Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08S2308
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: BRAVO SERRA
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
LIBERDADE CONTRATUAL
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
PROFESSOR
Nº do Documento: SJ200811260023084
Data do Acordão: 11/26/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :

I – A Constituição Portuguesa não consagra um princípio fundamental quanto à liberdade contratual, seja de forma expressa, seja através da decorrência de outras normas ou princípios constitucionais.
II – Se um ramo do direito contiver normação imperativa reguladora de uma dada situação da qual resulta uma fonte obrigacional, não poderá, em nome da faculdade estabelecida no n.º 1 do artigo 405º do Código Civil – antes pelo contrário, atenta a ressalva decorrente da limitação que se extrai da primeira asserção nele contida –, argumentar-se no sentido de àquela normação se não dever atender, por ser ou poder tornar-se conflituante com a aludida faculdade.
III – Ainda que os outorgantes de um negócio jurídico o venham a apelidar de determinado modo, se o mesmo não revestir as características atinentes ao nomen que por eles lhe foi conferido, nem por isso poderá ele, de um ponto de vista jurídico, ser como tal qualificado.
IV – O contrato de trabalho e o contrato de prestação de serviço diferenciam-se, essencialmente, pelo respectivo objecto, qual seja o da prestação de uma actividade (no caso do contrato de trabalho) ou da obtenção de um resultado (no caso do contrato de prestação de serviço), e pelo relacionamento entre as partes, isto é, a existência de uma relação de subordinação (quanto ao primeiro) ou de autonomia (quanto ao segundo).
V – O método analítico que servirá para a qualificação do acordo negocial deverá passar pela verificação do condicionalismo concreto em que se desenvolveu a relação contratual – devendo equacionar a totalidade do relacionamento, a fim de se proceder ao balanceamento de todos os indícios –, para, dessa sorte, se almejar a verificação, ou não, da característica da subordinação jurídica, típica do contrato de trabalho.
VI – A subordinação jurídica, típica do relacionamento do contrato de trabalho, pode não implicar subordinação económica, assim como não se confunde com a dependência técnica, pois que, em alguns ramos de actividade, torna-se evidente a salvaguarda da autonomia técnica do prestador da actividade.
VII – Deve ser qualificada como de trabalho subordinado, a relação que vigorou entre as partes, nos termos da qual a Autora (professora), prestou a actividade para a Ré (que se dedica ao ensino profissional de imagem, som, design e comunicação), nas instalações desta e com instrumentos de trabalho por ela fornecidos, sendo responsável pelos formadores e assistentes da sua área perante a hierarquia, respondendo perante o director pedagógico e a directora-geral da Ré, podendo representar esta em assuntos da sua responsabilidade, constatando-se, ainda, que a Autora gozava férias anuais, participava em reuniões cuja realização seria determinada pela direcção da Escola da Ré – direcção a quem competia a política pedagógica de tal Escola –, cumpria, usualmente, um horário de trabalho, e as horas de aulas eram marcadas pela Ré.

Decisão Texto Integral:
I


1. No Tribunal do Trabalho de Lisboa intentou AA contra BB, Ldª, acção de processo comum, peticionando a condenação da ré a reintegrá-la no seu posto de trabalho, sem prejuízo da sua categoria e antiguidade, com reserva de posterior opção pela indemnização por antiguidade, a pagar, em partes iguais, a ela, autora, e ao Estado, uma sanção compulsória não inferior a € 250 por cada dia de atraso no cumprimento da obrigação de reintegração, a pagar à autora as retribuições que deixou de auferir desde trinta dias antes da propositura da acção, as quais computou em € 3.061, e as vincendas até ao trânsito em julgado da decisão, incluindo férias, subsídio de férias e de Natal e as férias e subsídio de férias vencidos em Janeiro de 2004, a pagar à mesma autora € 2.007,36, a título de diferenças salariais, acrescidos de juros de mora vencidos no montante de € 93,22 e vincendos, € 2.838,99, a título de diferenças por trabalho suplementar, acrescidos de juros de mora vencidos no quantitativo de € 94,44 e vincendos, € 20.000, a título de indemnização por danos não patrimoniais, e juros moratórios vincendos desde 1 de Abril de 2005 até integral pagamento.

Para basear a sua pretensão, muito em síntese, invocou que: –
– foi trabalhadora subordinada da ré desde 4 de Fevereiro de 2004, num estabelecimento de ensino desta denominado BB, tendo, actualmente, a categoria de coordenadora da área de audiovisual, e desenvolvendo, inicialmente, a actividade de professora do ensino técnico e profissional, leccionando aulas de guionismo e produção de televisão;
– desde sempre esteve a laborar sob as ordens e instruções da directora-geral da ré, do seu director pedagógico, integrada na hierarquia da ré, submetida a um horário de trabalho determinado por esta, em gabinete próprio nas instalações dela, ré, utilizando instrumentos de trabalho à mesma pertencentes, gozando férias em períodos determinados pela ré, não se obrigando a um qualquer resultado específico e dependendo economicamente da ré;
– percebia uma remuneração mensal fixa, calculada a partir de uma verba multiplicada por catorze e dividida por doze, paga em doze meses do ano, e não em função de qualquer resultado, e, a partir de Agosto de 2003, uma remuneração fixa e uma outra, variável, em função do número de horas de aulas ministradas;
– após a assunção das funções de coordenadora da área de audiovisual, a autora tinha, hierárquica e directamente subordinados a si, uma secretária e dois responsáveis de áudio e assistência técnica, que da autora recebiam e cumpriam ordens e instruções, além de ser directamente responsável, perante a respectiva hierarquia, pelos formadores e assistentes da sua área;
– que desempenhou trabalho extraordinário, que discriminou, o qual lhe não veio a ser pago;
– a partir de 3 de Agosto de 2003, ocasião em que a autora passou a receber uma remuneração fixa e outra variável, o seu vencimento passou a ser inferior ao que auferia até Julho desse ano, ficando penalizada em € 167,28 mensais entre Agosto de 2003 e Julho de 2004;
– em 3 de Junho de 2004, foi comunicado à autora que os cursos de audiovisual ministrados pela ré iriam desaparecer, pelo que se prescindia da actividade por si desenvolvida, sendo certo, porém, que, afinal, não se verificou qualquer alteração na estrutura dos cursos até então prosseguidos e o posto de trabalho que era ocupado pela autora não sofreu qualquer alteração, excepto no que respeita ao seu titular;
– assim, o contrato de trabalho da autora foi cessado sem invocação de justa causa ou precedência de processo disciplinar, consubstanciando, pois, um despedimento ilícito;
– a autora ficou afectada psicologicamente, sofrendo abalo emocional grave, com profundas alterações de humor e capacidade de relacionamento, inclusive com o seu marido e filhos, perda de apetite, dificuldade em dormir, cefaleias permanentes e apatia geral, tendo de se sujeitar a tratamento médico.

