Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1341/18.6T9PNF-A.P1-A.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: M. CARMO SILVA DIAS
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PRESSUPOSTOS
TEMPESTIVIDADE
EXTEMPORANEIDADE
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 06/02/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - Perante o decidido pela Relação e face à decisão condenatória proferida pela 1.ª instância, transitada em julgado, que aplicou ao arguido pela prática de crime de descaminho p. e p. no art. 355.º do CP, pena de prisão não superior a 5 anos, não era admissível recurso ordinário para o STJ, visto o disposto no art. 400.º, n.º 1, al. e) e f), do CPP.
II - Para além disso, uma vez que o acórdão da Relação não conhece, a final, do objeto do processo (antes nega provimento ao recurso do arguido do despacho que indeferiu a realização do requerido cúmulo jurídico), também por força do disposto no art. 400.º, n.º 1, al. c), do CPP, não era admissível recurso para o STJ.
III - Por isso, o arguido apenas podia no prazo de 10 dias (e não 30 dias) invocar eventual nulidade, pedir qualquer correção ou interpor recurso para o TC (art. 105.º, n.º 1, do CPP e art. 75.º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional), o que não fez.
IV - Assim, para efeitos do trânsito do acórdão, o prazo a ter em atenção era de 10 dias (e não 30 dias), pelo que, mesmo que acrescessem os três dias úteis subsequentes ao termo do prazo, aludido nos artigos 139.º do CPC e 107.º-A do CPP, face ao estabelecido no art. 438.º, n.º 1, do CPP, era manifestamente extemporâneo o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência interposto pelo arguido (por ter sido interposto para além do prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar), falecendo um dos pressupostos formais para a sua admissibilidade, sendo de concluir pela sua rejeição (art. 441.º, n.º 1, 1.ª parte, do CPP).
Decisão Texto Integral:


Proc. n.º 1341/18.6T9PNF-A.P1-A.S1

Rec. para fixação de jurisprudência       

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1.1. O arguido AA interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, nos termos dos artigos 437.º, n.º 2 e 438.º do CPP, por haver oposição entre o acórdão do TRP de 19.01.2022 proferido nestes autos n.º 1341/18.6T9PNF-A.P1 e o acórdão do STJ de 27.02.2019, proferido no processo n.º186/05.8TASSB.S1.

1.2. Para o efeito, invocando que o recurso é tempestivo por o acórdão recorrido ter transitado em julgado em 24.02.2022, ser admissível considerando que ambas as decisões (acórdão fundamento e acórdão recorrido) já transitaram em julgado, não admitindo recurso ordinário e os acórdãos em confronto terem sido proferidos no âmbito da mesma legislação, apresenta os seguintes fundamentos (transcrição):

I.  OS ACÓRDÃOS EM CONFRONTO

1.1 O ACÓRDÃO RECORRIDO

No acórdão recorrido, proferido pela 1.ª Secção Penal do Tribunal da Relação do Porto, no âmbito do Proc. n.º 1341/18.6T9PNF-A.P1, diz-se que:

“A única «questão recorrida» é saber da (im)possibilidade substantiva da determinação - ou não de «uma única pena» - que pode ser «pena compósita» também dita «pena mista» enquanto a «pena única» não como a locução inculca tratar-se apenas de «uma pena» - mediante realização - ou não - de «cúmulo jurídico» - que não «acumulação material» - por ocorrência de «concurso de crimes» - o que logo aparta a «sucessão de crimes» como sucede no caso de «reincidência» - com correlativo «concurso de penas» - com cabimento no caso de terem a «mesma natureza» - entre uma «pena principal de prisão» e uma «pena de prisão subsidiária» que ainda não tenha sido ou tenha sido - como sucede no caso do Condenado Recorrente - declarada exequível por «não pagamento» sendo que o «pagamento pecuniário» - qual «modo normal de pagamento» - pode ser «voluntário imediato» ou «voluntário diferido» - como o «pagamento em prestações» - ou «voluntário em espécie» no caso de «prestação de trabalho» tout court - que não «prestação de trabalho a favor da comunidade» - ou «pagamento coercivo» - em «Execução por Multa».

