Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2592/16.3T8SNT.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
IMPUGNAÇÃO
USUCAPIÃO
ÓNUS DA PROVA
DOMÍNIO PÚBLICO
DOMÍNIO PRIVADO
DESAFECTAÇÃO
DESAFETAÇÃO
DIREITO DE PROPRIEDADE
POSSE
PRAZO
CONTAGEM DE PRAZOS
Data do Acordão: 06/07/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS COISAS / POSSE / NOÇÃO.
Doutrina:
- Ana Raquel Gonçalves Moniz, Direito do Domínio Público, Tratado de Direito Administrativo Especial, Volume V, Almedina, Coimbra, 2011, p. 154 a 158 ; O Domínio Público, O critério e o Regime Jurídico da Dominialidade, Almedina, Coimbra, 2005, p. 434 e ss.;
- Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Volume II, Almedina, Coimbra, 1980, p. 957 e ss.;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume III, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 1984, p. 10 e ss. e 27;
- Vaz Serra, Prescrição extintiva e caducidade, Separata do BMJ, Lisboa, 1961, p. 85 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 1251.º.
REGIME JURÍDICO DO PATRIMÓNIO IMOBILIÁRIO PÚBLICO, APROVADO PELO DL N.º 280/1979, DE 07-08.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- ACÓRDÃO DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA Nº 1/2008, IN DR, I SÉRIE, DE 31/03/2008;
- DE 13/03/2008, PROCESSO N.º 542/08), IN WWW.DGSI.PT;
- DE 28/05/2009, PROCESSO N.º 2450/08, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 13/07/2010, PROCESSO N.º 135/2002.P2.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 19/05/2011, PROCESSO N.º 3378/08.6TJVNF, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 02/03/2011, PROCESSO N.º 272/04.1TBCNF.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 11/01/2017, PROCESSO N.º 42/13.6TBMDB.G1.S1, SSTJ, SUMÁRIOS DA JURISPRUDÊNCIA CÍVEL, IN WWW.STJ.PT.


-*-


ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO;


- DE 08/09/2011, PROCESSO N.º 0267/11;
- DE 26/06/2014, PROCESSO N.º 01174/12, AMBOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - Numa acção de impugnação de escritura de justificação notarial na qual os réus invocam a aquisição do direito de propriedade por usucapião, recai sobre estes o ónus da prova dos factos constitutivos do direito, de acordo com a orientação fixada pelo AUJ n.º 1/2008.

II - A extinção do estatuto da dominialidade pública pode ocorrer através de desclassificação legal, desclassificação administrativa, desafectação e degradação.

III - A figura da desafectação tácita (ou desafectação implícita) tem sido admitida pela jurisprudência e continua a ser aceite na doutrina mais recente, apesar de o DL n.º 280/1979, de 07-08 (que, pela primeira vez, aprovou o Regime Jurídico do Património Imobiliário Público) a ela não se referir.

IV - A aceitação da possibilidade de extinção do estatuto de dominialidade através da desafectação tácita – com a consequente transição do bem do domínio público para o domínio privado da entidade pública, deixando de estar sujeito aos princípios da inalienabilidade, da imprescritibilidadee da impenhorabilidade, próprios dos bens do domínio público – exige que tenha ocorrido o abandono da função pública do bem, aferido por comportamentos inequívocos da administração, bem como o decurso de um período de tempo significativo, correspondente, pelo menos, ao dobro do prazo máximo de usucapião.

V - O decurso de um período de tempo significativamente longo funciona, numa primeira fase, como “presunção da cessação do carácter dominial da coisa” (consolidação da desafectação tácita) e, numa fase imediatamente subsequente, como “presunção da aquisição da mesma pelo particular” (usucapião).

VI - No caso presente, é de concluir não ter ocorrido a desafectação tácita da parcela de terreno e subsequente aquisição da propriedade do bem por usucapião quando: (i) Não resultou provado (como era ónus dos réus justificantes) que, aquando da ocupação da parcela de terreno e de início da construção clandestina pelos tios dos réus (no ano de 1975), tenha ocorrido qualquer conduta inequívoca do autor Município no sentido do abandono da coisa, sendo que o facto de, em 16-08-1994, ter o autor embargado a construção da obra clandestina pelos tios dos réus revela precisamente o oposto; (ii) Para além da prova de que os tios dos réus continuaram a construção, não acatando o embargo da mesma, nada mais foi provado quanto à conduta do autor Município até ao acto de desafectação expressa do bem, em 21-09-2005; (iii) Mesmo que se entendesse que a conduta do autor Município, após o não acatamento pelos tios dos réus do embargo da construção clandestina, revelaria tal abandono, sempre faltaria determinar se a situação se manteve inalterada ao longo de um período de tempo equivalente a, pelo menos, o dobro do prazo máximo de usucapião, contado desde o momento posterior ao embargo de 16-08-1984 (termo a quo) até à data da escritura de justificação de 20-11-2015 (termo ad quem).

VII - Acresce que, sendo a posse o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (art. 1251.º do CC), a prova da existência de um simples acordo verbal entre os réus e os seus tios (e não de uma venda verbal, como pretendido na escritura justificativa) pelo qual os primeiros passaram a habitar no 1.º piso da casa em troca de contribuírem para os custos da construção, não é, por si só, apta a provar a aquisição derivada da posse correspondente ao direito de propriedade (ou a outro direito real) pelos réus, pelo que, faltando a prova pelos réus da sua qualidade de possuidores, sempre ficariam por demonstrar os pressupostos da usucapião necessários à aquisição da parcela de terreno disputada.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1. Município da AA intentou, em 03/03/2016, acção declarativa destinada a impugnar a escritura de justificação notarial, contra BB e CC, pedindo que:

(i) Seja considerado impugnado, para todos os efeitos legais, o facto justificado na escritura lavrada no Cartório Notarial do Barreiro, a cargo do Notário DD, em 20 de Novembro de 2015, exarada a folhas 34 a folhas 35 verso, do livro número 336 A, das notas deste cartório, referente à aquisição pelos RR., por usucapião, de um lote de terreno para construção, com a área de 260,35 m2, denominado por lote trinta e cinco, sito na ..., concelho da AA;

(ii) Seja declarada nula ou ineficaz esta mesma escritura de justificação notarial, por forma a que os RR. não possam, através dela, registar quaisquer direitos sobre o prédio nela identificado e objecto da presente impugnação; e

(iii) Se ordene o cancelamento de quaisquer registos operados com base neste documento. 

Alega, em síntese, que os factos justificados na referida escritura são falsos e não podem levar à constituição de uma situação de posse a favor dos RR. e, consequentemente, não podem servir para sustentar a aquisição originária por usucapião de um prédio que integra a propriedade do A.. O lote 35, com a área total de 260,35m2, objecto da escritura, integra o loteamento municipal com o número de Processo 34.953/09 e resultou da anexação de dois prédios, descritos na petição inicial.

O lote objecto de justificação está implantado, em parte, no prédio do Município e esse prédio foi retirado da antiga Estrada Militar, a qual só foi desafectada do domínio público e registada no domínio privado municipal em 21/09/2005, data até à qual esteve, portanto, fora do comércio jurídico, ou seja, há cerca de 10 anos o lote 35 integrava uma parcela do domínio público. Em nenhum momento foi requerido ao A. o licenciamento de qualquer obra a edificar no referido lote 35, pelos RR. ou por outros em seu nome, ou sequer pelos RR. foi, fundamentadamente, reclamada a propriedade junto do A. do referido lote 35. O lote 35 integrou até há cerca de dez anos o domínio público, razão pela qual estava fora do comércio jurídico e não se pode afirmar que o referido prédio entrou na posse de EE e de FF em 1975, sendo falsas estas declarações, porque integrava a antiga Estrada Militar, pelo que não há o corpus nem o animus para se verificar uma situação de posse. Os RR. não podiam ignorar que aquele lote de terreno não lhes pertencia, integrando antes o domínio público, não podendo actuar e ter a convicção de ser proprietários do referido prédio, não sendo assim possuidores, mas meros detentores.

