QUEIRÓS, com Sumário disponível in STJ – Sumários de Acórdãos das Secções Cíveis, 2020, https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2021/05/sumarios_civel_2020.pdf.