Contestou a ré, sustentando a improcedência da acção e a sua consequente absolvição dos pedidos contra si formulados, aduzindo, em súmula: –
– que a autora fora por si contratada como formadora externa mediante a celebração de sucessivos contratos de prestação de serviço desde Fevereiro de 2001 a Dezembro de 2002, pagando-lhe em função do número de horas leccionadas, resultando, assim, um quantitativo mensal indeterminado;
– como em Dezembro de 2002 a equipa responsável pela área de áudio e vídeo informou a ré que iria dar por finda a sua colaboração, viu-se ela na necessidade de organizar uma nova equipa, convidando, para tanto, a autora para assumir a qualidade de coordenadora dessa nova equipa, havendo necessidade de se estabelecerem novas condições de prestação desse serviço, mas de acordo com a verba que estava disponível até ao final do ano lectivo, verba essa que foi fraccionada em sete prestações pagas de Janeiro a Julho de 2002 e que incluía a coordenação e a formação que a autora pudesse dar;
– no sequente ano escolar, decidiu a ré convidar a autora para coordenar a área de vídeo, negociando as partes as condições do exercício dessa tarefa, partindo da verba então disponível e, dando a ré à autora a possibilidade de esta escolher, de entre as modalidades propostas – contrato de prestação de serviço pago em catorze meses, contrato de prestação de serviço pago em doze meses e contrato de trabalho –, veio ela a optar pela modalidade de contrato de prestação de serviço mediante a remuneração global de € 35.000, paga em doze prestações mensais;
– situação semelhante ocorreu no ano escolar seguinte;
– a autora é empresária em nome individual;
– as aulas leccionadas pela autora eram contabilizadas no final de cada mês e pagas as respectivas horas em meados do mês seguinte;
– não correspondia, por isso, à verdade, desfrutar a autora de uma remuneração fixa e outra variável;
– a autora, nas suas funções de coordenadora, agia com autonomia técnica e não recebia ordens ou instruções da administração da ré, a qual só dava instruções tendentes à salvaguarda da prossecução dos cursos e, se a autora prestava funções nas instalações da ré, utilizando os equipamentos desta, isso devia-se à circunstância de a mesma ré disponibilizar espaços, equipamentos, aliás de elevadíssimos custos, e meios humanos, físicos e técnicos a todos os seus colaboradores, atentos os objectivos que prosseguia;
– inexistiu, pois, qualquer vínculo de natureza laboral entre a autora e a ré, sendo a cessação do contrato de prestação de serviço consequenciada pela reestruturação do plano curricular dos cursos;
– a autora, com a instauração da acção, adoptou um comportamento que deve ser qualificado como abuso de direito e litigância de má fé.

Prosseguindo os autos seus termos, veio, em 17 de Agosto de 2006, a ser proferida sentença que: –
– condenou a ré a reintegrar a autora no seu posto de trabalho, sem prejuízo da sua categoria e antiguidade, com todos os direitos e regalias que adviriam caso se tivesse mantido ao serviço desde 31 de Julho de 2005;
– condenou a ré no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de € 75 por cada dia de atraso no cumprimento da determinada reintegração;
– condenou a ré a pagar à autora as retribuições vencidas desde 14 de Março de 2005, incluindo os vencimentos base, férias e subsídios de férias e de Natal, até ao trânsito em julgado da decisão, devendo deduzir-se no respectivo valor as importâncias que a autora, comprovadamente, tivesse obtido com a cessação do contrato e que não receberia se não tivesse ocorrido o despedimento, bem como os montantes eventualmente auferidos a título de subsídio de desemprego, os quais deveriam ser deduzidos no quantitativo a pagar e entregues pela ré à Segurança Social.

Do assim decidido apelou a ré para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo ainda arguido nulidades da sentença e impugnado a matéria de facto tida por demonstrada.

Sem sucesso, porém, já que aquele Tribunal de 2ª instância, por acórdão de 17 de Outubro de 2007, julgou improcedente o recurso incidente sobre a matéria de facto e, bem assim, a apelação.

Mantendo o seu inconformismo, veio a ré pedir revista.

Em 4 de Março de 2008, a Desembargadora Relatora proferiu despacho no qual, perfilhando o entendimento de que o justo impedimento alegado pela mandatária da ré quanto à apresentação extemporânea da sua alegação não procedia, determinou o respectivo desentranhamento, em consequência julgando deserto o recurso de revista.

Desse despacho requereu a ré reforma e, do mesmo passo, veio reclamar para a conferência.

Por acórdão de 14 de Maio de 2008, o Tribunal da Relação de Lisboa, considerando que a alegação veio a ser apresentada no terceiro dia útil após o termo do prazo, deferiu a reclamação, permitindo que a ré procedesse ao pagamento da multa a que se reporta o nº 3 do artº 145º do Código de Processo Civil, a fim de ser admitida a peça processual em causa.

Foi efectuado o pagamento daquela multa.


2. Rematou a ré a alegação com o seguinte quadro conclusivo: –

1.ª O douto acórdão em Revista ofendeu o princípio fundamental da liberdade contratual em que assenta o nosso sistema jurídico, violando assim o artigo 405.º do Código Civil;
2.ª Em consequência, decidiu pela existência de um contrato de trabalho, com recurso aos dispositivos legais dos artigos 4º, 10º e 12º do Código do Trabalho e 1154º do Código Civil, violando-os frontalmente;
O douto Acórdão recorrido, ao decidir pela qualificação do contrato em causa nos autos como contrato de trabalho, violou as regras do ónus da prova e, sobretudo, procedeu a uma errada apreciação da prova, em violação dos artigos 342º, 236º e 358º, todos do Código Civil, e ainda doartigo 516º do Código de Processo Civil;
4.ª Que assim não fosse, face à matéria de facto dada como assente, impunha-se concluir no douto Acórdão pela não verificação dos índices enunciados no artigo 12º do Código do Trabalho, e assim concluir pela qualificação do contrato como de prestação de serviços;
5.ª O douto acórdão, não atendeu nem valorou, a sobreposição de dois contratos entre as mesmas partes, um de prestação de serviços – relativo à formação – e outro, que qualifica como de trabalho, para a coordenação, o que é de todo incurial.
6.ª Por último, admitindo, sem conceder, a qualificação que o douto acórdão em revista fez do contrato celebrado, deveria então ter apreciado a censurabilidade da conduta da Recorrida, nos termos do disposto no artigo 334º do Código Civil;
7.ª E, em consequência, impunha-se que o douto acórdão tivesse decidido pela existência de abuso de direito por parte da Recorrida. Não o tendo feito, violou o dispositivo do artigo 334º do Código Civil

Respondeu a autora à alegação da ré, defendendo o acerto da decisão impugnada, formulando, a final, as seguintes «conclusões»: –

