Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3763/18.3T8LSB.L1-A.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
DUPLA CONFORME
FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE
NULIDADE DE ACÓRDÃO
ÓNUS DA PROVA
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
RECLAMAÇÃO
DESPACHO SOBRE A ADMISSÃO DE RECURSO
REJEIÇÃO DE RECURSO
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Data do Acordão: 05/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO - ARTº 643 CPC
Decisão: RECLAMAÇÃO INDEFERIDA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
Decisão Texto Integral:
I – Relatório


A Autora propôs ação declarativa de condenação contra ANDRITZ HYDRO GMBH - SUCURSAL EM PORTUGAL[1] e ANDRITZ HYDRO GMBH - SUCURSAL EM PORTUGAL[2]

Para tanto alegou, em síntese, que, em março de 2014, as Rés adjudicaram à Autora o aluguer, com montagem, de diverso material de andaime para a obra .., sita em ..., ..., e que, findo o contrato de aluguer em dezembro de 2014, as Rés não devolveram à Autora todo o equipamento alugado, tendo ficado por devolver as peças discriminadas no documento junto como Doc. 76 no valor de € 112.917,60.

Invoca que as Rés devem à Autora uma indemnização correspondente a 65% do valor do material que ficou por devolver, no total de € 73.396,44 (€112.917,60 - 35%) e uma indemnização pelo período de tempo em que a Autora ficou privada da posse e do gozo desse material até efetivo pagamento do seu valor, vencida até 31/01/2018, na quantia de € 161.686,30, calculada de acordo com a seguinte fórmula: €112.917,60 (valor do material para devolver) * 3,87% (taxa de aluguer) x 37 meses (desde 31/12/2014, data em que o contrato findou, até 31/01/2018).

A Ré apresentou contestação, excecionando a ilegitimidade passiva da 2a Ré, Andritz Alemanha, e a ineptidão da petição inicial, e alegando, em síntese, por impugnação, que a adjudicação a que a Autora refere no art.0 4o da p.i. foi feita apenas pela Ré Andritz Áustria para o Escalão Montante da obra, que os documentos juntos pela Autora com a petição inicial com os n°s 10 a 75 são alheios às Rés, por na maioria das vezes nem se encontrarem assinados por todas as partes indicadas no respetivo documento, que em todas as notas de saída juntas pela Autora aos autos consta como "obra de destino" o Escalão Jusante e como destinatário a Andritz Alemanha, a Autora juntou documentos relativos a serviços prestados à Andritz Alemanha e no âmbito de uma obra diferente, a do Escalão Jusante, serviços estes que não se subsumem ao contrato no qual a Autora fundou a ação, contrato este celebrado com a Andritz Áustria e relativo ao Escalão Montante.

A final, foi sentenciada a causa nestes termos:

Decisão. Pelo exposto: 1.   Julgo a 2a Ré - ANDRITZ HYDRO GMBH-SUCURSAL EM PORTUGAL, pessoa coletiva   n°   980394821   -   parte   ilegítima, em   termos   substanciais, e, em consequência, absolvo-a dos pedidos contra si deduzidos pela Autora, ULMA PORTUGAL - COFRAGENS E ANDAIMES, LDA, pessoa coletiva n° 501246274. 2. Julgo improcedente, por não provada, a presente ação e, em consequência, absolvo a 1a Ré - ANDRITZ HYDRO GMBH-SUCURSAL EM PORTUGAL, pessoa coletiva n° 980395461 - dos pedidos contra si deduzidos pela Autora, ULMA PORTUGAL - COFRAGENS E ANDAIMES, LDA, pessoa coletiva n° 501246274.”.

A autora ULMA PORTUGAL - COFRAGENS E ANDAIMES, LDA não se conformou com tal decisão, pelo que interpôs recurso de apelação, impugnando parte da decisão proferida sobre a matéria de facto e de direito, invocando erro na apreciação das provas e na aplicação do direito, concluindo pela revogação da Sentença recorrida, com a condenação da R. nos termos peticionados na petição inicial.