A este propósito escreveu-se no Acórdão recorrido:

“NÃO se descortinando «argumentos» nem «contra-argumentos» nem «argumentos do contrário» nem «contrário de argumentos» NOVOS no sentido além e independentes de cada um de todos aqueles supra citados que têm vindo a ser expendidos e repetidos à exaustão - num sentido ou noutro - pelas Doutrina e Jurisprudência - ora resta consignar que estes Relator e Adjunta sufragam a solução jurídica da NÃO realização de «cúmulo jurídico» entre uma «pena principal de prisão» e uma «pena de prisão subsidiária» que ainda não tenha sido ou tenha sido declarada exequível por «não pagamento» por terem - de Direito e de facto - «natureza diferente» pelo que:

PARTE III - DECIDINDO

1. Nega-se provimento ao Recurso do Arguido AA. (…)”

1.2. O ACÓRDÃO FUNDAMENTO

Em sentido contrário, quanto à admissibilidade da realização de cúmulo jurídico entre uma pena principal de prisão e uma pena de prisão subsidiária por não pagamento, pronunciou-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 186/05.8TASSB.S1, de 27-02-2019, relatado por Lopes da Mota, disponível em www.dgsi.pt :

“c) Quanto ao cúmulo das penas de prisão e multa

25. Devendo ser aplicada uma pena única, há, pois, que levar em conta o disposto no n.º 3 do artigo 77.º do Código Penal, de acordo com o qual, se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas (penas de multa) se mantém na pena única (de prisão).

No caso, foi aplicada uma pena única de prisão formada a partir da moldura definida pelas penas aplicadas nos processos 186/05.... e 713/11…, a que agora se aditam as aplicadas nos processos 61/09.... e 254/07.... (supra, 16).

Deverão, assim, como se esclareceu, incluir-se naquela pena as penas de multa cumpridas. O critério de acumulação material das penas, resultaria na aplicação, não de uma única pena, mas de duas penas (prisão e multa complementar). Ao que se opõe o artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, que impõe aplicação de uma pena (“única pena”).

26. É sabido que a questão da formação da pena única não tem, nestes casos, recebido resposta unânime na jurisprudência e na doutrina, como se notou nos recentes acórdãos de 23.01.2019, no processo 482/11.5PLLSB.S2, e de 13.02.2019, no processo 1205/15.5T9VIS.S1 (ainda não publicados).

No sentido da acumulação material das penas de prisão e multa pode ver-se, nomeadamente, Pinto de Albuquerque (Comentário do Código Penal, 3.ª ed., Católica Editora, p. 378), que defende que «as penas de multa são sempre cumuladas materialmente com a de prisão e, quando não seja paga a pena de multa, a execução da prisão em que venha a ser convertida seguir-se-á à execução da prisão directamente aplicada» (no mesmo sentido, pode ver-se a jurisprudência e doutrina citada). Em idêntico sentido considerou-se no acórdão de 17.05.2012 (proc. 471/06.1GALSD.P1.S1, rel Cons. Arménio Sottomayor, em www.dgsi.pt): “(...) o cúmulo far-se-á, na opinião do Conselheiro Maia Gonçalves, «entre as diversas espécies de penas, sendo a pena final uma pena compósita, composta por penas parcelares de espécies diferentes» (Código Penal Português 18, pág. 294/295). E no mesmo sentido se pronuncia o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque (…). Todavia, para a Prof.ª Maria João Antunes a norma do art. 77.º n.º 3 «não consagra o sistema da acumulação material quando as penas aplicadas aos crimes em concurso forem a prisão e multa. (...) quando se dispõe que «a diferente natureza destas mantém-se na pena única», quer isto significar somente que o condenado pode sempre pagar a multa, evitando assim que a pena única seja agravada»” (em sentido convergente pode ver-se também o acórdão de 14.03.2013, proc. 142/07.1PBCTB.C1.S1, rel. Cons. Maia Costa, em www.dgsi.pt).

