Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
8910/18.2T8LSB.L1.S1-A
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: JÚLIO GOMES
Descritores: RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Data do Acordão: 06/01/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (CÍVEL)
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO.
Sumário :

I- Não há oposição entre dois Acórdãos quando se verifica que no Acórdão fundamento a mora do empregador no pagamento da retribuição não atingiu os sessenta dias, não operando a presunção de culpa e não se tendo provado culpa grave do empregador, ao passo que no Acórdão recorrido a mora se prolongou por mais de sessenta dias, fazendo operar a presunção.

II- O facto de em um caso ter sido considerada abusiva a resolução do contrato pelo trabalhador e no outro não, não traduz uma oposição de decisões, mas a aplicação de critérios similares a situações distintas.

Decisão Texto Integral:


Processo n.º 8910/18.2T8LSB.L1.S1-A

Acordam, em Conferência, na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,

Hiperfrio – Refrigeração Industrial e Comercial, Lda., veio, ao abrigo do disposto no artigo 692.º, n.º 2 do CPC reclamar para a Conferência do despacho do Relator que não admitiu o recurso de uniformização de jurisprudência que interpôs.

Foi o seguinte o teor do despacho objeto da presente Reclamação para a Conferência:

“Hiperfrio - Refrigeração Industrial e Comercial, Lda., interpôs recurso extraordinário de uniformização de jurisprudência, apresentando as seguintes Conclusões:

A. Pelo presente recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, vem a Recorrente reagir contra o Acórdão proferido pelo STJ a 26-01-2022 (Acórdão recorrido), que decidiu, por maioria, negar a revista à Recorrente, confirmando a decisão do Acórdão do Tribunal da Relação.

B. Decorre da conjugação dos artigos 688.º e 689.º, ambos do CPC, que a lei processual civil faz depender a admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência da existência de determinados pressupostos, uns de natureza formal e outros de natureza substancial, aos quais acresce a obrigação de o recorrente identificar as normas jurídicas que foram violadas pelo Acórdão recorrido, quer por erro de interpretação ou de aplicação das normas, quer por erro na determinação do direito aplicável, em termos semelhantes aos que decorrem do artigo 674.º, n.º 1, al. a) e b) do CPC – vide artigos 12.º a 23.º das alegações de recurso.

C. Tais pressupostos, que têm sido concretizados, quer pela jurisprudência (vide Acórdãos do STJ enunciados no artigo 15.º das alegacões de recurso), quer pela doutrina (vide Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, pp. 383-392), estão todos reunidos no presente caso, devendo, por conseguinte, o presente recurso ser admitido pelo Exmo. Senhor Relator, aquando da sua apreciação liminar prevista no artigo 692.º do CPC, e posteriormente decidido pelos Venerandos Juízes Conselheiros.

D. Os requisitos de natureza formal (enunciados no artigo 13.º das alegacões de recurso, para o qual se remete) estão todos preenchidos, já que: a) A Recorrente interpõe o presente recurso dentro do prazo de 30 dias contados do trânsito em julgado do Acórdão recorrido, sendo o mesmo, por conseguinte, tempestivo – vide artigos 25.º a 32.º das alegacões de recurso;

b) A Recorrente identifica o Acórdão do STJ que está em oposição com o Acórdão recorrido, e do qual junta cópia, em cumprimento do disposto no artigo 81.º, n.º 2 do CPT e dos artigos 637.º, n.º 2, 2.ª parte, e 690.º, n.º 2 do CPC – vide artigo 33.º das alegacões de recurso; e

c) Ambos os Acórdãos do STJ (Acórdão recorrido e Acórdão fundamento) já transitaram em julgado – vide artigos 34.º a 36.º das alegacões de recurso.