O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 14.7.2020, apreciando as questões suscitadas naquele recurso, considerando que devia manter-se “inalterada” “a matéria de facto fixada pelo tribunal a quo” – razão por que entendeu “não merece qualquer censura o enquadramento jurídico que lhe foi dado na sentença recorrida.” – , decidiujulgar a apelação improcedente, mantendo, em consequência, a decisão recorrida.”.

Ainda inconformada, a Autora interpôs recurso de revista comum, concluindo que deve “ser revogado o Acórdão recorrido, decidindo-se já neste Venerando Supremo Tribunal pela condenação da R./Recorrida pelos prejuízos sofridos pela A./Recorrente, no que vier a ser liquidado (arts. 609°, n° 2, e 358°, n° 2, do CPC) ou, se assim não se entender, devem os autos baixar às Instâncias a fim de ser ampliada a decisão de facto em ordem a constituir base suficiente para a decisão de Direito (art. 682°, n° 3, do CPC).”.

Por despacho do Ex.mo Desembargador Relator, de 20.11.2020, o recurso de revista assim interposto não foi, porém, admitido, com fundamento na sua inadmissibilidade, dada a verificação de dupla conforme, prevista no art.º 671.º, n.º 3, do CPC.

Mais uma vez não conformada com a decisão de não admissão do recurso de revista, a Autora Ulma Portugal – Cofragens de Andaimes, Lda, veio deduzir reclamação (artº 643º CPC), pugnando pela admissibilidade do recurso de revista por entender não existir dupla conforme, atendendo a que (segundo diz) a sentença da 1ª instância não proferiu “decisão quanto à questão da inversão do ónus da prova”, questão sobre que se debruçou a Relação que decidiu não se verificar in casu os pressupostos dessa invocada inversão do ónus.

Mais arguiu a Autora/Apelante, perante a Relação, três nulidades processuais, as quais, diz, devem ser julgadas pelo tribunal da Relação.

A Ré respondeu, defendendo a inadmissibilidade da revista, por se verificar a dupla conforme.


**


Foi proferida, pelo Relator, decisão de não admissão do recurso, com a seguinte fundamentação:

« Dispõe o n.º 3 do seu art.º 671.º do CPC:

“Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte”.

Não estamos perante caso em que o recurso é sempre admissível (artº 629º, nº 2 CPC).

Por isso, impõe-se ver se a situação presente está abrangida pelo n.º 3, acabado de transcrever, ou seja, se ocorre a designada dupla conforme, a impedir a revista.

Para tal, há que ver se se verificam os respectivos requisitos.

O acórdão recorrido confirmou, sem voto de vencido, a decisão da primeira instância.


E fê-lo sem fundamentação essencialmente diferente?

É esta a única questão – ou, melhor, o requisito daquela dupla conforme – que cumpre verificar se está preenchido.

Como visto, o Tribunal da Relação manteve na íntegra a decisão da primeira instância.

E a fundamentação da Relação foi, sem dúvida, salvo melhor opinião, essencialmente a mesma (senão mesmo a mesma...).

Veja-se que a Relação, quanto à impugnação da decisão da matéria de facto, concluiu, simplesmente, que a mesma se mantém inalterada. E, de imediato, quanto à decisão de direito, limitou-se, no essencial, a dizer que “não merece qualquer censura o enquadramento jurídico que lhe foi dado na sentença recorrida”.


O ponto (ou questão) em que se sustenta a Reclamante para ver vingar a sua pretensão, é o atinente ao ónus da prova.

