Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
430/11.2TBEVR-Q.E1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: JOÃO CAMILO
Descritores: VENDA JUDICIAL
ARRENDAMENTO
CADUCIDADE
Data do Acordão: 07/09/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES - CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / REALIZAÇÃO COACTIVA DA PRESTAÇÃO ( REALIZAÇÃO COATIVA DA PRESTAÇÃO ) / VENDA EM PROCESSO DE EXECUÇÃO / CONTRATOS EM ESPECIAL / LOCAÇÃO.
Doutrina:
- Ana Carolina S. Sequeira, “A Extinção e Direitos por Venda Executiva”, Garantias das Obrigações, pp. 23 e 43.
- F. M. Pereira Coelho, Coimbra 1988, p. 17 e ss..
- M. Henrique Mesquita, in RLJ, 127.º, p.223.
- M. Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, p. 183.
- Oliveira Ascenção, in Revista da Ordem dos Advogados, n.º 45, p. 363 e ss..
- P. Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, p. 321.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 695.º, 795.º, 824.º, N.º2, 1037.º, N.º2, 1051.º, 1057.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 2.º, 36.º, 65.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 16-09-2014, PROC. N.º 351/09TVLSB.L1.S1; DE 27-05-2010, PROC. N.º 5425/03.7TBSXL.S1; DE 5-02-2009, PROC. N.º SJ200902050040872; DE 28-06-2007, PROC. Nº 1838/07, E DE 31-10-2006, PROC. N.º 3241/06.
Sumário :
Com a venda judicial de um imóvel hipotecado que tenha sido dado de arrendamento a terceiro após o registo da referida hipoteca, caduca o direito do respectivo locatário, nos termos do n.º 2 do art. 824.º do CC
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

AA S.A. intentou contra a MASSA INSOLVENTE DE BB S.A., em 4-12-20013, no Tribunal Judicial de Évora, a presente ação declarativa de condenação peticionando que seja declarada ineficaz a resolução extrajudicial do contrato de arrendamento celebrado entre a autora e a ré, por legalmente inadmissível e reconhecida a existência e validade do referido contrato, bem como a sua qualidade de arrendatária.

Citada contestou a ré invocando, além do mais, a caducidade do direito de arrendamento da autora, concluindo pela procedência da excepção e consequente absolvição do pedido.

Em sede de despacho saneador, entendendo que os autos forneciam já todos os elementos necessários ao conhecimento do mérito da causa, o Exmº Juiz de 1ª instância proferiu sentença, julgando procedente a exceção perentória de caducidade invocada pela ré e, consequentemente, absolveu-a da totalidade do pedido.

Inconformada, apelou a autora tendo a Relação decidido pela confirmação do decidido.

Mais uma vez inconformada, veio a autora interpor a presente revista excecional que a formação prevista no nº 3 do art. 672º  do Novo Cód. de Proc. Civil – a que se referirão todas as disposições a citar sem indicação de origem - admitiu.

Nas alegações da recorrente, esta apenas formula a conclusão no sentido de ser proferida decisão em que se reconheça que o arrendamento se mantém, para além da venda judicial do prédio onerado pelo arrendamento, mesmo que esse arrendamento tenha tido início depois de qualquer direito real que impenda sobre o imóvel que tenha despoletado a venda judicial do mesmo.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Corridos os vistos legais, urge apreciar e decidir.

Como é sabido – arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 -, o âmbito dos recursos é delimitado pelo teor das conclusões dos recorrentes.

Já vimos a única questão levantada aqui pela recorrente.

Mas antes de mais, há que especificar a matéria de facto que as instâncias deram por provada e que é a seguinte:

1 – A A. e a Ré celebraram um denominado “contrato de arrendamento urbano”, por escrito particular datado de 22/01/2009 e assinado, pelo prazo de 30 anos, com início em 22 de Janeiro de 2009.