E. No que toca aos requisitos de natureza substancial, enunciados no artigo 14.º das alegacões de recurso, para o qual se remete, tem-se entendido que o pressuposto essencial é o da contradição jurisprudencial, o qual pressupõe que as soluções alegadamente em conflito:

a) Correspondem a interpretações divergentes de um mesmo regime normativo, situando-se ou movendo-se no âmbito do mesmo instituto ou figura jurídica fundamental;

b) Têm na sua base situações materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo sejam análogas ou equiparáveis, pressupondo o conflito jurisprudencial uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto;

c) A questão fundamental de direito em que assenta a alegada divergência assume um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso, ou seja, que integre a verdadeira ratio decidendi dos Acórdãos em confronto; - nesse      sentido vide Acórdãos    do STJ, de 02-10-2014, Processo n.º 268/03.0TBVPA.P2.S1-A, e de 29-01-2015, Processo n.º 20580/11.4T2SNT.L1.S1-A, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.

F. No presente caso, verifica-se uma situação de contradição jurisprudencial entre o Acórdão recorrido e o Acórdão proferido pelo mesmo STJ a 01-10-2015 (Acórdão fundamento: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 01-10-2015, Processo n.º 736/12.3TTVFR.P1.S1, Relator Mário Belo Morgado, melhor identificado no artigo 33.º das alegações de recurso, e que, sublinhe-se, foi invocado expressamente na douta sentença proferida pela Primeira Instância para fundamentar a sua decisão, bem como nas alegações de recurso de revista, nas quais a Recorrente fez apelo ao mesmo – cf. artigos 60.º a 62.º das alegacões de recurso), enquadrados no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.

G. Os Acórdãos em confronto têm na sua base situações materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo, são, no mínimo, análogas ou equiparáveis, existindo, por conseguinte, uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto – cfr. súmulas da factualidade subjacente aos Acórdãos, descritas nos artigos 41.º e 58.º das alegacões de recurso.

H. Em suma, tanto no Acórdão recorrido, como no Acórdão fundamento, está em causa a apreciação de justa causa subjetiva de resolução do contrato de trabalho nos termos do artigo 394.º, n.º 2, al. a) e n.º 4 e artigo 351.º, todos do CT, por um trabalhador que comunicou a resolução contratual com fundamento na falta culposa de pagamento pontual de retribuição na pendência de um procedimento disciplinar instaurado contra si, que se encontrava preventivamente suspenso, e em que o trabalhador, sem alguma vez se ter insurgido contra os invocados atrasos, põe termo ao vínculo contratual, antecipando desse modo o desfecho do procedimento disciplinar.

I. Em ambos os Acórdãos, a questão fundamental de direito que assume um caráter essencial/decisivo para a solução dos litígios é a (in)existência de justa causa subjetiva de resolução do contrato de trabalho pelo trabalhador, nos termos do artigo 394.º, n.º 2, al. a) e n.º 4 e artigo 351.º, todos do CT, situando-se no âmbito da mesma figura jurídica, a justa causa subjetiva de resolução do contrato de trabalho pelo trabalhador, prevista no artigo 394.º, n.º 2 e n.º 4 e artigo 351.º, todos do CT, sobre a qual se assumiram interpretações divergentes e consequentemente decisões diferentes.

J. No Acórdão recorrido, o STJ considerou (a nosso ver, erradamente) que a justa causa subjetiva se basta com a verificação do facto material (que nos casos em concreto se consubstanciou na falta de pagamento pontual da retribuição), que constitui o requisito objetivo da justa causa subjetiva – comportamento do empregador violador dos direitos ou garantias do trabalhador), tendo decidido a final que a falta de cumprimento pontual da retribuição (…) é justa causa de resolução do contrato pelo trabalhador”, sem mais.

