Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
94/17.0T8BCL-A.G1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: RIBEIRO CARDOSO
Descritores: NOTA DE CULPA
DESCRIÇÃO CIRCUNSTANCIADA DOS FACTOS
Data do Acordão: 11/14/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Área Temática:
DIREITO TRABALHO – CONTRATO DE TRABALHO / INCUMPRIMENTO DO CONTRATO / PODER DISCIPLINAR / CESSAÇÃO DE CONTRATO DE TRABALHO / DESPEDIMENTO POR INICIATIVA DO EMPREGADOR / MODALIDADES DE DESPEDIMENTO / DESPEDIMENTO POR FACTO IMPUTÁVEL AO TRABALHADOR / ILICITUDE DE DESPEDIMENTO.
Doutrina:
- Aníbal de Castro, Impugnação das Decisões Judiciais, 2.ª Edução, p. 111;
- Maria do Rosário da Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, Almedina, 5.ª Edição, p.976 e 977;
- Pedro Furtado Martins, Cessação do Contrato de Trabalho, Principia, 4.ª Edição, p. 208 e ss.;
- Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Volume III, p. 247.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DO TRABALHO (CT): - ARTIGOS 329.º, N.ºS 1 E 2, 353.º, N.º 1 E 382.º, N.º 2, ALÍNEA A).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 05-04-1989, IN BMJ 386/446;
- DE 23-03-1990, IN AJ, 7º/90, P. 20;
- DE 31-01-1991, IN BMJ 403º/382;
- DE 12-12-1995, IN CJ, 1995, III/156;
- DE 18-06-1996, IN CJ, 1996, II/143;
- DE 19-12-2007, PROCESSO N.º 3422/07;
- DE 27-02-2008, PROCESSO N.º 3523/07.
Sumário :

I - A nota de culpa deve conter a descrição circunstanciada dos factos imputados ao trabalhador, em termos de modo, tempo ainda que aproximado, e de lugar, de forma a permitir que aquele organize, de forma adequada, a sua defesa, sob pena de invalidade do procedimento disciplinar.

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça ([1]) ([2])

1 - RELATÓRIO

AA intentou, com o formulário a que se refere o art. 98º-C do C.P.T., a presente ação de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento contra BB, LDA.

A R. apresentou o articulado a que se refere o art. 98º-G, do Código de Processo do Trabalho, no qual, e em resumo, alega que o trabalhador fez suas quantias que recebeu de clientes, indicando uma lista de clientes e valores alegadamente pagos por estes e apropriados pelo trabalhador.

Em contestação e além do mais, o A. invocou a nulidade do processo disciplinar por não conter a descrição circunstanciada dos factos tal como a lei exige, faltando, designadamente, a indicação do tempo, do local e do modo dos factos imputados.

Conclui pedindo:

Deve pois, ser a Ré condenada a pagar ao Autor os créditos salariais a que tem direito por força do despedimento:

i. € 717,60 referente às férias vencidas em 01.01.2017;

ii. € 717,60 referente ao subsídio de férias vencido em 01.01.2017;

iii. € 1,96 referente aos proporcionais de férias de 2018 vencidos à data do despedimento (02.01.2017);

iv. € 1,96 referente aos proporcionais de subsídio de férias de 2018 vencidos à data do despedimento (02.01.2017);

v. € 1,96 referente aos proporcionais de subsídio de Natal de 2017 vencidos à data do despedimento (02.01.2017);

vi. € 1.794,00 correspondentes aos 75 dias referidos no art. 363.º, n.1, aI. d) do CT;

vii. € 313,95 correspondentes créditos de 70 horas, por falta de formação profissional certificada (art.131.º, nº 2 e 132.º, do C. Trabalho);

viii. € 1.435,20, correspondentes às retribuições de Janeiro e fevereiro de 2017, que o Autor deixou de auferir em virtude do despedimento ilícito operado (nº 1 do art. 390.º do C. Trabalho), acrescendo as vincendas.