Os RR. contestaram, aceitando que o lote 35 integra o loteamento municipal, mas o mesmo resulta de uma AUGI cujo processo de reconversão correu sob os termos 34953/09 pela iniciativa da Câmara Municipal da AA, ou seja coube ao Município executar a operação de loteamento, realizando uma intervenção urbanística nos prédios de modo a legalizar as parcelas que já existiam, delimitadas no terreno com construções clandestinas edificadas há mais de trinta anos, que culminou naquele referido processo. A casa objecto dos presentes autos está reconhecida no Quadro Urbanimétrico e foi construída na parcela de terreno designada pelo lote 35, ocupada em 1975, pelos tios dos RR., EE e FF, que iniciaram a construção da mesma e a foram fazendo ao longo dos anos, tendo sido o seu tio que executou os trabalhos para o ramal com vista ao fornecimento de energia eléctrica pela EDP com a autorização da Câmara de ...; foi ainda o tio quem pagou o ramal para abastecimento de água junto dos serviços municipalizados; e foi a sua obra de construção da casa, que habitava, que foi objecto de embargos, em 1984, quando já tinha sido construída até à segunda laje. Não obstante tal embargo, a obra continuou e a casa foi inscrita na matriz predial. A partir de 1986, os RR. continuaram e concluíram a casa, mediante venda verbal e o convite de nela passarem a habitar em conjunto com os seus tios até à morte destes, tendo acabado a construção da casa. Foram os RR. quem, desde 1986, conservou a casa e o seu logradouro, murando-o, desmatando-o, plantando e cuidando das árvores, passando a agir como moradores e proprietários do terreno e da construção erigida, pagando as comparticipações nas despesas com a Comissão de Administração da AUGI e os projectos de arquitectura e especialidades da moradia para serem entregues na Câmara Municipal da AA.

Não há domínio público do lote 35 porque, se assim fosse, não era passível de reconversão, sendo certo que na própria planta de loteamento estão definidas as áreas para domínio público. Os RR. pretendem obter licença de construção da sua casa, construída no lote 35, a qual ajudaram a construir e na posse da qual entraram há mais de vinte anos sendo considerados por todos como proprietários, desde 1986, e antes pelos seus tios, desde 1975.

Pugnam pela improcedência da acção, o que implica a demonstração da veracidade do que consta na escritura de justificação notarial, consolidando-se o registo de aquisição por parte dos RR.

A fls. 131 foi proferida sentença que julgou a acção procedente, e, em consequência, decidiu:

“A) Considera-se impugnado, para todos os efeitos legais o facto justificado na escritura lavrada no Cartório Notarial do Barreiro, a cargo do Senhor Notário DD, em 20 de Novembro de 2015, exarada a folhas 34 a folhas 35 verso, do livro número 336 A, das notas deste cartório, referente à aquisição pelos RR., por usucapião, de um lote de terreno para construção, com a área de duzentos e sessenta vírgula trinta e cinco metros quadrados, denominado por lote trinta e cinco, sito na ..., concelho da AA, não se reconhecendo os RR. como proprietários do prédio descrito em A).

B) Declara-se nula ou ineficaz a escritura de justificação notarial referida em A), por forma a que os RR. não possam, através dela, registar quaisquer direitos sobre o prédio nela identificado e objecto da presente impugnação;

C) Ordena-se o cancelamento de quaisquer registos operados com base nestes documentos.”

Não se conformando com a decisão, dela recorreram os RR. para o Tribunal da Relação de Lisboa, pedindo a reapreciação da decisão de direito.

Por acórdão de fls. 168 foi a apelação julgada procedente, revogando-se a sentença recorrida e, em consequência, julgando-se improcedente a acção e absolvendo-se os RR. dos pedidos.

2. Vem o A. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

1) O douto acórdão incorreu, salvo o devido respeito, em manifesto erro de interpretação das normas aplicáveis, uma vez que não se encontram preenchidos os pressupostos da aquisição por usucapião.

2) A constituição da posse depende da verificação cumulativa de dois elementos: o corpus - o simples poder ou actuação de facto correspondente ao exercício do direito por parte do possuidor - e o animus - a intenção de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa.

3) É certeira a afirmação do tribunal de primeira instância quando diz que essa intenção ''não pode ser confundida com a mera convicção de se ser titular do direito", para depois concluir que os Recorridos nunca tiveram o animus necessário à constituição da posse.

4) Os Recorridos nunca foram mais do que meros detentores ou possuidores precários, visto que não actuaram com a intenção de agir como beneficiários do direito de propriedade.

5) Mais do que isso, ao contrário do que afirmou o douto acórdão recorrido, não é suficiente para constituir a inversão do título da posse a circunstância de os tios dos Recorridos terem ignorado, em 1984, a ordem de embargo do Recorrente e terem continuado a construção da casa.

6) Como refere a jurisprudência versada na matéria, para que haja inversão do título da posse é necessário que haja uma oposição directa e frontal, que seja inequívoca, pelo que não será com uma mera indiferença perante uma ordem de embargo que se poderá considerar que os tios dos Recorridos tenham preenchido este requisito.

7) Assim, o acórdão recorrido violou as normas colhidas nos artigos 1265º e 1290º do CC, assim como os artigos 1287º, 1251º,1253º, alínea a), também estes do CC.

8) Sem prescindir, e apenas por mera cautela de patrocínio, caso se considere que se verificou a inversão do título da posse pelos tios dos Recorridos, sempre se dirá que os Recorridos não podem juntar a sua posse à posse dos seus tios. Não o podendo fazer, à data da escritura não se encontrava ainda decorrido o prazo de usucapião aplicável in casu.

9) De acordo com o artigo 1º da Lei nº 54, de 16 de Julho de 1913, o prazo de prescrição aquisitiva aplicável é de 30 anos.

10) A luz do artigo 1256º do CC, a acessão da posse (i) é facultativa, (ii) exige que haja duas posses contínuas e homogéneas (iii) e depende da existência de um vínculo jurídico entre o novo e o antigo possuidor,

11) De uma banda, se é facultativa, deve ser expressamente invocada por quem dela quer beneficiar. Em bom rigor, nunca os Recorridos invocaram a acessão da posse na escritura de justificação.

12) De outra banda, se tem de haver um vínculo jurídico entre possuidores providos de posses contíguas e homogéneas, esse vínculo não pode deixar de ser válido.

13) Uma vez que os Recorridos e os tios dos Recorridos acordaram, verbalmente, a venda do prédio, este negócio jurídico está eivado de nulidade por preterição da forma legal aplicável (cf. artigos 220º e 875º do CC), logo, sendo inválido, não pode ser fundamento da acessão da posse - tal como já se pronunciou a jurisprudência (cfr. de entre muitos outros citados, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07-04-2011, proc. nº 956/07.2TBVCT.GLS1) e a maioria da doutrina (v.g. ANTUNES VARELA/PIRES DE LIMA; DURVAL FERREIRA; FERNANDO PEREIRA RODRIGUES; MANUEL RODRIGUES; SANTOS JUSTO; OU DIAS MARQUES).

14) A acrescer, com o devido respeito, o Tribunal a quo errou, também ao dizer que é por referência à data da entrada da petição inicial que se computa o prazo da prescrição aquisitiva, na medida em que, em rigor, o prazo de usucapião tem de verificar-se não à data da instauração da acção de impugnação do facto justificado notarialmente, mas à data da celebração da escritura de justificação.

15) Não tendo havido acessão da posse, os Recorridos, apenas podendo contar a sua posse, exercida pessoalmente desde Dezembro de 1986, não computavam mais de 30 anos de posse à data da escritura de justificação notarial, sendo falso o que nela se atesta.

16) Por essa razão, deve a mesma ser declarada nula ou ineficaz, por forma a que os Recorridos não possam, através dela, registar quaisquer direitos sobre o prédio nela identificado e objecto da presente impugnação, ordenando-se o cancelamento de quaisquer registos operados com base neste documento.

17) A douta decisão recorrida violou o artigo 1256º do CC, conjugado com o artigo 1º da Lei n° 54, de 16 de Julho de 1913, e artigo 1296º do CC.

