Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1587/06.0TVPRT.P1.S3
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA VASCONCELOS
Descritores: INVESTIGAÇÃO DA PATERNIDADE
CADUCIDADE
FILIAÇÃO BIOLÓGICA
PRESUNÇÃO DE PATERNIDADE
Data do Acordão: 05/17/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS/ EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS/ PROVA - DIREITO DA FAMÍLIA/ FILIAÇÃO
Doutrina: - Alberto dos Reis, A Posse de Estado na Investigação de Paternidade.
- Guilherme de Oliveira, Estabelecimento da Filiação, página 156.
- Manuel Andrade, Teoria Geral das Obrigações, página 63.
- Pires de Lima e Antunes Varela “in” Código Civil Anotado, em anotação ao artigo 334.º.
- Vaz Serra, Abuso de Direito no BMJ 85º/253.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 334.º, 342.º, N.º2, 343.º, N.º2, 344.º, N.º2, 1871.º, N.ºS1 E 2, 1873.º, N.º3 .
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 722.º, N.º3, ÚLTIMA PARTE.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 26.º, N.º1.
Sumário : 1. Numa acção de investigação de paternidade compete ao ré investigado a prova do decurso do prazo de caducidade.

2. As circunstâncias referidas no nº1 do artigo 1871º têm o valor técnico-jurídico de factos operativos de presunções legais de paternidade.

3. São situações de facto que exprimem a maior probabilidade de o investigado ser o progenitor e que dispensam o autor de provar o facto constitutivo da paternidade, ou seja, o vinculo biológico.

4. Cabe, pois, ao investigado, a alegação e prova de factos capazes de suscitar “dúvidas sérias” sobre a paternidade presumida.

5. Se o conseguir, retira ao autor o benefício de inversão do ónus probatório: coloca-o na necessidade de convencer o juiz da existência de vínculo biológico, isto é, na necessidade de provar o facto constitutivo do seu direito.

6. A reputação como filho por parte do pretenso pai consiste na convicção íntima que o pai tem que determinada pessoa é seu filho.

7. O tratamento como filho por parte do pretenso pai consiste em dispensar à pessoa de que se trata os cuidados, amparo, protecção e carinho que os pais costumam dispensar aos filhos.

8. A reputação pelo público consiste em se manifestar a sua convicção de que o investigante é filho da pessoa cuja paternidade investiga.

9. Se os exames periciais se configurarem como absolutamente essenciais à determinação da filiação biológica, implicando, consequentemente, a recusa dos mesmos uma verdadeira impossibilidade de o autor fazer prova de uma invocada filiação biológica, sempre de deveria ter em conta o disposto no nº2 do artigo 344º do Código Civil, presumindo-se a paternidade.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Em 2006.07.19, na 2ª Vara Cível do Porto, AA intentou a presente acção ordinária para investigação de paternidade contra BB pedindo que se reconheça judicialmente que CC é o pai do autor alegando em resumo, que - nasceu no dia … de … de 19…, na freguesia da V…, concelho de Montalegre;

- a mãe do autor é DD;

- na certidão do registo do nascimento do autor  não se encontra averbado o nome do seu pai;

- desde tenra idade, o autor questionava-se sobre quem seria o seu pai;

- a sua mãe, até aos seus sete anos, escondeu-lhe a sua identidade;

- no dia … de … de 19…, data em que o autor  fez sete anos, apareceu na casa onde vivia com a sua mãe um senhor chamado CC que se intitulou de seu pai;

- nesse mesmo dia, a sua mãe contou-lhe que namorou com o CC e que fruto dessa relação amorosa nasceu o autor;

- na data em que o autor foi concebido, a sua mãe apenas tinha relações sexuais com o CC.

