Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
15008/15.3T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO ROSÁRIO MORGADO
Descritores: CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
AGENCIA DE VIAGENS
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL
SEGURO OBRIGATÓRIO
EXCLUSÃO DE RESPONSABILIDADE
CONSUMIDOR
Data do Acordão: 12/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVITA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO / RECURSO DE REVISTA.
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / EFICÁCIA DOS CONTRATOS.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 5.ª Edição, p. 397, 398 e 434;
- Januário da Costa Gomes, Sobre viagens organizadas e férias estragadas, Breves Notas, Liber Amicorum. A Causa dos Direitos dos Consumidores, Mário Frota, 2006, p. 394, 395, 402 a 405;
- Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português I, Parte Geral Tomo I, 1999, p. 478, 479 e 483;
- Moitinho de Almeida, Contrato de Seguro, Estudos, Coimbra editora, 2009, p. 115 e ss.;
- Sousa Ribeiro, O Contrato de Viagem Organizada, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, Almedina, Maio, 2007.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 662.º, N.º 4, 674.º, N.ºS 1, ALÍNEA B) E 3 E 682.º, N.º 3.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 406.º.
FUNDO DE GARANTIA DE VIAGENS E TURISMO (FGVT), APROVADO PELO DL N.º 61/2011, DE 06 DE MAIO.
Sumário :
I – O DL nº 61/2011 criou o Fundo de Garantia de Viagens e Turismo (FGVT), dotado de autonomia administrativa e financeira, o qual responde solidariamente pelo pagamento dos créditos dos consumidores resultantes do incumprimento, total ou parcial, dos contratos celebrados com agências de viagens e turismo;

II - Ao estabelecer a responsabilidade solidária do Fundo, aquele Decreto-lei reforça as garantias de efectivo ressarcimento dos consumidores pelo incumprimento de serviços contratados a agências de viagens e turismo.

III – A responsabilidade do FGVT reforça, e não exclui, a responsabilidade da seguradora com a qual a agência de viagens celebrou contrato de seguro de responsabilidade civil  obrigatório, nos termos do art. 36º, do mesmo diploma legal.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I – Relatório


1. AA, “BB”, “CC Portugal, Lda” e “DD” instauraram a presente ação declarativa contra “EE, Lda (doravante 1ª ré) e “FF Seguros, S.A.” (doravante 2ª ré), pedindo:

- A condenação da 2ª ré a pagar aos autores a quantia de EUR 32.805,00, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento, sendo os já vencidos no montante de EUR 1.562,62;

Subsidiariamente,

- A condenação da 1ª ré a pagar aos autores a quantia de EUR 32.805,00, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento, sendo os já vencidos no montante de EUR 1.562,62.

Para tanto, alegaram, em síntese, que:

Em Novembro de 2013, a autora “DD” contratou os serviços da 1ª ré para a organização de uma viagem de peregrinação a Israel para um grupo de trinta e duas pessoas.

A 1ª ré era a responsável pelas reservas dos bilhetes de avião e dos hotéis e pelo planeamento e agendamento do itinerário e atividades em ....


A referida viagem foi agendada para o dia 23 de Fevereiro de 2014, sendo que três elementos do grupo apenas viajariam em 25 de Fevereiro, com regresso a 1 de Março de 2014.


O preço da viagem, isto é, EUR 32.805,00, deveria ser pago faseadamente, sendo que, em 20.2.2014, já se mostrava integralmente pago pelos autores.


Porém, em 20.2.2014, a 1ª ré deu conhecimento aos autores do cancelamento da viagem, alegadamente por não ter podido efetuar determinados pagamentos a terceiros, o que inviabilizou a sua realização.


Tendo em vista a resolução extrajudicial do litígio, os autores e a 1ª ré subscreveram um documento datado de 10.10.2014, denominado “confissão de dívida e acordo de dação em cumprimento”, com o teor que consta de fls. 67 e ss.


Não obstante, a 1ª ré, apesar de interpelada para o efeito, não cumpriu o acordado.


Por seu turno, a 2ª ré, com quem a 1ª ré celebrara contrato de seguro destinado a cobrir a responsabilidade pelos danos decorrentes da sua atividade, recusa assumir a responsabilidade pela devolução aos autores das quantias já entregues para pagamento da viagem.

2. A ré seguradora contestou, alegando que o sinistro não se encontra coberto pela apólice. Referiu, designadamente, que a obrigação pelo reembolso do montante pago pelos autores recai sobre o Fundo de Garantia de Viagens e Turismo, entidade que responde pelos créditos dos consumidores relativos a serviços contratados com agências de viagens e turismo.

3. Tendo a 1ª ré sido declarada insolvente, a instância foi julgada extinta, por inutilidade superveniente da lide, em relação a esta ré – cf. fls. 124-146 dos autos.

4. Na 1ª instância, foi proferida sentença que, julgando a ação improcedente, absolveu a 2ª ré do pedido.

5. Desta decisão apelaram os autores, tendo o Tribunal da Relação de … proferido acórdão em que, revogando a sentença, condenou a ré FF Seguros, S.A. a pagar àqueles a quantia de EUR 32.805,00, acrescida dos juros de mora, vencidos desde a sua interpelação e vincendos até efetivo pagamento, à taxa de juros legal, sendo os vencidos à data da p.i, no valor de EUR 1.562,62.