K. Por sua vez, no Acórdão fundamento, o STJ considerou (de acordo com o entendimento que tem sido seguido quer na doutrina, quer na jurisprudência, e a nosso ver, corretamente), que para que se verifique uma situação de justa causa subjetiva de resolução do contrato de trabalho pelo trabalhador têm de estar verificados três requisitos cumulativos: i) Um comportamento (ilícito) do empregador violador dos seus direitos ou garantias (requisito objetivo, consistente no facto material); ii) Imputação desse comportamento a título de culpa (requisito subjetivo); iii) Inexigibilidade da manutenção do vínculo laboral, o que equivale a impor que a conduta do empregador, pela sua gravidade e à luz das regras de boa-fé, torne imediata, prática e definitivamente impossível a subsistência do vínculo laboral (requisito causal) – nesse sentido, vejam-se também as considerações referidas na douta Declaração de Voto de Vencido da Exma. Senhora Juiz Conselheira, com a qual concordamos na íntegra, referidas no artigo 53.º das alegações de recurso.

L. Assim, a falta de cumprimento pontual da retribuição só pode constituir justa causa subjetiva de resolução do contrato de trabalho pelo trabalhador desde que verificados os respetivos requisitos cumulativos (objetivo, subjetivo e causal), que o STJ, no Acórdão recorrido, parece ter ignorado.

M. Importa sublinhar que, apesar de não o referir expressamente, na douta Declaração de Voto de Vencido, a Exma. Senhora Juiz Conselheira socorreu-se da fundamentação expendida neste Acórdão fundamento e “adaptou-a” ao caso do Acórdão recorrido, precisamente por considerar (cremos), e a nosso ver muitíssimo bem, que está em causa a mesma situação, ou, no mínimo, uma situação análoga ou equiparável, usando exatamente as mesmas expressões utilizadas no Acórdão fundamento mas adaptando-as ao Acórdão recorrido – nesse sentido, vejam-se as considerações da douta Declaração de Voto de Vencido referidas no artigo 64.º das alegações de recurso.

N. Neste sentido, cremos que, no Acórdão recorrido, o STJ deveria ter analisado os mesmos requisitos previstos na lei e ter decidido exatamente nos mesmos termos que decidiu no Acórdão fundamento, uma vez que a factualidade subjacente a ambos os Acórdãos não permite concluir que a conduta do(a) empregador(a) tenha impossibilitado a subsistência do contrato de trabalho com o trabalhador, não se encontrando, por conseguinte, verificado o requisito causal.

O. Encontrando-se pendente, na data em que o trabalhador comunica a resolução contratual com fundamento na falta culposa de pagamento pontual de retribuição, um procedimento disciplinar contra o mesmo, que se encontrava preventivamente suspenso, não pode subvalorizar-se o especial contexto em que teve lugar a falta de pagamento da(s) retribuição(ões).

P. Face às circunstâncias descritas, afigura-se ilegítima a resolução contratual com a alegacão de justa causa, pois tanto no Acórdão recorrido como no Acórdão fundamento, não resultaram provados factos que permitem concluir que tenha sido a conduta culposa do(a) empregador(a), com a falta de pagamento pontual da(s) retribuição(ões), que tenha impossibilitado a subsistência do contrato de trabalho com o trabalhador, que se encontrava suspenso preventivamente no âmbito de um processo disciplinar com vista ao seu despedimento.

Q. Acresce que os Acórdãos do STJ, de 14-01-2016, Processo n.º 529/13.0TTOAZ.P1.S1 (também invocado quer na sentença proferida pela Primeira Instância, quer nas alegações de recurso de revista da Recorrente), e de 28-01-2016, Processo n.º 774/13.9TTVNG.P1.S1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt, ainda que não constituam Acórdão fundamento, decidiram no mesmo sentido do Acórdão fundamento no que toca à apreciação da justa causa subjetiva de resolução do contrato de trabalho pelo trabalhador nos termos do artigo 394.º, n.º 2 do CT.