Termina pedindo a revogação do acórdão recorrido.


     Os Recorridos contra-alegaram, formulando as seguintes conclusões:

1. Sabemos que a mera detenção ou posse precária não pode conduzir à usucapião, mas não é esse o caso dos ora recorridos!

2. Resultou provado que em 1975 os tios dos RR. ocuparam uma parcela de terreno, que   sabiam   não   lhe[s]   pertencer,   facto   que,   aliás,   era   do conhecimento do Município da AA, ora recorrente.

3. Assim, para poderem exercer a posse em nome próprio os RR., ora recorridos, tinham de fazer prova da inversão do título de posse -"interversiopossessionis" - vejamos se lograram fazê-lo:

Ficou provado que:

Artigo 19º - Provado que foi o Sr. GG que no decurso da construção, da casa referida em 15, em 16 de Agosto de 1984 foi objecto de embargo por parte da A.

Artigo 20° - Provado no auto embargo de obra efectuado pelo A., a 16 de Agosto de 1984, a casa referida em 15° encontrava-se até à 2ª Lage, os rebocos executados no 1º Piso, as portas e janelas definidas com cantarias só no 1º piso, as divisões executadas, mas em tosco no 2º Piso.

Artigo 21º - Provado que, não obstante o embargo, o Sr. GG e a Mulher FF, à semelhança dos seus vizinhos, continuaram a construção da casa que constituía a sua morada de família e inscreveram-na na matriz predial urbana."

4. Tais atos poderiam não ter a importância que neste caso têm, não fora o ora recorrente ser o próprio Município da AA.

5. Os tios dos RR. e os próprios RR. opuseram-se ao Município da AA, desrespeitando uma ordem de embargos e na ocasião incorrendo mesmo na prática do crime de desobediência...

6. Perante tão ostensiva oposição por parte dos tios dos RR. e os próprios RR., ora recorridos, violando a sua ordem de embargos, o Município da AA nada fez!

7. E o Município da AA tinha muito para fazer: fiscalizar a obra, obstar à continuação da obra e demolir o que estivesse edificado;

8. O Município, ora recorrente, fornecia a água aos tios dos RR. e aos RR, ora recorridos desde 1981, sendo que, apesar da violação da ordem de embargos em 16 de agosto de 1984, pelos RR. o Município nunca lhe interrompeu tal fornecimento;

9. O Município, ora recorrente, apesar da violação da ordem de embargos em 16 de agosto de 1984, pelos RR. nunca diligenciou no sentido de ser interrompido o fornecimento de eletricidade.

10. Os tios do RR. inscreveram a casa que implantaram na parcela de terreno matriz e o Município, ora recorrente, bem sabia disso pois que recebia os tributos inerentes a tal inscrição matricial.

11. Desde 16 de agosto de 1984, à vista de todos, e principalmente do Município da AA, os RR. passaram agir desde aí como donos e senhores da parcela de terreno, opondo-se ao ora recorrente, assim invertendo o título da sua posse.

12. Os RR. alegaram e provaram factos que demonstram ter existido atos - não meras palavras - demonstrativos da oposição em relação ao Município, ora recorrente, exteriorizando a sua vontade de possuir em nome próprio, arrogando-se ao direito de propriedade.

13. Em conclusão, tendo os RR. demonstrado ao tribunal, que exercem sobre o lote de terreno os poderes de facto integradores do "corpus" da posse e bem assim do "animus" correspondente ao direito de propriedade, ocorrido aquando da inversão do título da posse, e à vista de qualquer possível interessado, segue-se que ocorre a aquisição do direito de propriedade no prazo máximo de trinta anos, claramente ultrapassados no caso dos autos.

14. A., ora recorrente alega agora que tal prazo de trinta anos não estaria preenchido, pois defende a tese de que a acessão da posse pressupõe além de uma posse homogénea e sucessiva um ato translativo que seja formalmente válido.

15. Mas também esta é uma posição sem sustento legal e que talvez se aplicasse se estivéssemos no âmbito do Código de Seabra, o que não é o caso!

16. Embora a controvérsia doutrinal, exista a mesma foi exaustivamente estudada no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 02/12/2014, aderindo, fundamentadamente, à tese contrária, que passamos a citar:

17."(...)Entendemos não aderir a esta tese, já que, nosso ver, é patentemente redutora e antinómica com a possibilidade concedida pelos arts. 1296º e 1299º de poder ocorrer a usucapião em casos de falta de registo do título e da mera posse. Redutora porque não tem base legal. (...).

18. E para corroborar a sua tese neste Acórdão cita-se entre outros Menezes Cordeiro,"(...) Afirma também que o entendimento que critica iria impedir a usucapião nos casos de falta de título e de boa fé acrescentando que este ponto merece ser pensado, já que "o Código Civil vigente admite a usucapião baseada em posse não titulada e de má fé - cf 1296º. Ora nestes casos, nunca poderia haver acessão na posse: não havendo título ou registo do mesmo nenhum notário lavraria a competente escritura. Seria um espantoso retrocesso histórico. Não se pode ter por admitido".

19. E doutamente se acrescenta- se:

"(...) Por outro lado, sendo possível a usucapião baseada na posse não titulada e de má fé, tal como decorre dos arts. 1296º e 1299º, não se alcança qualquer razão para desaplicar, em tais casos, a acessão na posse. Quer isto dizer, não aceitando a referenciada tese, entendemos que para que a acessão na posse, a que alude o art. 1256º, se verifique, basta que o actual possuidor tenha adquirido a posse derivada do antecessor através da entrega ou tradição da coisa, sem que seja de exigir que a transferência se baseie em acto (translativo) formalmente válido. Neste caso, como já acima afirmámos, essa posse não será titulada e será de má fé. (...)"

20. Em face do supra exposto, tanto os RR. ora recorridos como os seus tios possuíram o mesmo direito sobre o lote de terreno de forma continuada, e pela junção ao lapso de tempo usufruído pelos seu tios iniciado em 16 de agosto de 1984 ao período por si continuado até à data da outorga da escritura, transcorreu o prazo da usucapião, de 31 anos e três meses .

Nestes termos, deve ser mantido na íntegra o Acórdão em apreço, reconhecendo-se o direito de propriedade dos RR., ora recorridos, adquirido por usucapião declarando válido o facto impugnado mantendo-se a inscrição da propriedade no registo predial, com base na escritura de justificação notarial a que aludem os presentes autos.


         Cumpre decidir.


3. Vem provado o seguinte (mantém-se a ordenação da Relação e a redacção das instâncias):


1º - Por escritura de justificação notarial, datada de 20-11-2015, lavrada no Cartório Notarial a cargo do Notário DD, os RR BB e CC declararam que “em Junho de mil novecentos e setenta e cinco, EE e mulher FF entraram na posse da parcela de terreno acima identificada, livre de quaisquer ónus ou encargos e já devidamente delimitada e fisicamente separado do prédio rústico na ocasião correspondente à descrição predial seiscentos e dez, da freguesia das ...”.

(…) “[q]ue, posteriormente, em Dezembro de mil novecentos e oitenta e seis, os mencionados EE e mulher FF, procederam à venda verbal do mesmo imóvel aos aqui justificantes, HH e mulher CC, sem que estes no entanto ficassem a dispor de título formal que lhes permitisse o respectivo registo na Conservatória do Registo Predial, mas, desde logo entraram na posse e fruição do referido imóvel, agindo sempre por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, nomeadamente, desmatando-o, plantando árvores, tendo realizado benfeitorias e nela tendo edificando [sic] uma construção, pagando impostos sobre a mesma, quer usufruindo como tal o imóvel, quer suportando os respectivos encargos.