6. Irresignada, a ré interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, dizendo, em conclusão:

1.   Cabia aos AA. provar o preenchimento dos requisitos da responsabilidade civil, nomeadamente que haviam sofrido prejuízos no valor peticionado de € 32.805,00 ou, dito de outro modo, que o seu património empobrecera nesse valor.

2.   Da matéria considerada assente por acordo das partes na audiência prévia encontra-se excluída a parte do art. 7º da p.i. da qual resulta que o pagamento da quantia total de € 32.805,00 foi realizado pelos AA.

3.   Sendo dos AA. o ónus da prova dos requisitos da responsabilidade civil, competia-lhes assegurar que o único tema de prova elaborado na audiência prévia permitiria a discussão e a prova em audiência final de que os seus patrimónios, globalmente considerados, haviam diminuído em EUR 32.805,00, para o que poderiam reclamar, se necessário fosse, do despacho previsto no art. 596°, nº1 do CPC e, em particular, do referido tema de prova.

4.     Na decisão de facto, no que à matéria do art. 7º da p. i. respeita, a 1ª instância, contendo-se nos estritos limites da matéria dada como assente na audiência prévia, julgou provado que "entre 11.11.2013 e 20.2.2014, foram realizados diversos pagamentos à R., no valor global de € 32.805,00, montante acordado com a Ré de preço de viagem." (facto provado n° 6), excluindo, por conseguinte, dos factos provados a parte inicial do referido artigo ("... os Autores já tinham pago ..."), sendo que da forma como a 1ª instância justificou a convicção formada sobre a matéria controvertida transparece, sem margem para dúvidas, que, no n° 6 dos factos provados, se pretendeu julgar provado que a segurada da R. recebera diversos pagamentos no valor total de € 32.805,00, mas não que esses pagamentos foram efetuados pelos AA. ou, melhor dizendo, que foram estes quem desembolsaram e ficaram privados desse valor.

5.    A decisão de facto não pode deixar de ser interpretada à luz da sua fundamentação, a qual, nos casos em que permite esclarecer eventuais ambiguidades de que aquela padeça, encerra como que uma interpretação autêntica da referida decisão. Ora, a interpretação dada pelo tribunal a quo ao n° 6 dos factos provados (segundo a qual dele resulta que "os Autores entre 11.11.2013 e 20.2.2014, realizaram diversos pagamentos à Ia R., no valor global de €32.805,00, montante acordado com a Ré de preço da viagem") não só não encontra apoio no seu elemento literal, como é absolutamente inconciliável com a fundamentação da decisão de facto.

6.    Ao arrepio do que parece ser o entendimento do tribunal a quo, o referido facto também não se pode extrair do acordo de confissão de dívida e de dação em cumprimento junto à p.i. sob doc. 7. É que o que resulta provado da decisão de facto é, meramente, o teor do referido contrato, e não os factos que dele resultam. A verdade é que, não obstante o teor desse acordo, inoponível à R. nos termos da cláusula 26ª, nº5, das condições gerais da apólice, os AA. não provaram terem sido eles quem desembolsaram os montantes entregues à segurada da R. (salvo o A. AA, relativamente ao preço da sua viagem); pelo contrário, da motivação da decisão de facto resulta que os montantes entregues à segurada da R. foram desembolsados pelas 32 pessoas que compunham o grupo de viajantes a Israel.

7.   Não transparecendo da decisão de facto que as quantias entregues à segurada da R. pertenciam aos AA. ou que estes ressarciram os donos dessas quantias, ficando sub-rogados nos seus direitos, forçoso será concluir que ficou por demonstrar o prejuízo dos AA., pressuposto da sua pretensão indemnizatória. O incumprimento contratual da segurada da R. gerou prejuízos na esfera jurídica daquelas 32 pessoas, que se inscreveram na viagem, pagaram o seu preço e perderam o dinheiro, com o respectivo empobrecimento dos respectivos patrimónios, e não na esfera jurídica dos AA., que, na realidade, nada desembolsaram ou perderam, o que é impeditivo do reconhecimento do direito de indemnização de cuja titularidade os mesmos se arrogam e da peticionada condenação da R..

8.    Quando muito, no caso de entender que a decisão vertida no n° 6 dos factos provados encerra alguma ambiguidade, por não deixar perceber, com a clareza desejada, se foram os AA. quem ficaram desembolsados das quantias entregues à segurada da R. (pese embora a motivação da decisão de facto desfaça qualquer dúvida a esse respeito), e considerando que, efetivamente, o único tema de prova elaborado na audiência prévia não compreende no seu âmbito essa questão (o que não impediu que ela fosse discutida em audiência), o tribunal ad quem, se considerar que disso depende a segurança da decisão jurídica do pleito, poderá fazer uso da faculdade que lhe é conferida pelo art. 682º, nº 3 do CPC, determinando o retorno do processo ao tribunal a quo, para ampliação da decisão de facto, no sentido de esta evidenciar a quem pertencia e quem é que ficou desembolsado dos € 32.805,00 entregues à segurada da R.. Entende-se, contudo, que o Supremo não necessitará de recorrer a esse mecanismo para decidir o litígio nos termos pugnados pela R..

9.   Ainda que assistisse aos AA. legitimidade do ponto de vista substantivo para reclamar o reembolso dos montantes recebidos pela segurada da R., o que apenas se admite por mero dever de cautela e de patrocínio, sempre essa pretensão extravasaria o objeto do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil celebrado entre a R. e a sua segurada.

