Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05B1890
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ARAÚJO BARROS
Descritores: FUNDAÇÃO
REQUISITOS
FALTA DE FORMA LEGAL
PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
PERSONALIDADE JURÍDICA
Nº do Documento: SJ200510200018907
Data do Acordão: 10/20/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 3607/04
Data: 02/01/2005
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Sumário : 1. Estando, numa fundação ainda não reconhecida, expresso o elemento intencional (vontade de constituição da fundação) e existindo a dotação (património a ela destinado) configura-se uma fundação de facto que apenas não constitui uma pessoa colectiva jurídica por falta da outorga do reconhecimento.
2. Estar-se-á, nesse caso, em face de uma pessoa rudimentar, consistente numa realidade a quem a lei recusa a titularidade de direitos civis, mas cuja falta de personalidade jurídica se resolve com recurso aos artigos 195º e seguintes do Código Civil, similarmente ao que acontece com as associações sem personalidade e as comissões especiais.
3. Uma fundação que não tenha ainda sido reconhecida, mas que disponha de património, estando representada em juízo por administrador, goza de personalidade e de capacidade judiciária, nos termos das disposições dos artigos. 6º, 9º e 22º do Código de Processo Civil.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

A "A" de Celorico da Beira" intentou acção declarativa de condenação com forma de processo ordinário contra "B - Empresa Municipal de Celorico da Beira", pedindo seja a ré condenada a pagar-lhe a quantia de 27.000 Euros (36 meses x 750 Euros) acrescida de juros à taxa legal, vincendos a contar da citação, até integral e efectivo pagamento.

Alegou, para tanto, que:
- entre ela e a ré foi celebrado, em Janeiro de 2001, um contrato de arrendamento nos termos do qual a ré ocupava duas salas pertencentes à autora, contrato esse anual e renovável, obrigando-se ao pagamento da quantia mensal de 100.000$00;
- sem que nada o justificasse, em Maio de 2002 a ré abandonou as instalações sem denunciar o contrato e sem pagar as rendas acordadas, o que até hoje não fez, pelo que entrou em incumprimento contratual e constituiu-se na obrigação de indemnizar a autora.

Citada a ré, sustentou ser inepta a petição inicial, arguiu a nulidade e, subsidiariamente, a cessação do contrato de arrendamento invocado e impugnou a versão dos factos fornecida pela autora.

Após réplica da autora, o M.mo Juiz exarou despacho saneador em que, por a tal se considerar habilitado, conheceu directamente do mérito da causa e, declarando nulo o contrato de arrendamento celebrado entre as partes, condenou a ré a pagar à autora a quantia de 12.248,91 Euros, a título de uso do arrendado, acrescida de juros desde a citação até efectivo pagamento.

Inconformada com essa decisão, dela apelou a ré "B", vindo, na sequência, o Tribunal da Relação de Coimbra, em acórdão de 1 de Fevereiro de 2005, por entender que a autora cerce de personalidade judiciária, a julgar procedente a apelação e a revogar o despacho saneador/sentença, absolvendo a ré da instância.

Interpôs, então, a autora recurso de agravo da 2ª instância, pugnando pela anulação da decisão recorrida, decidindo-se que a autora recorrente é parte legítima para a presente acção e mandando-se remeter o processo ao tribunal a quo a fim de julgar novamente a causa, nos termos dos artigos 729° e 730° do C.P.C.

Contra-alegou a recorrida, defendendo a bondade do julgado.
Verificados os pressupostos de validade e de regularidade da instância, corridos os vistos, cumpre decidir.

Nas alegações do recurso formulou a recorrente as conclusões seguintes (sendo, em princípio, pelo seu teor que se delimitam as questões a apreciar - arts. 690º, nº 1 e 684º, nº 3, do C.Proc.Civil):

1. A ora recorrente é uma fundação legalmente constituída pelos seus fundadores.
2. Apesar disso ainda não é uma fundação regular para poder usufruir do regime jurídico das fundações, porquanto ainda aguarda ser reconhecida por parte da tutela.

3. O que não a impede de ter estatutos, ser pessoa colectiva (se bem que provisória) e ter património.

4. E do seu património constam dois bens imóveis que adquiriu por compra, os quais obrigatoriamente têm que estar sujeitos à tutela do direito.