R. No Acórdão de 14-01-2016, onde também estava em causa a apreciação da (in)existência de justa causa subjetiva de resolução do contrato de trabalho pelo trabalhador, nos termos do artigo 394.º, n.º 2 do CT, a decisão do STJ foi que “para que a falta de pagamento pontual da retribuição possa constituir justa causa subjetiva de resolução do contrato de trabalho pelo trabalhador não basta que ocorra o facto material da falta desse pagamento (requisito objetivo), sendo necessário que o aludido comportamento seja culposo (requisito subjetivo) e que, em razão da sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a manutenção da relação de trabalho (requisito causal).” (vide artigos 82.º a 85.º das alegacões de recurso) – excerto este que foi integralmente referido na douta Declaração de Voto de Vencido da Exma. Senhora Juiz Conselheira (vide p. 30 do Acórdão recorrido).

S. Por sua vez, no Acórdão de 28-01-2016, onde estava igualmente em causa apreciação da (in)existência de justa causa subjetiva de resolução do contrato de trabalho pelo trabalhador, nos termos do artigo 394.º, n.º 2, al. a) do CT, o STJ decidiu que “a justa causa de resolução do contrato por iniciativa do trabalhador pressupõe, em geral, que da atuação imputada ao empregador resultem efeitos de tal modo graves, em si e nas suas consequências, que se torne inexigível ao trabalhador a continuação da prestação da sua atividade.” - vide artigos 86.º e 87.º das alegacões de recurso.

T. Não obstante ser esta a linha jurisprudencial unânime que o STJ tem seguido, o certo é que, no Acórdão recorrido, o STJ decidiu em sentido totalmente divergente dos referidos Acórdãos, tendo apenas em conta, na sua decisão, o facto material da falta de pagamento da retribuição, ou seja, o requisito objetivo, considerando-o bastante para estar verificada a justa causa subjetiva, proferindo uma decisão que, além de estar em evidente contradição com o supra referido Acórdão fundamento, está também em contradição com os supra referidos Acórdãos do mesmo STJ (ainda que não constituam Acórdão fundamento).

U. Por fim, importa referir que, no Acórdão recorrido, o STJ, ao decidir que a justa causa subjetiva se basta com a verificação do facto material (falta de cumprimento pontual da retribuição), que constitui o requisito objetivo, violou, por erro de interpretação, o disposto no artigo 394.º, n.º 2, al. a) e n.º 4 e artigo 351.º, todos do CT – vide artigos 95.º a 109.º das alegacões de recurso.

V. Resulta de toda a fundamentação expendida ao longo do Acórdão que, para a sua decisão final, o STJ tomou como aspetos essenciais o facto de a retribuição ser um dos elementos essenciais do contrato de trabalho e o facto material da falta de pagamento da retribuição (que constitui o requisito objetivo da justa causa subjetiva) – cf. artigos 96.º e 97.º das alegações de recurso – ignorando por completo as circunstâncias que, no caso concreto, eram determinantes para a apreciação da (in)existência de justa causa subjetiva de resolução do contrato de trabalho pelo trabalhador, e, consequentemente, para a decisão final, a saber:

a) O facto de se encontrar pendente, na data em que o trabalhador comunicou a resolução contratual com fundamento na falta culposa de pagamento pontual de retribuição, um procedimento disciplinar contra o trabalhador, que se encontrava preventivamente suspenso, e que ia culminar no seu despedimento;

b) A data do envio da comunicação para a suposta resolução do contrato pelo trabalhador, precisamente no 61.º dia, logo que completado o prazo de 60 dias sobre a falta de pagamento da retribuição do mês de março de 2017; e

c) A ausência propositada de qualquer contacto a solicitar o pagamento da retribuição.

W. É que, no caso do Acórdão recorrido, não obstante estar preenchido o requisito objetivo (não pagamento da retribuição do mês de março de 2017 no prazo de 60 dias), os requisitos subjetivo e causal não estavam verificados – vide artigos 103.º a 109.º das alegações de recurso – razão pela qual é forçoso concluir pela inexistência de justa causa subjetiva para a resolução do contrato de trabalho pelo Recorrido.