“[q]ue, primeiramente EE e mulher FF, e posteriormente os aqui justificantes, HH e mulher CC, estão na posse do identificado imóvel há mais de vinte anos, sem a menor oposição de quem quer que seja, desde o seu início, posse que sempre exerceram sem interrupção e ostensivamente, com conhecimento de toda a gente, com ânimo de quem exerce direito próprio, sendo por isso uma posse pública, pacifica, contínua, pelo que adquiriu o referido imóvel por usucapião, não tendo assim, documentos que lhes permitam fazer prova da aquisição pelos meios extrajudiciais normais – tudo cf. doc. 1 que se junta e se dá por integralmente reproduzido (assim como os demais documentos juntos nesta petição inicial e sempre que referidos) – cf. doc. de fls. 11 e 12 – (Petição Inicial artºs 6º, 7º, 8º e 9º).

2º - O lote 35, com a área total de 260,35m2, integra o loteamento municipal com o número de Processo 34.953/09 – cf. doc de fls 8vº a 10 e certidão da operação de loteamento de fls 13 a 16 – (PI11º)

3º - A área total de intervenção do loteamento municipal é de 26.896,95m2 - cf. doc. de fls 13 a 16 – (PI12º).

4º - Este prédio rústico, objecto da operação de loteamento, resultou da anexação de dois prédios:

a) 23.106,95m2 do prédio rústico, sito na ..., descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial da AA sob o nº 00610/210905, da freguesia das ..., registado a favor do A. pela Ap. 3 de 21/09/2005, com a área total de 46.440,00m2, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 20, secção A, da freguesia das ..., confrontando a Norte com o A. (artigo 12º-A), II (artigo 15º-A), com JJ (artigo 16º-A) e com JJ (artigo 17º-A), a sul com JJ (artigo 1º-A), com II (artigos 3º-A e 39º-A) e com LL (artigo 4º-A), a nascente com o A. (artigo 9º-A da Damaia) e a Poente com a Fazenda Nacional (artigo 2º-F da Venteira);

b) Prédio urbano denominado “C 1”, sito na ..., descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial da AA sob o nº 01217/150604, da freguesia da Damaia (extinta), actual freguesia de ..., registado a favor do A. através da Ap. 11 de 15/06/2004, com a área de 3.790,00m2, confrontando a Norte e Poente com a ... e a Sul e Nascente com a Rua 1.3 – (PI13º).

5º- O lote, objecto de escritura de justificação descrita em 1º está implantado em parte no prédio identificado na alínea a) do antecedente nº 4 e em parte no prédio identificado na alª b) do mesmo nº 4 – (PI15º).

6º- O prédio identificado em 4º foi retirado da antiga ..., a qual foi desafectada do domínio público e registada no domínio privado municipal em 21/09/2005 – (PI artº 16º).

7º - No dia 21 de Setembro de 2015, o autor foi notificado, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 99º do Código do Notariado, de que iria ser lavrada a escritura notarial de justificação no Cartório Notarial a cargo do Senhor Notário DD – doc fls 17 – (PI artº 20º).

8º - Na escritura de justificação notarial lavrada no Cartório Notarial a cargo do Notário DD consta o nome do tio dos RR como sendo A... quando o mesmo era A....

9º - O lote 35º faz parte duma área urbana de génese ilegal denominada de ..., cujo processo de reconversão correu seus termos sob o Processo nº ..., por iniciativa da Câmara da AA.

10º - O Município da AA executou uma operação de loteamento, realizando uma intervenção urbanística nos prédios descritos em 4º de modo a legalizar as parcelas que já existiam delimitadas no terreno com construções clandestinas construídas há mais de trinta anos.

11º - A área total dos terrenos e lotes corresponde à área de delimitação da AUGI de 26.896,95, no qual se insere uma área total de lotes de 17.415,62m2.

12º - Para o lote 35, no quadro urbanimétrico do loteamento municipal da .... AA, está prevista a possibilidade de construção correspondente a um fogo, com dois pisos mais sótão, com a área bruta de 181,65 m2, tendo a construção principal 86,50m2 e uma garagem de 37,10m2.

13º- As construções edificadas no terreno descrito em 2º são clandestinas.

14º - GG e a mulher FF, tios da ré mulher, foram quem ocupou, em 1975, a parcela de terreno hoje designada por lote 35, na operação de loteamento de iniciativa camarária com o Processo nº 3495/09.

15º - Foram eles que começaram a construção da casa que hoje ali existe e a foram construindo ao longo dos vários anos.

16º - Foi o GG que executou os trabalhos necessários à colocação do ramal com vista ao fornecimento de electricidade nos termos solicitados pela Electricidade de Portugal em 1980, com a autorização precária dada pela Câmara Municipal de ..., concedida a 19 de Dezembro de 1979.

17º - Foi GG que pagou aos serviços municipalizados de ... em 1981 o ramal para poder ter abastecimento de água.

18º - Foi GG que, no decurso da construção da casa referida em 15º, em 16 de Agosto de 1984 foi objecto de embargo por parte do município autor.

19º - No auto de embargo de obra efectuado pelo autor a 16 de Agosto de 1984, a casa referida em 15º encontrava-se até à 2ª lage, os rebocos executados no 1º piso, as portas e janelas definidas com cantarias só no 1º piso, as divisões executadas, mas em tosco no 2º piso.

20º - Não obstante o embargo, GG e a mulher FF, à semelhança dos seus vizinhos, continuaram a construção da casa que constituía a sua morada de família e inscreveram-na na matriz predial urbana.

21º - A partir do início de 1986, e por acordo verbal entre os RR e EE e FF, tios da ré, os primeiros concluíram a construção da casa destes no primeiro piso, por sua conta e, em troca, fariam do 1º piso a sua casa de morada de família, o que fizeram.

22º - Desde 1986, os RR passaram a coabitar com os tios EE e FF.

23º - Foram os RR que terminaram a construção da casa iniciada pelo EE e FF, sendo o réu marido quem aplicava os materiais, tendo sido os RR quem foi mantendo e conservando o imóvel realizando nele benfeitorias, à vista de todos.

24º - Os tios dos RR, EE e FF, actualmente falecidos, viveram na casa com os RR até falecerem.

25º - Foram os RR quem, desde 1986, conservaram a casa e o seu logradouro, murando-o, desmatando-o, plantando e cuidando das árvores.

26º - Foram os RR que passaram a agir como moradores do terreno e da construção erigida, pagando as comparticipações nas despesas com a Comissão de Administração da AUGI e os projectos de arquitectura e especialidades da moradia para serem entregues na Câmara Municipal da AA.

27º - Na planta síntese do loteamento referido em 14º (fls26 e 27) estão identificadas as áreas retiradas do domínio privado para o domínio público do Município.

28º - Pelo menos desde Dezembro de 1979, que o autor sabia que as parcelas de terreno que vieram a constituir os lotes da operação de Transformação Fundiária – Loteamento estavam a ser utilizadas para construção de casas de habitação próprias.

29º - Os RR pretendem obter licença de utilização da sua casa a qual ajudaram a construir e na qual moram, desde 1986, com conhecimento de todos.

30º - Na caderneta predial urbana, o imóvel objecto da escritura de justificação, está inscrito sob o número de 2473 e em nome de FF e tem a seguinte descrição casa bifamiliar de R/C e 1º andar, tem um logradouro murado com 1 portão, o logradouro tem 2 anexos, 1 com 20m2 e outro com 12 m2, ambos são rebocados e pintados; R/C com três divisões, cozinha, WC, logradouro, 1º andar com três divisões, WC. – doc fls.53 verso.

31º - Por certidão camarária consta a operação de loteamento com o processo nº 34953/09 em nome do Município da AA e na mesma lê-se:

“2. A área de intervenção do loteamento municipal é de 26896,95m2, situa-se na Unidade Operativa 04 do Plano Director Municipal de AA (PDMA) integra-se em solo classificado de espaço urbano, regulado pelo artigo 31º do Regulamento do Plano Director Municipal.

3.O presente loteamento comporta a constituição de 56 lotes dos quais para edificação de moradias de dois pisos e sótão, tendentes à promoção da solução do problema urbanístico existente, aplicando as regras e regulamentos ao edificado de génese ilegal edificado em terreno municipal e seis lotes para solucionar zonas utilizadas há anos como logradouro privativo (jardim/lazer/recreio), por seis moradias erigidas na Rua ..., construídas ao abrigo do alvará de loteamento nº 12/70 “–  doc. fls 13 a 15.

