Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03P2600
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PIRES DA ROSA
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
CHEQUE
Nº do Documento: SJ200310300026007
Data do Acordão: 10/30/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T J GONDOMAR
Processo no Tribunal Recurso: 814/2002
Data: 01/28/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Sumário : 1 - As letras, as livranças, os cheques ... mencionados no artº. 46º, al. c) do CPCivil antes da redacção introduzida Reforma Processual de 1995/1996, continuam a poder servir de base à execução, contanto que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias.
2 - Se acaso morrem - por prescrição, por exemplo - as obrigações cambiárias que nasceram com a aposição da assinatura do devedor no título, o que resta - para determinar se estamos ou não perante um documento que importe constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias - é olhar para o que é já apenas um quirógrafo e verificar se nele estão impressos essa constituição ou reconhecimento (de uma obrigação causal ou substancial).
3 - A simples invocação da atinência da emissão de um cheque - ao portador - a uma transacção comercial, sem indicação do tipo de transacção e dos transaccionantes e respectiva posição, não preenche a invocação de uma verdadeira e própria relação substancial que crie direitos e deveres entre duas pessoas que agora são exequente e executado.
4 - A descrição da relação substancial pode, porém, ser feita pelo exequente no inicial requerimento executivo (mas já não em qualquer momento posterior da acção executiva), mencionando além do mais a entrega directa do cheque pelo sacador ao portador.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A", instaurou, na comarca de Gondomar, contra B, acção executiva, na forma ordinária de processo, dizendo-se portador legítimo de um cheque que junta, emitido em 25 de Fevereiro de 2001, sacado sobre o "Banco C", no montante de 35.000.000$00 (174.579,26 euros), respeitante a transacção comercial, cheque que não foi pago na data do seu vencimento nem posteriormente, e a cujo montante acrescem juros de mora à taxa de 7% que até à propositura da acção (30 de Abril de 2002) já ascendiam a 2.859.452$00 (14.262,89).
A executada deduziu embargos, invocando a inexequibilidade do título porquanto o mandato puro e simples incorporado no título, emitido pela sacadora e tendo como destinatário o banco sacado, não importa nem a constituição nem o reconhecimento de obrigação pecuniária perante terceiro a quem o cheque seja entregue ou que venha a ser seu portador, não sendo este o destinatário da declaração de vontade inserta no título;
o cheque só é título executivo se a obrigação cambiária for ou ainda puder ser exigível e, no caso, o cheque está prescrito (foi apresentado a pagamento em 5 de Março de 2001 e a execução foi instaurada em 30 de Abril de 2002);
a embargante nada deve ao embargado, inexistindo qualquer relação de débito-crédito que justifique o valor titulado pelo documento dado à execução.
O exequente contestou o embargo defendendo que a exequibilidade do título advém do disposto no artº. 46º, al. c) do CPCivil e que o cheque, apresentado a pagamento no dia 2 de Março de 2001, não está prescrito.
Em despacho saneador-sentença de fls. 15 e 16, os embargos foram julgados improcedentes.
A executada-embargante B não se conformou com a decisão e interpôs recurso.
De apelação, como tal admitido.
E subindo per saltum a este Supremo Tribunal, tal com a recorrente pediu nas suas alegações de recurso, invocando o comando do artº. 725º, nº. 1 do CPCivil.
O recorrido não contra-alegou e o Mmo. Juiz fez subir os autos a este Tribunal, ao abrigo desta última disposição legal.
Estão corridos os vistos.
Cumpre conhecer.

