Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
8/21.2JAPDL.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: RECURSO PER SALTUM
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
CORREIO DE DROGA
PENA DE PRISÃO
MEDIDA DA PENA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Data do Acordão: 06/22/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário :
I - Sendo embora certo que cada caso transporta em si a natureza de “caso único”, é de reconhecer a importância do referente jurisprudencial na actividade, sempre judicialmente vinculada, de determinação da pena.

II - A preocupação com o referente jurisprudencial contribui decisivamente para a atenuação (e, se possível, erradicação) de disparidades na aplicação prática dos critérios legais de determinação de pena.

III - Justifica-se a redução para 5 anos de prisão, da pena de 6 anos aplicada a arguida “correio de droga”, quando esta (medida de) pena continua a dar suficiente resposta às exigências de prevenção geral e especial concretamente diagnosticadas e se enquadra mais adequadamente no referente jurisprudencial.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:



1. Relatório

1.1. No Processo Comum Colectivo nº 8/21.2JAPDL, do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores Juízo Central Cível e Criminal de Ponta Delgada - Juiz 2, foi proferido acórdão a condenar a arguida AA, como autora de um crime de tráfico de estupefacientes do art. 21º, nº 1, do DL 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela I-A anexa, na pena de 6 (seis) anos de prisão.

Inconformada com o decidido, recorreu a arguida, concluindo:

“1. A arguida, acusada da prática do crime de tráfico de estupefaciente, p. e p. pelo artigo 21º do Decreto-lei 15/93 de 22 de janeiro, na ação típica de transporte de 962g de heroína – vulgo correio de droga – foi condenada na pena de 6 anos de prisão.

2. Ora, tendo em conta as concretas circunstâncias dos autos bem como as decisões jurisprudenciais do Supremo Tribunal de Justiça tidas em casos análogos, a decisão condenatória recorrida revela-se excessiva e manifestamente desproporcional.

3. Para a determinação da pena concretamente aplicada, diz-nos o artigo 71º, nº 1 do Código Penal que, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo que, jamais a pena poderá ultrapassar a medida da culpa, conforme prescreve o artigo 40º, nº 2 da mesma codificação.

4. Salvo melhor opinião e o douto suprimento de Vossas Excelências, o Tribunal recorrido, na determinação da medida concreta da pena foi excessivamente castigador, ultrapassando a medida da culpa.

5. Desde logo e contrariamente ao entendimento perfilhado pelo Tribunal recorrido o facto de a arguida desconhecer a espécie e quantidade do produto estupefaciente transportado, jamais poderá ser valorado contra ela, mas sim a seu favor, na medida em que esse desconhecimento representa uma menor intensidade da cognoscibilidade, enquanto elemento do dolo e, logo, do juízo de censura à sua conduta.

6. O serviço prestado pela arguida – transporte de estupefacientes – cingiu-se ao território nacional, e, portanto, a violação do bem jurídico denota-se consideravelmente mitigada, por se tratar de uma movimentação de estupefaciente já circulante no mercado interno.

7. Na determinação da pena devia a Primeira Instância ter tido em conta que a prática do crime correspondeu apenas a um desígnio criminoso, tratando-se, no fundo, de apenas um episódio na vida da arguida, não havendo antecedentes criminais.

8. A arguida, ainda que não possa de servir de justificação, aceitou este serviço por se encontrar em sérias dificuldades económicas, agravadas pelas restrições impostas pela Covid-19, que resultaram no encerramento do local de trabalho da arguida, ou seja, auto-motivada por uma extrema carência financeira.

9. Ao longo da sua sujeição da medida de coação de obrigação de permanência na habitação, não houve qualquer intenção ou vontade em continuar a atividade criminosa aqui em crise ou qualquer outra legalmente proibida, demonstrando a interiorização do desvalor da sua conduta e a adoção de um comportamento padrão de acordo com as regras vigentes.

10. Parece-nos ser importante levar em conta que os factos pelos quais a arguida foi julgada e condenada não são de todo expressivos de uma tendência de personalidade e muito menos de uma afirmação de sentido de vida, tratando-se, pelo contrário, de um desvio acidental de um percurso que se tolda por princípios e valores compatíveis com uma sã manutenção da sociedade.

11. Na determinação da pena concretamente aplicável não poderá apenas ser tida em conta a matéria factual apresentada, mas também, numa logica de uma jurisprudência consistente e equitativa, as decisões jurisprudenciais tomadas para casos semelhantes.

12. E nesse sentido, veja-se a título de exemplo os seguintes acórdãos:

i)  Acórdão de 11-03-2010 (processo nº 100/09.1JELSB.L1.S1-5.ª): arguido de nacionalidade brasileira, solteiro, com 4 filhos e sem antecedentes criminais que, no âmbito de um transporte como correio de droga, desembarcou no Aeroporto de Lisboa, proveniente de Brasília, e com destino a Amsterdão, transportando no organismo 96 embalagens de cocaína, com o peso líquido de 846, 462 g.: tida por suficiente a pena de 4 anos de prisão, e não a de 5 anos e 6 meses, imposta na 1.ª instância;

ii)     Acórdão de 16 de maio de 2002, processo nº 1258/02, estando em causa 749 gramas de cocaína, a pena de 4 (quatro) anos e 5 (cinco) meses de prisão fixada pelas instâncias foi confirmada;

iii)     Acórdão de 21 de Setembro de 2006, processo nº 2818/06, estando em causa 795 gramas de cocaína, foi confirmada a pena de 5 (cinco) anos de prisão;

iv)     Acórdão de 7 de Fevereiro de 2007, processo nº 22/07, estando em causa 861 gramas de cocaína, foi confirmada a pena de 5 (cinco) anos de prisão;

v)     Acórdão de 13 de Setembro de 2007, processo nº 2311/07, estando em causa 790 gramas de cocaína, foi confirmada a pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão;

vi)     Acórdão de 20 de Março de 2008, processo nº 305/2008, estando em causa 707 gramas de cocaína, foi reduzida a pena de 5 (cinco) anos para 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão;

vii)    Acórdão de 11 de Março de 2010, processo nº 100/2009, estando em causa 846 gramas de cocaína, a pena foi reduzida de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses para 4 (quatro) anos de prisão;

viii)    Acórdão de 09-04-2015, processo nº 147/14-3.ª Secção, foi fixada a pena de 4 anos e 6 meses de prisão, estando em causa o transporte de cocaína com o peso líquido de 795 gramas;

13. E, portanto, aqui chegados só podemos concluir com certeza e convicção que efetivamente a pena de prisão aplicada à arguida de 6 anos é manifestamente desproporcional e excessiva, tanto face às concretas circunstâncias envolvidas, como em face do que tem vindo a ser decido pelo nosso Supremo Tribunal de Justiça, aplicando para os casos análogos penas até ao limite dos 5 anos de prisão.