“a) O douto Acórdão em Revista não ofendeu o princípio fundamental da liberdade contratual, nem, tão pouco violou o art. 405º do Código Civil, pois apesar de nos situarmos no âmbito da liberdade contratual, esta não se sobrepõe às normas legais imperativas.
b) Na situação sub judice, não releva a declaração de vontade que foi exteriorizada pelas partes ou a hipotética vontade real das mesmas no momento da celebração do contrato, mas sim a caracterização real e a forma como o contrato foi executado. Neste sentido, no Acórdão ora recorrido procedeu a uma correcta qualificação do contrato em questão nos presentes autos.
c) Mesmo que uma das partes, neste caso a Recorrente, celebre um contrato convicta de que se trata de um contrato de prestação de serviços, o contrato não deixará de ser um contrato de trabalho se se verificarem determinados requisitos, olhando, designadamente, ao seu modo de execução, conforme sucede no caso em apreço.
d) Não procede igualmente a pretensão da Recorrente de que o Acórdão recorrendo padece de vício por violação das regras do ónus da prova e ainda a uma errada apreciação da prova, em violação dos arts. 342º, 236º e 358º do Código Civil e ainda do art. 510º do Código Civil.
e) A anterior alegação, consiste numa tentativa enviesada de recurso da decisão sobre a matéria de facto, o que se encontra vedado à Recorrente nos termos do art. 722º do Cód. de Processo Civil.
f) As duas únicas circunstâncias em que é admissível a apreciação da prova em sede de recurso de revista, nos termos e para os efeitos do nº 2 do art. 722º do Cód. de Processo Civil, são o caso de constatação de ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto, ou no caso de se constatar a ofensa de uma disposição expressa de lei que fixe a força de determinado meio de prova.
g) Ora, os arts. 236º e 348º do Código Civil que a Recorrente invoca, alegando a sua violação, não se configuram como uma normas da natureza exigida pelo nº 2 do art. 722º do Cód. de Processo Civil e o mesmo se diga relativamente aos arts. 358º e 376º do Código Civil pois a violação dos mesmos não se verifica.
h) Para que as declarações da Recorrida tivessem carácter de confissão e portanto apresentassem força probatória plena, a Recorrida deveria ter confessado um facto identificado na base instrutória, o qual não é sequer identificado pela Recorrente.
i) Acresce que o conteúdo das declarações que a Recorrente invoca como constituindo confissão por parte da Recorrente, não permitem de todo concluir nesse sentido.
j) Finalmente, e para que tais declarações pudessem fazer prova plena de determinado facto deveriam as mesmas ter sido reduzidas a escrito, pois, nos termos do art. 563º do Cód. de Processo Civil o depoimento de parte é sempre reduzido a escrito, mesmo que tenha sido gravado, na parte em que tiver havido confissão do depoente.
k) O depoimento da Recorrente, mesmo gravado, carece do valor probatório atribuído pela Recorrente (e não pode ser valorado pelo Supremo Tribunal de Justiça), pelo que não se verifica qualquer violação dos arts. 358º e 372º do Código Civil;
l) E, portanto, o recurso sobre a matéria de facto pretendido pela Recorrente encontra-se-lhe vedado, nos termos e para os efeitos do nº 2 do art. 722º do Cód. de Processo Civil.
m) Atenta toda a matéria de facto dada por provada, verificam-se todos os indícios enunciados no original art. 12º do Cód. do Trabalho, pelo que o douto Acórdão recorrido decidiu em conformidade ao julgar o contrato sub judice como um contrato de trabalho, pois: verifica-se a subordinação jurídica da Recorrida, a qual exercia a sua actividade sob as ordens e direcção da Recorrente, a Recorrida estava inserida na estrutura organizativa da Recorrente, recebia ordens e directivas da Recorrente, recebia uma retribuição fixa pela execução da sua actividade, a qual desenvolvia nas instalações da Recorrente através de instrumentos disponibilizados por esta, o que fez ininterruptamente por um período muito superior a 90 dias, gozou férias todos os anos e habitualmente cumpria um horário certo.
n) A conduta da Recorrida carece de qualquer censurabilidade, não ficaram provados os factos invocados pela Recorrente como consubstanciadores desse mesmo abuso de direito, ao contrário do alegado pela mesma, que nem sequer faz qualquer referência à matéria quesitada e provada susceptível de subsunção jurídica daquela contingência, limitando-se a invocar factos que a mesma enuncia sem qualquer referência à matéria dada por provada.
o) Deverá por isso ser confirmada a douta sentença, uma vez que efectuou uma correcta apreciação da prova, quer no que respeita à qualificação do contrato enquanto contrato de trabalho, quer, consequentemente na declaração de ilicitude do despedimento e pagamento das quantias doutamente fixadas.

A Ex.ma Magistrada do Ministério Público neste Supremo exarou «parecer» – sobre o qual as partes se não pronunciaram – em que propugnou pela improcedência da revista.

Corridos os «vistos», cumpre decidir.
II

1. Como resulta da corte conclusiva apresentada na alegação da recorrente, as questões pela mesma impostadas cifram-se em saber: –

– se o recurso à presunção constante do artº 12º do Código do Trabalho viola aquilo que a impugnante diz ser “o princípio fundamental da liberdade contratual, previsto no artº 405º do Código Civil”;
– se houve, de banda do aresto impugnado, ofensa das regras sobre o ónus probatório;
– se o negócio jurídico firmado entre as partes deve ser considerado um contrato de trabalho;
– se, dando-se resposta afirmativa à terceira questão, deve ser considerado que da parte da autora houve abuso de direito.