147. Pelo que, deve ainda a Ré, ser condenada a pagar ao autor as retribuições - onde se incluem salário base, diuturnidades, subsídio de férias, subsídio de natal e férias - que o Autor deixou de auferir desde o despedimento até ao trânsito em julgado da decisão que declare a ilicitude do despedimento (art. 390.º do C. Trabalho)”.

No saneador foi a arguida nulidade do processo disciplinar julgada improcedente.

Inconformado, o A. apelou, na sequência do que foi proferida a seguinte deliberação:

«Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedentes a apelação, concluindo-se pela invalidade do processo disciplinar e pela ilicitude do despedimento, devendo os autos prosseguir tendo em conta este juízo.

Custas pela apelada.»

Desta deliberação recorre a R. de revista para este Supremo Tribunal, impetrando a revogação do acórdão recorrido.

O recorrido contra-alegou pugnando pela manutenção do julgado.

Recebido o recurso e cumprido o disposto no art. 87º, nº 3 do CPT, a Exmª Senhora Procuradora-Geral-Adjunta emitiu douto parecer no sentido da negação da revista.

Notificadas, as partes não responderam.

Formulou a recorrente as seguintes conclusões, as quais, como se sabe, delimitam o objeto do recurso ([3]) e, consequentemente, o âmbito do conhecimento deste tribunal:

1. O trabalhador recorrente propôs ação de impugnação judicial de regularidade e ilicitude do despedimento contra a entidade empregadora, aqui recorrente. Invocou no âmbito dessa ação a nulidade do procedimento disciplinar, sendo que o tribunal de primeira instância considerou não assistir razão ao trabalhador.

2. Em acórdão proferido pelo TRG, foi julgada procedente a apelação do trabalhador, concluindo o mesmo que existia invalidade no processo disciplinar e ilicitude do despedimento.

 3. Não se concorda desta decisão, pelo que da mesma cumpre recorrer visando obter decisão diversa, no sentido da improcedência da apelação do trabalhador.

4. O tribunal de primeira instância proferiu despacho que, no nosso entendimento, não merece reparo visto que refere, nomeadamente: "(...) Ali estão descritas as funções que cabiam ao trabalhador, os factos que no entender da empregadora praticou (apropriação de verbas pertencentes à empregadora, pagas por clientes), e o modo como o faria (emissão de recibos e faturas). Mais discrimina a empregadora os vários clientes em relação aos quais acusa o trabalhador de se ter apropriado de quantias e identifica as quantias específicas relativas a cada um deles. Sendo certo que não são referidas as faturas concretas ou as datas de cada fornecimento de gás que terão estado na origem dos pagamentos alegadamente apropriadas pelo trabalhador, o certo é que perante a imputação que ali é feita teve o autor conhecimento de todos os elementos de facto que lhe eram imputados e dos quais a empregadora pretendia fazer derivar a sua punição disciplinar".

5. Subscrevemos integralmente a posição do Tribunal Judicial, não se compreendendo com que fundamento pode o trabalhador escudar-se no desconhecimento dos factos quando estes se tratam de factos pessoais. O trabalhador chega mesmo a dizer que desconhecia quais os bens fornecidos que constavam no procedimento disciplinar, bem sabendo que tais bens eram gás pois as suas funções eram precisamente essas, a distribuição de botijas de gás.

6. A partir dos factos constantes na nota de culpa facilmente chegaria o trabalhador à conclusão de quais foram os fornecimentos de gás, quais os momentos, as datas e os locais em que os mesmos foram efetuados visto que, como se disse, tais factos passaram-se apenas com o trabalhador.

7. A entidade empregadora não é uma grande sociedade com organização que mantenha um registo de todas as movimentações dos trabalhadores, mais propriamente daqueles que andam a fazer distribuição de bens.

8. Empresas há em que, dada a organização que têm, contém o registo das entregas, possivelmente os seus trabalhadores têm de preencher formulários sempre que entregam o bem x correspondente à fatura y, registar a data, a hora, o nome do trabalhador e a entidade que recebeu assinar uma declaração nesse sentido.