Abordando as questões colocadas nas conclusões da alegação da recorrente e que, resumidamente, são as seguintes:
1 - o cheque é, apenas, um meio de mobilização de fundos depositados pelo sacador em estabelecimento bancário e não importa, em si mesmo, a constituição ou o reconhecimento de obrigações pecuniárias a favor de terceiro de quem é emitido - consequentemente, não é hoje título executivo, pelo menos à luz da actual redacção do artº. 46º, al. c) do CPCivil;
2 - o direito cambiário inscrito no cheque dos autos - emitido em 25 de Fevereiro de 2001 e apresentado a pagamento em 5 de Março de 2001 - já se encontrava prescrito à data da instauração da execução, em 30 de Abril de 2002, (artºs. 29º e 52º da LUCH) não podendo em concreto constituir título executivo mesmo a entender-se, por via interpretativa ou por qualquer outro meio, que o cheque se inclui no elenco dos títulos executivos do artº. 46º, al. c) do CPCivil;
3 - um cheque emitido sem indicação da pessoa a quem deve ser pago pelo banco sacado não caracteriza, em nenhuma circunstância, a hipótese de documento particular, assinado pelo devedor, que importe a constituição ou o reconhecimento de obrigação pecuniária perante o exequente.

Para o que aqui importa o que a lei - o Código do Processo Civil - diz hoje é que
à execução apenas podem servir de base os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético ... - artº. 46º, nº. 1, al. c).
Di-lo agora, que está em vigor a redacção introduzida pelo Dec.Lei nº. 38/2003, de 8 de Março (acrescentando que se consideram ... abrangidos no título executivo os juros de mora, à taxa legal, da obrigação dele constante - nº. 2 do artigo, introduzido por este diploma legal), como o dizia já antes, com na redacção dada pela Reforma de 1995/1996 (com ligeira variante ... determinável nos termos do artº. 805º ...) que, na sua expressa intenção, pretendeu com a nova redacção da al.c) do artº. 46º «a ampliação significativa do elenco dos títulos executivos».
As letras, as livranças, os cheques ... (que na redacção do artigo anterior à Reforma de 1995/1996 vinham expressamente nomeados) continuam assim a poder servir de base à execução, naturalmente desde que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias...
As letras, as livranças, os cheques ... não deixam de ser documentos particulares que contêm a assinatura do devedor.
O que têm de diferente em relação aos demais é que a sua subscrição faz nascer direitos e obrigações de uma outra natureza que acrescem às relações de natureza fundamental ou substancial inserta em qualquer dos outros. Faz nascer direitos e obrigações de natureza cambiária que se autonomizam paralelamente a estas outras.
Direitos e obrigações, claro, que todavia só permanecem enquanto se mantiver a natureza específica dos documentos que os incorporam, e de acordo com as regras substantivas próprias do que é o chamado direito cambiário.
Se acaso morrem - por prescrição, por exemplo - obrigações cambiárias que nasceram com a aposição da assinatura do devedor no título, então o que resta - para determinar se estamos ou não perante um documento particular que importa constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias - é olhar para o que é já apenas um quirógrafo e verificar se nele estão impressos essa constituição ou reconhecimento.
É o exercício que temos que fazer aqui, porquanto o comando de direito cambiário inserto no artº. 52º da LUCH, determina que toda a acção do portador contra ... o sacador - ou seja, contra aquele que passa o cheque - artº. 1º da Lei - prescreve decorridos que sejam seis meses, contados do termo do prazo de apresentação.
E esses seis meses estavam mais do que transcorridos quando, em 30 de Abril de 2002, foi instaurada a execução com base num cheque que fora emitido em 25 de Fevereiro de 2001, cheque cujo prazo de apresentação é o de oito dias previsto no artº. 29º da Lei.
A sacadora B invocou, então, procedentemente a prescrição dos direitos cambiários do portador A.