Ora, como é bom de ver, sendo certo que o caminho trilhado pela 1ª instância e pela Relação, para responder a esta pergunta, não foi literalmente igual, o certo é que ambas chegaram ao mesmíssimo resultado: o ónus da prova da factualidade central da causa (a não devolução pela ré dos materiais que lhe foram locados pela Autora) pertencia à Autora/demandante – porque assim é, simplesmente, no entendimento da 1ª instância[3], ou porque assim acaba por ser, no entendimento da Relação, na medida em que a Autora não alegou em momento algum do processo[4] factualidade tendente a demonstrar que a Ré, culposamente, lhe tornou impossível a prova do referido facto (o vertido na al. d) dos factos não provados[5]). Aliás, tal aspecto da inversão do ónus da prova nem sequer deveria a Relação apreciar, na medida em que apenas em sede de recurso foi suscitada pela Apelante!

Assim, ambas as instâncias acabaram, afinal, por seguir a mesma fundamentação/solução jurídica: pela aplicação do disposto no artº 342º do CC – ou seja, que o ónus da prova do facto ínsito na aludida al d) dos factos não provados pertencia à Autora (sem que houvesse qualquer inversão do ónus da prova – inversão essa, repete-se, que apenas em sede de alegações de recurso de apelação é trazida à liça.

Ora, é mais ou menos pacífico na jurisprudência deste Supremo Tribunal que para haver uma fundamentação essencialmente diferente (para afastar a dupla conforme), impõem-se que a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radicalmente ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada. Ou seja, quando esse acórdão da Relação se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1.ª instância[6].

Ou como se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Abril de 2015 (relator ABRANTES GERALDES)[7]:

“A restrição ao conceito de dupla conforme que resulta do NCPC não pode servir de pretexto para restaurar de pleno o terceiro grau de jurisdição que o legislador de 2007 limitou e que o NCPC seguramente não pretendeu introduzir”.

“Não integram o conceito de “fundamentação essencialmente divergente” discrepâncias marginais, secundárias, periféricas, que não representam efectivamente um percurso jurídico diverso; assim como os casos em que a diversidade de fundamentação se traduz apenas na não aceitação, pela Relação, de uma das vias trilhadas para atingir o mesmo resultado; ou ainda os casos em que a Relação, aderindo à fundamentação da 1ª instância, acrescenta, como reforço, em termos cumulativos ou subsidiários, outros fundamentos”.

Ou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Fevereiro de 2018 (relatora ROSA RIBEIRO COELHO)[8]: “Para descaracterização da figura da dupla conformidade de julgados apenas releva uma essencial dissemelhança de fundamentações.

Só pode considerar-se existente – no âmbito da apreciação da figura da dupla conforme no NCPC – uma fundamentação essencialmente diferente quando a solução jurídica do pleito na Relação tenha assentado, de modo radical ou profundamente inovatório, em normas,  interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada.

Ou, ainda, como reza o Ac. do STJ de 8/2/2018[9], para aferir da sua desconformidade e da admissibilidade da revista normal, para além dos demais pressupostos, é necessário “que a fundamentação da sentença e do acórdão seja diversa e que tal diversidade tenha natureza essencial, desconsiderando-se, para este efeito, discrepâncias marginais, secundárias ou periféricas, que não representem efetivamente um percurso jurídico diverso e bem ainda a mera diferença de grau, no tocante à densidade fundamentadora, e divergências meramente formais ou de pormenor”[10].


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Uma palavra final acerca da alegação, pela Reclamante, de que “também arguiu perante o Tribunal da Relação de Lisboa três nulidades processuais”, que diz deverem ser apreciadas. Não tem qualquer razão, salvo melhor opinião. Com efeito, a invocação da nulidade do acórdão também é irrelevante, para este efeito, pois que, como bem observa ABRANTES GERALDES[11] - citado no Ac. do STJ de 12.01.2021 (FERNANDO SAMÕES), proc. 492/13.8TBPDL.L1-A.S1 (que assim também entendeu – precisamente, também, na sequência de uma reclamação) – , ela não prejudica a existência de dupla conformidade.