2 – Nos termos da cláusula primeira do dito contrato, a Ré deu de arrendamento à A. a fracção autónoma designada pela letra …, correspondente ao 2º andar esquerdo, de tipologia T5, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., nº …, freguesia de ..., concelho de Évora, descrito na C.R.P. de Évora sob o número …, inscrito na matriz predial urbana sob o artº … e com licença de habitação nº …, emitida em …/.../2006 pela Câmara Municipal de Évora.

3 – O contrato em causa foi celebrado por escrito e não foi objecto de registo.

4 – Por carta registada com aviso de recepção, datada de 14/11/2013, recebida pela A. em 15/11/2013, o Administrador de Insolvência, indicando o processo de insolvência, veio proceder à resolução do denominado “contrato de arrendamento” celebrado, nos seguintes termos: “Na qualidade de Administrador de Insolvência no processo acima identificado, venho, nos termos da al. b) do nº 1 do artº 121º do CIRE e nos termos do nº 1 do artº 120º do mesmo Código, na redacção anterior à entrada em vigor da Lei 16/2012 de 20 de Abril, e aplicável nos presentes autos atenta a data da declaração da insolvência, resolver em benefício da massa insolvente o contrato de arrendamento celebrado em 22/01/2009 com a vossa sociedade e referente à fracção autónoma designada pela letra “…” (2º Esq.) do prédio sito na Rua ..., nº …, freguesia de ..., concelho de Évora, descrito na C.R.P. de Évora sob o número …, inscrito na matriz predial urbana sob o artº ….

5 – A sociedade BB, S.A. foi declarada insolvente por sentença proferida em 19 de Abril de 2011.

6 – No processo de insolvência procedeu o Administrador de Insolvência à apreensão, em 04/03/2013, da fracção autónoma designada pela letra … – correspondente ao 2º andar esquerdo e 3º andar, em duplex, destinada a habitação – do referido prédio sito na Rua ..., nº … (antigo lote …), … (…), freguesia de ..., concelho de Évora, descrito na C.R.P. de Évora sob a ficha nº … e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artº ….

7 – E procedeu o Administrador da Insolvência à venda da dita fracção, mediante propostas em carta fechada, tendo a mesma sido adjudicada ao Banco CC, S.A..

8 – O Banco CC, S.A. era titular de hipoteca sobre a dita fracção registada pela Ap. 18, de 30/01/2004.

Vejamos agora a questão acima apontada como objecto deste recurso. 

Trata-se aqui de saber se com a venda judicial de um imóvel hipotecado que tenha sido dado de arrendamento a terceiro após o registo da referida hipoteca, o direito do locatário caduca, nos termos do nº 2 do art. 824º do Cód. Civil.

A questão não é de fácil solução estando a jurisprudência dividida, mas toda a doutrina que tem tratado a matéria defende a opinião seguida aqui nas decisões das instâncias.     

Vejamos.

O citado artigo 824º, nº 2 preceitua que os bens transmitidos em execução são transmitidos livres dos direitos de garantia que os oneram, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com exceção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo.

Segundo entenderam as instâncias, ao direito do arrendatário deve ser aplicado por analogia o disposto no art. 824º, nº 4 mencionado.

A aplicação deste preceito ao direito do locatário posterior à constituição da hipoteca é defendida pelo Prof. Oliveira Ascenção, in Revista da Ordem dos Advogados , nº 45, pág. 363 e segs.

É igualmente este o entendimento do Prof. M. Henrique Mesquita, in RLJ, 127º, 223.

Também, o Prof. P. Romano Martinez, in “ Da Cessação do Contrato “, pág. 321 segue idêntica opinião.

De igual opinião é Ana Carolina S. Sequeira in “ A Extinção e Direitos por Venda Executiva”, in ” Garantias das Obrigações”, págs. 23 e 43.

É, assim, este o entendimento geral da doutrina.