5. Além de que os mesmos têm que ser geridos e pela sua gestão são responsáveis os seus administradores, os quais devem administrá-los como bonus pater familiae pois dos mesmos têm que prestar contas.

6. E para isso os administradores têm que praticar actos e negócios jurídicos, actos e negócios esses que o direito também tem que tutelar, pelo que, se à gestão dos referidos bens se não podem aplicar as regras específicas das fundações, algumas outras terão que se aplicar.

7. As quais terão que ser nem mais nem menos que as que se aplicam aos patrimónios autónomos.

8. O acórdão recorrido violou assim o disposto nos artigos 5°, 6°, 9°, 21°, 22°, 23° e 26° do Código do Processo Civil.

No acórdão em crise foi tida como assente, com relevância para a questão de que conheceu, a seguinte factualidade:

i) - por escritura celebrada em 6 de Outubro de 1999, foi constituída a fundação denominada "A" de Celorico da Beira";

ii) - dispõe o art. 1° dos estatutos que a regem, que a "A" é uma pessoa colectiva de direito privado e tipo fundacional, sem fins lucrativos e de utilidade pública geral;

iii) - em 14 de Junho de 2004 não se encontrava matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Celorico da Beira;

iv) - em 8 de Setembro de 2004 ainda não lhe tinha sido concedido o reconhecimento pelo "MAI" formulado em 28 de Junho anterior;

v) - a "A" requereu em 30 de Abril de 2004 o seu registo como "IPSS", titular de "cartão provisório de identificação de pessoa colectiva e entidade equiparada" emitido a 22/04/2004 para ser usado até 23/10/2004.

Cinge-se o objecto do agravo interposto à questão de saber se a recorrente "A" de Celorico da Beira" goza ou não de personalidade judiciária, pressuposto processual sem cuja verificação não pode conhecer-se do mérito da causa, havendo que proferir mera decisão formal de absolvição da instância (arts. 493º, nº 2, 494º, al. c) e 288º, nº 1, al. c) do C.Proc.Civil).

Com efeito, dúvidas não existem quanto à falta de personalidade jurídica da recorrente: assim foi entendido no acórdão recorrido que, nessa parte, não mereceu impugnação.

Deste modo, afastado à partida o critério da coincidência, atributivo da personalidade judiciária a todo o ente juridicamente personalizado (art. 5º, nº 2, do C.Proc.Civil) resta determinar se a presente situação pode considerar-se abrangida por qualquer dos casos de extensão da personalidade judiciária constantes do artigo 6º (herança jacente e patrimónios autónomos semelhantes; associações sem personalidade jurídica e comissões especiais; sociedades civis; sociedades comerciais até à data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem, nos termos do artigo 5º do Código das Sociedades Comercias; condomínio resultante da propriedade horizontal, relativamente às acções que se inserem no âmbito dos poderes do administrador; navios, nos casos previstos em legislação especial) ou a eles equiparados na medida em que a enumeração daquele art. 6º não é taxativa, não se devendo excluir que, designadamente, outros patrimónios autónomos também possam ter personalidade judiciária. (1)

In casu a autora apresenta-se como uma fundação, constituída por escritura pública de 6 de Outubro de 1999, dotada de Estatutos, com património (como resulta, sem oposição, quer do artigo 1º da petição inicial, quer do artigo 7º dos estatutos), possuindo cartão provisório de identificação de pessoa colectiva e entidade equiparada, emitido em 22/04/2004.

Certo é que, tendo pedido o seu reconhecimento ao Ministério da Administração Interna, em 28 de Junho de 2004, tal reconhecimento, requisito da aquisição de personalidade jurídica (artigo 158º, nº 2, do C.Civil) ainda não ocorreu.

Decidiu-se no acórdão recorrido que, sendo o reconhecimento um dos elementos constitutivos da pessoa colectiva de que depende a atribuição da personalidade jurídica, não estando a autora na acção ainda reconhecida pela autoridade competente, não dispõe ela de personalidade jurídica nem de personalidade judiciária, porquanto, além do mais, no caso concreto as hipóteses de extensão da personalidade judiciária não lhe são aplicáveis.(2)

Sustenta a recorrente, apelando, aliás, ao decidido no Ac. RC de 25/01/2005 (3) (proferido em processo em que a mesma era autora e junto aos autos) que a "fundação que não tenha ainda sido reconhecida (cfr. art. 158º, nº 2, do C.Civil), mas que disponha de património, goza de personalidade e de capacidade judiciárias, face ao disposto nos arts. 6º, al. a) e 9º do C.Proc.Civil".