*


Assim sendo, não podemos deixar de dar razão à Reclamada/ Autora/Recorrida: para o que aqui importa, ambas as instâncias decidiram do mérito da causa de maneira clara e uniforme – sem fundamentação essencialmente diferente (aliás,...com fundamentação, no fundo, praticamente igual – qual seja, de que ónus da prova quanto aos factos alegados pendia sobre a Reclamante).

Daqui, portanto, que nos parece inequívoca a verificação da dupla conforme, obstáculo à admissibilidade da revista. (…).

Termos em que se indefere a reclamação, mantendo-se o despacho reclamado.».


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A Autora reclama, desta decisão, para a Conferência, alegando, em suma: 1. Que, apesar de na 1ªinstãncia e da Relação se ter chegado ao mesmo resultado decisório quanto à repartição do ónus da prova, trata-se de duas decisões com diferentes fundamentos e, como tal, assentando …em fundamentação essencialmente diferente. 2. Que essa questão da inversão do ónus da prova é questão nova, só suscitada na Relação e daí não haver dupla conforme, para além de que é agora irrelevante saber se a Relação podia ou não ter conhecido dessa “questão”, já que, bem ou mal, dela conheceu.

Respondeu a Ré/Recorrida e reclamada Andritz Hydro GMBH, pronunciando-se pelo indeferimento da Reclamação.

II – Da admissibilidade do recurso

Crê-se que a fundamentação vertida supra no despacho do aqui Relator, na Reclamação apresentada, é clara e acertada, justificando a não admissibilidade do recurso de revista apresentado, por dupla conforme, com a confirmação do despacho anteriormente proferido pelo Relator na Relação.

Deixam-se, porém, algumas adicionais considerações.


*

Quando o conteúdo da decisão da Relação é precisamente a mesmo da que foi proferida na 1.ª instância, apenas é possível recorrer de revista comum para o Supremo Tribunal de Justiça se o acórdão da Relação tiver sido subscrito com um voto de vencido ou se a sua fundamentação for essencialmente diversa da que fundamentou a decisão da 1.ª instância.

Quanto ao conceito de fundamentação essencialmente diferente (capaz de afastar a dupla conforme), remete-se para os arestos do STJ supra citados, na decisão do Relator, que estão em sintonia com o entendimento, pelo menos maioritário, que vem sendo seguido por este Supremo Tribunal.

E, como ali ficou dito, para haver uma fundamentação essencialmente diferente (capaz de afastar a dupla conforme), impõe-se que a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radicalmente ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada. É necessário, portanto, que esse acórdão da Relação se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1.ª instância. Não basta que a Relação, aderindo à fundamentação da 1ª instância, acrescente, como reforço, em termos cumulativos ou subsidiários, outros fundamentos para chegar ao mesmíssimo resultado, não se podendo, então, afirmar que seguiram linhas de pensamento autónomas.


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No caso presente, em que as decisões das instâncias coincidem, sem voto de vencido, apenas a verificação de fundamentações essencialmente diversas poderia justificar o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça através de interposição de recurso de revista comum.

Lendo o acórdão recorrido e a sentença, parece evidente que as decisões são coincidentes.

Com efeito, após apreciar a impugnação da decisão da matéria de facto, a Relação limita-se, em matéria de direito, a consignar o seguinte:

«Do enquadramento jurídico:

Inalterada que fica a matéria de facto fixada pelo tribunal a quo, não merece qualquer censura o enquadramento jurídico que lhe foi dado na sentença recorrida.

Aliás, conforme decorre das alegações e das conclusões apresentadas pela apelante, o essencial deste recurso residia na impugnação da decisão sobre o enunciado vertido em d) dos factos não provados.».

E sem mais, avança para a “DECISÃO”.