- porém, este, quando soube que mãe do autor estava grávida, foi viver para Baião;

- não obstante ter abandonado a mãe do autor, o CC escreveu-lhe por diversas vezes a fim de saber como ele estava;

- no dia 28 de Outubro de 1956, o CC disse ao autor que era seu pai e que pretendia perfilhá-lo;

- desde esse dia até ao dia 13 de Outubro de 2005, data em que faleceu, que o referido CC, pelo menos uma vez por ano, visitava o autor, tratando-o como filho;

- o CC, no final do mês de Julho de 2005, sofreu uma trombose;

- no mês de Agosto de 2005, o autor deslocou-se à casa do seu pai para o visitar, pois sabia que se encontrava doente;

- a ré  impediu-o de entrar na residência;

- no dia seguinte, o autor  telefonou para a casa do seu pai para saber como se encontrava;

- foi a ré quem atendeu o telefone e pediu-lhe desculpas por não o ter deixado visitar o pai;

- disse-lhe que estava muito arrependida do que tinha feito, pois sabia que ele era o filho do seu marido;

- de seguida passou o telefone ao CC;

- o autor e este estiveram cerca de vinte minutos a conversar telefonicamente;

- o CC, nessa conversa, tratou sempre o autor  como filho e confessou-lhe que queria estar com ele o mais brevemente possível, logo que estivesse recuperado;

- o Sr.CC tratava o autor, igualmente, como filho perante terceiros, nomeadamente, perante os seus familiares;

 - em virtude do CC se encontrar doente, a sua sobrinha, EE, foi visitá-lo no apartamento onde residia, sito na Costa Cabral, no Porto;

- a primeira pergunta que o CC lhe fez foi se tinha notícias do seu filho AA, pois precisava muito de falar com ele;

-  no dia 07 de Outubro de 2005, cinco dias antes de falecer,CC perguntou à sua sobrinha, FF, se tinha notícias do seu filho AA, pois estava cheio de saudades dele e tinha vontade de o ver;

- até à ora ré o CC confessou que o autor era seu filho;

- na missa de sétimo dia do seu marido, a ré, quando avistou o autor, confessou à sua sobrinha EE que ele era a "cara chapada" do falecido CC;

- e que bastava olhar para a cara dos dois para constatar que o falecido era o pai do autor;

- o CC faleceu no dia …de … de 2….;

- o CC, à data do seu óbit, era casado com a ré;

-  além do autor, não são conhecidos outros descendentes do CC;

 - o CC, até à sua morte, sempre tratou o autor como seu filho;

 - no ano em que faleceu, falou com o autor, tratando-o como filho e tratando os filhos do autor como seus netos;

- o CC, quando falava com as suas sobrinhas sobre o autor, denominava-o como seu filho;

- o autor é filho do CC.

Contestando

e também em resumo, a ré alegou que

- o autor não tinha interesse em agir, uma vez que com a acção tinha como único objectivo receber bens e dinheiro, em partilha da herança deixada pelo falecido;

-  direito de intentar a acção estava caduco, uma vez que o autor sabia desde os sete anos que o falecido CC era seu pai e teve muito tempo para intentar a acção;

- o direito que o autor vem exercer excede manifestamente os limites impostos pela boa fé  e bons costumes;

- não são verdadeiros os factos invocados pelo autor.

O autor replicou.

Realizaram-se exames a amostras biológicas (DNA) no Instituto Nacional de Medicina Legal, estando os relatórios e conclusões a fls. 194 a 202 ( onde não se descarta a possibilidade de recorrer à exumação do cadáver do CC ), 321 a 332 e ainda se produziu relatório médico sobre o estado de saúde do Sr.CC nos últimos anos de vida – fls. 317.

O autor requereu que se procedesse à exumação do corpo do CC para se proceder à realização de exames de DNA a fim de se averiguar se é o pai do Autor, a que se opôs a ré.

O processo foi feito concluso e o Sr. Juiz proferiu despacho sobre o diferendo entre as partes, a fls. 355 a 362, concluindo:

(…)

Resulta, assim, desta breve análise pelos diversos diplomas considerados como relevantes nesta matéria que neles não se encontra a resposta à questão de saber se é legitimo ordenar a exumação do cadáver do pretenso pai do ora Autor, contra a vontade dos seus sucessores, para nele se proceder à colheita de tecidos, a fim de, em seguida, se proceder nos mesmos à pesquisa de ADN.