9. Tal não é, de todo, a realidade da entidade empregadora do trabalhador aqui em questão.

10. O modelo de negócio desta empresa assenta em raízes familiares, muito baseada na confiança nos trabalhadores e nos clientes. Pelo que a entidade empregadora não tem registos que lhe permitam adaptar a um formalismo que exige saber quando é que foi entregue botija A ao cliente B no dia C.

11. Foi com base nesta confiança que este trabalhador carregou botijas de gás para um veículo e as entregou aos clientes, sem qualquer género de registo e recebeu em mão o pagamento dos bens sem que haja um controle apurado.

12. Este trabalhador, aproveitando-se de um período frágil na vida societária desta empresa encetou uma série de comportamentos que, pela gravidade e avultado volume, chamaram à atenção da contabilidade da empresa.

13. Tal aconteceu porque grande parte da lista de clientes em dívida para com a sociedade tinham origem em entregas ao domicílio que habitualmente eram concretizadas por aquele trabalhador.

14. O mesmo trabalhava nesta empresa há quase duas décadas - era conhecedor da mesma, de todos os seus clientes e fornecedores, tirando vantagem desse momento, no exercício das funções praticou factos que não deveria ter praticado.

15. Teve a oportunidade de participar no procedimento disciplinar, exigir consultar o mesmo, analisar as faturas em causa, defender-se, inquirir testemunhas por si arroladas, questionar testemunhas arroladas pela empregadora, esclarecer os factos.

16. Em vez de o fazer, refugiou-se num comportamento de inércia, limitando-se em sede de processo judicial a negar que lhe tenha sido possibilitado acesso a todas as informações.

17. A entidade empregadora imputou os factos de que tinha conhecimento, não podendo inventar outros que não tinha.

18. Como sendo as datas.

19. Contrariamente ao que é decidido pela Relação de Guimarães, a partir dos factos constantes na nota de culpa o trabalhador, facilmente, conseguiria precisar as datas em que tais factos foram praticados visto que os mesmos foram praticados exclusivamente por si.

20. Se o trabalhador tivesse quaisquer dúvidas acerca das circunstâncias de tempo, sempre tais dúvidas seriam satisfeitas se tivesse ouvido as testemunhas da entidade empregadora no procedimento disciplinar, nomeadamente CC, o qual é claro a dizer que foi abordado em Setembro de 2016 para pagar uma dívida que já tinha pago ao trabalhador anteriormente.

21.   O direito de defesa do trabalhador nunca esteve em causa, e a maior ou menor minúcia do que é vertido na nota de culpa deve-se ao desconhecimento que a entidade patronal tinha dos factos que, por se terem passado com o trabalhador, esta desconhecia.

22.   A decisão recorrida violou o artigo 382.º do CT, devendo ser alterada por uma outra no sentido da improcedência da apelação do trabalhador, mantendo-se na íntegra o despacho da primeira instância.”

2 – ENQUADRAMENTO JURÍDICO ADJETIVO

Os presentes autos respeitam a ação de impugnação da regularidade e licitude do despedimento, cuja data de instauração é 23 de fevereiro de 2017.

O acórdão recorrido foi proferido em 19 de outubro de 2017.

Assim sendo, são aplicáveis:

- O Código de Processo Civil (CPC) na versão atual;

- O Código de Processo do Trabalho (CPT), também na versão atual.

3 - ÂMBITO DO RECURSO – DELIMITAÇÃO:

Face às conclusões formuladas, a questão submetida à nossa apreciação consiste em saber se o procedimento disciplinar é inválido por falta de descrição circunstanciada na nota de culpa dos factos imputados ao A/trabalhador.