Estaríamos, neste caso, perante o critério da diferenciação patrimonial em cujos termos a personalidade judiciária é atribuída a determinados patrimónios autónomos, como "forma expedita de acautelar a defesa judiciária de legítimos interesses em crise, nos casos em que haja qualquer situação de carência em relação à titularidade dos respectivos direitos (ou dos interesses correlativos)". (4)

A solução do problema passa, a nosso ver, antes de tudo, pela qualificação do património de que a autora é titular (pelo menos o prédio em causa na acção) face à sua inevitável destinação fundacional.

Pode dizer-se que uma fundação "é uma pessoa colectiva constituída por um conjunto de bens estruturados tendo em vista a prossecução de determinados fins socialmente relevantes, à qual o direito atribui personalidade e capacidade para gozar e exercer direitos e deveres".(5)

Ou, como entendia o Prof. Marcelo Caetano (6) , existe uma fundação "quando há afectação inicial de um património à realização de um fim, estabelecendo-se regras para a sua administração e disposição que têm de ser observadas por aqueles que depois sejam chamados a cumprir a vontade assim manifestada, sem que possam mudar-lhe a intenção".

Esta afectação inicial de um dado património a determinado fim - que verdadeiramente se traduz num acto de instituição propriamente dito e na chamada dotação subsequente - corresponde a dois requisitos essenciais para que possa haver um reconhecimento, que vale também como aceitação dos bens destinados à fundação (art. 185º, nº 1, do C.Civil).(7)
É certo que, mantendo, quanto às fundações, o princípio anterior do reconhecimento por concessão, o Código Civil estabelece no artigo 158º, nº 2, que "as fundações adquirem personalidade jurídica pelo reconhecimento, o qual é individual e da competência da autoridade administrativa".(8)

Não obstante, ao analisarmos qualquer fundação (como a autora, se bem que ainda não reconhecida) considerando-a no seu aspecto genético podemos facilmente detectar, ao lado do reconhecimento, um elemento de facto - conjunto de dados anteriores à outorga da personalidade jurídica - que constitui o respectivo substracto.

É esta "a realidade que, no plano dos factos exteriores ou psicológicos, das coisas ou dos seres humanos, encerra a personalidade - a realidade que dá peso terreno à pessoa colectiva, que lhe dá existência no mundo exterior, fazendo-a ser algo mais do que uma superestrutura pairando sobre o vácuo. Se bem que seja o reconhecimento a criar o ente jurídico, o substracto é imprescindível (é condição necessária) para a existência da pessoa colectiva".(9)

Ademais, nas fundações (diversamente do que acontece com as associações em que sobretudo releva o elemento pessoal) "só o elemento patrimonial assume relevo no interior da pessoa colectiva, estando a actividade pessoal - necessária à prossecução do escopo fundacional - ao serviço da afectação patrimonial, estando subordinada a esta, em segundo plano ou até, rigorosamente, fora do substracto da fundação".(10)

Existindo, pois, in casu, manifestamente o elemento intencional (da escritura pública decorre a vontade de constituição da fundação) e a dotação (património a ela destinado) estaremos, no mínimo, perante uma fundação de facto que apenas se não configura como pessoa colectiva jurídica por falta da outorga do reconhecimento (aliás requerido há cerca de 1 ano).

Vislumbra-se, desta forma, uma situação de pessoa colectiva em formação, que prossegue objectivos próprios, dotada de um substracto: uma organização, pessoas que a servem, bens de afectação e um objectivo geral. "Esse substracto põe-se - ou pode pôr-se - em marcha antes do acto atributivo de personalidade (...). Nessas circunstâncias, o Direito reconhece ao substracto em jogo, mesmo privado do reconhecimento formal, determinadas potencialidades, enquanto sujeito de direitos". (11)

Encontramo-nos, assim, em face de uma categoria que o Prof. Paulo Cunha denominava de pessoas rudimentares, consistentes numa realidade a quem a lei recusaria a titularidade de direitos civis, admitindo-lhes, todavia, direitos processuais.(12)