A resposta a essa questão há-de, por isso, buscar-se nos princípios a que tem de lançar mão o intérprete quando tem que resolver um conflito de direitos: in casu, o conflito entre o direito à identidade pessoal do investigante, ("o direito do investigante a conhecer as suas raízes, a sua filiação biológica, a sua identidade pessoal, o que tem a ver com a dignidade da pessoa humana" nas palavras do Ac. do STJ de 17 de Abril de 2008, Relatar Conselheiro Fonseca Ramos), o qual (para nos servirmos de uma expressão utilizada por um aresto, tirado na década de 30 pelo Supremo Tribunal de Justiça) quer conhecer «o pai de cujo é», e o direito ao respeito que é devido ao cadáver de uma pessoa falecida - respeito que é imposto pela dignidade da pessoa humana, enquanto fundamento que é do Estado de Direito - neste sentido, veja-se, entre         outros os Acs. do TRP, publicados no site da dgsi, de 20.10,05 e 30-06-08, sobre esta matéria e que aqui se transcreveram, por total concordância com o seu teor.

Assim, face ao exposto, concretamente de falta de base legal para autorização, sem o consentimento dos herdeiros, obter a diligência requerida, não logrando aqui o seu direito sobrepor-se ao daqueles, na medida em que, como alega, há muito, e muito antes do seu pretenso pai ter falecido, ter conhecimento de invocadamente por ele ser tratado como filho, a que acresce o facto de assentar a causa de pedir da presente acção na presunção de posse de estado, indefiro o requerido pelo autor quanto à exumação de cadáver.

Não se conformou o autor, que deste despacho interpôs recurso de agravo, que foi admitido -  a subir em deferido e com efeito meramente devolutivo -  no qual pugnou pela admissão da exumação.

Em contra alegações, a ré pugnou pela manutenção do despacho recorrido, isto é, pela não realização da exumação.

Proferido despacho saneador, fixada a matéria assente e elaborada a base instrutória, foi realizada audiência de discussão e julgamento.

Em 2009.10.14, foi proferida sentença que julgou a acção procedente.

A ré apelou, sem êxito, pois Relação do Porto, por acórdão de 2010.07.14, confirmou a decisão recorrida, considerando prejudicado o conhecimento do agravo interposto pelo autor.

O Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, na medida em que no acórdão recorrido não se teriam aplicado as normas dos artigos 1817º, nº1 do Código Civil e 3º.da Lei 14/2009, de 01.04.

A ré interpôs recurso de revista para este Supremo.

Por acórdão do Tribunal Constitucional de 2011.09.30, não foi conhecido o recurso na parte respeitante à norma constante do artigo 3º da Lei 14/2009, de 01.04 e não julgada inconstitucional a norma do artigo 1817º, nº1, do Código Civil, na redacção introduzida pelo artigo 1º da Lei 14/2009, na parte em que aplicando-se às acções de investigação de paternidade,  (…) prevêem um prazo de dez anos para a propositura da acção, contado da maioridade ou emancipação do investigante.

Voltando à Relação, foi proferido novo acórdão, em 2011.12.12, em que novamente se manteve a decisão recorrida.

Novamente inconformada, a ré deduziu a presente revista, apresentando as respectivas alegações e conclusões.

O recorrido contra alegou, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido.

Cumpre decidir.

As questões

Tendo em conta que

- o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº3 e 690º do Código de Processo Civil;

- nos recursos se apreciam questões e não razões;

- os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido

são os seguintes os temas das questões propostas para resolução:

A) - Caducidade

B) – Presunção de paternidade

C) – Realização de exames

D) – Abuso de direito.

Os factos

São os seguintes os factos que foram dados como provados nas instâncias:

 1. O A nasceu no dia … de … de 19…, na freguesia da …, concelho de Montalegre - doc. de fls. 11, cujo conteúdo se dá por reproduzido.

2. Da certidão de nascimento do A. consta como sendo sua mãe, o nome de DD.

3. Na referida certidão não se encontra averbado o nome do pai do A.

4. CC faleceu no dia …de … de 2…, no estado de casado com BB, ré nos presentes autos - doc. de fls. 13, cujo conteúdo se dá por reproduzido.