14. Sendo reduzida a pena de prisão aplicada, cifrando-se no patamar de limite máximo dos 5 anos de prisão, essa pena deverá ser suspensa na sua execução, por se vislumbrar existir um juízo de prognose social favorável por parte da arguida, acreditando que a simples ameaça de prisão se denota suficiente para acautelar as exigências dos fins das penas.

15. Nos termos do nº 1 do art. 50º do Cód. Penal, O Tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

16. Para este efeito, é necessário que o Tribunal que julga em primeira instância, reportando-se ao momento da decisão e não ao da prática do crime, possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de que a ameaça da pena seja adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição

17. Esse juízo de prognose social favorável terá como fundamento quatro critérios, nomeadamente a (i) personalidade do agente; (ii) condições da vida do agente; (iii) conduta do agente anterior e posterior à pratico do crime; e (iv) concretas circunstâncias do crime.

18. Relativamente à (i) personalidade da arguida, atualmente com 23 anos, esta apresenta-se bastante favorável, na medida em que é descrita como uma pessoa bastante pacata, humilde, honesta, trabalhadora e prestável.

19. No que toca (ii) às condições da vida da arguida, apesar de se encontrar desempregada, aquando da sua liberdade esta encontra-se motivada para arranjar emprego, estabilizando-se financeiramente, bem como constituir família com o seu filho – que nascerá em breve – e o pai da criança.

20. Encontra-se familiar e socialmente integrada.

21. O nascimento do filho irá marcar um novo recomeço de vida mais ponderado e cuidado, tanto perante a vida como a sociedade.

22. A (iii) conduta da arguida no momento anterior à prática do crime, caracteriza-se por um período conturbado de escassez económica – causada pela pandemia - que motivou a arguida a aceitar a realização deste serviço, para conseguir sobreviver.

23. No momento posterior à prática do crime, já sujeita a medida de coação privativa da liberdade – há mais de 1 anos - a sua conduta pautou-se e pauta-se por atitudes exemplares, corretas, com clara evidencia de interiorização do desvalor da sua conduta e o enraizamento da necessidade de cumprimento das regras impostas.

24. A arguida demonstra sentimentos de arrependimento, vergonha e autocensura.

25. Por fim, as (iv) concretas circunstâncias do crime, não descurando a gravidade subjacente, mas numa ótica comparativa a casos semelhantes de transporte de drogas, demonstram-se atenuadas na medida em que: a arguida é primária, foi motivada por carências financeiras, o transporte foi efetuado em território nacional e a quantidade apreendida – 962g de heroína – apesar de não ser consideravelmente diminuta, também não se revela avultada face à normalidade neste tipo de tráfico.

26. Entendemos, assim, ressalvado o doutíssimo suprimento de Vossas Excelências, apresentar-se cabalmente evidenciada uma prognose social favorável, que deve conduzir a que o Tribunal corra um risco prudente, um risco moderado, na convicção de que os momentos vividos pela arguida em contacto com o sistema de justiça tal como as concretas circunstâncias dos autos, aliados à ameaça de uma pena de prisão serão suficientes para realizar os fins das penas e mantê-la afastada da criminalidade.

Pelo exposto e ressalvado o doutíssimo suprimento de Vossas Excelências, Colendos Juízes Conselheiros deste Supremo Tribunal de Justiça, deverá:

I.    Considerar-se excessiva a concreta medida da pena aplicada, reduzindo-a e estabelecendo-a num patamar nunca superior dos 5 (cinco) anos; e

II.    Suspender-se a pena de prisão que, a final, se fixar.”

O Ministério Público respondeu ao recurso pronunciando-se no sentido da improcedência, e concluindo:

“1. A prova feita em Tribunal foi devidamente ponderada pelo Tribunal recorrido, que aplicou corretamente ao caso a lei aplicável, e encontrou o sancionamento devido, termos em que nenhuma censura merece o douto acórdão.

2. Ora considerando que no caso concreto o limite máximo e mínimo da pena, a aplicar, situa-se entre: os 4 e os 12 anos de prisão.

3. No caso “sub judice” deve atender-se, em especial, as seguintes circunstâncias para encontrar a pena concreta dentro da moldura penal: o elevado grau de desvalor objetivo e ético-subjetivo demonstrados, sendo o dolo intenso, a natureza e quantidade do estupefaciente apreendido, os propósitos da arguida, nomeadamente, a obtenção de elevadas vantagens patrimoniais à custa da saúde de terceiros e a inexistência de passado criminal, da arguida/recorrente.

4. No acórdão recorrido a situação concreta foi analisada, de forma adequada, tendo referido que “a arguida desenvolveu a papel de “correio”, isto é, um papel subordinado praticado por pessoas que, normalmente, estão em situação de aflição económica ou outra, como é o caso da recorrente que se encontrava desempregada há quase um ano Tal como se referiu, o papel dos chamados “correios de droga” é essencial à operação de tráfico (isto mesmo é reconhecido pelo Supremo Tribunal de Justiça v.g. acórdão de 9 de Junho de 2010, publicado em www.dgsi.pt, processo 449/09.3JELSB.S1).

5. Portanto, a determinação da pena concreta foi feita dentro destes limites legais. A pena concreta não ultrapassou a medida da culpa, e atendeu às exigências da prevenção geral e especial.