2. As instâncias tiveram por apurado o seguinte quadro fáctico: –

– 1) a ré é uma sociedade comercial que se dedica ao ensino profissional de imagem, som, design e comunicação, através da criação de um ou mais estabelecimentos de ensino;
– 2) no início da década de 1990, a ré criou e passou a explorar um estabelecimento de ensino que designou por BB;
– 3) a autora passava recibo de comerciante em nome individual;
– 4) a autora tinha autonomia técnica;
– 5) a autora utilizava instrumentos de trabalho fornecidos pela ré;
– 6) a ré atribuiu à autora secretária, cadeira, bloco de gavetas, computador, telefone com linha directa nº 213 942 555, e ainda a extensão nº 205;
– 7) fo[ram] ainda atribuíd[os] à autora [uma] conta de correio electrónico personalizada (AA@BB.pt) e cartões de apresentação da escola, bem como um cartão de identificação da Escola e de acesso à mesma;
– 8) a autora desenvolvia as suas tarefas nas salas de aula e instalações da ré;
– 9) pelo menos em 4 de Fevereiro de 2001, a autora começou a dar aulas de produção de televisão para a ré no estabelecimento referido em 2);
– 10) em data não apurada de Dezembro de 2002, a autora foi convidada pela ré para exercer funções de coordenadora da área do audiovisual da ré, vindo aquela a aceitar o exercício dessa função e, ao
fazê-lo, respondia directamente ao director pedagógico e/ou gestor pedagógico;
– 11) a autora elaborava pareceres, estudos, análises e projectos de natureza técnica e/ou pedagógica que fundamentavam e apoiavam as decisões dos órgãos directivos da empresa;
– 12) a autora era directamente responsável pelos formadores e assistentes da sua área perante a respectiva hierarquia;
– 13) a autora identificava e analisava necessidades de formação;
– 14) a autora era responsável pela laboração do planeamento, curso/disciplina/módulo a seu cargo;
– 15) a autora organizava, elaborava e actualizava a estrutura curricular do curso/disciplina/módulo face às necessidades;
– 16) a autora propunha o recrutamento de formadores de acordo com as exigências da estrutura curricular;
– 17) a autora geria os meios técnicos e pedagógicos colocados à sua responsabilidade;
– 18) a autora era responsável pelo cumprimento das actividades pedagógicas a seu cargo;
– 19) como coordenadora, a autora adoptava medidas de correcção face a anomalias verificadas na formação;
– 20) a autora contribuía para a organização e actualização do dossier de curso/disciplina/módulo;
– 21) a autora podia representar a empresa em assuntos da sua especialidade;
– 22) a autora leccionava sessões de formação na sua área de competência;
– 23) a autora estabeleceu contactos no âmbito de estágios;
– 24) a autora acompanhou alunos que estavam em estágios;
– 25) como coordenadora, a autora podia executar trabalhos técnicos na sua área;
– 26) e zelava pelo cumprimento do regulamento interno;
– 27) pelo menos a partir de 4 de Fevereiro de 2001, a autora desenvolveu a actividade de professora do ensino técnico e profissional para a ré, leccionando aulas de produção de televisão;
– 28) em data que não foi possível apurar, de Dezembro de 2002, a autora foi convidada pela ré a exercer as funções de coordenadora da área do audiovisual, mas manteve a actividade de professora que vinha a desenvolver e, em data não apurada de Janeiro/Fevereiro de 2003, CC passou a coordenar a área áudio, que se integrava na área do audiovisual;
– 29) a partir de data não apurada de Janeiro de 2003, a autora passou a exercer as funções de coordenadora do audiovisual;
– 30) a autora manteve a leccionação que vinha levando a cabo;
– 31) CC dependia da autora;
– 32) a autora exerceu as funções de coordenadora do audiovisual até 31 de Julho de 2004;
– 32) a autora respondia directamente perante o director pedagógico da ré (Dr. José Pacífico), bem como perante a directora-geral da ré;
– 33) a autora gozava férias anuais;
– 34) a autora exercia a função de coordenadora num gabinete que partilhava com CC e DD;
– 35) os actuais coordenadores da ré mantêm um vínculo com a mesma, que o seu director financeiro reputa de laboral;
– 36) a política pedagógica da Escola é da competência da direcção, a qual determinava a realização de reuniões nas quais a autora participava e, nessas reuniões a directora da ré solicitava esclarecimentos sobre o que se passava na Escola;
– 37) o director pedagógico da ré marcava reuniões, onde se discutiam projectos da Escola e eram dadas directivas;
– 38) o director pedagógico dava directivas à autora sobre a marcação de provas dos alunos;
– 39) CC e DD, responsáveis pela assistência técnica, reportavam à Autora, da qual dependiam enquanto coordenadora da área de audiovisual;
– 40) DD estava afecta à área do audiovisual, recebendo instruções atinentes a assuntos administrativos e organizativos dos cursos coordenados pela autora, nomeadamente por correio electrónico;
– 41) a autora era directamente responsável pelos formadores e assistentes da sua área perante a respectiva hierarquia;
– 42) anualmente, a escola encerra três semanas em Agosto e uma semana em Dezembro, sendo usualmente durante esse período que são gozadas as férias, sendo que, para não se gozar as férias durante esse período, torna-se necessário obter a anuência da ré;
– 43) no exercício da actividade de coordenadora de audiovisual, a autora usualmente chegava à Escola pelas 9 horas e interrompia a sua actividade entre as 13 horas e as 14 horas, para almoçar;
– 44) a autora terminava o exercício dessa actividade pelas 20/21 horas;
– 45) a autora, além de exercer a actividade de coordenadora da área do audiovisual, também leccionava as cadeiras que lhe estavam atribuídas;
– 46) a autora participou em actividade de formação em contexto de trabalho que os alunos da ré levaram a cabo no evento denominado Rock in Rio Lisboa;
– 47) a autora acompanhou os alunos referidos em 46);
– 48) pelo exercício da actividade de formadora, a autora recebia um montante mensal variável em função do número de horas de aulas ministradas;
– 49) em Fevereiro de 2003, a ré pagou à autora o montante referido no recibo constante fls. 215 dos autos, que aqui se dá por integralmente transcrito;
– 50) nos meses de Março, Abril, Junho e Julho de 2003, a ré pagou à autora os valores constantes dos recibos inseridos a fls. 216 a 221 dos autos, que aqui se dão por integralmente transcritos;
– 51) de Setembro de 2003 a Julho de 2004, a ré pagou à autora os valores constantes dos recibos inseridos a fls. 222 a 233 dos autos, que aqui se dão por integralmente transcritos;
– 52) de Novembro de 2003 a Julho de 2004, a ré pagou à autora os valores constantes dos recibos inseridos a fls. 234 a 246 dos autos, que aqui se dão por integralmente transcritos, a título de “aulas ensino técnico” e “aulas ensino profissional”, sendo que as aulas eram pagas em função do número ministrado, em montante variável;
– 53) a ré pagava à autora a sua prestação como formadora consoante o número de aulas do ensino profissional e técnico ministradas pela mesma no mês anterior, sendo que às aulas de ensino técnico era atribuído o valor de € 27,50 e ao ensino profissional de € 23,24;
– 54) o valor auferido pela autora pela prestação das aulas de formação era pago a meio do mês porque, dependendo do número de aulas leccionadas no mês anterior, só a meio do mês a ré finalizava a contabilização das mesmas e procedia ao seu pagamento;
– 55) em Dezembro de 2002, o director financeiro da Ré, Dr. EE, falou com a autora sobre as condições financeiras em que iria exercer as funções de coordenadora da área audiovisual, nos termos em que havia sido convidada pela Drª FF, tendo-lhe apresentado o documento constante de fls. 247 dos autos, que aqui se dá por integralmente transcrito;
– 56) a autora levava a cabo a sua actividade de coordenadora numa sala que partilhava com CC e DD;
– 57) a partir de Maio de 2004, falou-se numa alegada reestruturação do plano de cursos ministrados pela autora no ano lectivo de 2004/2005;
– 58) em 3 de Junho de 2004, a ré pretendia reestruturar a área de audiovisual;
– 59) em reunião realizada em data que não foi possível apurar de forma exacta, do final de Maio de 2003, a Drª FF comunicou à autora que, em virtude de reestruturação da área de audiovisual, a Escola prescindia da sua actividade como coordenadora;
– 60) a ré manteve cursos na área do audiovisual;
– 61) presentemente, o professor responsável para a área de imagem e som é Pedro Cena Nunes;
– 62) em Julho de 2004, a ré pagou à autora o montante de € 560, a título de “colaboração no projecto Rock in Rio”;
– 63) a autora ficou triste por ter deixado de exercer funções de coordenadora na ré;
– 64) em 15 de Março de 2005, a Drª GG, médica psiquiatra, elaborou a declaração clínica constante de fls. 275/276 dos autos, que aqui se dá por integralmente transcritas;
– 65) pelo menos de 4 de Fevereiro de 2001 até Dezembro de 2002, a autora exerceu actividade de formadora para a ré;
– 66) no período referido em 65), a autora dava formação na área de produção de televisão e a ré pagava-lhe de acordo com o número de horas leccionadas;
– 67) a autora tinha autonomia metodológica;
– 68) em Dezembro de 2002, a equipa responsável pela área de áudio e vídeo informou a ré que ia dar por finda a colaboração que havia entre ambas;
– 69) a equipa era constituída por HH, coordenador do vídeo, GG, do áudio, e II, encarregado da gestão de equipamentos e meios;
– 70) a ré teve necessidade de organizar uma nova equipa para a área de audiovisual;
– 71) a ré convidou a autora para integrar, como coordenadora, a nova equipa, que incluía ainda CC, para o áudio, e JJ, para a gestão de equipamentos e meios;
– 72) após assumir as funções de coordenadora, a autora continuou a ser formadora;
– 73) autora e ré acordaram que, de Janeiro a Julho de 2003, a primeira auferiria o valor mensal de € 3.061;
– 74) essa verba remunerava a coordenação e a formação que a autora pudesse dar até Julho de 2003;
– 75) a autora exerceu a função de coordenação da área de audiovisual no período decorrido de Agosto 2003 a Julho de 2004;
– 76) autora e ré negociaram as condições do exercício de funções de coordenadora por parte da primeira no período decorrido de Agosto 2003 a Julho 2004, tendo novamente por base o documento referido em 55);
– 77) para o período decorrido de Agosto 2003 a Julho 2004, autora e ré vieram a acordar que a primeira, como coordenadora, teria a remuneração global de € 35.000, paga em 12 prestações mensais de € 2.450, depois de deduzido o IVA, mais acordando que a remuneração pelo exercício da actividade de formação que levasse a cabo seria pago à parte;
– 78) a autora referiu a responsáveis da ré que tinha perspectivas de poder vir a assumir a gestão da produção no espaço do “Campo Pequeno”;
– 79) após ter iniciado o exercício da actividade de coordenadora da área de audiovisual, a autora continuou a dar formação;
– 80) a partir de Agosto de 2003, a ré contabilizou o número de horas de formação dadas pela autora e passou a proceder ao seu pagamento em meados do mês seguinte;
– 81) terminada a coordenação que decorreu entre Janeiro e Julho de 2003, as partes negociaram as condições das novas prestações de serviço para o ano lectivo 2003/2004;
– 82) a ré disponibiliza aos seus colaboradores espaço, equipamentos, meios humanos, físicos e técnicos necessários ao desempenho das suas funções;
– 83) a ré atribui aos coordenadores formadores, funcionários e alunos, uma conta de correio electrónico personalizado e cartão de identificação;
– 84) a ré disponibiliza a alguns colaboradores um cartão de visita personalizado;
– 85) as horas de aulas são marcadas pela ré, sendo certo que a autora exercia funções de coordenação quando os alunos estavam na Escola;
– 86) quando o desempenho da autora implicava relações com terceiros, designadamente gestores da escola, elementos das demais equipas coordenadoras, formadores, alunos e a utilização de equipamento partilhado com eles, havia necessidade de conciliar os horários de todos os intervenientes ou utilizadores;
– 87) aquando da participação dos alunos no evento Rock in Rio em Lisboa, foram [eles] acompanhados por colaboradores da escola;
– 88) a ré dava à autora orientações tendentes à salvaguarda da prossecução do plano de curso e formação em causa;
– 89) a acção de formação tem de cumprir o plano de curso aprovado e/ou reconhecido pelas entidades oficiais;
– 90) a autora, como coordenadora de uma área de formação, era o elemento de ligação de todos os elementos dessa área e dos alunos à direcção da ré;
– 91) a ré procedeu à reestruturação do plano curricular dos cursos, introduzindo novos conteúdos, uma maior vertente criativa e a área do cinema;
– 92) a par disto, reestruturou as áreas de formação, passando a existir quatro áreas: imagem, design e multimédia, comunicação e música;
– 93) a ré decidiu prescindir da colaboração da autora como coordenadora;
– 94) depois da autora ter saído, a área de vídeo foi integrada na área de imagem, a qual abrange também cinema, TV, fotografia e animação.