Diferente entendimento foi seguido no acórdão de 06.03.2002 (proc. 01P4217, rel. Cons. Lourenço Martins, em www.dgsi.pt), onde se lê: “(…) a disposição do aludido n.º 3 do artigo 77.º do Código Penal não consagra o sistema da acumulação material quando as penas aplicadas aos crimes em concurso forem a prisão e multa. Do conteúdo desta norma resulta, por um lado, a reafirmação do sistema da pena única e, por outro, a possibilidade que o condenado tem de optar pela acumulação. Ou seja, quando se dispõe que «a diferente natureza destas mantém-se na pena única», quer isto significar somente que o condenado pode sempre pagar a multa, evitando assim que a pena única seja agravada. (…) ”.

27. Por força do disposto no n.º 3 do artigo 77.º do Código Penal, considera-se, pois, que o condenado deve continuar a ter a possibilidade de pagar a multa e que, paga a multa, efectuar-se-á o desconto que for equitativo no cumprimento da pena de prisão (artigo 81.º, n.º 2, do Código Penal). Neste sentido se colhem argumentos decisivos recolhidos dos elementos histórico e sistemático de interpretação da lei, na unidade e coerência do sistema de penas que, a partir de 1995, não reconhece penas mistas de prisão e multa.

Com efeito, embora não haja notícia das concretas razões por que, neste preceito, não foi acolhida a proposta de revisão do Código Penal de 1982 (em que se dizia: «se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, é aplicável uma única pena de prisão, (…) considerando-se as de multa convertidas em prisão pelo tempo correspondente reduzido a dois terços» o que difere substancialmente da redacção do n.º 3 do artigo 77.º, que não considera a pena de multa convertida ope legis em prisão, para efeitos de cúmulo), deve ter-se presente que a revisão de 1995 abandonou a «indesejável prescrição cumulativa das penas de prisão e multa na parte especial por uma solução de alternatividade» (ponto 4 da exposição de motivos da Proposta de Lei de autorização legislativa), o que não pode deixar de ser considerado na resposta a dar à questão de saber se esta solução, de não acumulação, deve também ser a adoptada na punição do concurso. Sendo certo importa sublinhá-lo que, em 1995, se afastou expressamente a regra então constante do artigo 78.º, n.º 3, do Código Penal (de 1982), segundo a qual, na punição do concurso, a pena de multa e a pena de prisão eram sempre cumuladas entre si (dizia este preceito: «3 - A pena de multa e a prisão por condenação em alternativa, nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 46.º, são sempre cumuladas entre si e com a pena de prisão»).

28. Neste sentido, referindo-se ao Código Penal de 1982 (artigo 78.º, n.º 3, a que corresponde o actual artigo 77.º, n.º 3), dizia Figueiredo Dias: “Se as penas parcelares forem de diferente espécie, o direito vigente [em 1993] abandona entre elas o sistema de pena única (e, portanto, da pena conjunta e do cúmulo jurídico) para seguir na essência um sistema de acumulação material: a pena de prisão e a pena de multa são sempre, nos termos do art. 78.º-3, cumuladas entre si (…). O abandono do sistema da pena única e dos princípios da pena conjunta e do cúmulo jurídico é injustificável. As razões que fundamentam aquele sistema e aqueles princípios continuam, desde logo, a valer completamente em caso de concurso de penas de espécie diferente: é o mesmo e um o agente, é uma e unitária a sua personalidade, esta merece ser avaliada relativamente ao conjunto dos factos praticados. De outra parte, a pena composta de prisão e multa a que o sistema lugar continua aqui a ser chocantemente contrária aos princípios politico-criminais básicos de que o nosso sistema se nutre (…). É certo que a manutenção, nestas hipóteses, do sistema da pena única implicaria sempre uma conversão dos dias de multa em prisão, v.g., usando o critério da redução dos dias de multa a 2/3 da prisão (…). Nenhuma razão se antevê para que a prisão sucedânea por não pagamento de uma pena de multa não deva entrar, como qualquer outra pena de prisão, para a formação da pena conjunta” (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, cit., 1993, 3.ª reimp. pp- 289-290).