6. Este tipo de crime causa gravíssimos problemas de saúde pública e sociais em geral. Estamos perante um facto típico que tutela o bem jurídico, saúde pública, cujo grau de ilicitude se situa num grau elevado (basta considerar a destruição de famílias devido ao consumo de drogas).

7. Perante este quadro a pretensão da arguida/recorrente no sentido da redução de pena não deve proceder, não devendo ser alterada, já que se situa junto ao limite mínimo da pena, muito aquém do seu meio, e longínqua do limite máximo.

8. E por esse motivo, afasta a aplicação da figura da suspensão da execução da pena, na medida em que a pena é superior a 5 anos de prisão.

9. Contudo quanto à suspensão da pena de prisão sempre se dirá que, os requisitos da aplicação da medida de suspensão da execução da pena de prisão, relaciona-se, para além do limite máximo de 5 anos, com: a personalidade do agente, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior ao facto punível, as circunstâncias deste e o poder concluir-se que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para afastá-lo da criminalidade e satisfazer as necessidades de reprovação do crime. Isto é, na sua base deverá estar uma prognose (termo utilizado por H. H. Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Vol., pág. 1153) social favorável ao arguido, ou seja, a esperança de que sentirá a sua condenação como uma advertência séria à sua conduta e que não voltará a cometer novos factos ilícitos da mesma natureza.

10. Ora, da factualidade provada não se pode admitir tal prognose.

11. Assim, carece de justificação a pretensão da recorrente, pelos motivos seguintes:

- O grau de ilicitude é elevado, traduzido na quantidade de heroína, (962 gramas), suficiente para 3059 doses individuais;

- a intensidade do dolo é acentuada, pois a arguida tinha conhecimento das características do produto e das consequências da sua detenção, embora diga que apenas sabia que transportava algo ilícito;

- a necessidade de acautelar, face às condições pessoais da arguida, a realização de finalidades de prevenção especial de socialização, não obstante a ausência de antecedentes criminais;

- são muito relevante, as marcantes exigências de prevenção geral sentidas neste caso. Tem, total pertinência, neste caso concreto, afirmar que a sua atuação no tráfico de estupefacientes em causa está estritamente relacionada com a venda, a qual, como dissemos, gera lucro, que no quadro que se deixou descrito tem relevância económica para a arguida, mantendo-se, pois o perigo da arguida persistir na atividade criminosa, tanto mais que no que diz respeito a trabalho, pois que, como resulta da matéria fáctica apurada, a recorrente estava desempregada pois a discoteca onde trabalhava estava encerrada.

12. Atualmente, a carência económica mantém-se. Portanto, mais não tem que meras perspetivas, sem qualquer garantia de serem concretizáveis a curto prazo, principalmente na atual conjuntura económico-financeira. A efetiva execução da pena de prisão, na situação em apreciação, mostra-se indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização das expectativas comunitárias.

13. E, por fim, como vem sendo decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, a suspensão da execução da pena nos casos de tráfico comum e de tráfico agravado de estupefacientes, em que não se verifiquem razões muito ponderosas, que no caso se não colocam, seria atentatória da necessidade estratégica nacional e internacional de combate a esse tipo de crime, faria desacreditar as expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada e não serviria os imperativos de prevenção geral.

14. Como consequência o douto acórdão não viola os preceitos legais invocados pela recorrente.”

Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, sufragando a confirmação do acórdão. Referiu:

 “1. Por douto acórdão proferido, em 1ª Instância, no processo supra-identificado, foi decidido condenar a arguida AA, como autora de um crime de tráfico de estupefacientes, p.p. no art. 21º, nº.1, do DL 15/93, de 22 de janeiro, com eferência à tabela I-A anexa, na pena de 6 (seis) anos de prisão.

2. Inconformada, a arguida interpôs recurso circunscrito à matéria de direito, de acordo com o disposto no artº 432º, nº 1, al. c) do Código de Processo Penal.

Questiona a excessiva dureza da pena única, que entende dever ser fixada mais próximo do limite mínimo e dever ser suspensa na respectiva execução.

A tal recurso respondeu, detalhada e fundadamente, o Exmo. Magistrado do Ministério Público junto da 1ª Instância, pugnando pela respectiva improcedência.

3. Crendo-se que nada obstará ao conhecimento do recurso por parte do Supremo Tribunal de Justiça, deverá o mesmo ser apreciado em sede de conferência, de acordo com o disposto no artº 419º, nº 3, al. c) do Código de Processo Penal.

Dir-se-á, assim, que a precisão e exaustividade dos argumentos aduzidos na resposta do Ex-mo. Colega – que se acompanha inteiramente – nos dispensam de maiores considerandos.

4. Atentemos nos seguintes segmentos do douto acórdão condenatório: “A favor da arguida milita a ausência de antecedentes…contudo, em sentido oposto está a sua postura em audiência pouco consentânea com uma interiorização do desvalor da sua conduta…pois reafirmou sem pejo ou crítica que a sua conduta teve raiz na sua condição económica de então e que, na realidade não é diferente da de hoje. A arguida, tal como declarou, que vive de favor em casa de uma amiga proprietária de uma discoteca…não trabalhava e não trabalha, sendo certo que a sua verbalização de ter uma tia, de quem não obtém qualquer outro apoio, lhe ter garantido trabalho num supermercado onde apenas labora, mas de que não é proprietária nem tem funções de contratação de funcionários, não é garantia que baste para a alcandorar a situação diversa da que esteve na origem destes factos e da não repetição. É certo que está grávida de um namorado que será o pai da criança que carrega no ventre…referindo ela que ele trabalha como pedreiro e tem casa, com isto pretendendo sustentar uma rede de apoio que na realidade não se verifica. Efetivamente se o namorado é o pai da criança que tem no ventre e com ele pretende fazer vida e dele tem o apoio de que carece para levar uma vida longe de factos como estes…cabe perguntar por que razão ainda está ela a viver de favor em casa de uma amiga que é proprietária de uma discoteca…que coincidirá com o mesmo estabelecimento onde foi, conforme a sua versão, contatada pelo tal BB.