10.   O FGVT e o seguro de responsabilidade civil são garantias complementares, e não cumulativas.

11.   O FGVT tem um âmbito muito específico, garantindo, em caso de incumprimento pela agência dos serviços contratados, o reembolso dos montantes entregues pelos clientes e das despesas suplementares em que estes incorreram devido a esse incumprimento, com exclusão de quaisquer outros prejuízos.

12.   Perante os clientes lesados, o FGVT e a agência são solidariamente responsáveis pelo pagamento dos referidos créditos, sendo que, no caso de o FGVT realizar o pagamento, a agência deve repor o montante utilizado, sob pena de o Fundo ficar sub-rogado nos direitos do cliente sobre a agência (sendo que é esse o regime que resulta dos arts. 31º, nºs 1 e 2, a) e b) e 33º, nºs 2 e 3, do DL n° 61/2011, de 6.5, e do art. 7º, nº 2 da Portaria n° 224/2011, de 3.6).

13.   Parece ser outro o âmbito do seguro de responsabilidade civil. A organização de viagens, em que consiste, no essencial, a atividade das agências, encerra, pela sua complexidade, um conjunto de riscos, relacionados com a multiplicidade de serviços incluídos, prestados, articuladamente, por pessoas diversas, em curtos períodos temporais. Ao impor às agências, nos termos do art. 35° do DL nº 61/2011, a celebração de um seguro, o legislador pretendeu que elas transferissem para uma empresa de seguros os referidos riscos, alguns dos quais mencionados naquele diploma: impossibilidade de o cliente terminar a viagem, acidentes (nomeadamente envolvendo meios de transporte) ou doença durante a viagem, perdas, deteriorações, furtos ou roubos de bagagem, etc. (sendo que são riscos como esses que o legislador quis que fossem transferidos para uma seguradora).

14.     No caso concreto, a segurada da R. não praticou quaisquer atos de preparação da viagem (não chegando sequer a efetuar reservas), nem devolveu os montantes que recebera para pagamento dos serviços contratados. Salvo melhor opinião, a omissão da organização da viagem vendida e a não restituição dos montantes recebidos não constitui um risco inerente à atividade das agências (tal como ele deve ser entendido para efeitos de cobertura do seguro), traduzindo, pelo contrário, a negação dessa atividade, uma vez que na base do prejuízo alegado está a inação da segurada da R., ou seja, a ausência de qualquer ato de preparação da referida viagem.

15.  A perda dos montantes entregues, resultantes da ausência de organização da viagem, é garantida pelo FGVT, não se enquadrando nos riscos decorrentes da atividade da agência, sendo que, nos termos do art. 35º, nº1 do DL n° 61/2011, à luz do qual devem ser interpretadas as cláusulas 2ª e 3ª das condições gerais do contrato de seguro (já que este, nos termos dessa cláusula 2ª se destina a cumprir a obrigação de seguro ali prevista), só esses riscos constituem objeto e são garantidos pelo seguro cuja celebração é exigida naquele art. 35°.

16. Não se vislumbra qualquer razão para que o legislador tivesse querido proteger os créditos previstos no art. 31º, nº 1, als. a) e b), do DL n° 61/2011 duplamente, isto é, através do FGVT e do seguro de responsabilidade civil, até porque isso representaria um esvaziamento do Fundo de qualquer utilidade. É que se o seguro obrigatório cobrisse os créditos dos consumidores susceptíveis de serem satisfeitos pelo FGVT nos termos legais, o pagamento desses créditos acabaria, na prática, por ser sempre efetuado, a final, pela empresa de seguros e, por isso, o FGVT para nada ou pouco serviria!

17. Salvo melhor opinião, mesmo que se entendesse que os créditos garantidos pelo FGVT integram, igualmente, o objeto do seguro, o que apenas se admite por mera hipótese académica, os montantes entregues à segurada da R., para que esta pudesse proceder às reservas e ao pagamento dos serviços previstos no programa de viagem, nomeadamente transportes aéreos e terrestres, alojamentos, excursões, visitas, refeições, seguro de viagem e taxas aeroportuárias, encontrar-se-iam excluídos da cobertura, nos termos do art. 3º, nº2 do DL n° 61/2011 e da cláusula 5ª, f) das condições gerais do seguro.

18. Nos termos do art. 3º, a) do DL n° 446/85, de 25.10, o regime das cláusulas contratuais, e, em particular, o seu art. 11º, nº 2, não se aplica à referida cláusula 5ª f) das condições gerais, em virtude de esta encerrar uma exclusão contratual previamente aprovada pelo legislador.

19. Assim, a exclusão "valores entregues pelo cliente à guarda da agência" deve ser interpretada segundo as regras dos arts. 9º e 10º do CC, não se vislumbrando a que outros valores, que não aos entregues pelo cliente à agência para esta poder fazer as reservas e pagar aos prestadores dos serviços previstos no programa de viagem, poderá estar o legislador a referir-se aí.

20. Ainda que assim não se entendesse, o que apenas se admite por mera hipótese de raciocínio, a exclusão em causa sempre seria de aplicar analogicamente, já que as razões justificativas da possibilidade legal de exclusão da cobertura do seguro dos valores entregues pelo cliente à guarda da agência (sejam quais forem esse valores) são inteiramente válidas para os montantes entregues pelo cliente à agência para esta efetuar as necessárias reservas e os pagamentos aos prestadores dos serviços contratados.