Mais recentemente, escreve Maria João Antunes (Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 144, n.º 3992, 2015, p. 410-416): “Em suma, o artigo 77.º, n.º 3, do Código Penal não consagra o sistema de acumulação material quando as penas aplicadas aos crimes em concurso forem a prisão e a multa. Consagra antes o sistema da pena única conjunta, a determinar segundo um princípio de cúmulo jurídico, nos termos do qual há: (…) a conversão dos dias de multa em prisão subsidiária, segundo as regras do artigo 49.º, n.º 1; a construção da moldura penal do concurso, com um limite máximo correspondente à soma do tempo de pena de prisão concretamente aplicada a cada um dos crimes com o tempo de prisão subsidiária relativo ao outro crime (…)”.

II – A QUESTÃO DE DIREITO

Do Acórdão fundamento vindo de citar e transcrever, relativamente à admissibilidade da realização de cúmulo jurídico entre uma pena principal de prisão e uma pena de prisão subsidiária por não pagamento, tal possibilidade encontra respaldo no artigo 77.º, n.º 3 do Código Penal.

Ressalve-se ainda a doutrina citada no acórdão fundamento que se transcreveu supra.

Sobre esta questão, o acórdão recorrido deu uma solução completamente oposta, designadamente, e conforme se transcreveu, da não realização de cúmulo jurídico entre uma pena principal de prisão e uma pena de prisão subsidiária, em virtude do não pagamento da multa.

Para além do vindo de referir, os acórdãos foram proferidos no domínio da mesma legislação atendendo a que não sobreveio qualquer alteração legislativa; o acórdão fundamento já transitou em julgado e não foi até ao momento fixada jurisprudência pelo Supremo Tribunal de Justiça.

III - SENTIDO EM QUE DEVE SER FIXADA JURISPRUDÊNCIA

A interpretação a dar ao segmento do n.º 3 do artigo 77.º do CP, segundo o qual «a diferente natureza destas se mantém», não pode acolher a manutenção daquele regime de acumulação, devendo, por razões de unidade e coerência, na ponderação dos elementos histórico e sistemático, entender-se que deve ser fixada uma pena única de prisão, mantendo-se, no entanto, a “natureza” da pena parcelar de multa anteriormente aplicada, para efeitos de ao condenado ser assegurada a possibilidade de, a todo o tempo, efectuar o pagamento, evitando a execução da prisão subsidiária (n.º 2 do artigo 49.º do CP).

Termina pedindo que seja admitido o recurso, seguindo-se a ulterior tramitação processual.

1.3. O Ministério Público respondeu ao presente recurso sustentando que “No caso presente o Acórdão recorrido não é, por força do disposto no art. 400º nº 1 al. f) do CPP, passível de recurso ordinário, pelo que, salvo todo o respeito por entendimento diverso, o trânsito em julgado não depende do decurso de tal prazo de 30 dias, mas do prazo geral de 10 dias” e, assim sendo, mesmo o único recurso admissível, que era para o Tribunal Constitucional, teria de ser interposto no prazo de 10 dias, considerando que “o Acórdão recorrido foi notificado informaticamente ao ilustre Defensor do Arguido e ao Ministério Público no dia 19 de janeiro de 2022 (certidão – fls. 58) e que não houve qualquer intervenção ao abrigo do disposto no art. 425º nº 4 do CPP, o referido prazo de 10 dias precludiu, incluindo os três dias úteis da dilação, no dia 4 de Fevereiro de 2022 a que acresceria o regime da prática do acto nos três dias úteis seguintes ao abrigo do disposto nos arts, 107º e 107º-A do CPP, vindo assim o trânsito em julgado do Acórdão recorrido a verificar-se em 10 de Fevereiro de 2022”, pelo que tendo sido interposto o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência “ em 25 de Março, afigura-se-nos que à luz do disposto no art. 438º nº 1 do CPP o foi manifestamente fora e para além do referido prazo previsto no preceito, sendo de considerar intempestivo e, em face do disposto nos arts. 414º nº 3 e 420º nº 1 al. b), ex vi do art. 448º, todos do CPP, devendo ser rejeitado.”