Assim… as razões de prevenção especial são elevadas, nomeadamente as negativas em razão do perigo de continuação.”

Dos excertos acima citados resulta bem patente a gravidade do comportamento da arguida, a inviabilizar, desde logo, a eventual possibilidade de efectuar, a seu respeito, um juízo de prognose favorável que permitisse a suspensão da execução da pena.

Justificadamente, trata-se de um dos crimes que mais repugna à consciência dos cidadãos que se regem pelas normas sociais e jurídicas vigentes, não apenas pela sua danosidade intrínseca – susceptível de produzir alteração sensível no tecido social, pela desagregação familiar que lhe está normalmente associada – mas também pela criminalidade recorrente que habitualmente gera, dada a dificuldade de o consumidor manter economicamente uma tal adição por meios que não sejam ilícitos.

Notar-se-á, ainda, que a pena pela prática do crime de tráfico de estupefacientes foi fixada, tão só, um pouco acima do seu limite mínimo, e, também aqui, o Tribunal teve certamente em conta a situação pessoal e familiar da arguida, bem como a ausência de antecedentes criminais.

Parece-nos, pois, que o aresto fez uma adequada interpretação dos critérios contidos nas disposições conjugadas dos artºs 40º, nº 1 e 71º, nº 1 e 2, als. a) a c), e) e f) do Código Penal. Atendeu-se, cremos, à vantagem da reintegração tão rápida quanto possível da arguida em sociedade; sem se esquecer, porém, que a pena deve visar também, de forma equilibrada, a protecção dos bens jurídicos e a prevenção especial e geral, neste caso particularmente relevantes. Na verdade, se não se duvida que não soubesse exactamente que quantidade de estupefaciente estava transportando, o certo é que aceitou fazer o que lhe pagavam, alheando-se das consequências que uma droga “dura” – como a heroína – teria para quem a consumisse. Em suma, as fortíssimas exigências de prevenção e a gravidade do comportamento da arguida tinham, obviamente, em conformidade e de acordo com os critérios acima referidos, de ser traduzidos em pena correspondente à medida da sua culpa; o que o tribunal recorrido conseguiu com uma pena inteiramente justa e que respeita as finalidades visadas pela punição.


5. Assim, concluindo, dir-se-á que o douto acórdão recorrido qualificou e sancionou de forma adequada e criteriosa a matéria fáctica fixada, pelo que o recurso deverá improceder.”

A arguida respondeu ao parecer, dizendo:

“AA, arguida recorrente nos autos à margem identificados, tendo sido notificada nos termos e para os efeitos do nº 2 do art. 417º do Cód. do Processo Penal, vem, em sua defesa e na pura perspetiva do disposto no nº 1 do art. 40º do Cód. Penal, sublinhar que aproveitou da melhor forma possível a oportunidade que  a excelentíssima Senhora Juiz de Instrução lhe deu, quando a sujeitou à medida de coação obrigação de permanência na habitação: a arguida constituiu família; engravidou, juntou-se com o pai da criança – pessoa absolutamente integrada social e economicamente1 – e, felizmente, já deu à luz e assume hoje, na plenitude, a condição de mãe.

Parece-nos, ressalvado o douto suprimento de Vossas Excelências, que este encadeamento factual que, aliás, já vinha – por referência ao que era possível constatar à altura – assente sob o ponto 4. A)2 da fundamentação de facto do Acórdão recorrido, evidencia uma reorientação, que se mostrou gradual e progressiva desde a prática dos factos e até hoje, do sentido de vida da arguida, em moldes tais que se apresentam hoje bem menos intensas as necessidades de prevenção especial, o que concorrerá, assim, para o reforço do que já alegámos, em julgamento, na Primeira Instância, e depois na motivação e conclusões do recurso que dirigimos a este tribunal Supremo.”

O processo foi aos vistos e, não tendo sido requerida audiência, teve lugar a conferência.


1.2. O acórdão recorrido, na parte que interessa ao recurso, é o seguinte:

“A - Factos provados.

AA - Da prova produzida resultou assente a seguinte factualidade:

1. No dia ... .1.2021, a arguida AA, na posse de 962 gramas de heroína, suficiente para o consumo de 3059 doses individuais, acondicionada numa mala dirigiu-se ao Aeroporto ..., em ... e, no voo ...65 da companhia aérea T.…, transportou tal produto para a Ilha ..., o qual se destinava à sua posterior venda, vindo a aterrar no Aeroporto ..., pelas 21h50m desse mesmo dia, trazendo consigo o dito estupefaciente;

A arguida sabia que o produto mencionado era considerado substância estupefaciente e que não estava autorizada a detê-lo e a vendê-lo, não obstante, quis atuar do modo descrito, detendo a substância descrita que tinha aquele fito;

Agiu de forma livre, consciente e deliberada, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal;

(…)