32º - Na certidão de registo predial nº 788/20150216, pela Ap.1654 de 2015/02/16 está descrita a operação de transformação fundiária – loteamento e nela consta para além do mais:

Especificações: autorizada a constituição de 56 lotes, 50 dos quais para edificação de moradias de dois pisos acima da cota de soleira e sótão, tendentes à promoção da solução do problema urbanístico existente, aplicando regras e regulamentos ao edificado de génese ilegal edificado em terreno municipal e seis lotes para solucionar zonas utilizadas há anos como logradouro privativo, por seis moradias erigidas na Rua ...

(…)

 Área dos lotes, área de construção principal, de garagem e de anexo, área bruta de construção, n.º pisos e uso, respectivamente. Lote 35- 260,35m2- 86,50m2, 37,10m2, 0,00m2 – 181,65m2- 2+sótão -1 fogo.

(…) Cedências: são retiradas do domínio privado para o domínio público municipal as seguintes áreas: Arruamentos/Estacionamentos- 4575, 17m2; passeios/área pedonal – 2764,52m2; zonas verdes- 2141,64m2 – doc fl.s 8 e seguintes.

33º - Por documento intitulado Administração Conjunta da AUGI, Av. ..., com o assunto: informação aos senhores dos nºs 97 até ao 107- A consta: Depois do que foi aprovado em Assembleia Geral de moradores em 12 de Maio de 2007 e ainda depois de todos terem comparecido em reunião na sede da comissão, todos os senhores concordaram e aprovaram a construção dos muros na retaguarda das suas casas com a finalidade de se poder alinhar os lotes como tinha sido exigido em Abril de 2007 pela Câmara Municipal Departamento de Urbanismo. Concordaram por isso pagar a vossa parte na construção do muro, o que acaba por ser concretizado hoje mesmo dia 29 de Março de 2008, venho por esta razão apresentar-vos como foi gasto o dinheiro pago pelos senhores (…) – assinado pelo presidente da Associação da AUGI - doc fl.s 55.


4. Tendo em conta o disposto no nº 4, do art. 635º, do Código de Processo Civil, o objecto dos recursos delimita-se pelas conclusões dos mesmos. Assim, no presente recurso, estão em causa as seguintes questões:

- Falta de prova do corpus e do animus da posse dos RR. (e dos tios dos RR.) para efeitos de usucapião;

- Subsidiariamente, falta dos pressupostos da acessão na posse;

- Em qualquer caso, determinação do prazo de usucapião aplicável e seu cômputo.


5. Na presente acção de impugnação de escritura de justificação notarial na qual os RR. se arrogaram a aquisição do direito de propriedade por usucapião, recai sobre estes o ónus da prova dos factos constitutivos do direito, de acordo com a orientação fixada pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 1/2008 (publicado no Diário da República, I Série, de 31/03/2008): “Na acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos artigos 116.º, n.º 1, do Código do Registo Predial e 89.º e 101.º do Código do Notariado, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7.º do Código do Registo Predial.”


6. Antes de proceder à apreciação das questões objecto do presente recurso, deve ter-se presente que as instâncias decidiram em termos divergentes, sendo conveniente ponderar atentamente os fundamentos de cada uma das decisões.

A sentença da 1ª instância julgou a impugnação procedente, com a seguinte fundamentação:

- Seguindo a doutrina de Marcello Caetano, as coisas pertencentes ao domínio público (como o prédio descrito no facto 4º-a) dos autos, que actualmente integra o lote 35 – cfr. factos 2º e 4º) podem ser dele desafectadas, passando a integrar o domínio privado do Estado ou de outros entes públicos, por desafectação expressa ou tácita;

- No caso dos autos, ocorreu, em 21/09/2005, a desafectação expressa do referido prédio, mas é de admitir que já antes tivesse ocorrido a sua desafectação tácita;

- Tal sucedeu pelo facto de, em 1975, os tios dos RR. terem ocupado o referido prédio e nele terem iniciado construção clandestina destinada a  habitação, da qual o A. Município tomou conhecimento pelo menos desde 19/12/1979;

- Assim, passando o prédio em causa a integrar o domínio jurídico privado, tornou-se susceptível de ser adquirido por usucapião;

- Dos factos provados poderia resultar que, quer os tios dos RR., quer os RR., teriam adquirido originariamente a posse do terreno em causa pela prática reiterada ou aquisição paulatina (cfr. art. 1263º, alínea a), do Código Civil);

- Contudo, como, desde o início, tanto os RR. como os tios dos RR. sabiam estar a construir em terreno que não lhes pertencia, não pode dar-se como provada a posse de uns e de outros como proprietários;

- Além disso, alegando os RR. terem adquirido a propriedade dos seus tios, por compra e venda verbal – e mesmo que se admita que a nulidade do título de transmissão não obsta “ao desenvolvimento de uma situação de posse” –  sempre os RR. seriam meros detentores por terem adquirido a non domino e tal ser do seu conhecimento;

- Assim, ainda que tenha sido feita prova do elemento possessório corpus, faltou a prova do animus, “consistindo este na intenção de se exercer sobre a coisa, como seu titular, o direito correspondente àquele domínio de facto, não podendo ser confundido com a mera convicção de ser titular do direito”;

- A prova de actos materiais praticados pelos RR., relativos a obras e a pagamento de encargos, não releva para efeitos de alterar tal conclusão.


O acórdão da Relação inverteu a decisão, julgando a impugnação improcedente, com os seguintes fundamentos:

- Tendo os tios dos RR. ocupado a parcela de terreno, actualmente integrada no lote 35, a prova da posse pressupõe a prova da inversão do título da posse (dos tios dos RR.);

- Inversão que ocorreu em 16/08/1984, com a oposição directa dos tios dos RR. ao embargo da construção clandestina decretado pelo A. Município;

- Iniciou-se naquela data a contagem do prazo para usucapião, que se conta até à data de interposição da presente acção, perfazendo 31 anos e 5 meses.


Assinala-se ainda que a Relação:

- Sem precisar expressamente qual o prazo legal de duração da posse para efeitos de usucapião, se afigura ter considerado o prazo mais longo de entre os que indicou, isto é, vinte anos;

- Declara a adesão genérica a decisão judicial na qual se entende que a ilicitude ou ilegalidade de um acto não obsta à aquisição por usucapião.


     Impugna o A. Recorrente esta decisão, invocando, em síntese:

- Não estar provado o animus possessório dos RR., sendo estes meros detentores por não ter ocorrido inversão do título da posse;

- Subsidiariamente, não poderem os RR. beneficiar do regime de acessão da posse por se verificar a invalidade do título de aquisição do imóvel;

- Pelo que: sendo aplicável o prazo de posse para usucapião de 30 anos (por conjugação do regime do Código Civil com o art. 1º, da Lei nº 54, de 16 de Julho de 1913); devendo o cômputo do prazo de usucapião fazer-se não à data da propositura da acção, mas à data da escritura de justificação notarial; tal prazo não se completou.


Vejamos.

Afigura-se que a eventual confirmação da decisão do acórdão recorrido implica a resolução de diversos problemas, a saber: se foi feita prova dos elementos da posse (dos RR. e dos tios dos RR.) para efeitos de usucapião; qual o prazo de usucapião aplicável; qual o momento relevante para efeitos de cômputo do início do prazo; qual o momento relevante para efeitos de cômputo do termo do prazo; se o regime da acessão da posse dispensa ou não a existência de título translativo formalmente válido.


7. Aos problemas enunciados, que integram as questões objecto do presente recurso, acresce a questão prévia da desafectação tácita da parcela de terreno que integrava o domínio público, suscitada como meio de defesa dos RR. (cfr. art. 91º, do CPC) e apreciada em sentido afirmativo pela sentença, questão que é de conhecimento oficioso, por estar em causa o respeito por regime imperativo de dominialidade pública, constitucionalmente consagrado (cfr. art. 84º da Constituição da República Portuguesa).