Fica o quirógrafo, ou seja, o simples escrito particular assinado pelo devedor.
E o que diz este nosso quirógrafo?
Apenas o que se pode ver da fotocópia de fls.78 e 79.
Ou seja:
que B, em conta de D, CS, ordenou ao "Banco C" que pagasse 35 000 000$00.
A quem, em benefício de quem, à ordem de quem?
A B não o indicou, deixando assim funcionar o comando do artº. 5º da LUCH.
Mas esse é direito cambiário. E esse é, como se disse, ininvocável, por terem morrido por prescrição os direitos nascidos com o aparecimento do cheque qua tale.
Ficamos, então, sem saber a quem quis a B beneficiar com o cheque que acabou por ser apresentado ao "Banco C" pelo exequente A (que foi este quem apresentou o cheque a pagamento, como se pode ver pela assinatura inserta no verso do mesmo).
Ficamos, pois, sem saber quem, em concreto, seria o destinatário do «reconhecimento unilateral da dívida previsto no artº. 458º, nº. 1 do CCivil, que levaria a admitir o cheque prescrito, enquanto documento particular, como título executivo, ao abrigo do artº. 46º, al. c) do CPCivil, desde que a causa da obrigação tenha sido invocada no requerimento inicial da execução» - Ac. STJ de 29 de Junho de 2002, CJSTJ, T1, pág. 64.
Deve também dizer-se, aliás, que essa causa não vem indicada na petição inicial da presente acção executiva.
O que vem dito a esse título é tão só, textualmente, o seguinte:
o exequente é legítimo dono e portador de 01 cheque ... sacado sobre ..., emitido em ..., no montante de ... respeitante a transacção comercial.
Pergunta-se:
que transacção comercial? entre quem? com entrega do cheque por quem a quem?
A simples invocação da atinência da emissão do cheque a uma transacção comercial, sem indicação do tipo de transacção e dos transaccionantes e respectiva posição, não preenche a invocação de uma verdadeira e própria relação substancial que crie direitos e deveres entre duas pessoas que são agora exequente e executado.

E é no requerimento executivo, e não posteriormente, na pendência do processo, que o exequente pode fazer essa invocação - veja-se Lebre de Freitas, A Acção Executiva (à luz do código revisto), 2ª edição, Coimbra Editora, pág. 54 e Ac. STJ de 22 de Maio de 2003, pesquisado em www.dgsi.pt/stj.
E também Abrantes Geraldes, Títulos Executivos, Separata Themis, Revista da Faculdade de Direito da UNL, Ano IV, nº. 7, 2003, pág. 64.
O mesmo autor que escreve, no mesmo local, nota 65, que «fora do regime da Lei Uniforme não é viável detectar - no cheque ao portador, para o que aqui nos importa - o efeito recognitivo de uma dívida».
Com o que aliás, em princípio, estamos de acordo.
A menos que a descrição da relação substancial que une exequente e executado,
no inicial requerimento executivo,
mencione também a entrega directa do cheque pelo sacador ao portador, por forma a que a causa de pedir englobe o próprio reconhecimento unilateral da obrigação causal - alguém que entregue nas mãos de outrem um cheque ao portador sabe que este último pode apresentar-se no banco sacado a levantar a quantia nele inscrita - neste sentido, seguramente, o citado acórdão STJ de 29 de Janeiro de 2002.

Mas não foi o que aconteceu in casu.
Nem mesmo com o extemporâneo esclarecimento apresentado na contestação dos embargos que se resume, textualmente, ao seguinte:
o cheque foi entregue ao embargado para pagamento de uma transacção comercial com a embargante.
Porque - ficam as perguntas - entregue ao embargado ... por quem? para pagamento de qual «transacção comercial»? com que desenho? com que posição contratual de cada uma das partes?
O que falta ao exequente é, pode dizer-se, uma verdadeira e própria causa de pedir, o alinhamento «de acto ou facto jurídico - simples ou complexo, mas sempre concreto - donde emerge o direito que o autor invoca e pretende fazer valer» - Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 111. Nem que seja pela invocação do reconhecimento unilateral de que fala (e de que já falámos) o artº. 458º, nº. 1 do CCivil.
Sendo assim: procedem os embargos por falta de título executivo.

DECISÃO
Na procedência da apelação, revoga-se o despacho saneador-sentença recorrido e julgam-se procedentes os embargos, com a consequente extinção da execução.
Custas a cargo do apelado.

Lisboa, 30 de Outubro de 2003
Pires da Rosa
Quirino Soares
Neves Ribeiro