4. a). AA, cidadã cabo-verdiana, é natural da Ilha ... onde viveu até aos 8 anos de vida; na maior parte deste período residiu com a avó materna porquanto o pai (trabalhador na área da ...) e a mãe (trabalhadora na área das limpezas) tinham emigrado para Portugal, fixando-se em ..., concelho ..., aparentemente para adquirirem melhores condições de vida. Os progenitores, de forma progressiva, trouxeram para o território português os quatros filhos, entre os quais a arguida. AA frequentou o sistema de ensino português e, alegadamente, completou o 9º ano de escolaridade através da frequência de um curso profissional (em área que não apurou); posteriormente, passou a efetuar tarefas laborais nas áreas da restauração e limpezas. Entre os anos de 2016 e 2019/2020, terá residido, por um período com duração desconhecida, no ..., país para onde os pais emigraram há vários anos e onde a própria terá trabalhado em estabelecimentos da área da restauração/cafetaria, auferindo um vencimento mensal que estima em cerca de €1.900,00; posteriormente, terá ficado desempregada, sendo a sua subsistência garantida pela mãe. Os dados disponibilizados pela PSP e GNR indicam que AA não é suspeita nem foi constituída arguida noutros NUIPC para além do correspondente ao presente processo. Relativamente ao período compreendido entre 2019 e 30.1.2021 (data em que foi presa preventivamente à ordem destes autos) são significativamente contraditórios os elementos relativos às circunstâncias de vida de AA, pois, se por um lado, no primeiro interrogatório judicial apresentou duas moradas distintas - uma portuguesa (a atual) e outra ... -, na entrevista recentemente na DGRS disse que ter vindo “de férias” a Portugal em 2019, tendo decidido ficar a viver no país até ao presente por influência de elementos da sua rede social, passando a visitar os pais no ... apenas pontualmente. Desde que regressou a Portugal, viveu na casa de uma amiga da família de origem em ... (concelho ...), tendo trabalhado numa lavandaria, e que, posteriormente, quando começou a trabalhar na discoteca gerida por uma das suas atuais coabitantes, passou a viver na atual morada, correspondente a um quarto arrendado na ... (concelho ...). A este respeito, acresce dizer que na autorização de residência de que a arguida é portadora consta uma morada situada em .... Quanto aos rendimentos de que usufruiu através da sua atividade laboral após o regresso a território português, apenas se apurou serem de valor reduzido ao ponto de não lhe permitirem custear a sua subsistência pelo que necessitou/necessita do apoio económico dos pais. Aquando da sua reclusão preventiva, AA, estava laboralmente inativa na sequência do encerramento da discoteca em que trabalhava (fecho que atribuiu às restrições impostas aos espaços de diversão noturna no âmbito da pandemia de SARS-Cov 2). A arguida está sujeita a OPHVE desde 4.3.2021, estando em situação de confinamento habitacional integral, não obstante tenha vindo a beneficiar de ausências excecionais da habitação para, na sua grande maioria, realizar diligências de saúde. No decurso da atual medida coativa a arguida, que coabita com outras arrendatárias de quartos da mesma habitação, iniciou relação de namoro com CC (de 26 anos, trabalhador na ...) que disse ter conhecido na discoteca em que trabalhou; a arguida encontra-se grávida de um filho comum sendo apoiada economicamente pelos pais e pelo namorado (que, pontualmente, pernoita no seu quarto arrendado). No decurso da medida coativa AA efetuou diligência junto do SEF para renovar a autorização de residência; alegadamente foi informada de que não possui as condições legalmente exigidas para a renovação do documento (cuja validade terminou em 14.7.2019). No decurso da medida de OPHVE a arguida tem revelado uma atitude bastante reservada que se desconhece se corresponde a um padrão de funcionamento habitual ou decorre da sua posição de arguida nos autos. AA não se revê na posição de arguida neste processo porquanto discorda da acusação proferida, percecionando não deter responsabilidade pessoal pelo crime de tráfico de estupefacientes de que está acusada. Não obstante este posicionamento, revelador de alguma atribuição causal externa, o discurso e atitude da arguida no decurso da OPHVE não têm demonstrado sentimentos de injustiça face ao facto de ter sido/estar sujeita a medidas de coação fortemente privativas da sua liberdade. Paralelamente, salienta-se de forma positiva, que a arguida tem cumprido satisfatoriamente as regras da OPHVE, sendo que algumas anomalias pontuais que têm sido detetadas (correspondentes a atrasos no regresso à residência após ausências excecionais autorizadas) não condicionaram o normal decurso da medida de coação. Atendendo à natureza do crime em julgamento, esta avaliação de AA apresenta trajeto laboral inconsistente associado a incapacidade para garantir a sua subsistência de forma autónoma (aspeto que será potencialmente agravado com o nascimento do filho e com o facto de deter uma autorização de residência em Portugal com validade caducada);

b). Esta arguida não conta antecedentes criminais.

(…)

O crime praticado pela arguida AA é punível com pena de 4 a 12 anos de prisão.

Posto isto, importa determinar a medida concreta da pena a aplicar à arguida. Conforme dispõe o artº. 40º do CP, a finalidade primeira das penas reside na tutela dos bens jurídicos, devendo traduzir, a sua aplicação, a tutela das expectativas da comunidade na manutenção da validade da norma violada, sem perder de vista, na medida do que for possível, a reinserção social do arguido, ou seja, as exigências de prevenção e de repressão geral da criminalidade, por um lado, e, por outro, as exigências específicas de socialização e de prevenção da prática de novos crimes.

Do disposto no artº. 71º, nº 1 do CP decorre que a determinação da medida da pena é, dentro dos limites estabelecidos na lei, feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, estabelecidas no citado art. 40º.

Encontrada a moldura da pena, fixada em função das exigências de prevenção geral positiva, devem então funcionar as exigências de prevenção especial, em particular as exigências de prevenção especial positiva ou de socialização, para a determinação concreta da pena, tendo sempre presente que a culpa representa o limite inultrapassável da mesma.

Sendo estes os postulados de que devemos partir, cumpre dar realização prática aos mesmos, o que faremos nos termos do art. 71º, nº 2 do CP.

Em conformidade com o disposto neste último normativo, na determinação concreta da pena devemos atender “a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele”.

No caso vertente as exigências de prevenção geral são bastante elevadas. Com efeito, estamos perante delito que é alvo de grande censura comunitária e com o qual somos frequentemente confrontados na comarca. Ademais, o forte sentimento de insegurança gerado por situações desta natureza denota a necessidade de transmitir um sinal claro à comunidade no sentido da afirmação da validade da norma violada, restabelecendo o sentimento de segurança abalado pelo crime.

O grau de ilicitude deve ser considerado, dentro do tipo base, mediana e pouco abaixo do limiar médio da moldura que fica nos oito anos e isto atendendo à natureza do produto transportado e à sua quantidade já muito significativa face às dimensões desta ilha que era o seu destino final.

É verdade que a tarefa da arguida consistiu no transporte de droga sem que lhe tenha sido revelada a qualidade dela e respetiva quantidade…coisa que, na nossa opinião, não pode relevar para a ter como engrenagem irrelevante na viagem da droga até ao seu destino final. Efetivamente a arguida, tal como referiu, sabia que transportaria droga…estando nas suas mãos, antes de aceitar a proposta que lhe foi feita, inteirar-se da qualidade do produto e da quantidade…coisa que, podendo ter feito não fez de forma ciente, desconsiderando, em prol de réditos avultados prometidos, algo de uma relevância atroz…a nocividade do produto que introduziu no mercado e do espetro que, tendo em conta a quantidade que carregou, cobriria ao nível dos consumidores com os efeitos nocivos daí advenientes.