4 - FUNDAMENTAÇÃO

4.1 - OS FACTOS

A matéria de facto julgada provada pelas instâncias é a seguinte:

- Consta da nota de culpa:

O trabalhador/arguido AA está contratado pela empresa e nela exerce funções de transportador de gás. A este funcionário, mais que uma função de entrega domiciliária das encomendas de gás, cabia-lhe a função de receber o valor dos pagamentos, que efetivamente recebia. Assim, durante as suas funções, o trabalhador/arguido, fazia as entregas das encomendas e posteriormente recebia os pagamentos. Porém, era sua função, também, entregar esses ditos valores à entidade empregadora, BB. O que não se realizou.

O trabalhador/arguido recebia os ditos valores e mantinha os mesmos na sua posse, continuando estes na sua posse até à presente data. Quando recebia o pagamento pelo preço dos bens, entregava ao cliente um recibo no qual constava meramente "consumidor final", para prova do pagamento. Posteriormente, emitia fatura em nome do cliente e, para os devidos efeitos, passava a constar na contabilidade da sociedade que aquele cliente ainda tinha aquele montante em dívida (apesar de já o ter pago ao trabalhador/arguido e já ter recebido deste um recibo onde constava "consumidor final"). A entidade empregadora, confiando legitimamente no que o mesmo arguia, e no que constava nas faturas emitidas em nome dos clientes e não pagas, acreditou que os devedores apenas não tinham efetuado o imediato pagamento, deixando os atrasos prolongarem-se. Sendo que só descobriu que os pagamentos já tinham sido realizados quando contactou os clientes, nas últimas duas semanas, que imediatamente esclareceram já terem realizado os pagamentos. De onde se retira que, o trabalhador/arguido foi recebendo os pagamentos e mantendo tais valores na sua posse, valores a que corresponde um total de cerca de € 29.113,82 (vinte e nove mil, cento e treze euros e oitenta e dois cêntimos), ilicitamente, tudo de acordo com o modus operandi descrito. Devedores estes:

DD S.A. - € 69.00

EE - € 481,OO

FF, Lda. - € 46,OO

AA- € 138,00

GG- € 70,OO

HH - € 23,OO

II- € 789,OO

JJ - € 742,OO

KK- € 529,OO

LL - € 567,OO

MM- € 262,OO

NN- € 23,OO

OO, Lda. - € 44,OO

PP Lda. - € 38,OO

QQ- € 92,OO

RR- € 281,OO

SS- € 297,OO

TT- € 69,90

UU- € 23,OO

VV, Lda. - € 122,00

XX- € 538,OO

ZZ- € 787,OO

AAA- € 106,00

BBB- € 90,00

CCC- € 249,OO

DDD- € 1.287, 00

EEE - € 75,OO

FFF- € 408,OO

GGG - € 70.00

HHH- € 718,OO

III- € 838,OO

JJJ- € 74,OO

KKK - € 788,OO

LLL€ 22,00

MMM- € 1.212

NNN - € 75,OO

OOO, Lda. - € 133,OO

PPP - € 694,00

QQQ - € 892,OO

RRR - € 848,OO

SSS - € 65,OO

TTT - € 790,OO

UUU· € 546,OO

VVV. Lda. - € 450,OO

XXX- € 213.50

CC - € 962,OO

ZZZ- € 75,OO

AAA - € 1.642,OO

BBB - € 78,OO

CCC- € 78,OO

DDD- € 23,OO

EEE- € 674,OO

FFF - € 69,OO

GGG- € 40,OO

HHH- € 46,OO

III- € 677,OO

JJJ - € 596,OO

KKK - € 199,OO

LLL - € 23,OO

MMM- € 209,OO

NNN, Lda. - € 44,OO

OOO- € 75,OO

PPP Lda. - € 203,OO

QQQ, Lda. - € 2.254,OO

RRR- € 850,00

SSS- € 861,43

TTT - € 84,OO

UUU- € 773,40

(...)

4.2 - O DIREITO

Vejamos então a referida questão que constitui o objeto do recurso, mas não sem que antes se esclareça que este tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas alegações e conclusões, mas apenas as questões suscitadas ([4]).