3. De acordo com as questões acima enunciadas e a curar no presente recurso, iniciar-se-á a atenção sobre aquilo que a impugnante esgrime no sentido de a presunção ínsita no artº 12º do Código do Trabalho violar o que designa por “princípio fundamental da liberdade contratual”.

Em primeiro lugar, cumpre assinalar que o negócio jurídico em apreço nos autos foi aprazado entre as partes antes da entrada em vigor da Lei nº 99/2003, de 27 de Agosto, que aprovou o Código do Trabalho, vindo a sua cessação a ocorrer em 31 de Julho de 2004.

Neste contexto, e ponderando o que se consagra na parte final do artº 8º daquela Lei, haverá que sopesar, num primeiro momento, se, no domínio da legislação pretérita à entrada em vigor do Código por aquela Lei aprovado, haveria o negócio jurídico celebrado de ser considerado como reunindo as características tipológicas de um contrato de trabalho ou de um contrato de prestação de serviços.

E isso, evidentemente, sem embargo de, considerando que a perduração de tal negócio ocorreu para além da vigência do Código do Trabalho, e estando em discussão a caracterização negocial, se dever atentar na factualidade derivada da respectiva execução após aquela vigência.


Em segundo lugar, referir-se-á que não é limpidamente entendível aquilo que a recorrente apoda de “princípio fundamental da liberdade contratual”. Efectivamente, não resulta claro se, ao utilizar uma tal asserção, se quis reportar a um princípio regente de toda a ordem jurídica e, por isso, impositivo a toda a normação que a constitui, o que, em países dotados de constituição ou lei fundamental escrita, tal como o nosso, implicaria que esse princípio se encontrasse consagrado naquelas constituição ou lei fundamental, quer de forma expressa, quer como uma decorrência das linhas de base que, segundo elas, devem presidir à estruturação dos respectivos Estados e informar a respectiva ordem jurídica.

Ora, se foi esse o desiderato da recorrente, então, ao jeito de refutar uma tal postura, bastaria vincar que um tal princípio não só se não encontra expressamente precipitado na Constituição portuguesa, como também não se divisa ser ele implicado por outras normas ou princípios constitucionais. E, sendo assim, não seria exigido que, em nome desse (inexistente) princípio, a legislação ordinária – e, no caso, a legislação laboral – se houvesse de conformar por sorte a não consagrar normação que, por via directa ou indirecta, viesse a almejar uma solução jurídica que contendia com ele.

Mas, se, de outra banda, a impugnante, ao se referir ao dito “princípio”, intentava extraí-lo, já não como algo que se impunha a todo o ordenamento jurídico, mas sim a um princípio iluminante das fontes obrigacionais e que decorreria, a seu ver, do nº 1 do artº 405º do Código Civil, a resposta refutante desse posicionamento não se lobriga de acentuadas dificuldades.