Ao contrário do que por vezes se pretende fazer crer…os correios de droga, como é o caso da arguida, sendo descartáveis, não deixam de ser indispensáveis ao fluxo da droga que, pela sua mão, flui do intermediário ao retalhista final com toda a nocividade daí decorrente, entendendo, por isso, este tribunal a sua atividade como relevante e determinante no aprovisionamento do mercado de consumo.

A intensidade do dolo da arguida corresponde ao dolo direto.

A favor da arguida milita a ausência de antecedentes…contudo, em sentido oposto está a sua postura em audiência pouco consentânea com uma interiorização do desvalor da sua conduta…pois reafirmou sem pejo ou crítica que a sua conduta teve raiz na sua condição económica de então e que, na realidade não é diferente da de hoje. A arguida, tal como declarou, que vive de favor em casa de uma amiga proprietária de uma discoteca…não trabalhava e não trabalha, sendo certo que a sua verbalização de ter uma tia, de quem não obtém qualquer outro apoio, lhe ter garantido trabalho num supermercado onde apenas labora, mas de que não é proprietária nem tem funções de contratação de funcionários, não é garantia que baste para a alcandorar a situação diversa da que esteve na origem destes factos e da não repetição. É certo que está grávida de um namorado que será o pai da criança que carrega no ventre…referindo ela que ele trabalha como pedreiro e tem casa, com isto pretendendo sustentar uma rede de apoio que na realidade não se verifica. Efetivamente se o namorado é o pai da criança que tem no ventre e com ele pretende fazer vida e dele tem o apoio de que carece para levar uma vida longe de factos como estes…cabe perguntar por que razão ainda está ela a viver de favor em casa de uma amiga que é proprietária de uma discoteca…que coincidirá com o mesmo estabelecimento onde foi, conforme a sua versão, contatada pelo tal BB.


Assim…as razões de prevenção especial são elevadas, nomeadamente as negativas em razão do perigo de continuação.

Tudo visto e ponderado, entende-se adequada em função da culpa do agente a pena de 6 anos de prisão.”


2. Fundamentação

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, a questão a apreciar circunscreve-se à medida da pena.

Numa moldura abstracta de quatro a doze anos de prisão, a arguida foi condenada em seis anos, o que considera excessivo. Pugna pela redução da pena para cinco anos de prisão, peticionando ainda a substituição por prisão suspensa.

Para tanto, argumenta que desconhecia a concreta espécie e a quantidade de estupefaciente que transportava, o que se repercutiria numa menor intensidade do dolo; que se tratou de um episódio isolado, não tendo antecedentes criminais; que actuou num quadro de extrema carência financeira; que, entretanto, foi mãe. E, por último, censura não terem sido levadas em conta pelo tribunal “as decisões jurisprudenciais tomadas para casos semelhantes”.

O Ministério Público pronunciou-se no sentido da total confirmação da pena. No entanto, a recorrente tem razão em parte, ou seja, na parte argumentativa relativa ao referente jurisprudencial. A pena fixada em 1.ª instância situa-se acima daquela que resultaria como a mais adaptada ao invocado referente, e esta constatação justifica a intervenção correctiva do Supremo na medida da pena.

Mas antes de avançar na análise dos fundamentos do recurso, procede-se a uma clarificação inicial. Esta decorre da circunstância de, na matéria de facto provada do acórdão, se ter feito consignar que “a arguida sabia que o produto mencionado era considerado substância estupefaciente e que não estava autorizada a detê-lo e a vendê-lo, não obstante, quis atuar do modo descrito, detendo a substância descrita que tinha aquele fito”, expressão que, na redacção adoptada, pode aparentar contradição com o enquadramento jurídico dos factos na parte relativa à posição da arguida na cadeia do tráfico, como mero “correio de droga”. O correio de droga não vende o produto estupefaciente que detém, limita-se a transportá-lo por conta daqueles que o comercializam.

Consigna-se, porém, que do acórdão na sua globalidade – designadamente, dos factos (não provados) relativos a um co-arguido absolvido, da motivação da matéria de facto e da fundamentação de direito – retira-se que o comprovado conhecimento (da arguida) sobre a proibição da venda de estupefaciente se refere à venda por terceiros, e não pela própria.

Na verdade, constata-se do recurso e em total conformidade com a decisão do acórdão e do próprio contraditório do recurso, que a conduta criminosa da arguida se circunscreveu à detenção/transporte do produto estupefaciente. Para além dos factos provados, leiam-se designadamente as seguintes passagens do acórdão: “… a tarefa da arguida consistiu no transporte de droga…” “a arguida, tal como referiu, sabia que transportaria droga…” “Ao contrário do que por vezes se pretende fazer crer… os correios de droga, como é o caso da arguida, sendo descartáveis, não deixam de ser indispensáveis ao fluxo da droga que, pela sua mão, flui do intermediário ao retalhista final…” (itálicos nossos)

Olhando, então, as primeiras razões invocadas pela recorrente em apoio da sua pretensão, da fundamentação da pena resulta que as circunstâncias que a arguida refere se encontram já devidamente apreciadas no acórdão recorrido. Assim, acertadamente ali se consideraram as exigências de prevenção geral como bastante elevadas, em consonância com o que o Supremo tem vindo a afirmar. Mensurou-se de mediano o grau de ilicitude dos factos, atendendo à natureza do produto transportado e “à quantidade já muito significativa face às dimensões da ilha que era o seu destino final”. Desvalorizou-se, justificadamente, um alegado conhecimento menos preciso das características concretas do produto transportado, provados que estavam os factos do dolo, e considerou-se, acertadamente, o dolo como directo. Lembrou-se a indispensabilidade do papel dos correios de droga no tráfico de estupefacientes. Valorou-se a favor da arguida a ausência de antecedentes, mas sinalizou-se “a sua postura em audiência pouco consentânea com uma interiorização do desvalor da sua conduta, pois reafirmou sem pejo ou crítica que a sua conduta teve raiz na sua condição económica de então e que, na realidade não é diferente da de hoje.” Apreciaram-se, por último, os demais factos pessoais provados, concluindo-se acertadamente que as razões de prevenção especial são aqui também elevadas, não tendo estas, como se sabe, de resultar apenas dos antecedentes criminais (que a arguida efectivamente não tem). E também a situação relativa à maternidade não deixou de ser considerada, na medida em que consta da matéria de facto provada que a arguida se encontrava grávida aquando do julgamento.