4.2.1 – Se o procedimento disciplinar é inválido por falta de descrição circunstanciada na nota de culpa dos factos imputados ao A/trabalhador.

Invocou o A. na contestação a invalidade do procedimento disciplinar pelo facto de não terem sido indicadas na nota de culpa a data da prática dos factos, nem o local da respetiva ocorrência, sendo estes elementos essenciais para permitirem a sua defesa no processo disciplinar.

A 1ª instância considerou que a nota de culpa continha os elementos essenciais designadamente “as funções que cabiam ao trabalhador, os factos que no entender da empregadora praticou”, “o modo como o faria”, “os vários clientes em relação aos quais acusa o trabalhador de se ter apropriado de quantias e identifica as quantias específicas relativas a cada um deles”. E, reconhecendo embora “que não são referidas as faturas concretas ou as datas de cada fornecimento de gás que terão estado na origem dos pagamentos alegadamente apropriados pelo trabalhador”, entendeu que “perante a imputação que ali é feita teve o autor conhecimento de todos os elementos de facto que lhe eram imputados e dos quais a empregadora pretendia fazer derivar a sua punição disciplinar”, podia “o autor convenientemente preparar a sua defesa no âmbito do processo disciplinar”, em face do que julgou “improcedente a exceção de nulidade do procedimento disciplinar por falta de concretização da nota de culpa”.

 Já a Relação entendeu que “a não indicação das datas ainda que aproximadas, ainda que apenas balizadas entre duas datas” não permitiu que o trabalhador tivesse “conhecimento de todos os elementos de facto necessário à preparação da sua defesa”, tornando desde logo “impossível a invocação de eventual caducidade”, em face do que concluiu “pela invalidade do processo disciplinar, e pela ilicitude do despedimento nos termos do artigo 382°, 1 do CT”.

Vejamos.

Preceitua o art. 353º, nº 1 do Código do Trabalho:

Nota de culpa

1 - No caso em que se verifique algum comportamento susceptível de constituir justa causa de despedimento, o empregador comunica, por escrito, ao trabalhador que o tenha praticado a intenção de proceder ao seu despedimento, juntando nota de culpa com a descrição circunstanciada dos factos que lhe são imputados.

E nos termos do nº 2, do art. 382º:

2 - O procedimento é inválido se:

a) Faltar a nota de culpa, ou se esta não for escrita ou não contiver a descrição circunstanciada dos factos imputados ao trabalhador;

Não concretizou, todavia, o legislador quais os requisitos ou em que consiste a imposta descrição circunstanciada dos factos.

Tem este Supremo Tribunal entendido que “[a] nota de culpa desempenha a função própria da acusação em processo-crime: por isso, nela deve constar a descrição circunstanciada, em termos de modo, tempo e lugar, dos factos de onde se extraia a imputação de uma infracção ao trabalhador([5]). “Os comportamentos imputados ao trabalhador, susceptíveis de integrar infracção disciplinar, devem ser descritos na nota de culpa com a narração, tão concreta quanto possível, do circunstancialismo de tempo, lugar e modo em que ocorreram, de forma a permitir ao arguido o perfeito conhecimento dos factos que lhe são atribuídos, a fim de poder organizar adequadamente a sua defesa([6]).

Maria do Rosário da Palma Ramalho, in Tratado de Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, Almedina, 5.ª Edição, pág.976 e 977, refere:

“(…) Deste preceito resulta que a estrutura da nota de culpa deve obrigatoriamente integrar as seguintes indicações:

- a descrição completa e detalhada (i.e, circunstanciada) dos factos concretos que consubstanciam a violação do dever do trabalhador, não bastando, pois, uma simples referência ao dever violado pelo trabalhador, nem, muito menos, a remissão para a norma legal que comina tal dever;

- a referência à infracção a que corresponde o comportamento faltoso do trabalhador; tendo em conta que o comportamento do trabalhador pode ser um comportamento extra-‑laboral (nos termos acima indicados), é nestes casos, especialmente importante o estabelecimento, na nota de culpa, do entre aquele comportamento e o dever laboral relevante para efeitos de despedimento;

- a aferição da gravidade e da culpa do trabalhador na prática de tal infracção, de acordo com os critérios gerais da justa causa para o despedimento enunciados no art. 353.º, n.º1 e 3.