5. Por volta do mês de Agosto de 2005, o A. falou ao telefone com o dito CC.

6. O referido Sr.CC tratava o A. como filho perante alguns dos seus familiares.

7. No cemitério, a sobrinha da Ré, EE, ouviu a Ré dizer, quando avistou o A., que este era a "cara chapada" do falecido.

8. Ao referido CC foi diagnosticado "enfartes celebrais lacunares" em Maio/04, com alterações cognitivas de carácter oscilante que não o incapacitavam de forma permanente, nem o impediam de se manter autónomo.

Os factos, o direito e o recurso

A) – Caducidade

No acórdão recorrido entendeu-se que o direito de o autor instaurar a presente acção de investigação de paternidade não tinha caducado, face ao disposto na alínea b) do nº3 do artigo 1817º do Código Civil, com a redacção que lhe foi dada pela Lei 14/2009, de 01.04 e ao facto de ter invocado a “posse de estado” “menos de um ano depois da cessação involuntária do tratamento como filho, isto é, menos de um ano depois da morte do investigado CC”.

A recorrente entende que, dizendo o autor “que desde os seus sete anos que sabe que o investigado era o seu pai, quer porque assim lhe foi apresentado, quer por escritos, quer pela visitas que lhe fez entre 1956 e 2005”, já há muito tinha terminado o prazo referido naquela alínea para a propositura da presente acção.

Cremos que não tem razão e se decidiu bem.

Nos termos do disposto no nº1 do artigo 1817º, do Código Civil, aplicável às acções de investigação de paternidade por força do disposto no artigo 1873º do mesmo diploma, “a acção de investigação de maternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou dos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação”.

E nos termos do nº3 do mesmo artigo “a acção pode ainda ser proposta nos três anos posteriores à ocorrência de algum dos seguintes factos:

a) (…)

b) Quando o investigante tenha tido conhecimento, após o decurso do prazo previsto o nº1, de factos ou circunstâncias que justifiquem a investigação, designadamente quando cesse o tratamento como filho da pretensa mãe.

c) (…)”.

Porque não questionada, não está aqui em causa a aplicação desses preceitos ao caso concreto em apreço, estabelecida no artigo 3º da citada Lei 14/2009

O autor tinha 57 anos na altura que em que instaurou a presente acção.

Logo, a considerar-se apenas o disposto no nº1 do citado artigo 1817º, o direito de ele instaurar esta acção de investigação de paternidade já se encontraria caduco.

Mas em face do nº3 do mesmo artigo, a autor ainda poderia estar em tempo no caso de se verificar algum dos factos aí enunciados, de que respigamos o referido na alínea b), dado que os restantes manifestamente não se enquadram no caso concreto em apreço.

A ré recorrente alegou que já decorreu o prazo de três anos previsto naquele artigo para a autora propor a presente acção.

Mas não existem quaisquer factos dos quais se possa concluir que a autor tinha tido conhecimento de “factos ou circunstâncias que justifiquem a investigação” antes de três anos da data em que a presente acção foi instaurada.

Na verdade, o que apenas se provou a esse respeito foi que “por volta do mês de Agosto de 2005, o A. falou ao telefone com o dito CC” e que “o referido Sr.CC tratava o A. como filho perante alguns dos seus familiares.”

Não se provaram os factos referidos nos pontos 1º a 5º da base instrutória dos quais se poderia concluir que desde Outubro de 1956 o autor tinha conhecimento da atribuição da sua paternidade ao CC.

Ora, perante os factos que se provaram, não se pode concluir que o autor teve conhecimento de factos ou circunstâncias que justificassem a investigação antes de Julho de 2003 – três anos antes da instauração da presente acção.

Sendo que o ónus da alegação e prova competiria à ré.

Na verdade e em face do direito vigente, não pode haver outra solução senão aquela que onera a ré com a prova do decurso do prazo de caducidade.

Em primeiro lugar, porque tratando-se de um facto extintivo do direito invocado pela autora, competiria aquela ré fazer a sua prova, conforme se dispõe no nº2 do artigo 342º do Código Civil.