No entanto, como se adiantou, a recorrente tem razão na parte em que peticiona a redução da pena à luz do referente jurisprudencial.

Em apoio da sua pretensão, nomeia oito acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, todos relativos a transporte de produto estupefaciente por “correios de droga”, e em que as penas aplicadas oscilam efectivamente entre quatro anos e cinco anos e seis meses de prisão. Na selecção efectuada, constata-se igualmente que as circunstâncias do caso sub judice não se distinguem “para mais”, em termos de gravidade do ilícito e do grau de culpa da perpetrante, das apreciadas nos acórdãos citados.

Sabendo-se embora que cada caso transporta sempre em si a sua natureza de caso único e irrepetível, é de reconhecer a importância do referente jurisprudencial na actividade, sempre judicialmente vinculada (na expressão impressiva de Figueiredo Dias), de determinação da pena.

A preocupação com o referente jurisprudencial contribui decisivamente para a atenuação (e, se possível, erradicação) de eventuais disparidades na aplicação prática dos critérios legais de determinação de pena. E a recorrente consegue sustentar a afirmação que faz, no sentido de que a pena aplicada no acórdão contraria esse referente jurisprudencial. Não em muito, é certo, mas ainda no bastante para permitir e justificar uma intervenção correctiva do Supremo.

Da análise da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça constata-se que a pena concretamente determinada excede as penas aplicadas para casos idênticos ao presente, ou seja, casos de correios de droga, primários, que, num acto isolado, transportam estupefaciente de características semelhantes quanto ao grau de nocividade para a saúde pública e às quantidades envolvidas (muitas vezes superiores até à presente).

No acórdão do STJ de 02-05-2012 (rel. Raul Borges) dá-se nota dos “padrões sancionatórios vigentes neste Supremo Tribunal” para os correios de droga, com uma extensa recensão de acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça. Neste acórdão, em que foi reduzida para 4 anos e 10 meses de prisão a pena de 5 anos e 6 meses de prisão fixada na 1.ª instância, pelo transporte da Venezuela de 2996,5 g de cocaína, encontram-se nomeadas, designadamente, as seguintes decisões:

“Acórdão de 10-02-2010 (processo nº 217/09.2JELSB.S1-3.ª): adequada a pena de 4 anos e 9 meses de prisão a arguido de nacionalidade brasileira, desembarcado no aeroporto de Lisboa, proveniente de São Paulo – Brasil, trazendo consigo no interior de uma mala, cocaína, com o peso líquido total de 2907,562 gramas;

Acórdão de 25-02-2010 (processo nº 137/09.0JELSB.S1-5.ª): arguido de nacionalidade portuguesa, residente na Holanda, desembarcado no Aeroporto de Lisboa, proveniente de Salvador, Brasil, e em trânsito para Amesterdão, transportando numa mala de porão 3.116,400 gramas de cocaína – reduzida a pena de 5 anos e 6 meses para 5 anos de prisão, tida por suficiente, mas necessária;

Acórdão de 11-03-2010 (processo nº 100/09.1JELSB.L1.S1-5.ª): arguido de nacionalidade brasileira, solteiro, com 4 filhos e sem antecedentes criminais que, no âmbito de um transporte como correio de droga, desembarcou no Aeroporto de Lisboa, proveniente de Brasília, e com destino a Amsterdão, transportando no organismo 96 embalagens de cocaína, com o peso líquido de 846, 462 g.: tida por suficiente a pena de 4 anos de prisão, e não a de 5 anos e 6 meses, imposta na 1.ª instância;

Acórdão de 25-03-2010 (processo nº 312/09.8JELSB.S1-3.ª): caso de transporte por cidadão brasileiro de 2.891,19 gramas de cocaína, proveniente de Caracas, e desembarcado no Aeroporto de Lisboa – confirmada a pena de 5 anos e 2 meses de prisão;

Acórdão de 15-04-2010 (processo nº 7/09.2ABPRT.P1.S1-3.ª): transporte de cocaína com o peso líquido de 1.690,83 gramas, feita por arguido de nacionalidade canadiana, que desembarcou no Aeroporto Sá Carneiro, proveniente de São Paulo, Brasil, em trânsito para a Holanda – tida por suficiente, mas necessária, a pena de 5 anos de prisão, ao invés da de 6 anos de prisão imposta na 1.ª instância;   

Acórdão de 09-06-2010 (processo nº 294/09.6JELSB.L1.S1 – 3.ª): transporte de cocaína, com o peso líquido de 3.415 gramas, do Brasil para Portugal – aplicada a pena de 4 anos e 6 meses de prisão, e não a pena de 5 anos e 6 meses fixada em primeira instância;

Acórdão de 13-01-2011 (processo nº 369/09.1JELSB-3.ª): cidadão brasileiro transporta, com o peso líquido de 2.633,394 gramas de cocaína de São Salvador para Lisboa – reduzida para 4 anos e 6 meses de prisão a pena da 1.ª instância de 5 anos e 6 meses, mas afastando a suspensão da execução da pena;

Acórdão de 29-06-2011 (processo nº 1878/10.5JAPRT.S1-3.ª): cidadão brasileiro, desembarcado em 14-11-2010, no Aeroporto Sá Carneiro, Maia, transportando de Salvador/Brasil, com destino a Barcelona, 2.121, 819 gramas de cocaína – reduzida a pena de 5 anos e 6 meses para 5 anos de prisão.”