Notificadas as partes sobre a necessidade de se proceder à reapreciação de tal questão, vieram os Recorridos responder, reafirmando essencialmente ter ocorrido desafectação tácita da parcela de terreno dos autos (que actualmente integra o lote 35), passando do domínio público indisponível para o domínio privado disponível do Município há mais de 40 anos, “complementada não apenas por uma simples inércia da edilidade, mas antes pelo reconhecimento expresso do Município de que o bem deixara de servir ao fim de utilidade pública pois que há mais de 40 anos estava a ser utilizado pelos particulares”. Por sua vez, veio o Recorrente responder, no essencial, não se ter verificado desafectação tácita da parcela de terreno em disputa em momento anterior ao ano 2005 (quando se deu a desafectação expressa), designadamente aquando da construção ilegal nela edificada pelos tios dos RR., uma vez que, ao longo dos anos, o Município se determinou pela realização de um fim de utilidade pública urbanística, qual seja a satisfação do direito à habitação.


Aqui chegados, há que efectuar uma breve incursão pelo tema da desafectação de bens do domínio público, tendo presente que, estando em causa a extinção de regime jurídico constitucionalmente garantido, será de convocar, em princípio, doutrina posterior à Constituição da República Portuguesa de 1976, e, se conveniente mas apenas em segundo plano, doutrina anterior àquela.

    A extinção do estatuto da dominialidade pode ocorrer através das seguintes formas: desclassificação legal, desclassificação administrativa, desafectação e degradação (cfr. Ana Raquel Gonçalves Moniz, “Direito do Domínio Público”, in Tratado de Direito Administrativo Especial, Vol. V, Almedina, Coimbra, 2011, págs. 154 e segs.). Relativamente à forma que aqui estamos a considerar – a desafectação –, afirma a mesma autora:

“Através do acto administrativo de desafectação, a entidade administrativa, por imperativos de interesse público, desvincula o bem do destino a que o mesmo se encontrava adstrito por força da afectação. Neste caso, a coisa deixa, por decisão da Administração, de desempenhar a função que justificou a sua qualificação legal como pública, o que tem como consequência deixar de se aplicar a disciplina jurídica própria das coisas públicas. A desafectação haverá sempre de se assumir como uma forma de «desdominialização», i.e., como actuação cujo efeito jurídico prevalente redunda na retirada da coisa da função pública que desempenhava (Auβerdienstellung, na terminologia de alguma doutrina alemã), na extinção da dominialidade da coisa (e, consequentemente, no fim da aplicação do regime específico das coisas públicas), logicamente acompanhada da integração do bem no domínio privado do respectivo titular.” (cit., págs. 156-157).

A figura da desafectação tácita (ou desafectação implícita, na terminologia da autora que vimos citando), enunciada por Marcello Caetano (Manual de Direito Administrativo, Vol. II, Almedina, Coimbra, 1980, págs. 957 e segs.), continua a ser aceite na doutrina mais recente, apesar de o Decreto-Lei nº 280/1979, de 7 de Agosto (que, pela primeira vez, aprovou o Regime Jurídico do Património Imobiliário Público) a ela não se referir.

    Também a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem admitido, de forma constante e reiterada, a desafectação tácita de “caminhos públicos” e subsequente prescritibilidade das parcelas de terreno em causa (cfr., entre outros, os acórdãos de 13/03/2008 (proc. n.º 542/08), de 28/05/2009 (proc. n.º 2450/08), de 13/07/2010 (proc. n.º 135/2002.P2.S1), de 19/05/2011 (proc. n.º 3378/08.6TJVNF), de 02/03/2011 (proc. n.º 272/04.1TBCNF.P1.S1), todos consultáveis em www.dgsi.pt, e de 11/01/2017 (proc. n.º 42/13.6TBMDB.G1.S1), consultável em sumários da jurisprudência cível, in www.stj.pt. Na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, cfr. os acórdãos de 08/09/2011 (proc. nº 0267/11) e de 26/06/2014 (proc. nº 01174/12), consultáveis em www.dgsi.pt.

A respeito da caracterização da desafectação tácita e dos respectivos pressupostos, assume especial relevância o teor da fundamentação do último aresto indicado:

“LX. Por outro lado, também não se descortina que do circunstancialismo factual apurado nos autos tenha ocorrido desafetação tácita da aludida parcela de terreno, já que a mesma, enquanto forma de cessação da dominialidade, só ocorre quando a coisa pública deixe de servir ao fim de utilidade pública e passe a ser utilizada/usufruída pelos particulares por abandono intencional do recorrido.

LXI. De notar que, na sequência do que supra se avançou, a desafetação tácita não poderá derivar ou resultar de ato ou de atuação praticada por um particular, nomeadamente, da A./recorrente, porquanto se assim fosse as coisas públicas perderiam os seus caracteres da inalienabilidade e da imprescritibilidade e seriam suscetíveis de posse, o que, como vimos, não é admissível.

LXII.   Será apenas na atitude da Administração, sua ação ou omissão, que importa encontrar o traço que vinque claramente o abandono intencional da coisa, sendo que tal abandono há-de resultar inequivocamente de atos praticados pela mesma.

LXIII. Para tal não bastará a simples constatação duma ausência, ainda que longa, da construção por parte da edilidade dum jardim ou doutro tipo de arranjo urbanístico destinando o espaço a «zona verde», já que se exige mais do que uma simples e mera inércia por parte da edilidade e se desconhecem inteiramente motivações ou razões que estiveram na sua origem.” (negritos nossos)


  A aceitação da possibilidade de extinção do estatuto de dominialidade através da desafectação tácita – com a consequente transição do bem do domínio público para o domínio privado da entidade pública, deixando de estar sujeito aos princípios da inalienabilidade, da imprescritibilidade e da impenhorabilidade, próprios dos bens do domínio público – exige deste modo que tenha ocorrido o abandono da função pública do bem, aferido por comportamentos inequívocos da administração.

    Para que se verifique a desafectação tácita não basta, porém, a prova de tal conduta inequívoca da administração; é ainda necessário o decurso de um período de tempo significativo.

O que deva entender-se por período de tempo significativamente longo tem sido ponderado pela doutrina em conexão com a admissibilidade da prescrição aquisitiva de um bem que outrora pertencera ao domínio público.

Nas palavras de Ana Raquel Moniz:

 “Apesar de, em princípio, a desafectação dever constituir um acto expresso, poder-se-á sempre admitir uma desafectação implícita nos casos em que, estando a coisa a exercer uma função pública a que se encontrava adstrita, a Administração adopte comportamentos inequívocos (positivos) no sentido de que pretende dar outro destino ao bem, desde logo, como salienta Alessi, comportamentos absolutamente incompatíveis com a intenção de conservar o bem na sua destinação. Pense-se, v.g., na hipótese de o bem [que] não ter sido objecto de aproveitamento compatível com a função de utilidade pública determinante da dominialidade pública durante um largo período de tempo, sem que para isso houvesse emergido um qualquer obstáculo de facto ou de direito. Avançando uma solução que releva do imperativo de rentabilização do domínio público e do carácter especial do respectivo regime jurídico, basta que, por motivos imputáveis ao titular do bem dominial, o bem deixe de desempenhar, por um largo período de tempo (cuja duração se encontra claramente inspirada nos prazos máximos da usucapião), a função pública que justificou a sua submissão ao estatuto da dominialidade, para perder a qualidade de bem dominial.” (cit., págs. 157-158) [negritos nossos]


      Da mesma autora, em obra distinta:

       “… erigir a imprescritibilidade como princípio do regime jurídico das coisas públicas não significará adoptar uma posição absoluta, alheia à consideração de outros valores. Pretendemos, pois, equacionar um apelo neste momento à figura do imemorial (vetustas), como forma de legitimação de uma situação de facto, in casu da ocupação (não titulada) do particular: perante um litígio concreto, presumir-se-ia que um particular deteria a propriedade da coisa, se se provasse que, desde tempos imemoriais, os particulares (designadamente os antepassados do primeiro) se comportavam relativamente ao bem, sem qualquer contestação, como titulares de direitos reais (privados), maxime como proprietários sobre ele. O imemorial importaria, pois, efeitos em duas vertentes de verificação simultânea, consubstanciando, nessa medida, um duplo efeito: presunção da cessação do carácter dominial da coisa e presunção da aquisição da mesma pelo particular. Ponderar esta ideia não se nos afigura contrariar o que considerámos anteriormente, mas não deixa de atender à necessidade de tutelar a certeza jurídica perante certas situações de facto. Por outro lado, a esta solução não se poderia assacar que colidiria com o princípio da extracomercialidade privada de bens dominiais, uma vez que, além do carácter de excepcionalidade e de simples presunção que reveste, atento o lapso temporal durante o qual se prolongou, se pode legitimamente concluir que o bem não interessará ao desempenho de qualquer função pública (…). Por outro lado (…), a Administração teve amplas possibilidades de reacção contra a situação abusiva do particular.” (O Domínio Público – O critério e o Regime Jurídico da Dominialidade, Almedina, Coimbra, 2005, págs. 434 e seg.). [negritos nossos]


     Deste modo, o decurso de um período de tempo significativamente longo funcionaria, numa primeira fase, como “presunção da cessação do carácter dominial da coisa” (consolidação da desafectação tácita) e, numa fase imediatamente subsequente, como “presunção da aquisição da mesma pelo particular” (usucapião). Em qualquer caso, concretizando-se através da figura do imemorial ou do decurso do dobro do prazo máximo de usucapião (ver, neste sentido, Vaz Serra, Prescrição extintiva e caducidade, Separata do BMJ, Lisboa, 1961, págs. 85 e segs.). 

Concluindo este escurso, temos que, para efeitos de resolução da questão dos autos, a desafectação tácita do bem do domínio público, e subsequente aquisição pelos particulares: (i) Não pode resultar de acto de particulares, antes tem de derivar de conduta inequívoca de abandono da coisa pela administração; (ii) Entre o momento da ocorrência de tal conduta inequívoca de abandono da coisa e o momento relevante para efeitos da prescrição aquisitiva, deve decorrer um período de tempo correspondente a, pelo menos, o dobro do prazo máximo de usucapião.


8. Posto isto, retomemos o caso dos autos.

Relevam os seguintes factos provados:

1º - Por escritura de justificação notarial, datada de 20-11-2015, lavrada no Cartório Notarial a cargo do Notário DD, os RR BB e CC declararam que “em Junho de mil novecentos e setenta e cinco, EE e mulher FF entraram na posse da parcela de terreno acima identificada, livre de quaisquer ónus ou encargos e já devidamente delimitada e fisicamente separado do prédio rústico na ocasião correspondente à descrição predial seiscentos e dez, da freguesia das ...”.

(…)

2º - O lote 35, com a área total de 260,35m2, integra o loteamento municipal com o número de Processo 34.953/09 – cf. doc de fls 8vº a 10 e certidão da operação de loteamento de fls 13 a 16 – (PI11º)

3º - A área total de intervenção do loteamento municipal é de 26.896,95m2 - cf. doc. de fls 13 a 16 – (PI12º).

4º - Este prédio rústico, objecto da operação de loteamento, resultou da anexação de dois prédios:

a) 23.106,95m2 do prédio rústico, sito na ..., ..., descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial da AA sob o nº 00610/210905, da freguesia das ..., registado a favor do A. pela Ap. 3 de 21/09/2005, com a área total de 46.440,00m2, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 20, secção A, da freguesia das ..., confrontando a Norte com o A. (artigo 12º-A), II (artigo 15º-A), com JJ (artigo 16º-A) e com JJ (artigo 17º-A), a sul com JJ (artigo 1º-A), com II (artigos 3º-A e 39º-A) e com LL (artigo 4º-A), a nascente com o A. (artigo 9º-A da Damaia) e a Poente com a Fazenda Nacional (artigo 2º-F da Venteira);

b) Prédio urbano denominado “C 1”, sito na ..., ..., descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial da AA sob o nº 01217/150604, da freguesia da Damaia (extinta), actual freguesia de ..., registado a favor do A. através da Ap. 11 de 15/06/2004, com a área de 3.790,00m2, confrontando a Norte e Poente com a ... e a Sul e Nascente com a Rua 1.3 – (PI13º).

5º- O lote, objecto de escritura de justificação descrita em 1º está implantado em parte no prédio identificado na alínea a) do antecedente nº 4 e em parte no prédio identificado na alª b) do mesmo nº 4 – (PI15º).

6º- O prédio identificado em 4º foi retirado da antiga ..., a qual foi desafectada do domínio público e registada no domínio privado municipal em 21/09/2005 – (PI artº 16º).

13º- As construções edificadas no terreno descrito em 2º são clandestinas.

14º - GG e a mulher FF, tios da ré mulher, foram quem ocupou, em 1975, a parcela de terreno hoje designada por lote 35, na operação de loteamento de iniciativa camarária com o Processo nº 3495/09.

15º - Foram eles que começaram a construção da casa que hoje ali existe e a foram construindo ao longo dos vários anos.

16º - Foi o GG que executou os trabalhos necessários à colocação do ramal com vista ao fornecimento de electricidade nos termos solicitados pela Electricidade de Portugal em 1980, com a autorização precária dada pela Câmara Municipal de ..., concedida a 19 de Dezembro de 1979.

17º - Foi GG que pagou aos serviços municipalizados de Oeiras em 1981 o ramal para poder ter abastecimento de água.

18º - Foi GG que, no decurso da construção da casa referida em 15º, em 16 de Agosto de 1984 foi objecto de embargo por parte do município autor.

19º - No auto de embargo de obra efectuado pelo autor a 16 de Agosto de 1984, a casa referida em 15º encontrava-se até à 2ª lage, os rebocos executados no 1º piso, as portas e janelas definidas com cantarias só no 1º piso, as divisões executadas, mas em tosco no 2º piso.

20º - Não obstante o embargo, GG e a mulher FF, à semelhança dos seus vizinhos, continuaram a construção da casa que constituía a sua morada de família e inscreveram-na na matriz predial urbana.

28º - Pelo menos desde Dezembro de 1979, que o autor sabia que as parcelas de terreno que vieram a constituir os lotes da operação de Transformação Fundiária – Loteamento estavam a ser utilizadas para construção de casas de habitação próprias.


     Dos factos provados, e diversamente do que entendeu a 1ª instância, não resulta que, aquando da ocupação da parcela de terreno e de início da construção clandestina pelos tios dos RR. (no ano de 1975), tenha ocorrido qualquer conduta inequívoca do A. Município no sentido do abandono da coisa. Aliás, o facto de, em 16/08/1984, ter o A. embargado a construção da obra clandestina pelos tios dos RR. revela precisamente o oposto.

     Para além da prova de que os tios dos RR. continuaram a construção, não acatando o embargo da mesma, nada mais foi provado quanto à conduta do A. até ao acto de desafectação expressa do bem, em 21/09/2005.

Cabendo aos RR. o ónus da prova dos factos constitutivos da aquisição do direito de propriedade, competia-lhes fazer prova de conduta do A. que, após o não acatamento do embargo, pudesse revelar inequivocamente o abandono da coisa, o que não foi feito.

De qualquer forma, ainda que tal prova tivesse sido feita, ainda assim, faltaria determinar se a situação se manteve inalterada ao longo de um período de tempo equivalente a, pelo menos, o dobro do prazo máximo de usucapião: 40 anos, se se considerar aplicável o prazo de usucapião do possuidor de má fé do Código Civil; 60 anos, se se considerar aplicável, como alega o Recorrente, o regime do art. 1º, da Lei nº 54, de 16 de Julho de 1913, em conjugação com o regime do prazo máximo do Código Civil.

         Numa acção como a presente, em que cabe aos RR. fazer prova dos factos constitutivos do direito que se arrogaram na escritura pública impugnada, tais factos têm de ser aferidos em função da data da mesma escritura, pelo que essa data (20/11/2015), constitui o termo ad quem para efeitos do cômputo do prazo de usucapião.