X. Resulta do supra exposto que estamos perante uma situação de contradição jurisprudencial, tendo ocorrido interpretações divergentes de um mesmo regime normativo (394.º, n.º 2, al. a) e n.º 4 e artigo 351.º, todos do CT), situando-se no âmbito da mesma figura jurídica (a justa causa subjetiva de resolução do contrato de trabalho pelo trabalhador, prevista no artigo 394.º, n.º 2 e n.º 4 e artigo 351.º, todos do CT), a que acresce o facto de não terem ocorrido, no espaço temporal situado entre os dois Acórdãos do STJ (entre 2015 e 2022), quaisquer modificações legislativas no âmbito do regime normativo em causa – cf. artigos 110.º a 117.º das alegações de recurso.

Y. Nestes termos, mostra-se necessária a intervenção do Pleno das Secções Sociais do STJ, para uniformização de jurisprudência em conformidade com a linha jurisprudencial que tem sido seguida por este Supremo Tribunal, que se propõe nos seguintes termos, e que doutamente V. Exas. suprirão: “Para que se verifique uma situação de justa causa subjetiva de resolução do contrato de trabalho pelo trabalhador têm de estar verificados três requisitos cumulativos: (i) Um requisito objetivo, traduzido num comportamento do empregador violador dos direitos ou garantias do trabalhador, também designado por “facto material”; (ii) Um requisito subjetivo, consistente na existência de um nexo de imputação dessa violação a culpa exclusiva da entidade empregadora; (iii) Um requisito causal, no sentido de que esse comportamento, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho. Nesta conformidade, para que a falta de pagamento pontual da retribuição possa constituir justa causa subjetiva de resolução do contrato de trabalho pelo trabalhador não basta que ocorra o facto material da falta desse pagamento, sendo necessário que o aludido comportamento seja culposo e que, em razão da sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a manutenção da relação de trabalho. Encontrando-se pendente, na data em que o trabalhador comunica a resolução contratual com fundamento na falta culposa de pagamento pontual de retribuição, um procedimento disciplinar contra o mesmo, que se encontra preventivamente suspenso, não pode subvalorizar-se o especial contexto em que teve lugar a violação do contrato pelo empregador. Nessas circunstâncias, a resolução contratual pretendida pelo trabalhador revela-se sempre ilegítima.”

Z.  Termos em que se requer, muito respeitosamente, a VV. Exas., que seja dado provimento ao presente recurso, e, em consequência, que seja uniformizada a jurisprudência, nos termos propostos no artigo 94.º e na conclusão Y), e, por conseguinte, que seja revogado o Acórdão recorrido, substituindo-se por outro que decida a questão controvertida, nos termos peticionados, tudo com as legais consequências, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 695.º, n.º 2 do CPC.

Nestes termos e nos mais de Direito, que V. Excelências, Venerandos Juízes Conselheiros do Pleno das Secções Sociais do Supremo Tribunal de Justiça, mui doutamente suprirão, requer-se que seja admitido o presente recurso e, em consequência:

a) Que seja uniformizada a jurisprudência nos seguintes termos que se propõem: “Para que se verifique uma situação de justa causa subjetiva de resolução do contrato de trabalho pelo trabalhador têm de estar verificados três requisitos cumulativos:

(i) Um requisito objetivo, traduzido num comportamento do empregador violador dos direitos ou garantias do trabalhador, também designado por “facto material”;

(ii) Um requisito subjetivo, consistente na existência de um nexo de imputação dessa violação a culpa exclusiva da entidade empregadora;

(iii) Um requisito causal, no sentido de que esse comportamento, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.

Nesta conformidade, para que a falta de pagamento pontual da retribuição possa constituir justa causa subjetiva de resolução do contrato de trabalho pelo trabalhador não basta que ocorra o facto material da falta desse pagamento, sendo necessário que o aludido comportamento seja culposo e que, em razão da sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a manutenção da relação de trabalho.