No acórdão do STJ de 09-04-2015 (Rel. João Silva Miguel), reduziu-se para 4 anos e 6 meses de prisão a pena inicial de 5 anos e 6 meses, pelo transporte de cocaína com o peso líquido de 795 gramas.

E a propósito do referente jurisprudencial, pode ler-se neste acórdão: “Considerando, apenas, casos em que a quantidade do produto estupefaciente apreendido em valores próximos do destes autos, o acórdão de 16 de maio de 2002, processo nº 1258/02, estando em causa 749 gramas de cocaína, a pena de 4 (quatro) anos e 5 (cinco) meses de prisão fixada pelas instâncias foi confirmada; no acórdão de 21 de Setembro de 2006, processo nº 2818/06, estando em causa 795 gramas de cocaína, foi confirmada a pena de 5 (cinco) anos de prisão; no acórdão de 7 de fevereiro de 2007, processo nº 22/07, estando em causa 861 gramas de cocaína, foi confirmada a pena de 5 (cinco) anos de prisão; no acórdão de 13 de setembro de 2007, processo nº 2311/07, estando em causa 790 gramas de cocaína, foi confirmada a pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão; no acórdão de 20 de março de 2008, processo nº 305/2008, estando em causa 707 gramas de cocaína, foi reduzida a pena de 5 (cinco) anos para 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão; e no acórdão de 11 de março de 2010, processo nº 100/2009, estando em causa 846 gramas de cocaína, a pena foi reduzida de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses para 4 (quatro) anos de prisão.”

Do exposto facilmente se conclui que a pena aplicada na decisão recorrida deve ser reduzida para 5 anos de prisão, pois esta (medida de) pena continua a dar suficiente resposta às exigências de prevenção geral e especial concretamente diagnosticadas, contém-se no grau de culpa da arguida e, como se demonstrou,  enquadra-se mais adequadamente no referente jurisprudencial.

Resta conhecer da peticionada suspensão de pena, o que sempre teria de ocorrer oficiosamente, atento o limite da nova pena (arts. 70º e 51º, nº 1, do CP).

No acórdão recorrido sinalizaram-se necessidades de prevenção especial elevadas, o que não mereceu censura, como supra já se justificou. E às necessidades de prevenção especial aliam-se aqui as de prevenção geral, como se disse também, as quais não podem ser postas em causa nesta fase do iter aplicativo da pena.

Como dá nota Vaz Patto, “a respeito da pena aplicável a este crime, a jurisprudência tem acentuado que as exigências de prevenção geral, positiva e negativa, decorrentes da nocividade social do tráfico de estupefacientes, da dimensão da ameaça que representa e da censura comunitária que suscita, reclamam, de um modo geral, uma punição severa”. E, continua o autor, mesmo relativamente a penas que admitem substituição, “essas exigências desaconselham, de um modo geral, a suspensão de execução da pena de prisão. (…) Assim, mesmo quando estejam verificados outros pressupostos da suspensão da execução da pena de prisão, designadamente os relativos à prevenção especial positiva e à não desinserção social do condenado, as exigências de prevenção geral, positiva e negativa, a necessidade de reforço da confiança comunitária na validade e integridade das normas e valores por estas protegidos, poderão desaconselhar essa suspensão, no âmbito do crime tipificado no art. 21º, nº 1, em apreço” (Comentário das Leis Penais Extravagantes, Org. P.P. Albuquerque, José Branco, II, p. 494).

Elenca o mesmo autor inúmeros acórdãos que acentuam este aspecto, como por exemplo os acórdãos do STJ de 24.10.2007, 15.11.2007, de 18.12.2008, de 25.02.2009 (chamando, no entanto, a atenção para que estas considerações não devam conduzir a um “automatismo” que obste à possibilidade de suspensão).

Também Lourenço Martins assinala a “postura de severidade” do Supremo tribunal de Justiça na “punição dos traficantes”, aludindo a “exigências de repressão rigorosa” e a um “forte contributo de dissuasão” (Medida da Pena, Finalidades e Escolha, 2011, p. 286. V. ainda p. 259).

E no acórdão do STJ de 09-04-2015 (Rel. João Silva Miguel), a propósito da suspensão da pena lembra-se que “uma recensão da jurisprudência deste Supremo Tribunal sobre casos similares leva à conclusão de que condutas idênticas às da recorrente são punidas com pena de prisão efectiva, face às elevadas exigências de prevenção, pois «o combate ao tráfico de droga em que Portugal internacionalmente se comprometeu impõe que não seja suspensa a execução da pena nos casos de tráfico comum e de tráfico agravado de estupefacientes, em que não se verifiquem razões muito ponderosas, que no caso se não postulam, seria atentatória da necessidade estratégica nacional e internacional de combate a esse tipo de crime, faria desacreditar as expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada e não serviria os imperativos de prevenção geral.

E um juízo de prognose perante os factos disponíveis, relativos à sua severa ilicitude, à personalidade da arguida e às suas condições de vida, não permitem concluir, com probabilidade de segurança, que a ameaça da pena seja bastante para cumprir as finalidades da punição, e que não volte a traficar.

Em face de todo o exposto, não obstante estar verificado o pressuposto formal conducente à aplicação da pena de substituição da suspensão da pena, por a condenação ser inferior a 5 (cinco) anos de prisão, o comportamento anterior da arguida e a sua condição de vida, associados às marcantes necessidades de prevenção geral que no caso ocorrem, face ao tipo e gravidade do ilícito praticado, desaconselham a aplicação da pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão.”

Por tudo o que se disse, é esta a conclusão a retirar também aqui, no que respeita ao afastamento da aplicação de pena de substituição.


3. Decisão

Face ao exposto, acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar parcialmente procedente o recurso, reduzindo-se a pena de prisão para cinco anos e mantendo-se no mais o acórdão.

Sem custas.


Lisboa, 22.06.2022


Ana Barata Brito, Relatora

Pedro Branquinho Dias, Adjunto

Nuno Gonçalves, Presidente de Secção