Ou seja, parece claro que a Relação entendeu acompanhar nos mesmíssimos termos a sentença da 1ª instância. O que o já apontado segmento do dispositivo bem patenteia: “Inalterada que fica a matéria de facto fixada pelo tribunal a quo, não merece qualquer censura o enquadramento jurídico que lhe foi dado na sentença recorrida”.

“Agarra-se” a reclamante à pretensa “inversão do ónus da prova” para, com sustento na resposta aqui dada pela Relação, sustentar a inexistência de dupla conforme, na medida em vê nela uma questão autónoma e cuja solução assentou em “fundamentação essencialmente diferente”.

Sem razão, salvo o devido respeito.

Como ficou dito na decisão singular, embora o caminho trilhado pela 1ª instância e pela Relação, para responder à questão do ónus da prova, não tenha sido literalmente igual, a verdade é que ambas as instâncias chegaram ao mesmíssimo resultado: que o ónus da prova da factualidade central da causa (a não devolução pela ré dos materiais que lhe foram locados pela Autora) pertencia à Autora/demandante. Ou porque tão simplesmente é assim, no entendimento da 1ª instância, atento o disposto no artº 342º do CC[12], ou porque assim acaba por ser, no entendimento da Relação, na medida em que a Autora não alegou em momento algum do processo[13] factualidade tendente a demonstrar que a Ré, culposamente, lhe tornou impossível a prova do referido facto (o vertido na al. d) dos factos não provados[14]).

Assim se pode dizer que a questão do ónus da prova, esta, sim, é a verdadeira questão, pois a alegada inversão do ónus apenas se insere ou faz parte da questão (essencial, em causa na demanda) que é (repete-se) precisamente a de saber sobre quem incide o ónus da prova. E esta questão (do ónus da prova) foi apreciada e decidida de forma igual em ambas as instâncias, tendo nelas merecido a mesmíssima solução: não há qualquer inversão do ónus, cabendo o mesmo à Autora. E não tendo esta logrado fazer a prova que impendia sobre si (prova que sobre si sempre incidiria, pois, como se diz no Ac. da Relação, a A. não alegou, sequer, em momento algum do processo factualidade que pudesse suportar qualquer pretensão de fazer funcionar a referida inversão do ónus), a solução não podia ser outra senão a improcedência da acção (artº 342º CC).

Bem se pode dizer que, afinal, o resultado seria sempre o mesmo: não havendo alegação de factos que estribam a alegada inversão do ónus probatório, sempre nos ficaríamos pela decisão tomada em ambas as instâncias: improcedência, e precisamente por falta de prova pela A. dos factos cujo ónus de prova sobre si impedia.


As questões elencadas pela Relação e de que conheceu eram estas, e apenas estas, que enunciou:

“À luz destes considerandos, neste recurso importa decidir:

a) se o tribunal a quo errou no julgamento da decisão sobre a matéria de facto e, consequentemente, se há lugar à sua alteração;

b) se a ré Andritz Áustria deve ser condenada a pagar, total ou parcialmente, as quantias reclamadas pela autora nesta ação.”.

A Relação respondeu negativamente a ambas estas duas questões que enunciou.


Ora, foi precisamente na apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto que o Tribunal da Relação (mais precisamente na impugnação, pela A., da resposta dada ao facto contido na al. d) dos pontos de facto não provados - a Autora entendia que o vertido nessa al. d) deve ser considerado provado) deixou “uma primeira nota sobre a pretendida inversão do ónus da prova!”. E é a própria Relação a apelidar o que escreveu sobre a tal inversão do ónus, de meros considerandos, antes de entrar na questão (essa, sim) do alegado “erro de julgamento na decisão de considerar não provado o enunciado vertido em d) dos factos não provados.”.

Ou seja, o que a Relação escreveu – os tais meros considerandos – mais não é do que mera fundamentação ou argumentação na ou para a apreciação da decisão da matéria de facto. Não é o trato de uma questão propriamente dita, assim especificada, com autonomia própria.  