Também este Supremo Tribunal vem decidindo no mesmo sentido, de forma unânime, pelo menos, nos últimos anos, citando-se, como exemplo, os acórdãos todos no mesmo sentido que foram prolatados nos últimos anos: acórdãos de 16-09-2014, no proc. nº 351/09TVLSB.L1.S1; de 27-05-2010 no proc. nº 5425/03.7TBSXL.S1; de 5-02-2009 no proc. nº SJ200902050040872; de 28-06-2007, no proc. nº 1838/07 e de 31-10-2006, no proc. nº 3241/06.

Pensamos que dada a excelência destas opiniões não nos ficam dúvidas sobre o sentido em que a questão deve ser resolvida.

Esta questão está relacionada com a natureza do direito do arrendatário como direito de natureza real ou creditória.

Tem sido muito discutida esta questão.

Assim podemos ver os termos dessa polémica in “ Arrendamento”, de F. M. Pereira Coelho,  Coimbra 1988, pág. 17 e segs.

Porém, pensamos como a quase generalidade dos autores, que esse direito tem natureza pessoal ou creditícia, mas tem contornos que se assemelham aos direitos reais em que o regime dos direitos reais se lhe aplica – cfr. art. 1037º, nº 2 do Cód. Civil.

As exigências de justiça e os interesses teleológicamente detetáveis no referido nº 2 do art. 824º apontam para a aplicação ao arrendamento do regime de caducidade neste último previsto.

Em favor deste entendimento e rebatendo os argumentos geralmente apontados em sentido oposto – como os expostos no notável acórdão fundamento junto para legitimar a revista excecional -, acrescentaremos que o disposto no art. 1051º do Cód. Civil, que indica os casos em que o contrato de arrendamento caduca, não é taxativo, nomeadamente, por também poder caducar em caso de impossibilidade de cumprimento, nos termos do art. 795º do Cód. Civil.

Também o disposto no art. 1057º do Cód. Civil  não pode justificar o entendimento oposto, por tal preceito se não aplicar à venda judicial que, nesse aspecto, tem norma própria que é a do art. 824º, nº 2 referido.

É certo que a hipoteca não impede o poder de alienação ou de oneração do imóvel sobre que incide, como decorre do disposto no art. 695º do Cód. Civil.

Porém, gozando o titular da hipoteca do direito de preferência decorrente da prioridade do registo, fica o proprietário do bem limitado em relação ao seu direito de propriedade, como seja o de por em causa o valor do mesmo.

E constituindo a hipoteca uma garantia de um crédito em que o valor do imóvel é um elemento fundamental na atribuição do empréstimo – subjacente à constituição da hipoteca – e na determinação do respectivo quantitativo, a situação de arrendamento do imóvel é um dos elementos relevantes dessa avaliação.

Se o imóvel está dado de arrendamento, o credor hipotecário pode conhecer dessa circunstância e essa qualidade é-lhe oponível, por ser anterior ao da constituição da hipoteca.

Se pelo contrário o prédio não está dado de arrendamento e o imóvel está livre, a constituição do arrendamento posteriormente ao registo da hipoteca, vem piorar a situação do credor hipotecário, situação esta com que o mesmo razoavelmente não podia contar, pois o arrendamento é posterior à hipoteca.

E na ponderação dos interesses do credor hipotecário em face dos interesses do arrendatário, devem prevalecer os primeiros, pois o arrendatário pode saber da situação de hipotecado do imóvel, dada a obrigatoriedade da hipoteca de constar do registo.

A situação de arrendado do imóvel constitui um verdadeiro ónus sobre o imóvel e sobre o seu valor, dada a natureza vinculística do arrendamento – pese embora as alterações recentes na regulamentação legal  do arrendamento urbano que vieram atenuar em muito esse carácter.

Aqui ainda releva no sentido daquela oneração, o prazo do arrendamento que é de trinta anos, circunstância esta muito rara no arrendamento de prédios para habitação.