21. Seja porque os créditos dos consumidores suscetíveis de serem satisfeitos pelo FGVT nos termos legais não se enquadram no objeto do seguro (nem, consequentemente, na sua cobertura base), seja porque, ainda que assim não fosse, encontrar-se-iam excluídos dessa cobertura, nos termos do art. 36º, nº2, al. b), do DL n° 61/2011 e da cláusula 5ª, f) das condições gerais do seguro, a R. não responde pelo reembolso dos montantes entregues à sua segurada.

22. O acórdão recorrido viola, desconsidera ou interpreta ou aplica indevidamente os arts. 9º, 10°, 483º, nº1 e 798° do CC, arts. 31º, nºs 1 e 2 a) e b), 33º, nºs 1, 2 e 3, 35º, nº1 e 36º, nº2, b) do DL n° 61/2011, de 6.5, art. 7º, nº2, da Portaria n° 224/2011, de 3.6, e arts. 3º a) e 11º, nºs 1 e 2 do DL n° 446/85, de 25.10, bem como as cláusulas 2ª, 3ª, 5ª f) e 26ª, nº5, das condições gerais da apólice de seguro.

7. Nas contra-alegações, pugnou-se pela confirmação do acórdão recorrido.

8. Como se sabe, o âmbito objetivo do recurso é definido pelas conclusões apresentadas (arts. 608.º, n.º2, 635.º, nº4 e 639º, do CPC), pelo que só abrange as questões aí contidas.[1]

Por sua vez – como vem sendo repetidamente afirmado – os recursos são meios para obter o reexame de questões já submetidas à apreciação do tribunal que proferiu a decisão impugnada, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal a quo.

As questões de que cumpre conhecer são, pois, as seguintes:


a) – Da intervenção do STJ na fixação dos factos materiais da causa;

b) – Da responsabilidade da ré seguradora pelo reembolso aos autores do montante correspondente ao preço de viagem contratada com a agência de viagens e por esta cancelada.


***


II – Fundamentação de facto


9. Vem dado como provado que:

1) A 1ª ré é uma empresa que se dedica à organização de viagens de peregrinação, tratando do alojamento, o transporte, organizando as atividades lúdicas, documentos necessários e seguros, entre outros.


2) A responsabilidade civil da 1ª ré encontrava-se validamente transferida para a 2ª ré, nos termos da Apólice nº 10824549, junta como doc.1 com a p. i. cujo teor se dá aqui por reproduzido.


3) Em Novembro de 2013, a quarta autora contratou os serviços da 1ª ré para a organização de uma viagem de peregrinação a Israel para um grupo de trinta e duas pessoas.


4) Sendo a 1ª ré responsável pelas reservas dos bilhetes de avião e dos hotéis, assim como do planeamento e agendamento do itinerário e atividades em ..., de acordo com o plano de viagem elaborado pela 1ª ré.


5) A referida viagem foi agendada para o dia 23 de Fevereiro de 2014, sendo que três elementos do grupo apenas viajariam em 25 de Fevereiro, com regresso a dia 1 de Março de 2014.


6) Os autores entre 11.11.2013 e 20.2.2014, realizaram diversos pagamentos à R., no valor global de € 32.805,00, montante acordado com a Ré de preço da viagem.[2]


7) Nessa mesma data, em 20.2.2014, apenas três dias antes da viagem contratada, a 1ª Ré informou os Autores que a viagem teria sido cancelada, apenas justificando que o seu saldo bancário tinha sido penhorado, sem que antes tivesse procedido ao pagamento e reserva da viagem agendada.


8) A 2ª Ré foi interpelada nos termos da carta junta como doc.5 com a p.i., cujo teor se dá aqui por reproduzido.


9) Em resposta, a R. alegou que a reclamação dos Autores não se enquadra no âmbito da Apólice de seguro de responsabilidade civil, conforme carta junta como Doc. nº 6 com a p.i. que se dá aqui por integralmente reproduzida.


10) Em 10 de Outubro de 2014, os autores e a 1ª ré celebraram um “acordo de dação em cumprimento e confissão de dívida”, com reconhecimento presencial de assinaturas, junto como doc. nº 7 que se dá aqui por integralmente produzido.


11) A 1ª Ré não reembolsou a quantia referida em 6), nem cumpriu com o acordo mencionado em 10).


12) A 1ª R. foi declarada insolvente em 21.5.2015, por sentença transitada em julgado em 16.6.2015,conforme certidão judicial de fls.124 e segs., que aqui se dá por reproduzida.


10. Por sua vez, considerou-se não provado que:


B.1- A 1ª Ré, apesar de ter conhecimento que não poderia cumprir com o que havia contratado, continuou de má-fé a receber as parcelas relativas ao pagamentos dos Autores até os mesmos liquidarem o montante total contratado.


B.2- A conduta da 1ª R. causou danos aos Autores que já haviam marcado as férias junto das respectivas entidades patronais, férias que não gozaram, nem conseguiram remarcar.


***


III – Fundamentação de direito

11. Da fixação dos factos materiais da causa

Na 1ª instância foi dado como provado que:

“Entre 11.11.2013 e 20.2.2014, foram realizados diversos pagamentos à R., no valor global de € 32.805,00, montante acordado com a Ré de preço da viagem.”– cf. ponto 6 da fundamentação de facto.


Porém, o Tribunal da Relação de …, considerando tratar-se de matéria admitida por acordo das partes, alterou a sobredita decisão e deu como assente que:


Os autores entre 11.11.2013 e 20.2.2014, realizaram diversos pagamentos à R., no valor global de € 32.805,00, montante acordado com a Ré de preço da viagem.”.