Encontrando-se pendente, na data em que o trabalhador comunica a resolução contratual com fundamento na falta culposa de pagamento pontual de retribuição, um procedimento disciplinar contra o mesmo, que se encontra preventivamente suspenso,     não pode  subvalorizar-se  o especial contexto em que teve lugar a violação do contrato pelo empregador. Nessas circunstâncias, a resolução contratual pretendida pelo trabalhador revela-se sempre ilegítima”; e, por conseguinte,

b) Que seja revogado o Acórdão recorrido, substituindo-se por outro que decida a questão controvertida, nos termos peticionados na alínea a), tudo com as legais consequências, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 695.º, n.º 2 do CPC.

O Recorrido, AA, respondeu, sustentando que não deve ser admitido o recurso de uniformização de jurisprudência por não existir oposição entre o Acórdão recorrido e o Acórdão fundamento e que, a ser aceite, outro e oposto deveria ser o segmento uniformizador.

Nos termos da apreciação liminar prevista no artigo 692.º n.º 1 do CPC, e tendo o Recorrente cumprido o ónus de indicar o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça com o qual o Acórdão recorrido se encontra alegadamente em oposição, identificando os elementos que determinam a contradição alegada e a violação imputada ao Acórdão recorrido (artigo 690.º do CPC) cabe ao Relator, designadamente, verificar se existe a oposição que serve de fundamento ao recurso.

(…)

Ora, verificar-se-á aqui a referida oposição?

Os dois Acórdãos tratam da questão da resolução do contrato de trabalho pelo trabalhador, suspenso preventivamente na pendência de um procedimento disciplinar, por falta de pagamento pontual da retribuição.

No entanto, uma leitura mais atenta revela que as situações de facto são muito distintas.

No Acórdão-fundamento as retribuições em dívida não estavam em dívida há sessenta ou mais dias – como se pode ler no Acórdão, “é pacífico nos autos que as retribuições de dezembro de 2011 e de janeiro de 2012 não estavam em dívida há 60 ou mais dias”, tendo o Acórdão fundamento decidido que o mesmo também era verdade relativamente ao subsídio de Natal de 2011.

Nesta hipótese não só não se aplicava a presunção de culpa prevista no artigo 394.º, n.º 5 do CT, como a atitude do empregador deveu-se à pretensão de efetuar uma compensação com as dívidas que o trabalhador tinha para consigo que seriam de montante superior. Ainda que tal compensação fosse, em rigor, ilegal, a atitude do empregador insere-se em um “especial contexto em que a mesma teve lugar”. Neste “especial contexto” inclui-se, ainda, a especial gravidade dos factos de que o trabalhador foi acusado na situação de que tratou o Acórdão fundamento: um ilícito criminal, mais propriamente um furto, que foi considerado provado.

Em suma, a decisão do Acórdão fundamento reporta-se a um caso em que a conduta do empregador foi considerada menos grave porque a sua mora não atingiu os sessenta dias – como se afirma expressamente no Acórdão fundamento, “ela [a conduta do empregador] é de grau inferior (e, até, porventura, de natureza diversa) ao paradigma tido em conta pelo legislador, ao regular as implicações dos atrasos verificados no pagamento de retribuições” – e, por outro lado, o trabalhador foi acusado de factos de uma excecional gravidade (a prática de um crime).

Tal situação é radicalmente distinta daquela de que se ocupou o Acórdão recorrido.