Consequentemente, é possível ver na fundação dotada de declaração de vontade instituidora e de património fundacional (dotação) - ainda não reconhecida - a existência de um ente não personalizado mas passível de ser qualificado como pessoa colectiva rudimentar cuja falta de personalidade jurídica se resolve com recurso aos artigos 195º e seguintes do Código Civil, similarmente ao que acontece com as associações sem personalidade e comissões especiais".(13)

À semelhança, aliás, do que também sucede com as sociedades comerciais sem registo, que é elemento constitutivo (artigo 5º do C. Sociedades Comerciais) e com as sociedades civis (artigos 980º e seguintes do C.Civil).

Ademais, é de considerar que na categoria legal dos patrimónios autónomos semelhantes (à herança - art. 6º, al. a) do C.Proc.Civil) cabem não só os patrimónios de destino, mas ainda os patrimónios pertencentes a entidades sem personalidade jurídica".(14)

Acresce, finalmente - e é hoje em dia inequívoca a intenção legislativa de fazer prevalecer o conhecimento de mérito sobre as decisões de mera forma - que a relação jurídica controvertida nesta acção se encontra directamente conexionada com o património afectado pela escritura de constituição ao destino fundacional: tal situação reforça, sem dúvida, a conclusão de que ocorre litígio sobre direitos subjectivos cuja resolução se impõe ao tribunal.

Há, deste modo, face ao exposto, que concluir que não foi feita no acórdão recorrido a melhor interpretação da lei e dos princípios, havendo que reconhecer que a recorrente dispõe de personalidade judiciária que lhe permite demandar a ré.

Sendo que, por outro lado, de acordo com os artigos 9º e 22º do C.Proc.Civil, goza também a mesma recorrente de capacidade judiciária na justa medida em que intervém nos autos representada pelo administrador que tem, relativamente a ela, poderes de representação (cfr. fls. 10, 35 a 38, 110 e 122).

Termos em que se decide:
a) - conceder provimento ao recurso de agravo interposto pela autora "A de Celorico da Beira";
b) - revogar o acórdão recorrido, declarando que a recorrente goza de personalidade e capacidade judiciária, e determinando a baixa dos autos ao Tribunal da Relação de Coimbra, a fim de, aí, se conhecer da apelação interposta pela ré "B - Empresa Municipal de Celorico da Beira";

c) - condenar a recorrida nas custas do agravo

Lisboa, 20 de Outubro de 2005
Araújo Barros,
Oliveira Barros,
Salvador da Costa.
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(1) Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, "Estudos sobre o Novo Processo Civil", Lisboa, 1997, pag. 138.

(2) Já se entendeu, no Ac. STJ de 10/11/92, no Proc. 83038 da 1ª secção (relator Cura Mariano) que antes do reconhecimento da fundação não há, sequer, património autónomo.

(3) Proc. 3707/2004 (relator Silva Freitas).
(4) Antunes Varela, J. M. Bezerra e Sampaio e Nora, "Manual de Processo Civil", 2ª edição, Coimbra, 1985, pag. 111.

(5) Adalberto J. B. M. Macedo, "Sobre as Fundações Públicas e Privadas", 2001, pag. 91.

(6) "Manual de Direito Administrativo", 8ª edição, pag. 188.

(7) Cfr. Heinrich Horster, "A Parte Geral do Código Civil Português", Coimbra, 1992, pag. 405.

(8) A competência para proceder ao reconhecimento das fundações é cometida ao Ministério da Administração Interna pelo Dec.lei nº 215/87, de 29 de Maio.

(9) Carlos Alberto da Mota Pinto, "Teoria Geral do Direito Civil", 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra, 2005, pags. 271 e 272.

(10) Ibidem, pag. 273.
(11) António Menezes Cordeiro, "Tratado de Direito Civil", vol. I, Tomo III, Coimbra, 2004, pag. 528.

(12) Cfr. "Teoria Geral do Direito Civil", Lisboa, 1971/72, pag. 241.

(13) Menezes Cordeiro, obra e tomo citados, pag. 529. Cfr. Ac. STJ de 10/07/90, in BMJ nº 399, pag. 456 (relator Baltazar Coelho).

(14) Antunes Varela, J. M. Bezerra e Sampaio e Nora, "Manual"; pag. 121, nota (1).