Na revista, a ré insurge-se contra a modificação introduzida pela Relação, na parte em que aditou ao referido ponto da fundamentação de facto o segmento inicial “os autores”, defendendo, em primeira linha, que a matéria em causa não foi objeto de acordo entre as partes.

Ora bem.

Salvo situações de exceção, o Supremo Tribunal de Justiça só conhece matéria de direito, sendo as decisões proferidas pela Relação no plano dos factos, em regra, irrecorríveis (art.º 46.º, da Lei de Organização do Sistema Judiciário – Lei n.º 62/13, de 26 de Agosto –  e arts. 662.º, n.º 4, 674º, nº 3, e 682º, todos do CPC).

O Supremo pode, no entanto, sindicar a decisão proferida sobre a matéria de facto se for invocada violação de regras substantivas de direito probatório (art.º 674º, nº 3, 2ª parte, do CPC). Pode também apreciar a suficiência ou (in)suficiência da matéria de facto provada e não provada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, bem como aferir da existência de contradições na matéria de facto que inviabilizem a decisão jurídica do pleito (art.º 682.º, n.º 3).

Os poderes do Supremo neste plano abarcam, ainda, o controlo da aplicação da lei adjetiva em qualquer das dimensões destinadas à fixação da matéria de facto provada e não provada (art.º 674º, n.º 1, al. b), do CPC), com a restrição que emerge do disposto no art.º 662º, nº 4, do CPC que exclui a sindicabilidade do juízo de apreciação da prova efetuado pelo Tribunal da Relação e a aferição da formação da convicção desse Tribunal a partir de meios de prova sujeitos ao princípio da livre apreciação.[3].

No caso concreto, alegada a violação da lei processual, por ter sido indevidamente admitido por acordo determinado facto, cabe então apreciar e decidir se foi, ou não, cometido o erro de direito invocado como fundamento da revista.

Na fundamentação da sua decisão, escreveu-se, a dado passo, no acórdão recorrido:


“Os Autores na sua p.i. alegaram no seu art.º 7 que a “20 de Fevereiro de 2014 já tinham pago o montante acordado com a Ré (agência de viagens) perfazendo um total de 32.805,00 euros”. (…)


A seguradora, na sua contestação, alegando não ter obrigação de saber (por não serem factos pessoais), impugnou todos os factos alegados pelos Autores (art.º 1.º).


Contudo, em sede de audiência prévia, os ilustres mandatários das partes acordaram em ter como assente: “quanto aos artigos 6.º e 7.º da petição inicial…verificou-se que foram efetuados pagamentos entre 11/11/2013 e 18/2/2014 no valor total de 30.405,00 euros, sendo que relativamente ao montante de 2.400,00, a fim de corresponder ao valor alegado no artigo em causa, o ilustre mandatário dos Autores protesta juntar[4]…; quanto aos art.ºs 22 a 27 da p.i. assentes enquanto reprodução do acordo[5]…28º da petição inicial”.


(…)


A Ré, na sua contestação, não excecional a ilegitimidade substantiva dos Autores, impugna, genericamente, os factos, sustenta que “da leitura da p.i., resulta que estamos perante um incumprimento contratual da responsabilidade da 1.ª Ré (10)… não está em causa nem é peticionado o pagamento de qualquer indemnização por danos causados pela 1.ª Ré, mas tão-somente a não restituição do montante que os Autores pagaram por uma viagem de peregrinação que não se chegou a realizar (15), a assinatura do acordo de confissão e dívida e de dação em cumprimento reforça essa ideia…(16)…estranha-se aliás que os Autores não tenham optado pela instauração de uma ação executiva contra a 1.ª Ré…(21)”.


Não consta, como tema da prova, o de saber se foram, efetivamente, os Autores ou terceiros que pagaram à 1.ª Ré os valores reclamados, porquanto o único tema da prova como acima se disse tem a ver com o alegado nos art.ºs 15 a 17 da p.i. que verdadeiramente não têm a ver com a pessoa que efetivamente liquidou os montantes à Agência (se os Autores se terceiros, designadamente as 32 duas pessoas que se propunham viajar a Israel e que não viajaram).  (…).”


Afigura-se-nos que se decidiu acertadamente.

Com efeito, resulta com clareza da ata de Audiência Prévia que as partes acordaram em dar como assentes, entre outros, os factos alegados nos arts. 6º e 7º, da petição inicial, tendo apenas salvaguardado que, quanto ao  pagamento de uma das parcelas do preço, isto é, EUR 2.400,00, o acordo ficava dependente da apresentação posterior de documento comprovativo desse pagamento pelos autores (o que veio a suceder).

A não ser assim, não se encontraria justificação para – sem qualquer objeção das partes - se ter consignado em ata que “o único tema da prova a enunciar” se reportava à atuação da 1ª ré, ao motivo do cancelamento da viagem e da justificação apresentada aos autores.

Improcede, pois, sem necessidade de outras considerações, a revista nesta parte.

12. Da responsabilidade da ré

12.1. Na revista, a ré veio defender que não responde pelo reembolso do valor peticionado nesta ação, argumentando que, em caso de cancelamento da viagem, a obrigação de devolução aos clientes do que foi pago à agência recai sobre o Fundo de Garantia de Viagens e Turismo, criado pelo DL nº 62/2011, de 6 de maio.