1.4. Subiram os autos a este Supremo Tribunal de Justiça e, o Sr. PGA emitiu parecer no sentido da rejeição do recurso interposto para fixação de jurisprudência, nos termos dos arts. 438º nº 1 e 441.º, n.º 1, primeiro segmento, do CPP, por ser manifestamente extemporâneo (uma vez que foi interposto em 25.03.2022, quando o acórdão recorrido transitou em julgado em 3.02.2022).

1.5. Notificado o parecer do Sr. PGA ao recorrente para, querendo, em 10 dias se pronunciar, respondeu manifestando a sua discordância e, mantendo a sua posição, conclui que o recurso por si apresentado é tempestivo, devendo ser admitido.

1.6. No exame preliminar a Relatora ordenou que fossem cumpridos os vistos legais com o envio das peças processuais que fossem solicitadas e realizada a conferência, incumbe, agora, decidir da admissibilidade ou rejeição deste recurso extraordinário (art. 441.º do CPP).

II. Fundamentação

2.1. O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência tem por finalidade a obtenção de uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça que fixe jurisprudência, “no interesse da unidade do direito”, resolvendo o conflito suscitado (art. 445.º, n.º 3, do CPP), relativamente à mesma questão de direito, quando existem dois acórdãos com soluções opostas, no domínio da mesma legislação, assim favorecendo os princípios da segurança e previsibilidade das decisões judiciais e, ao mesmo tempo, promovendo a igualdade dos cidadãos.

O que se compreende, até tendo em atenção, como se diz no ac. do STJ n.º 5/2006, publicado no DR I-A Série de 6.06.2006, que «A uniformização de jurisprudência tem subjacente o interesse público de obstar à flutuação da jurisprudência e, bem assim, contribuir para a certeza e estabilidade do direito.»

Ora, a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência depende do preenchimento de requisitos formais e de requisitos materiais, que se extraem dos arts. 437.º e 438.º do CPP.

 Assim, a jurisprudência deste Tribunal tem entendido - como é melhor clarificado e resumido no Ac. do STJ de 21.10.2021, proferido no proc. n.º 613/95.0TBFUN-A.L1-C.S1 (relatado por António Gama) - que são requisitos formais:

“1. Legitimidade do recorrente;

2. Interposição do recurso no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão recorrido;

3. Identificação do acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição (acórdão fundamento), com menção do lugar da publicação, se publicação houver;

4. Trânsito em julgado do acórdão fundamento.”

E, por sua vez, são requisitos materiais:

1. Que os acórdãos respeitem à mesma questão de direito;

2. Sejam proferidos no domínio da mesma legislação;

3. Assentem em soluções opostas a partir de idêntica situação de facto;

4. Que as decisões em oposição sejam expressas.”

E, quanto aos últimos dois requisitos (a saber, que sejam proferidas “soluções opostas a partir de idêntica situação de facto e que as decisões em oposição sejam expressas”), assinala-se no mesmo acórdão, que “constitui jurisprudência assente deste Supremo Tribunal que só havendo identidade de situações de facto nos dois acórdãos é possível estabelecer uma comparação que permita concluir, quanto à mesma questão de direito, que existem soluções jurídicas opostas, bem como é necessário que a questão decidida em termos contraditórios seja objeto de decisão expressa, isto é, as soluções em oposição têm de ser expressamente proferidas (ac. STJ 30.01.2020, proc. n.º 1288/18.6T8CTB.C1-A.S1, 5.ª, ac. STJ 11.12.2014, proc. 356/11.0IDBRG.G1-A.S1, 5.ª) acrescendo que, de há muito, constitui também jurisprudência pacífica no STJ que a oposição de soluções entre um e outro acórdão tem de referir-se à própria decisão, que não aos seus fundamentos (ac. STJ 30.01.2020, proc. n.º 1288/18.6T8CTB.C1-A.S1, 5.ª, ac. de 13.02.2013, Proc. 561/08.6PCOER-A.L1.S1).”

2.2. Posto isto, vejamos se, neste caso concreto, estão ou não preenchidos todos os requisitos acima apontados.

Assim.