Na verdade, desde logo, a estatuição constante daquele normativo dificilmente será perspectivável como possuidora de um campo aplicativo para todas as vertentes do ordenamento jurídico, de modo a este, no seu globo, dever a ela estar sujeito.

E, decisivamente, o que se torna inquestionável é que o próprio preceito erige a faculdade nele prevista à subordinação dos próprios limites da lei.

Assim, se um ramo do direito, como tal aceite dogmaticamente e desse modo aceite pelo legislador, contiver normação imperativa reguladora de uma dada situação da qual resulta uma fonte obrigacional, não poderá, em nome da faculdade estabelecida no nº 1 do artº 405º – antes pelo contrário, atenta a ressalva decorrente da limitação que se extrai da primeira asserção nele contida – argumentar-se no sentido de àquela normação se não dever atender, por ser ou poder tornar-se conflituante com a aludida faculdade.

Mas, a mais que tudo o que se veio de expor, releva a consideração de que o acórdão em sindicância não se suportou na presunção consagrada no artº 12º do Código do Trabalho para alcançar o juízo qualificativo do negócio jurídico em causa.

Na verdade, o que naquele aresto se disse foi que a qualificação de um contrato como contrato de trabalho se haveria de aferir pela existência de uma subordinação jurídica, sendo a verificação desta resultante da forma como o contrato foi executado e não pelo seu reconhecimento pelas partes.

Em passo algum se lobriga no discurso utilizado pelo acórdão em causa a mínima referência a que, na situação sujeita ao seu veredicto, foi por virtude da presunção vertida no artº 12º do Código do Trabalho que se concluiu pela caracterização laboral do negócio outorgado entre as partes.

Não havendo, pois, suporte jurídico em tal norma, para estear o juízo conclusivo para a mencionada caracterização, é, no caso sub specie, destituída de razão a questão colocada neste particular pela recorrente, pois que se apresenta como meramente académica, tornando-se evidente que diverso problema é o de saber se, na realidade, é, ou não, de aceitar aquele juízo conclusivo – problema que, à frente, será objecto de tratamento.

Improcede, assim, esta específica questão.


4. Aduz a impugnante que, por parte do acórdão sob censura, houve violação das regras sobre o ónus probatório.

Neste ponto, brande com a existência do documento que apresentou à autora e que se encontra junto a fls. 247 dos autos, e com uma confissão extraída do depoimento pessoal prestado pela autora.

Cremos que, com um tal brandir, é desejo da recorrente criticar o aresto sindicado, não perante um errado juízo sobre as provas que conduziram à matéria de facto que por ele foi alcançada, mas sim criticá-lo ao não ter fixado determinado facto material da causa, o que teria feito por inconsideração de norma fixadora de determinado meio de prova. Justamente por isso, não será vedado a este Supremo entrar na dilucidação desta questão.

Para uma melhor compreensão, justificar-se-á a transcrição daquele documento a que se reporta o item 55) de II 2., todo ele dactilografado (ou processado por impressora) e sem se mostrar assinado por quem quer que seja.

Aí se encontra, e tão-só, escrito: –

A) Custo total anual com a função coordenador, 35.000€
B) Aulas leccionadas pagas à parte (considera-se que o universo de aulas leccionadas será limitado uma vez que a pessoa também é coordenadora, logo tem menos tempo disponível)
C) A etic não liquida iva, pelo que o iva é um custo
O) Se estivermos a falar em rec. verde (ou similar) então:
Numa lógica de divisão do custo anual por 14 meses
35.000 €/14 = 2.500 € (rec. verde / mês, incluindo iva)
2.500 €/1,19 = 2.100 € (valor do rec. verde em mês simples, antes de iva e de eventuais ret. de irs)
Nesta modalidade, no mês de férias e de natal há direito ao pagamento aos ‘subsídios’ ou seus duodécimos.
Numa lógica de divisão do custo anual por 12 meses
35.000 €/12 = 2.917 € (rec. verde / mês, incluindo iva)
2.917 €/1,19 = 2.451 € (valor do rec. verde em cada mês do ano, antes de iva e de eventuais ret. de irs)
Nesta modalidade o ‘subsídio’ de natal e de férias já se encontra incluído no pagamento mensal.
E) Considerando uma lógica contrato de trabalho com descontos para a Seg Social teríamos:
Vencimento ilíquido mensal – 1.969€
Subs. alim. – 4€ (considero a média de 21 dias/mês útil)
Taxa ret. irs (casado, 2 tit., 2 dependentes) – 21,5%
Taxa Soc. Única – 11% Taxa Seg. Social da Empresa – 23,75%
O que resulta num custo total de 35.035 €/ano
EE ........... ou ........... ou ............

A impugnante, no desenvolvimento deste fundamento recursório, vem referir que o documento supra transcrito foi apresentado por ela à recorrida e que, no depoimento pessoal que esta prestou em audiência, teria deposto no sentido de ter optado, sem conselho, pela celebração de um contrato de prestação de serviços.

Refira-se, desde já, que nos autos não se encontra reduzido a escrito o depoimento da autora ou, mais correctamente, a parte do depoimento da qual se extraia o reconhecimento, por sua parte, da realidade de um facto que lhe era desfavorável e favorecia a ré.

Na verdade, conforme comando do nº 1 do artº 563º do Código de Processo Civil, o depoimento é sempre reduzido a escrito, mesmo que tenha sido gravado, na parte em que houver confissão do depoente, ou em que este narre factos ou circunstâncias que impliquem indivisibilidade da declaração confessória.

Ora, mesmo que, eventualmente, em audiência, tivesse havido, por parte da autora, a prestação de declaração confessória no particular em apreço e, não obstante, não tivesse o Juiz da causa determinado a redução a escrito de uma tal declaração, haveria a ré de suscitar essa irregularidade.

Não o fez, porém. E como os autos não permitem minimamente que se conclua pela prestação de depoimento confessório, não poderá este Supremo concluir pela existência de confissão e, logo, por um vício do acórdão recorrido consistente em não ter dado por demonstrado uma determinada realidade – a de a autora ter, livremente, optado pela celebração de um negócio jurídico que seria denominado como contrato de prestação de serviço – que seria desfavorável à autora.

A isto há, ainda, que acrescentar que, por um lado, o documento de fls. 247, e tal como ressalta da transcrição supra efectuada, em passo algum se refere a um contrato de prestação de serviço; por outro, mesmo que dele se pudessem retirar alguns subsídios atinentes à caracterização do negócio jurídico em causa, não resultava daí, inquestionavelmente e desde logo, que da alegada opção da autora pela forma de pagamento correspondente à enunciada no item E)” do documento se retirasse que, afinal, foi desiderato das partes que a fonte de obrigações decorrente do contrato pelo qual a autora prestaria a sua actividade à ré se haveria de considerar um contrato de prestação de serviço.

E isto, evidentemente, sem embargo, da consideração de harmonia com a qual, ainda que os outorgantes de um determinado negócio jurídico o venham a apelidar de determinado modo, se o mesmo não revestir as características atinentes ao nomem que por elas lhe foi conferido, nem por isso poderá ele, de um ponto de vista jurídico, ser como tal qualificado.