Ainda que assim não se entenda, sustenta que a cobertura daquele risco se encontra excluída, nos termos previstos na cláusula 3ª e 5ª, f) das condições gerais do contrato de seguro de responsabilidade civil contratado entre a agência de viagens (a 1ª ré) e a ora recorrente.

Vejamos, então.

Resulta da matéria de facto provada que entre a “DD” (a 4ª autora) e a “EE, Lda (a 1ª ré) foi celebrado um contrato de viagem organizada[6] - cf. art. 15º, nº2, do Decreto-Lei n.º 61/2011, de 6 de Maio, com as alterações introduzidas pelo DL n.º 199/2012, de 24 de agosto, diploma legal que, à data dos factos, regulamentava o acesso e exercício da atividade das agências de viagens e turismo.[7]

Em conformidade com o disposto no art. 406º, do CC que enuncia o princípio basilar do direito dos contratos, preceitua o art. 19.º do DL nº61/2011 que a agência fica vinculada ao cumprimento pontual do programa contratado.


Estabelece-se também no art. 25º, do mesmo Decreto-Lei que, se por facto não imputável ao cliente[8], a agência cancelar a viagem organizada antes da data da partida, tem aquele direito a ser imediatamente reembolsado de todas as quantias pagas, podendo, em alternativa, optar por participar numa outra viagem organizada.


Quanto à responsabilidade civil da agência, nos casos de violação das obrigações decorrentes do contrato celebrado com os clientes, importa ainda ter presente o disposto no art. 29º, nº1 e 2, do mencionado Decreto-lei, segundo o qual as agências respondem perante os seus clientes, pelo pontual cumprimento das obrigações resultantes dos contratos de viagem organizada, ainda que os serviços devam ser executados por terceiros e sem prejuízo do direito de regresso.


A respeito deste normativo, escreve Januário da Costa Gomes:[9]


“O artigo 29 da LAV agrava a responsabilidade da agência de viagens relativamente ao regime geral ou comum do artigo 799/1 do CC, que estabelece uma presunção de culpa do devedor. Na verdade, a responsabilidade da agência de viagens configura uma responsabilidade objetiva, respondendo a agência, independentemente de culpa, pelo bom resultado da viagem organizada.

(…)

As únicas situações em que a agência se pode exonerar de responsabilidade são as previstas no artigo 29/4.

A ideia de que a responsabilidade da agência é objetiva é reforçada pelo recorte negativo dessa responsabilidade feita no artigo 29/4: ou seja, a responsabilidade é objetiva, o que significa que se vincula a assegurar o conjunto dos serviços em termos de resultado, não podendo escusar-se através da prova de que não teve culpa na não prestação efetiva desses serviços.

As situações de exoneração possível são, como se disse, apenas as que constam da "lista" do artigo 29/4 (…), ou seja:

a) O cancelamento se basear no facto de o número de participantes na viagem organizada ser inferior ao mínimo exigido e o cliente for informado por escrito do cancelamento no prazo previsto no programa;

b) O incumprimento não resultar de excesso de reservas (overbooking) e for devido a situações de força maior ou caso fortuito, motivado por circunstâncias anormais e imprevisíveis, alheias àquele que as invoca, cujas consequências não pudessem ser evitadas;

c) Se for demonstrado que o incumprimento se deve à conduta do próprio cliente ou à atuação de um terceiro, alheio ao fornecimento das prestações devidas pelo contrato, que a agência não pudesse prever;

d) Legalmente não puder ser acionado o direito de regresso relativamente a terceiros prestadores dos serviços previstos no contrato, nos termos da legislação aplicável;

e) O prestador de serviços de alojamento não puder ser responsabilizado pela deterioração, destruição ou subtração de bagagens ou outros artigos;

(…)”.


Feito este breve enquadramento normativo, voltemos ao caso sub judice.


Decorre do elenco factual dado como provado que, três dias antes da partida, a 1ª ré informou os autores do cancelamento da viagem contratada, alegando não ter procedido ao pagamento e reserva da viagem agendada, por o seu saldo bancário ter sido penhorado – cf. ponto 7, dos factos provados.


Ora, a 1ª ré, até pelo carácter profissional da sua atividade, estava obrigada a garantir a realização da viagem na data agendada, pelo que, ao não cumprir, nos seus precisos termos, a obrigação a que estava adstrita e não tendo logrado demonstrar nenhuma das causas de exclusão da sua responsabilidade, acima referidas, tornou-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor (cf. arts. 762º e 798º, do CC e 29º, do DL. nº 61/2011).

Como afirma Sousa Ribeiro[10], o ponto nevrálgico da tutela do turista que contrata uma viagem organizada localiza-se na disciplina da responsabilidade civil da agência, por falta ou defeituoso cumprimento de prestações devidas.

Neste domínio, conforme se estipula no art. 35º, nº 1, do DL nº 61/2011, “as agências devem celebrar um seguro de responsabilidade civil que cubra os riscos decorrentes da sua atividade garantindo o ressarcimento dos danos patrimoniais e não patrimoniais causados a clientes ou a terceiros por ações ou omissões da agência ou dos seus representantes (nº1).


O seguro de responsabilidade civil deve ainda cobrir como risco acessório:

           

a) O repatriamento dos clientes e a sua assistência nos termos do artigo 28.º;


b) A assistência médica e medicamentos necessários em caso de acidente ou doença ocorridos durante a viagem, incluindo aqueles que se revelem necessários após a conclusão da viagem.