No Acórdão recorrido a mora no pagamento da retribuição pelo empregador atingiu os sessenta dias, aplicando-se, por isso mesmo, o disposto no n.º 5 do artigo 394.º do CT. Não é, portanto, exata a afirmação, por várias vezes repetida no recurso, de que o Acórdão recorrido considerou suficiente o elemento objetivo ou material da falta de pagamento da retribuição. A conduta do Recorrente considera-se culposa por força do disposto no já referido n.º 5 do artigo 394.º. E como no Acórdão recorrido se refere, o facto de se ter atingido o limiar de gravidade previsto nesse preceito – o que não ocorreu no Acórdão fundamento – sendo certo que até se provou que o trabalhador recorreu à ajuda financeira da sua família (facto S), explica que exista justa causa de resolução, não tendo o trabalhador agido em abuso de direito (o que, mais uma vez, terá que atender a cada caso concreto e ao seu circunstancialismo). 

A existência de justa causa de resolução do contrato pelo trabalhador não pode deixar de atender à situação concreta, não havendo qualquer oposição de Acórdãos quando os Tribunais dão respostas diferentes à questão da sua existência em contextos também eles marcadamente diversos.

Em conclusão, não se admite o presente recurso de uniformização de jurisprudência, por não existir a oposição alegada”.

Foi deste despacho que Hiperfrio - Refrigeração Industrial e Comercial, Lda. veio apresentar Reclamação para a Conferência.

Nessa Reclamação pode ler-se:

“Acresce ainda que a própria decisão singular de não admissão do recurso de uniformização de jurisprudência reconhece e admite que está em causa o mesmo núcleo essencial da matéria litigiosa em ambos os Acórdãos.

21. Pois nela se refere expressamente que:

“Os dois Acórdãos tratam da questão da resolução do contrato de trabalho pelo trabalhador, suspenso preventivamente na pendência de um procedimento disciplinar, por falta de pagamento pontual da retribuição:' - cfr. p. 11 da decisão singular.

22. E por isso não se compreende que na decisão singular seja afirmado que as situações de facto subjacentes aos Acórdãos são MUITO DISTINTAS.

23. Pois é inegável que as situações de facto têm óbvios pontos de contacto, tal como foi admitido na própria decisão singular.

24. Face ao supra exposto, resulta claro que as situações fácticas subjacentes aos Acórdãos em confronto são nuclearmente idênticas, convocam contextos fáctico-normativos idênticos, ocorrendo uma clara oposição jurisprudencial, que justifica a admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência”.

Acrescenta-se, ainda, que “mesmo que se entenda que as situações de facto são distintas, o que jamais se concede, nem por isso se justifica a rejeição do recurso para uniformização de jurisprudência” (ponto 29).

Reitera-se, também, na Reclamação que:

“9. Tendo-se concretamente demonstrado que, tanto no Acórdão recorrido, como no Acórdão fundamento, está em causa a apreciação de justa causa subjetiva de resolução do contrato de trabalho, nos termos do artigo 394.º, n.º 2, al. a) e n.º 4 e artigo 351.º, todos do Código do Trabalho, por um trabalhador que comunicou a resolução contratual com fundamento na falta culposa de pagamento pontual de retribuição na pendência de um procedimento disciplinar instaurado contra si, que se encontrava preventivamente suspenso.

10. Sendo que, no Acórdão recorrido, se considerou que a justa causa subjetiva se basta com a verificação do facto material (que nos casos em concreto se consubstanciou na falta de pagamento pontual da retribuição), tendo-se decidido a final que “a falta de cumprimento pontual da retribuição (…) é justa causa de resolução do contrato pelo trabalhador”, sem mais.

11. E no Acórdão fundamento se considerou, ao invés, que para que se verifique uma situação de justa causa subjetiva de resolução do contrato de trabalho pelo trabalhador têm de estar verificados três requisitos cumulativos: i) um comportamento (ilícito) do empregador violador dos seus direitos ou garantias (requisito objetivo, consistente no facto material; ii) imputação desse comportamento a título de culpa (requisito subjetivo); iii) inexigibilidade da manutenção do vínculo laboral, o que equivale a impor que a conduta do empregador, pela sua gravidade e à luz das regras de boa-fé, torne imediata, prática e definitivamente impossível a subsistência do vínculo laboral (requisito causal).