E, em nota de rodapé, acrescenta: “Apesar do modo exigente como a lei se refere à nota de culpa, a jurisprudência tem admitido que as deficiências da nota de culpa se considerem sanadas, desde que, na sua defesa, o trabalhador mostre ter compreendido o teor da nota de culpa (…). É uma posição que se subscreve, tendo em conta a finalidade das exigências de indicação circunstanciada dos factos da nota de culpa: visando estas indicações assegurar o direito de defesa do trabalhador, se este se defende em relação a um facto não completamente circunstanciado, mostra que o conhecia, pelo que a finalidade da norma se deve considerar cumprida.”   

Segundo Pedro Furtado Martins, in “Cessação do Contrato de Trabalho”, Principia, 4.ª edição, pág. 208 e seguintes, “[E]xige-se que a nota de culpa contenha uma “descrição circunstanciada dos factos” de cuja prática o trabalhador é acusado. Significa isto que não basta uma indicação genérica e imprecisa do comportamento imputado ao trabalhador. É necessário especificar os factos em que esse comportamento se traduziu, bem como as circunstâncias de tempo e lugar em que tais factos ocorreram.

(…)

Contudo, importa não sobrevalorizar esta exigência, sob pena de a mesma se poder tornar inultrapassável, a ponto de ser mais difícil elaborar uma nota de culpa do que deduzir uma a acusação em processo penal.

A razão que fundamenta as exigências quanto ao conteúdo da nota de culpa justifica igualmente que as deficiências da nota de culpa se tenham por sanadas sempre que o trabalhador demonstre ter compreendido a acusação. (…) Prevalece o que Monteiro Fernandes designa por “critério de adequação formal” da nota de culpa.

Decidiu esta secção no acórdão referenciado na nota 5: “Se a resposta à nota de culpa revelar que o arguido compreendeu a acusação e exercitou o seu direito de defesa, mostrando pleno conhecimento do circunstancialismo da infracção disciplinar e opondo argumentos idóneos a contrariar a inculpação, a finalidade da referida exigência legal apresenta-se cumprida e a nota de culpa não enferma do vício de insuficiência que, a existir, determinaria a invalidade do processo disciplinar”.

No caso dos autos a empregadora acusou na nota de culpa o trabalhador de ao proceder à entrega do gás aos clientes, receber destes o pagamento. Porém, em vez de entregar os valores recebidos à empregadora, apropriou-se do respetivo valor, no montante total de “cerca de € 29.113,82”. Para o efeito, quando recebia os pagamentos «entregava ao cliente um recibo no qual constava meramente “consumidor final”, para prova do pagamento. Posteriormente, emitia fatura em nome do cliente e, para os devidos efeitos, passava a constar na contabilidade da sociedade que aquele cliente ainda tinha aquele montante em dívida (apesar de já o ter pago ao trabalhador/arguido e já ter recebido deste um recibo onde constava “consumidor final”».

Não se menciona, todavia a data, ainda que aproximada, em que o trabalhador fez as entregas do gás e recebeu os respetivos pagamentos.

Alega a recorrente desconhecer as datas em que tal ocorreu.

Consta porém, na nota de culpa que, após os recebimentos e entrega dos recibos, o arguido emitia as respetivas faturas em nome dos clientes. Ora, estando estes documentos na posse da empregadora (é referido na nota de culpa: “passava a constar na contabilidade da sociedade que aquele cliente ainda tinha aquele montante em dívida”) e tratando-se, como se trata, de documentos datados (cfr. documento. de fls. 41), conclui-se que a empregadora tinha conhecimento da data, ainda que aproximada, em que o arguido terá cometido a imputada apropriação.