Por outro lado, visando reforçar as garantias dos clientes, o DL nº 61/2011 criou o Fundo de Garantia de Viagens e Turismo (FGVT), em substituição do (anterior) regime da caução, estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 263/2007, de 20 de Julho.

Este Fundo, dotado de autonomia administrativa e financeira, responde solidariamente pelo pagamento dos créditos dos consumidores resultantes do incumprimento, total ou parcial, dos contratos celebrados com agências de viagens e turismo (cf. art. 31º, do DL nº 61/2011 e arts. 3º e 4º, da Portaria nº 224/2011, que aprova o Regulamento do FGVT).

Como se afirma no Preâmbulo do DL nº 6172011, “ao estabelecer a responsabilidade solidária do Fundo, o presente decreto-lei reforça as garantias de efectivo ressarcimento dos consumidores pelo incumprimento de serviços contratados a agências de viagens e turismo.”.

Na construção normativa, deteta-se uma clara intenção do legislador (inspirado aliás na Diretiva Comunitária nº 90/314/CEE, de 13 de Junho, que obrigava o operador ou agência a possuir meios de garantia suficientes para assegurar o reembolso dos fundos depositados e o repatriamento do consumidor), de proteger os interesses dos clientes/consumidores, reforçando, mas não excluindo outras vias de ressarcimento dos seus direitos.

Queremos com isto significar que não colhe a pretensão da seguradora de excluir a sua responsabilidade, assumida por via da celebração com a 1ª ré do contrato de seguro de responsabilidade civil obrigatório (cf. art. 35º, do DL nº 61/2011), verificados que estejam os respetivos pressupostos da obrigação de indemnizar o cliente lesado.

Como, a este respeito, se escreveu no acórdão recorrido, o entendimento defendido pela recorrente “não tem, na letra dos artigos 31º e 33º (do DL 61/2011) nenhuma expressão, ainda que imperfeitamente expressa; pelo contrário, da conjugação desses dispositivos o que decorre é que os consumidores “podem” acionar o Fundo requerendo tal acionamento ao Turismo de Portugal, sendo que os valores do Fundo respondem solidariamente pelos reembolsos, o que linearmente significa que os consumidores não estão obrigados a acionar primeiramente o Fundo e só na eventualidade do insucesso do acionamento vir então acionar o seguro obrigatório (…).”.

Improcede, pois, também nesta parte, a revista.


***


12.2. Veio, ainda a recorrente alegar que, ainda que assistisse aos autores o direito de reclamar da seguradora o reembolso dos montantes pagos à agência de viagens, essa sua pretensão extravasaria o objeto do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil celebrado entre a recorrente e a sua segurada.

Mais alega que, de todo o modo, o reembolso daquelas importâncias está expressamente excluído da cobertura do seguro, nos termos previstos na clª 5ª, al. f), da apólice.

Ora, vejamos.

A interpretação do contrato de seguro, designadamente por utilizar terminologia acentuadamente técnica, regulamentação detalhada do seu conteúdo e falta de clareza de muitas das suas cláusulas, suscita muitas vezes problemas interpretativos.

É jurisprudência assente deste Supremo Tribunal de Justiça que a interpretação de declarações negociais só constitui matéria de direito quando o sentido da declaração deva ser determinado segundo o critério do nº1, do art. 236º ou surja a questão de saber se foi respeitado o art. 238º, do CC.

Ou seja:

O sentido juridicamente relevante com que deve valer uma declaração negocial há de corresponder àquele que lhe seria dado por um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, suposto como sendo uma pessoa mediamente sagaz e diligente.

In casu, porque estamos perante um negócio formal, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto, ainda que imperfeitamente expresso – art. 238º, CC.

A este respeito, importa ainda ter presente o ensinamento de Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil Português I, Parte Geral Tomo I, 1999, págs. 478, 479 e 483) quando afirma que “a doutrina atual encara a interpretação do negócio jurídico como algo de essencialmente objetivo; o seu ponto de incidência não é a vontade interior: ela recai antes sobre um comportamento significativo.” Acrescenta ainda o mesmo autor que a autonomia privada “(...) tem de ser temperada com o princípio da tutela da confiança...”, que não se opõe à autonomia privada, antes a delimita, e que a própria interpretação não pode deixar de atender à boa-fé, ou seja, aos valores fundamentais do ordenamento jurídico que aí se jogam.[11]

Aproximemo-nos, então, de novo, do caso sub judice.

Vem provado que entre a 1ª e a 2ª ré foi celebrado um contrato de seguro de responsabilidade civil geral destinado a cumprir a obrigação de seguro de responsabilidade civil decorrente da atividade do segurado, na sua qualidade de agência de viagens e turismo (cf. art. 35º, do DL nº 61/2011 e clª 2ª, das Condições Gerais).

Por sua vez, na cláusula 3ª, das condições gerais, sob a epígrafe «garantias do contrato», consignou-se que “o presente contrato cobre, até ao limite do capital fixado nas Condições Particulares, as indemnizações que possam legalmente recair sobre o segurado, por responsabilidade civil, ainda que provocada por atos dolosos, resultante de danos patrimoniais e/ou não patrimoniais consequentes de lesões corporais e/ou materiais causados a clientes ou a terceiros decorrentes exclusivamente de ações ou omissões suas, seus representantes ou mandatários, no âmbito da sua atividade definida nas Condições Particulares”.