12. Pelo que, resulta claro que o núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada um dos Acórdãos em discussão é exatamente o mesmo.

13. Acresce que os argumentos/factos enunciados na decisão singular para justificar que “as situações de facto são muito distintas”, referidos no artigo 5.º da presente reclamação, para o qual se remete, não são relevantes e muito menos bastantes para rejeitar o recurso para uniformização de jurisprudência, sem mais.

14. Pois que, se o núcleo essencial da matéria litigiosa, supra enunciado no artigo 9.º, é exatamente o mesmo, pouco importa se, no Acórdão fundamento, a falta de pagamento da retribuição não ultrapassou os sessenta dias e o trabalhador fora acusado da prática de um crime de subtração de valores, e que tal não se verificou no Acórdão recorrido.

15. Tais factos (falta de pagamento da retribuição não ultrapassar os sessenta dias e o trabalhador ter sido acusado da prática de um crime) consubstanciam circunstâncias particulares do Acórdão fundamento que não são relevantes nem bastantes para justificar a rejeição do recurso.

16. Trata-se de diferenças factuais inócuas que nada interferem com o jurídico do caso, e com a questão jurídica que tem de ser analisada e decidida e sobre a qual existe contradição de julgados.

17. Sendo certo que, quando ocorre esse tipo de diferenças, o pressuposto da “idêntica situação fáctica” não é posto em causa”.

O Recorrido, AA, respondeu sustentando que deveria ser confirmado o despacho objeto da presente reclamação e não admitido o recurso de uniformização de jurisprudência.

Cumpre apreciar

Como refere ABRANTES GERALDES para que seja admitido um recurso extraordinário de uniformização de jurisprudência deve verificar-se uma oposição frontal entre o Acórdão recorrido e o Acórdão fundamento[1].

Tal oposição não decorre automaticamente da divergência de soluções, já que a aplicação dos mesmos critérios a situações diversas pode redundar em soluções distintas, mas sem qualquer oposição entre si.

Como já se sublinhou no despacho objeto da presente Reclamação, o Acórdão fundamento referiu-se a uma situação em que a falta de pagamento pontual da retribuição não atingiu os sessenta dias, não se aplicando, por conseguinte, o artigo 394.º, n.º 5 do CT. O Tribunal considerou que não havia sequer culpa grave do empregador. E, face à gravidade do comportamento imputado ao trabalhador – a prática de um crime – seria abusiva a resolução do contrato pelo trabalhador.

Sublinhe-se, antes de mais, que o facto de a mora do empregador não se ter prolongado por mais de sessenta dias na situação do Acórdão fundamento não é, como pretende o Reclamante, um “facto inócuo”. É, ao invés, um facto importante do qual resultam consequências legais claras, previstas no n.º 5 do artigo 394.º do CT: “Considera-se culposa a falta de pagamento pontual da retribuição que se prolongue por período de 60 dias (…)”. Com a consequência de que o Acórdão fundamento não aplicou o artigo 394.º, n.º 5, ao contrário do Acórdão recorrido e o enquadramento legal da situação de facto diversa dos dois Acórdãos foi também ele diferente.

E porque o Reclamante faz tábua rasa do n.º 5 do artigo 394.º do CT continua a pretender que “no Acórdão recorrido se considerou que a justa causa subjetiva se basta com a verificação do facto material (que nos casos em concreto se consubstanciou na falta de pagamento pontual da retribuição)”, esquecendo, por completo, a previsão da culpa do empregador que resulta daquele preceito legal.

Não se verifica, pois, a oposição entre o Acórdão recorrido e o Acórdão fundamento.

Decisão: Indeferida a reclamação.

Custas pelo Reclamante.

1 de junho de 2022 

Júlio Gomes (Relator)

Ramalho Pinto

Domingos Morais

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[1] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, Recursos em Processo Civil, 6.ª ed., Almedina, Coimbra, 2020, p. 532.