Em segundo lugar, porque no nº2 do artigo 343º do mesmo diploma se impõe ao réu, no caso de acções que devam ser propostas dentro de certo prazo a contar do conhecimento de um facto, o ónus da prova de o facto já ter decorrido.

O que se sabe e quanto a datas, é apenas que o autor falou com o investigado CC pelo telefone em Agosto de 2005.

Nada mais.

Ora, mesmo que se concluísse que dessa conversa resultou o convencimento do autor que tinha que instaurar a presente acção, o facto é que a instaurou dentro do prazo de três anos após a mesma.

Quanto ao tratamento do autor como filho pelo investigado, uma vez que não está datado o seu início, desde logo não assume qualquer relevância para o efeito da caducidade.

Concluímos, pois, que bem se andou no acórdão recorrido em não considerar a caducidade desta acção. 

B) – Presunção de paternidade

No acórdão recorrido entendeu-se que a paternidade do autor como filho do investigado CC se presumia, nos termos da alínea a) do nº1 do artigo 1871º do Código Civil.

A recorrente entende o contrário.

Cremos que também não tem razão.

No referido artigo 1871º estão mencionados os casos em que funcionam as presunções legais de paternidade e que são aqueles em que o autor consegue provar uma das circunstâncias previstas nas várias alíneas do seu nº1.

Estas circunstâncias têm, pois, o valor técnico-jurídico de factos operativos de presunções legais de paternidade.

São situações de facto que exprimem a maior probabilidade de o investigado ser o progenitor.

E que dispensam o autor de provar o facto constitutivo da paternidade, ou seja, o vinculo biológico.

No nº2 do citado artigo estabelece-se que “a presunção considera-se elidida quando existam dúvidas sérias sobre a paternidade do investigado”.

Prevê, assim, o modo de afastar a presunção de paternidade.

Cabe, pois, ao investigado, a alegação e prova de factos capazes de suscitar “dúvidas sérias” sobre a paternidade presumida.

Se o conseguir, retira ao autor o benefício de inversão do ónus probatório: coloca-o na necessidade de convencer o juiz da existência de vínculo biológico, isto é, na necessidade de provar o facto constitutivo do seu direito – Guilherme de Oliveira “in” Estabelecimento da Filiação, página 156.

Nos termos da citada alínea a) do nº1 do artigo 1871º do Código Civil “a paternidade presume-se quando o filho houver sido reputado e tratado como tal pelo pretenso pai e reputado como filho pelo público”.

Para que o autor goze de presunção de paternidade fundada nesta alínea, necessário era que se provassem cumulativamente os seguintes factos operativos da mesma:

1. Reputação como filho pelo pretenso pai

2. Tratamento como filho pelo pretenso pai

3. Reputação como filho pelo público.

 Como bem se diz na sentença proferida na 1ª instância, citando Alberto dos Reis “in” A Posse de Estado na Investigação de Paternidade, a reputação como filho por parte do pretenso pai consiste na convicção íntima que o pai tem que determinada pessoa é seu filho.

O tratamento como filho por parte do pretenso pai consiste em dispensar à pessoa de que se trata os cuidados, amparo, protecção e carinho que os pais costumam dispensar aos filhos.

A reputação pelo público consiste em se manifestar a sua convicção de que o investigante é filho da pessoa cuja paternidade investiga.

Ora, no caso concreto em apreço, está demonstrado que o investigado CC tratava o autor como filho e falou com ele ao telefone em Agosto de 2005.

Estes factos são operativos da presunção quanto à reputação e tratamento acima referidas.

Na verdade, apesar da secura dos mesmos, não era de exigir maior desenvolvimento, tendo em conta que estamos perante uma filiação subsistente fora do casamento, com as naturais reduções de manifestações afectivas e de outra ordem a ela inerentes.

Está também demonstrado que o tratamento como filho por pare do investigado CC era realizado perante alguns familiares e que a ré disse a uma sua sobrinha quando avistou o autor no cemitério, que este era a “cara chapada” do CC.