Ora, entre o pós-embargo de 1984 (termo a quo) e a data da escritura pública de justificação notarial (termo ad quem) decorreram aproximadamente 31 anos, o que é insuficiente para se declarar a cessação do carácter dominial da coisa (ou seja, a consolidação da desafectação tácita) e, subsequentemente, a aquisição da propriedade por usucapião.

     Conclui-se, assim, não ter ocorrido a desafectação tácita da parcela de terreno dos autos e subsequente aquisição da propriedade do bem por usucapião.


9. De qualquer forma, e independentemente da conclusão do ponto anterior, sempre a impugnação da justificação notarial teria de proceder por falta de prova da posse dos RR., mesmo que se desse como provada a posse dos tios dos RR.

      Vejamos porquê.

       Relevam os seguintes factos provados:

1º - Por escritura de justificação notarial, datada de 20-11-2015, lavrada no Cartório Notarial a cargo do Notário DD, os RR BB e CC declararam que “em Junho de mil novecentos e setenta e cinco, EE e mulher FF entraram na posse da parcela de terreno acima identificada, livre de quaisquer ónus ou encargos e já devidamente delimitada e fisicamente separado do prédio rústico na ocasião correspondente à descrição predial seiscentos e dez, da freguesia das ...”.

(…) “[q]ue, posteriormente, em Dezembro de mil novecentos e oitenta e seis, os mencionados EE e mulher FF, procederam à venda verbal do mesmo imóvel aos aqui justificantes, HH e mulher CC, sem que estes no entanto ficassem a dispor de título formal que lhes permitisse o respectivo registo na Conservatória do Registo Predial, mas, desde logo entraram na posse e fruição do referido imóvel, agindo sempre por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, nomeadamente, desmatando-o, plantando árvores, tendo realizado benfeitorias e nela tendo edificando [sic] uma construção, pagando impostos sobre a mesma, quer usufruindo como tal o imóvel, quer suportando os respectivos encargos.

“[q]ue, primeiramente EE e mulher FF, e posteriormente os aqui justificantes, HH e mulher CC, estão na posse do identificado imóvel há mais de vinte anos, sem a menor oposição de quem quer que seja, desde o seu início, posse que sempre exerceram sem interrupção e ostensivamente, com conhecimento de toda a gente, com ânimo de quem exerce direito próprio, sendo por isso uma posse pública, pacifica, contínua, pelo que adquiriu o referido imóvel por usucapião, não tendo assim, documentos que lhes permitam fazer prova da aquisição pelos meios extrajudiciais normais – tudo cf. doc. 1 que se junta e se dá por integralmente reproduzido (assim como os demais documentos juntos nesta petição inicial e sempre que referidos) – cf. doc. de fls. 11 e 12 – (Petição Inicial artºs 6º, 7º, 8º e 9º).

21º - A partir do início de 1986, e por acordo verbal entre os RR e EE e FF, tios da ré, os primeiros concluíram a construção da casa destes no primeiro piso, por sua conta e, em troca, fariam do 1º piso a sua casa de morada de família, o que fizeram.

22º - Desde 1986, os RR passaram a coabitar com os tios EE e FF.

23º - Foram os RR que terminaram a construção da casa iniciada pelo EE e FF, sendo o réu marido quem aplicava os materiais, tendo sido os RR quem foi mantendo e conservando o imóvel realizando nele benfeitorias, à vista de todos.

24º - Os tios dos RR, EE e FF, actualmente falecidos, viveram na casa com os RR até falecerem.

25º - Foram os RR quem, desde 1986, conservaram a casa e o seu logradouro, murando-o, desmatando-o, plantando e cuidando das árvores.

26º - Foram os RR que passaram a agir como moradores do terreno e da construção erigida, pagando as comparticipações nas despesas com a Comissão de Administração da AUGI e os projectos de arquitectura e especialidades da moradia para serem entregues na Câmara Municipal da AA.


      Sendo a posse o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (art. 1251º do Código Civil), a prova da existência de um simples acordo verbal entre os RR. e os seus tios (e não de uma venda verbal, como pretendido na escritura justificativa) pelo qual os primeiros passaram a habitar no 1º piso da casa em troca de contribuírem para os custos da construção, não é, por si só, apta a provar a aquisição derivada da posse correspondente ao direito de propriedade (ou a outro direito real) pelos RR..

      Não tendo os RR. alegado a qualidade de sucessores dos seus tios, nem tendo logrado provar que o acordo verbal (com base no qual, em 1986, passaram a coabitar com os mesmos tios) fosse apto a produzir mais do que efeitos obrigacionais, os RR. apenas podem ser considerados como “detentores ou possuidores precários”, na medida em que “possuem em nome de outrem” (art. 1253º, alínea c), do CC). Na lição de Pires de Lima/Antunes Varela (Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed., Coimbra Editora, 1984, págs. 10 e seg.), a posse em nome alheio consiste numa “situação que tem por base um título do qual não resulta o direito real aparente, mas apenas o direito (ou a obrigação) de reter a coisa ou de a utilizar. São os casos do locatário, do comodatário, do parceiro pensador, do credor pignoratício, do titular do direito de retenção, do curador, etc.”.

Tendo os RR. justificantes declarado não serem os iniciadores da posse, não se aplica ao caso a presunção do art. 1252º, nº 2, do CC, presumindo-se antes que, se se desse como provada a posse dos tios dos RR., esta continuaria em nome dos mesmos tios (cfr. art. 1257º, nº 2, do CC), sendo – como se disse – os RR. meros detentores ou possuidores em nome alheio.

No caso dos autos, os actos materiais constantes dos factos provados 23º e 25º – conclusão da construção, aplicação de materiais, conservação do imóvel, realização de benfeitorias, conservação do logradouro (murando-o, desmatando-o, plantando e cuidando das árvores) – são inteiramente compatíveis com a qualidade de simples detentores ou possuidores em nome alheio, sendo insuficientes para provar a aquisição pelos RR. da posse por outra via, designadamente por uma das vias de aquisição originária do art. 1263º do CC.

Já a prática de actos jurídicos (“pagamento das comparticipações nas despesas com a Comissão de Administração da AUGI e dos projectos de arquitectura e especialidades” - facto 26º) sempre seria, por si mesma, insuficiente para provar a posse correspondente ao direito de propriedade, pois “Só através de actos materiais, isto é, de actos que incidem directa e materialmente sobre a coisa se pode adquirir a posse, e nunca através de actos de disposição ou de administração.” (Pires de Lima/Antunes Varela, cit., pág. 27).

    Concluindo-se pela falta de prova pelos RR. da qualidade de possuidores, fica por demonstrar a aquisição por usucapião da parcela de terreno disputada.

10. Fica, assim prejudicado o conhecimento das demais questões objecto do recurso, designadamente determinar se os tios dos RR. eram possuidores e se os RR. podem beneficiar do regime da acessão da posse, não obstante a invalidade formal do acto translativo.

11. Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se o acórdão recorrido e decidindo:

a) Considerar impugnado, para todos os efeitos legais, o facto justificado na escritura lavrada no Cartório Notarial do Barreiro, a cargo do Notário DD, em 20 de Novembro de 2015, exarada a folhas 34 a folhas 35 verso, do livro número 336 A, das notas deste cartório, referente à aquisição pelos RR., por usucapião, de um lote de terreno para construção, com a área de 260,35 m2, denominado por lote trinta e cinco, sito na ..., ..., freguesia de ..., antes freguesia da ..., concelho da AA;

b) Declarar nula e ineficaz esta mesma escritura de justificação notarial, por forma a que os RR. não possam, através dela, registar quaisquer direitos sobre o prédio nela identificado e objecto da presente impugnação; e

c) Ordenar o cancelamento de quaisquer registos operados com base neste documento.


Custas da acção e dos recursos pelos RR.


Lisboa, 7 de Junho de 2018


Maria da Graça Trigo (Relatora)

Rosa Tching

Rosa Ribeiro Coelho