Dito de outra forma: no que tange, em específico, à alegada inversão do ónus da prova (repete-se, a que a Reclamante se agarra para lograr a admissibilidade da revista), a Relação tão somente se limitou a tecer algumas considerações laterais, mas que não alteram o cerne da motivação jurídica fundamentadora do pleito. Afinal, o que estava em “cima da mesa” era a questão, não de inversão de ónus, mas do ónus da prova. Sobre aquela “inversão”, o que a Relação disse foi, afinal, chamar a atenção de que, como já referido, “em momento algum do processo, anterior à interposição do recurso, a autora, ora apelante, alegou qualquer factualidade suscetível de, uma vez provada, demonstrar que a ré Andritz Áustria, ora apelada, culposamente, lhe tornou impossível a prova do enunciado vertido em d) dos factos não provados”.

Portanto, quanto à tal “inversão do ónus da prova”, as considerações jurídicas tecidas pela Relação não apenas não têm a virtualidade ou “potencialidade” para lograr a alteração da decisão de não admissibilidade da revista, por existência de dupla conforme, como (a  bem dizer) nenhumas considerações jurídicas precisava, sequer, a Relação de tecer sobre tal inversão do ónus, na medida em que, antes de tais considerações (que denominou de meros meros considerandos), começou logo por advertir que em momento algum do processo, anterior à interposição do recurso, a autora, ora apelante, alegou qualquer factualidade” tendente (ou capaz) à análise da mesma hipotética inversão do ónus probatório.

Quanto às citações feitas, pela Reclamante, de doutos arestos deste STJ, em nada alteram o que se escreveu na decisão singular, pois tais arestos vão, afinal, no mesmíssimo sentido que ali se perfilhou relativamente ao conceito de dupla conforme e fundamentação essencialmente diferente. E obviamente que nada há a objectar ao vertido em tais arestos no que tange à dupla conforme em caso de decisão proferida apenas pela Relação. Olvida a Reclamante, porém, que tais arestos se reportam a decisões autónomas proferidas na Relação sobre questões igualmente autónomas ali suscitadas. O que, como vimos, não é o caso presente: aqui, às duas únicas questões suscitadas e que a Relação enunciou (da impugnação da decisão da matéria de facto – sentido a dar à matéria da al. d) dos factos não provados – e do ónus da prova), ambas as instâncias responderam no mesmíssimo sentido. E se, aqui e/ou ali com argumentação não totalmente coincidente, tal não desvirtua a existência da dupla conforme, como se deixou dito e demostrado na decisão singular do Relator.

Ou seja – como tem sido decidido por este Supremo Tribunal – o diferente entendimento jurídico-qualificativo, sem qualquer relevância para o desfecho da acção, está muito longe de ser suficiente para que se possa afirmar que estamos perante fundamentações essencialmente diversas, para os efeitos do artigo 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

Bem se pode dizer que, in casu, a tal “questão” a que se prende a Reclamante (de saber quem tem o ónus da prova) foi apreciada de forma uniforme pelo Tribunal de 1ª Instância e pelo Tribunal da Relação:

A 1ª Instância disse, com toda a clareza, o seguinte: “Do exposto, resulta que a Autora não logrou demonstrar, ónus que lhe competia, os factos cuja prova dependia a procedência da presente ação (art.º 342.º, 1, do CPC), pelo que cumpre julgar totalmente improcedente, por não provada, a presente ação e absolver também a dos pedidos contra si deduzidos pela Autora.”.

Já a Relação, começando por antecipar a confirmação do dito na sentença, começa logo por consignar/advertir que “sempre se dirá, no entanto, que inexiste, in casu, qualquer situação suscetível de inverter a regra contida no n.º 1 do art. 342º do Cód. Civil relativa ao ónus da prova.”, passando, depois, a tecer alguns (meros) considerandos sobre a inversão do ónus da prova, onde, além do mais, observa que a Autora não alegou, “no(s) momento(s) processual(ais) próprio(s), factos que pudessem servir de suporte a eventual pretensão de inversão daquele ónus. Isto, para... voltar ao princípio e, chamando o citado artº 342º do CC, rematar tal e qual rematou ou decidiu a 1ª instância.