Com estes factos, entendemos também se verificar o facto operativo referido em último lugar.

Na verdade e também como bem se refere na sentença proferida na 1ª instância, não se pode exigir que o “público” que reputa o autor como filho do investigado pai seja um conceito demasiado abrangente, pois o que interessa é o tratamento por parte das pessoas que estão mais próximas do autor.

Ora, do facto de o autor ser tratado como filho pelo investigado perante familiares e do facto de a ré reconhecer que ele era a “cara chapada” do CC, podemos concluir, com a necessária segurança, que era reputado como filho deste no círculo de pessoas com quem mais privava.

Concluímos, pois, pela realidade dos factos operativos da presunção de paternidade estabelecida na alínea a) do nº1 do artigo 1871º do Código Civil.

E assim concluímos também porque não existem quaisquer factos que nos permitam concluir pela existência de “dúvidas sérias” sobre a paternidade do investigado, exigindo a prova do vínculo biológico, conforme acima ficou referido.

Nada existe dado como provado a esse respeito.

Eis porque, não sendo afastada a presunção em causa, a paternidade do autor por parte do investigado CC tem que ser reconhecida.

C) – Realização de exames

Entende a recorrente que se impõe “a realização de exames científicos, ainda que contra a vontade das partes”, com o fim de se descobrir a “verdade biológica”.

Não se compreende.

Em primeiro lugar, porque como acima ficou dito, as presunções derivadas do artigo 1871º possibilitam o estabelecimento da paternidade independentemente da prova do vínculo biológico.

Depois, porque foi a própria recorrente que, opondo-se à exumação do cadáver do investigado, fez com que os “exames científicos” não pudessem contribuir decisivamente para o esclarecimento daquele vínculo.

Diremos até que se os exames se configurassem como absolutamente essenciais à determinação da filiação biológica, implicando, consequentemente, a recusa dos mesmos uma verdadeira impossibilidade de o autor fazer prova de uma invocada filiação biológica, sempre de deveria ter em conta o disposto no nº2 do artigo 344º do Código Civil, presumindo-se a paternidade.

Não há, assim, que determinar qualquer realização de exames adicionais, até porque este Supremo nunca teria poderes para tal, face à patente inaplicabilidade da última parte do nº3 do artigo 722º do Código de Processo Civil ao caso concreto em apreço.

D) – Abuso de direito

Entende a recorrente que o autor, ao “esperar tanto tempo para propor uma acção que sempre indiciou não propor”, actuou com abuso de direito “já que não foi com o propósito de estabelecer a relação com o pai que o autor agiu”.

É evidente que não tem razão.

Nos termos do artigo 334º do Código Civil “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”.

Como dizem Pires de Lima e Antunes Varela “in” Código Civil Anotado, em anotação ao referido artigo 334º, a concepção adoptada é a objectiva, não sendo, assim, necessária a consciência de que com a sua actuação se estão a exceder os apontados limites.

O que se exige é que o excesso cometido seja manifesto.

Ou que os direitos sejam “exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça” – Manuel Andrade “in” Teoria Geral das Obrigações, página 63.

Ou em “clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante” – Vaz serra “in” Abuso de Direito no BMJ 85º/253.

No caso concreto em apreço, não houve qualquer excesso.

O autor tinha e tem o direito à sua identidade pessoal, constitucionalmente garantido no nº1 do artigo 26º da Constituição da República Portuguesa

Instaurou a presente acção com o fim de o ver preenchido, na faceta da paternidade.

O exercício de tal direito, salvo as disposições relativas à caducidade, que eventualmente se considerem aplicáveis, não pode ser limitado por quaisquer outros factores, nomeadamente a morte do presumido pai ou benefícios económicos derivados do reconhecimento da paternidade.

Sendo assim, temos que concluir que o autor, ao instaurar a presente acção, limitou-se a exercer um direito que a lei lhe concedia, sem qualquer dos excessos referidos no transcrito artigo 334º.

A decisão

Nesta conformidade, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa,  17 de  Maio  de  2012

Oliveira Vasconcelos (Relator)

Álvaro Rodrigues

Fernando Bento