“ Assim, por via da falada interpretação teleológica e com base em argumentos de analogia ou semelhança das situações de facto e consequências práticas, designadamente, de natureza sócio-económicas, que não, necessariamente, no sentido técnico-jurídico da integração de lacunas, deverá entender-se que a ”referida norma do art. 824º se aplica a todos os direitos de gozo, quer de natureza real quer pessoal, de que a coisa vendida seja objecto e que produzam efeitos em relação a terceiros. É que o arrendamento, dada a sua eficácia em relação a terceiros, deve ser para este efeito, equiparado a um direito real. De outra forma, pôr-se-ia em causa o escopo da lei, de que a venda em execução se faça pelo melhor preço possível” – transcrição do acórdão de 16-09-2014 acima referido que temos, aliás, seguido de perto na demais exposição.

Tal como ensina o Prof. M. Henrique Mesquita, in “ Obrigações Reais e Ónus Reais”, pág. 183 : “ O intérprete deve ter sempre presente que o direito do locatário é tratado, para certos efeitos, como direito de soberania e, para outros, como direito meramente creditório, assente numa relação intersubjectiva que liga permanentemente o locador e o locatário. E face a este estatuto dualista, o caminho metodologicamente correcto para esclarecer dúvidas interpretativas ou resolver problemas de regulamentação será o do recurso, nuns casos, aos princípios que disciplinam os direitos reais e, noutros, aos princípios que regem as obrigações, consoante os interesses em jogo, apreciados e valorados à luz das soluções ditadas pelo legislador para os problemas de que directa e expressamente se ocupa.”   

Será, é certo, com a solução que vimos defendendo, penalizada a arrendatária, mas os interesses desta são suplantados pelos interesses do credor hipotecário que, em nosso entender, são mais merecedores de protecção por o registo da hipoteca ser anterior à constituição do arrendamento e ser a hipoteca do conhecimento ou da cognoscibilidade da arrendatária.

Desta forma, nos termos do art. 824º, nº 2 referido, o direito de arrendamento da recorrente caducou com a venda judicial do imóvel sobre que versava a locação.

A recorrente no seu anómalo requerimento de fls. 329 e segs. vem defender a procedência do recurso com o fundamento de que o decidido pelas instâncias ofende o princípio constitucional da segurança jurídica, ínsito no art. 2º da Constituição da República Portuguesa, o princípio da proteção da família e o principio do direito a uma habitação condigna, previstos nos arts. 36º e 65º da mesma Constituição.

Para fundamentar tal argumento alega que o imóvel em causa é  a casa de morada de família do sócio da recorrente que inclui quatro filhos menores e um filho maior.

Ora antes de mais, não consta da factualidade aqui apurada este último facto e nem sequer a recorrente o havia alegado na sua petição inicial, onde alegara um facto um pouco diverso e, até oposto, no art. 11, onde referira que o imóvel era habitado pelos colaboradores da recorrente, o que não é o mesmo que agora e extemporaneamente vem alegar.

Não descortinamos qualquer violação de preceito constitucional, nomeadamente, o da segurança jurídica, dado que aquando da celebração do contrato de arrendamento constava do registo do imóvel sobre o qual incidiu o contrato, necessariamente, a existência da hipoteca onerando o mesmo.

 Por isso e tanto basta para julgar improcedente esta pretensão que sendo formulada manifestamente fora de prazo, por vir em requerimento anómalo, foi aqui considerado sinteticamente por versar uma questão do conhecimento oficioso.

Improcede, deste modo, os fundamentos do recurso.

Pelo exposto, nega-se a revista pedida.

Custas pela recorrente.


*

Nos termos do art. 663º, nº 7, sumaria-se o acórdão da seguinte forma:

VENDA JUDICIAL. ARRENDAMENTO URBANO. CADUCIDADE.

Com a venda judicial de um imóvel hipotecado que tenha sido dado de arrendamento a terceiro após o registo da referida hipoteca, caduca o direito do respetivo locatário, nos termos do nº 2 do art. 824º do Cód. Civil.

2015-07-09

João Camilo ( Relator )

Fonseca Ramos

Fernandes do Vale