Improcede, desta arte, a vertente questão.


5. É chegada a altura de se saber como caracterizar o negócio jurídico firmado entre autora e ré.

Como resulta da factualidade acima elencada, as relações contratuais outorgadas entre a autora e a ré tiveram o seu desenvolvimento no período que decorreu entre, pelo menos, 4 de Fevereiro de 2001 e 31 de Julho de 2004, desenvolvendo a primeira a actividade de professora do ensino técnico e profissional para a ré, leccionando aulas de produção de televisão, e vindo, em data incerta de Janeiro de 2003, a exercer as funções de coordenadora do audiovisual, mantendo aquela actividade de professora.

Regia, na ocasião do início de funções atinentes a uma e outra das referidas actividades, o regime jurídico do contrato individual de trabalho aprovado pelo Decreto-Lei nº 49.408, de 24 de Novembro de 1969.

Por isso, no que tange ao negócio outorgado entre as partes – e anote-se aqui que, contrariamente àquilo que parece transparecer da postura da recorrente, dos autos se não pode extrair que o exercício das funções de coordenadora de audiovisual se não tivesse inserido que não no âmbito do mesmo negócio de prestação de actividade da autora à ré –, ao menos aquando da sua celebração e em parte substancial do seu desenvolvimento, não pode ser desconsiderado aquele regime jurídico.

São sabidas as definições que o Código Civil dá ao contrato de prestação de serviço (cfr. artº 1154º) e ao contrato de trabalho (cfr. artº 1152º), tendo a atinente a este último sido alvo de reprodução no artº 1º do mencionado regime jurídico.

Ora, face a esse posicionamento qualificativo do legislador, teremos que concluir que aquelas duas espécies de contrato se diferenciam, essencialmente, pelo respectivo objecto, qual seja o da prestação de uma actividade (no caso do contrato de trabalho) ou da obtenção de um resultado (no caso do contrato de prestação de serviço), e pelo relacionamento entre as partes, isto é, a existência de uma relação de subordinação (quanto ao primeiro) ou de autonomia (quanto ao segundo).

Porém, aquelas diferenciações, se bem que impositivas para a caracterização do concreto negócio, nem sempre, na realidade da vida, são facilmente apreensíveis, designadamente ao se atentar no objecto contratual.

Na verdade, e não se podendo escamotear que todo o trabalho ou desempenho de actividade, por princípio, e como diz Galvão Telles, (Contratos Civis, estudo publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 63º, 165), conduz a um dado resultado, muitas das vezes, perante as estipulações contratuais, fica-se sem um claro «desenho» sobre a questão de saber se foi intento dos outorgantes que um deles viesse a prestar à outra uma sua actividade intelectual ou manual ou se, antes, viesse a proporcionar o resultado desse trabalho.

Daí que, nesses casos, e, designadamente, quando nos deparamos perante o desempenho de actividades de natureza intelectual, se deva, à guisa de último reduto de consecução da qualificação contratual, apreciar qual o relacionamento que se processou entre as partes. É que, dessa específica apreciação, são colhidos subsídios permissores da resposta a conferir à questão de saber se houve, ou não, uma posição de supremacia da parte a favor da qual reverte a actividade desenvolvida, com a correlativa posição de subordinação do prestador dessa actividade, que, assim, a executa perante os ditames de instruções ou orientação da primeira.

E isso, naturalmente, tem a maior relevância, no ponto em que, concluindo-se pela existência de uma tal posição de subordinação, não se poderá afastar a qualificação como contrato de trabalho, pois que a característica da subordinação é típica desta espécie de contratos.

Claro que a posição de supremacia da parte a favor da qual reverte a actividade nem sempre se manifesta em cada momento, por forma a que todo o desenvolvimento da actividade a prestar constitua, afinal, uma mera execução de concretas instruções emanadas daquela parte. Exige, isso sim, a possibilidade de emissão de ordens, instruções, direcção e conformação relativamente àquilo que a outra parte se comprometeu a realizar no âmbito do contrato ou dentro dos limites deste.

Esta forma analítica de solucionar a qualificação contratual poderá, pois, fazer uma definição dos concretos contornos do negócio, mormente nas situações em que, estando em causa actividades de natureza técnica ou científica, se deparam maiores escolhos, posto que, aí, em muitos casos, não pode ser arredada, em razão daquela natureza, a autonomia do prestador da actividade.

Perante essas dificuldades, tem sido, sem discrepância, notado pelas doutrina e jurisprudência nacionais que o método analítico que servirá para a qualificação do acordo negocial (e não se olvide que, quer o contrato de trabalho, quer o contrato de prestação de serviço, são negócios meramente consensuais) deverá passar pela verificação do condicionalismo concreto em que se desenvolveu a relação contratual, para, dessa sorte, se almejar a verificação, ou não, da característica da subordinação, típica do contrato de trabalho.

Tal verificação, porém, não se deve confinar perante um ou outro indício, mais ou menos relevante, antes devendo equacionar a totalidade do relacionamento, a fim de se proceder ao balanceamento de todos eles com a finalidade de apurar da existência da aludida característica, a qual, e para se utilizarem os ensinamentos de Monteiro Fernandes (Direito do Trabalho, 13ª edição, 136) “consiste numa relação de dependência necessária da conduta pessoal do trabalhador na execução do contrato face às ordens, regras ou orientações ditadas pelo empregador, dentro dos limites do mesmo contrato e das normas que o regem”, sendo que a supremacia do empregador que, concomitantemente, implica a subordinação do trabalhador, como já acima se aflorou, não tem de se manifestar (ou transparecer, como diz este Professor) em cada momento, pelo que, para o juízo de análise a que agora nos reportamos, bastará a verificação da possibilidade de ser exercida.

De outro lado, há que atender a outros indícios, como sejam, verbi gratia, a inserção do prestador de actividade na estrutura organizativa da empresa para a qual é prestada, a existência de um local de trabalho nesta, o fornecimento de meios e instrumentos para essa actividade ser prestada, a sujeição a um horário de trabalho e o desfrute de férias pagas.

Por outro lado, impõe-se também não confundir a subordinação jurídica, que, como se disse, é típica do relacionamento do contrato de trabalho, com a dependência técnica, pois que, em alguns ramos de actividade, torna-se evidente a salvaguarda da autonomia técnica do prestador de actividade.

E, de semelhante modo, importa anotar que aquela subordinação não implica dependência económica, pois (cfr. o citado autor, mesma obra, 139) pode não existir dependência económica – no sentido de quem realiza o trabalho para outrem “encontrar na retribuição o seu único ou principal meio de subsistência” – no trabalho subordinado.


5.1. Presente esta parametrização, importa analisar tipologicamente os indícios que nos fornecem os dados de facto que foram trazidos aos autos, em ordem a pesquisar-se se ocorreu, no contrato outorgado entre autora e ré, um modelo típico de subordinação.