Finalmente, na cláusula 5ª, sob a epígrafe «exclusões» consignou-se que:

“Não ficam cobertos por esta Apólice:

(…)

f) As perdas, deteriorações, furtos ou roubos de bagagens ou valores entregues pelo cliente à guarda do segurado”

No acórdão recorrido considerou-se que, em consequência do cancelamento da viagem, por razões não imputáveis aos clientes, o reembolso dos valores pagos pelos autores à agência se encontrava coberto pela garantia.

E assim é, efetivamente.

Na verdade, constituindo os danos causados a terceiros o risco típico do seguro de responsabilidade civil, não se vislumbra como desonerar a seguradora da obrigação contratualmente assumida de indemnizar o dano patrimonial sofrido pelos autores (terceiros, cujos interesses são garantidos pelo seguro), o qual teve incontestavelmente lugar no âmbito da atividade desenvolvida pelo segurado.


É, este, aliás, o sentido normativo extraído da declaração negocial (cf. arts. 236º, nº1 e 238º, nº1, do CC) se tivermos em conta, como instrumentos interpretativos, a natureza e o objeto do seguro, o teor das suas cláusulas contratuais, o seu contexto, a sua finalidade e o seu efeito útil, bem como o princípio geral consagrado no art. 11º, do DL nº 446/85 (LCCG), segundo o qual, existindo dúvidas quanto ao entendimento do destinatário[12], prevalece o sentido mais favorável ao aderente/segurado/beneficiário, e que se funda na autorresponsabilidade do declarante e na proteção do destinatário, uma e outra assentes na boa-fé, em sentido objetivo.


***


De igual forma, não tem o mínimo suporte a pretensão da ré de pretender ver excluída a sua obrigação, ao abrigo da clª 5ª, al. f), das condições gerais da apólice que, nesta matéria, aliás, reproduz a al. b), do nº2, do art. 36º, do DL. nº 61/2011, na qual, sob a epígrafe «exclusão da cobertura do seguro de responsabilidade civil» se consigna que são excluídos do seguro de responsabilidade civil, «as perdas, deteriorações, furtos ou roubos de bagagens ou valores entregues pelo cliente à guarda da agência.».

Com efeito, o que resulta das referidas estipulações é que se mostram excluídos da cobertura “(…) os valores entregues pelos clientes à guarda do segurado”.

Ora, no caso em apreço, está em causa o reembolso do preço que os clientes pagaram à agência, como contrapartida pela realização da viagem, e não de quaisquer importâncias pertencentes aos clientes e entregues «à guarda» da agência.

Improcedem, portanto, as alegações da recorrente, também nesta parte.


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IV – Decisão

13. Nestes termos, negando provimento à revista, acorda-se em confirmar o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.


Lisboa, 13 de dezembro de 2018


Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado (Relatora)

José Sousa Lameira

Hélder Almeida

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[1] Para além daquelas que devam ser conhecidas oficiosamente (art. 608.º, n.º 2, in fine, do CPC), o STJ conhece de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações de recurso, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução, entretanto dada a outra ou outras (arts. 608.º, n.º 2, 635.º e 639.º, n.º 1, e 679º, do mesmo diploma), sendo de ter presente que, para este efeito, as «questões» a conhecer não se confundem com os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, aos quais o tribunal o tribunal não se encontra sujeito (art. 5.º, n.º 3, também do CPC).
[2] Este ponto foi alterado pela Relação, no âmbito da apreciação do recurso de facto (cf. fls. 326-328, dos autos). A 1ª instância tinha dado como provado que: “Entre 11.11.2013 e 20.2.2014, foram realizados diversos pagamentos à R., no valor global de € 32.805,00, montante acordado com a Ré de preço da viagem.”.
[3] Cf. Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 5ª edição, págs. 397-398 e 434.
[4] Consta da ata da Audiência Prévia que o mandatário dos autores protestou juntar o documento comprovativo desse pagamento.
[5] Trata-se do acordo de confissão de dívida e de dação em cumprimento, junto a fls. 67-71 dos autos.
[6] Sobre a natureza jurídica deste contrato, e tal como assinala Januário Gomes (Sobre viagens organizadas e férias estragadas, Breves Notas, Liber Amicorum. A Causa dos Direitos dos Consumidores, Mário Frota, págs. 394-395), não obstante as referências contantes deste diploma à compra e venda da viagem, o que está em causa não é propriamente a compra e venda de um bem, mas antes uma prestação de serviços. Parece, assim, mais rigoroso utilizar a terminologia «contrato de viagem organizada».
[7] Este diploma foi entretanto revogado pelo artigo 54.º do Decreto-Lei n.º 17/2018, de 8 de março, atualmente em vigor.
[8] Na aceção que consta do art. 29º, nº7, do DL citado, segundo o qual “consideram-se clientes, para efeitos do disposto no presente artigo, todos os beneficiários da prestação de serviços, ainda que não tenham sido partes no contrato.”.
[9] In “Sobre Viagens Organizadas e "Férias Estragadas", LIBER AMICORUM, MÁRIO FROTA, A CAUSA DOS DIREITOS DOS CONSUMIDORES, 2006, págs. 402-405.
10. Cf. “O Contrato de Viagem Organizada”, in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, Almedina, Maio, 2007.
[11] Sobre esta temática, cf. também Moitinho de Almeida, Contrato de Seguro, Estudos, Coimbra editora, 2009, págs. 115 e ss.
[12] Entendido como o tomador normal ou médio, sem conhecimentos jurídicos especiais que lê e aprecia razoavelmente as cláusulas contratuais.