Ou seja, ambos os Tribunais concluíram pela mesma decisão e com a mesma essencial fundamentação jurídica: aplicação do artigo 342º do Código Civil, no que toca ao ónus da prova.


Em suma:

Para o que aqui interessa, cremos não haver dúvidas de que as duas instâncias decidiram de maneira clara e uniforme que o ónus da prova quanto aos factos alegados pendia sobre a Reclamante. E é neste ponto que se pode encontrar a dupla conforme (sendo, aqui, de todo irrelevante os argumentos jurídicos que a Reclamante foi apresentando, nomeadamente, já em sede de apelação, uma alegada inversão do ónus da prova).

Por estas razões, o recurso não é admissível, nos termos do aludido artigo do Código de Processo Civil, devendo ser indeferida a reclamação apresentada.


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Decisão

Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada pela Autora/Recorrente, confirmando-se a decisão reclamada.


*

Custas do incidente pela Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC.


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Nos termos do artigo 15º-A do Decreto-Lei n.º 10-A, de 13 de Março, aditado pelo Decreto-Lei nº 20/20, de 1 de maio, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade dos restantes juízes que compõem este colectivo.

                       

Lisboa, 13.05.2021


Fernando Baptista (Juiz Conselheiro Relator)

Vieira e Cunha (Juiz Conselheiro 1º Adjunto)

Abrantes Geraldes (Juiz Conselheiro 2º Adjunto)

_______

[1] Doravante identificada por "ré Andritz Áustria”.
[2] Doravante identificada por "ré Andritz Alemanha".
[3] “...a Autora não logrou demonstrar, ónus que lhe competia, os factos cuja prova dependia a
procedência da presente ação (art.º 342.º, nº 1, do CPC)” – diz a sentença.
[4] Diz-se no Ac. da Relação.
[5] “Que, após o termo do contrato de aluguer celebrado com a 1a Ré, em dezembro de 2014, esta não tivesse devolvido
à A. as peças que constam do documento junto de fls. 181 verso a 182 verso, no valor de € 112.917,60.”.
[6] Assim entendendo, pode ver-se, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Abril de 2014 (proc. nº 473/10.3TBVRL.P1-A.S1), de 18 de Setembro de 2014 (proc. n.º 630/11.5TBCBR.C1.S1), de 28 de Maio de 2015 (proc. n.º 1340/08.6TBFIG.C1.S1), de 16 de Junho de 2016 (proc. n.º 551/13.7TVPRT.P1.S1) e de 29 de Junho de 2017 (proc. n.º 398/12.8TVLSB.L1.S1), todos acessíveis através de www.dgsi.pt].
[7] Publicado in Colectânea de Jurisprudência/STJ, Ano XXIII, tomo I, paginas 201 a 202.
[8] Publicado in Colectânea de Jurisprudência on line.
[9] Processo n.º 2639/13.5TBVCT.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[10] Ainda neste sentido, FRANCISCO M. LUCAS FERREIRA DE ALMEIDA, in Direito Processual Civil,
2015, Almedina, págs. 501 e 502.
[11] Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª edição, pág. 369.
[12] “...a Autora não logrou demonstrar, ónus que lhe competia, os factos cuja prova dependia a
procedência da presente ação (art.º 342.º, nº 1, do CPC)” – diz a sentença.
[13] Diz-se no Ac. da Relação.
[14] “Que, após o termo do contrato de aluguer celebrado com a 1a Ré, em dezembro de 2014, esta não tivesse devolvido
à A. as peças que constam do documento junto de fls. 181 verso a 182 verso, no valor de € 112.917,60.”.