O acórdão recorrido limitou-se, neste particular ponto, a discorrer assim: –

“(…)
Ora, resultou provado que a autora prestou, de facto, a sua actividade sob a autoridade e direcção da ré, conforme dispõe o art., 10 do CT. Com efeito, na sentença recorrida foi detalhadamente analisada a matéria de facto e feita a correcta subsunção aos elementos indiciadores da existência de subordinação jurídica pois, tal como nela se referiu, ficou provado que: ‘pelo menos desde Janeiro de 2003, a autora estava inserida na estrutura organizativa da ré (23,24,30,40,41,42,43 e 44) e recebia directivas da mesma (26,35,36 e 38); – o trabalho era realizado nas instalações da ré (vg: H e 30); – a autora era retribuída pela execução da actividade (52,53,54,55,56,57e 58); os instrumentos de trabalho eram fornecidos pela ré (E, F e G); – a prestação de trabalho da autora, mesmo que apenas como coordenadora foi executada por um período, ininterrupto, superior a 90 dias).’
Provada a existência de subordinação jurídica da autora na sua relação contratual com a ré, bem concluiu a sentença recorrida pela existência de um contrato de trabalho entre as partes, e condenou em conformidade.
(…)”

Sufraga-se o juízo conclusivo a que chegou tal aresto.

Desenvolver-se-ão, todavia, maiores considerações.

Na realidade, da factualidade apurada, e para o que agora releva, deflui, de uma parte, que: –
– a ré atribuiu à autora secretária, cadeira, bloco de gavetas, computador e telefone com linha directa e extensão;
– a autora desenvolvia a sua actividade nas salas de aulas e nas instalações da ré e no estabelecimento de ensino desta designado por BB;
– a autora era directamente responsável pelos formadores e assistentes da sua área perante a respectiva hierarquia;
– a autora podia representar a empresa em assuntos da sua responsabilidade;
– a autora zelava pelo cumprimento do regulamento interno;
– da autora dependia CC, o qual, em data não apurada de Janeiro ou Fevereiro de 2003, passou a coordenar a área áudio, integrada na área de audiovisual, e, igualmente, daquela dependia JJ, responsável pela assistência técnica;
– a autora dava, nomeadamente por correio electrónico, instruções referentes a assuntos administrativos e organizativos a DD, a qual estava afecta à área de audiovisual;
– a autora respondia perante o director pedagógico da ré, bem como perante a directora-geral da ré,
– a autora gozava férias anuais;
– a autora participava em reuniões cuja realização era determinada pela direcção da Escola, a esta direcção competindo a política pedagógica de tal Escola;
– o director pedagógico da ré dava directivas, designadamente à autora sobre a marcação de provas dos alunos;
– a autora era, perante a respectiva hierarquia, responsável pelos formadores e assistentes da sua área;
– para que as férias pudessem ser gozadas fora do período de três semanas em Agosto e uma semana em Dezembro, período esse em que a Escola encerra, tornava-se necessário obter anuência da ré;
– a autora, usualmente, chegava à Escola pelas 9 horas, interrompia a sua actividade entre as 13 e as 14 horas e terminava o exercício dessa actividade pelas 20/21 horas;
– as horas de aulas são marcadas pela ré.

Destes elementos fácticos não se pode retirar senão que a actividade prosseguida pela autora estava subordinada a um poder efectivo de conformação ditado pela ré (e não só a uma mera eventualidade de o poder exercer), inserindo-se aquela numa estrutura organizativa desta última, sendo que têm assinalável «peso» os indícios decorrentes do cumprimento de um horário de trabalho, o gozo de férias, autorizado pela ré, a dação, por esta, de directivas à autora, a circunstância de esta última zelar pelo cumprimento do regulamento interno da ré e de «responder» pelos formadores e assistentes da sua área perante a hierarquia da ré.

É certo que, de outra parte, existem indicadores que poderiam apontar no sentido de terem as partes almejado a consecução de um resultado da actividade da autora – a de leccionar aulas.

Mas esse resultado já se torna sobremaneira diluído quando se tem por referência a actividade de coordenação de toda uma das actividades da ré – a do audiovisual (e não se olvide aqui o que acima ficou consignado quanto à circunstância de dos autos se não poder retirar com inequivocidade que esta actividade se não inseriu no âmbito do mesmo acordo negocial firmado entre as partes) –, precisamente porque não é facilmente lobrigável que um campo de actividades empresarial, com uma determinada componente organizacional em meios técnicos e humanos seja coordenada por alguém que não faça parte da estrutura global da empresa e que não detenha poderes directivos efectivos sobre aquela componente.

De outro lado, é necessário não passar em claro que a actividade de leccionação da autora é uma actividade que, por natureza, é dotada de autonomia técnica. Ora, o desenvolvimento de uma actividade desse jaez, como resulta do que acima já se teve a ocasião de expor, não é incompatível com a celebração de um contrato de trabalho.

Por isso, e no sopesar da globalidade dos indícios resultantes da matéria de facto apurada, devem sobrelevar aqueles que, como se disse, apontam para a existência de uma subordinação jurídica e de inserção na estrutura organizativa da ré.

Daí que conclua este Supremo que o negócio aprazado entre as partes deva ser caracterizado como um contrato de trabalho.


6. Finalmente, sustenta a impugnante que, a considerar-se estarmos perante um contrato de trabalho, o acórdão recorrido deveria ter apreciado a censurabilidade da conduta da autora perante o que se dispõe no artº 334º do Código Civil.

Para tanto, e se bem entendemos o seu raciocínio, parte do pressuposto de que a autora escolheu o contrato de prestação de serviço como fonte da contrapartida obrigacional de prestar a sua actividade à ré, o que esta teria aceite de boa fé, vindo, somente após a cessação do negócio jurídico, a defender que, afinal, o contrato vinculante das partes se tratava de um contrato de trabalho.

Ora, para colher o ponto de vista da recorrente, mister seria ficasse demonstrada a opção da autora, circunstância da qual parte a ré para agora defender a tese de que aqui se postaria um caso de abuso de direito.

Simplesmente, como se viu já, não está feita tal demonstração.

Só por aí seremos levados à conclusão da improcedência desta vertente do recurso, não se antevendo, desta sorte, necessidade de equacionar o problema de saber se poderia ser feito apelo à figura do abuso de direito, seja na vertente de venire contra factum proprium, seja na de um exercício manifestamente excedente dos limites impostos pela boa fé, quando se apresentasse uma situação em que alguém, colocado na posição da autora, viesse a peticionar os direitos emergentes de uma relação laboral, mesmo que, com uma eventual opção tomada, estivesse convicto que o relacionamento jurídico entre ele e a outra parte iria ser regido por um contrato de prestação de serviço, mas sendo que a execução desse contrato apontava inequivocamente para uma relação laboral, não sendo, pelo primeiro, alguma vez questionada essa execução.

Identicamente, pelo exposto, improcede esta questão.
III

Termos em que se nega a revista.

Custas pela recorrente.


Lisboa, 26 de Novembro de 2008


Bravo Serra (Relator)
Mário Pereira
Sousa Peixoto