Analisados os autos, particularmente o acórdão proferido em 19.01.2022 não há dúvidas que o arguido tem legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência (art. 437.º, n.º 2 e n.º 5, do CPP), sendo claro o seu interesse em agir.

Vejamos, agora, se também se mostra ou não verificado o pressuposto formal da tempestividade da interposição do recurso.

Com efeito, nos termos do art. 438.º, n.º 1, do CPP, o recurso para fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.

Ora, o acórdão proferido em último lugar foi o datado de 19.01.2022 do Tribunal da Relação do Porto no âmbito deste Proc. n.º 1341/18.6T9PNF-A.P1.

Segundo consta da certidão junta aos autos, esse acórdão foi notificado em 19.01.2022, quer ao recorrente, através do seu defensor oficioso, por via eletrónica, quer ao Ministério Público, por termo nos autos e a interposição do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência para o STJ deu entrada no TRP em 25.03.2022, por via eletrónica, tendo sido remetido pelas 14:34:31 horas.

Neste caso concreto, o acórdão do TRP de 19.01.2022, negou provimento ao recurso do arguido, que recaiu sobre a decisão que indeferiu a realização de cúmulo jurídico entre a pena de 3 meses de prisão aplicada naquele processo n.º 1341/18.6T9PNF e a pena de 260 dias de multa à taxa diária de 5 euros, convertida em 173 dias de prisão subsidiária, aplicada no processo nº 474/16.8GALSD.

Perante o decidido pela Relação e face à decisão condenatória proferida pela 1ª instância, transitada em julgado, que aplicou ao arguido pela prática de crime de descaminho p. e p. no art. 355.º do CP, pena de prisão não superior a 5 anos, é manifesto que não era admissível recurso ordinário para o STJ visto o disposto no art. 400.º, n.º 1, als. e) e f) do CPP.

Mas, para além disso, uma vez que o acórdão do TRP de 19.01.2022 não conhece, a final, do objeto do processo (antes nega provimento ao recurso do arguido do despacho que indeferiu a realização do requerido cúmulo jurídico), também por força do disposto no art. 400.º, n.º 1, al. c), do CPP, não era admissível recurso para o STJ.

Por isso, o arguido apenas podia no prazo de 10 dias (e não 30 dias) invocar eventual nulidade, pedir qualquer correção ou interpor recurso para o Tribunal Constitucional (art. 105.º, n.º 1 do CPP e art. 75.º, n.º 1 da Lei do Tribunal Constitucional), o que não fez.

Segundo consta da certidão junta aos autos, o trânsito do acórdão, tendo em atenção que o prazo a ter em atenção era de 10 dias, ocorreu em 03.02.2022 (e não em 24.02.2022 como alega erradamente o arguido no recurso em apreciação).

Mesmo que acrescessem os três dias úteis subsequentes ao termo do prazo, aludido nos artigos 139.º do CPC e 107º-A do CPP, o trânsito ocorreria em 9.02.2022 mas, ainda assim, face ao estabelecido no art. 438.º, n.º 1, do CPP, era manifestamente extemporâneo o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência interposto pelo arguido em 25.03.2022.

Assim, uma vez que o recurso extraordinário em apreciação foi interposto extemporaneamente (visto o disposto no art. 438.º, n.º 1 do CPP), isto é, foi interposto para além do prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar, falece um dos pressupostos formais para a sua admissibilidade, concluindo-se pela sua rejeição (art. 441.º, n.º 1, 1ª parte, do CPP).

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III - Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar este recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, por inadmissibilidade legal (face ao disposto nos arts. 438.º, n.º 1 e 441.º, n.º 1, 1ª parte, do CPP).

Vai o recorrente condenado em 4 UCs de taxa de justiça, a que acresce, nos termos dos arts. 420º, nº 3 e 448.º, do CPP, o pagamento de 4 UCs.

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Processado em computador e elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2 do CPP), sendo assinado pela própria, pela Senhora Juíza Conselheira Adjunta e pelo Senhor Juiz Presidente da Secção.

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Supremo Tribunal de Justiça, 2 de Junho de 2022

Maria do Carmo Silva Dias (Relatora)

Leonor Furtado

Eduardo Almeida Loureiro