Como bem refere a Relação, pese embora as menções quando ao modo de atuação do arguido contidas na nota de culpa e a indicação dos clientes e respetivos valores sejam suficientemente circunstanciadas, a completa omissão da referência temporal em que terá ocorrido a prática dos factos, é suscetível de não permitir ao arguido “organizar adequadamente a sua defesa”, designadamente invocando a eventual caducidade e prescrição (art. 329º, nº 2 e nº 1, do CT).

E não é por serem do conhecimento do trabalhador as datas em que terá praticado os factos, caso os tenha praticado, bem como as demais circunstâncias em que terão ocorrido, que dispensa a empregadora de os situar no tempo na nota de culpa, numa palavra, de fazer constar nesta a descrição circunstanciada dos factos imputados ao trabalhador, de forma a permitir que este organize, de forma adequada, a sua defesa.

É claro que, como referido na jurisprudência e na doutrina atrás transcrita, se apesar da nota de culpa não conter a descrição suficientemente circunstanciada dos factos imputados em termos de modo, tempo e lugar, a resposta à nota de culpa “revelar que o arguido compreendeu a acusação e exercitou o seu direito de defesa, mostrando pleno conhecimento do circunstancialismo da infracção disciplinar e opondo argumentos idóneos a contrariar a inculpação, a finalidade da referida exigência legal apresenta-se cumprida”.

Sucede porém, que, no caso, o trabalhador não respondeu à nota de culpa.

Consta da nota de culpa que a empregadora “só descobriu que os pagamentos já tinham sido realizados quando contactou os clientes, nas últimas duas semanas, que imediatamente esclareceram já terem realizado os pagamentos”.

Esta referência temporal apenas releva para efeitos de caducidade do procedimento disciplinar (art. 329º, nº 2, do CT) mas já não para efeitos de prescrição do direito de exercer o poder disciplinar (art. 329º, nº 1, do CT).

Em suma, sendo a nota de culpa omissa quanto à data, ainda que aproximada, da prática dos factos e não tendo o trabalhador respondido à nota de culpa, não se  mostra cumprido o estabelecido no art. 353º, nº 1, do CT, o que acarreta, como concluiu a Relação e o estabelece o art. 382º, nº 2, al. a), do CT, a invalidade do procedimento disciplinar e a consequente ilicitude do despedimento.

5 - DECISÃO

Pelo exposto delibera-se:

1 – Negar a revista e confirmar o acórdão recorrido;

2 – Condenar a recorrente nas custas da revista.

Anexa-se o sumário do acórdão.


Lisboa, 14.11.2018


Ribeiro Cardoso (Relator)


Ferreira Pinto


Chambel Mourisco

_________________
[1] Relatório elaborado tendo por matriz o constante no acórdão recorrido.
[2] Acórdão redigido segundo a nova ortografia com exceção das transcrições (em itálico) em que se manteve a original.
[3] Cfr. 635º, n.º 3 e 639º, n.º 1 do Código de Processo Civil, os Acs. STJ de 5/4/89, in BMJ 386/446, de 23/3/90, in AJ, 7º/90, pág. 20, de 12/12/95, in CJ, 1995, III/156, de 18/6/96, CJ, 1996, II/143, de 31/1/91, in BMJ 403º/382, Rodrigues Bastos, in “NOTAS AO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL”, vol. III, pág. 247 e Aníbal de Castro, in “IMPUGNAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS”, 2ª ed., pág. 111.    
[4] Ac. STJ de 5/4/89, in BMJ, 386º/446 e Rodrigues Bastos, in NOTAS AO Código de Processo CivIL, Vol. III, pág. 247, ex vi dos arts. 663º, n.º 2, 608º, n.º 2 e 679º do CPC.
[5] Acórdão desta secção de 19.12.2007, proc. 3422/07 (Bravo Serra).
[6] Acórdão desta secção de 27.02.2008, proc. 3523/07 (Vasques Dinis).