Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B2361
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: OLIVEIRA BARROS
Descritores: DIREITOS FUNDAMENTAIS
DIREITO DE PERSONALIDADE
RESERVA DA VIDA PRIVADA
Nº do Documento: SJ200309250023617
Data do Acordão: 09/25/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 7223/02
Data: 10/17/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário : I - É ao direito ordinário que cabe a regulamentação do exercício dos direitos fundamentais, estabelecendo os necessários desenvolvimentos e concretizações, ficando, para tanto, em princípio, aberto ao legislador um amplo espaço livre de conformação.
II - A tutela do direito à intimidade da vida privada desdobra-se em duas vertentes: a protecção contra a intromissão na esfera privada e a proibição de revelações a ela relativas.
III - A saúde faz parte da individualidade privada do ser humano, e, assim, do assegurado resguardo da vida particular contra a eventualidade de divulgação pública.
IV - O direito de resguardo não é, no entanto, absoluto em todos os casos e relativamente a todos os domínios.
V - Havendo que atender à contraposição do interesse do indivíduo em obstar à tomada de conhecimento ou à divulgação de informação a seu respeito e dos interesses de outros em conhecer ou revelar a informação conhecida, interesses que ganharão maior peso se forem também interesses públicos, a extensão do dever de resguardo, e, assim, do correlativo direito, deverá ser apreciada "segundo as circunstâncias do caso e das pessoas".
VI - Desde que não contrariados por esse modo os princípios da ordem pública interna, é lícita a limitação voluntária do exercício dos direitos de personalidade, designadamente, podendo, em princípio, o exercício do direito ao resguardo, nas suas várias manifestações, ser objecto de limitações voluntárias.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. Em 11/4/96, A moveu à DGAC, à GAN, e ao SPAC acção declarativa com processo comum na forma ordinária, que foi distribuída à 3ª Secção do 3º Juízo (depois Vara) Cível da comarca de Lisboa.
Alegou, em petição com 103 artigos, a divulgação não autorizada de relatório médico a seu respeito e, assim, divulgação indevida, ilícita e abusiva do seu estado de saúde, e invocou o disposto nos artºs. 26º CRP, no tocante ao resguardo da vida privada, 483º, nº. 1, 484º, 490º, 497º, 551º, 562º, 566º, nº. 2, 804º, 805º, nº. 1, al. a), e 806º C.Civ., e 178º, 184º e 433º CP (82), e as Leis nºs. 56/79 (de 15/9 - Lei do Serviço Nacional de Saúde) e 48/90, de 24/8 (Lei de Bases da Saúde).
Pediu a condenação dos demandados, solidariamente, a pagar-lhe indemnização no montante global de 27.484.170$50, sendo 10.603.580$00 por danos materiais emergentes do não recebimento do devido em virtude de contrato de seguro de grupo pela perda definitiva da sua licença de voo resultante da sua reforma por invalidez e incapacidade definitiva para o exercício da sua actividade profissional e consequente inibição total e definitiva do exercício da sua profissão, 1.181.322$00 e 5.699.268$50 respectivamente por correcção monetária e juros vencidos até 31/3/96, e 10.000.000$00 por danos morais, com, ainda, as importâncias correspondentes a correcção monetária que se vencerem a partir de 31/12/95 e a título de juros vincendos, à taxa legal, e sobre as importâncias em dívida, a partir de 1/4/96, e até integral pagamento, em ambos os casos.

2. Em contestação com 91 artigos, a seguradora demandada excepcionou, em indicados termos, dilatoriamente, litispendência, e, peremptoriamente, o incumprimento, por parte do A., das condições estabelecidas no contrato de seguro invocado. Quanto à divulgação do relatório médico, opôs o estipulado na cláusula 6.4. desse contrato.
O SPAC, em contestação com 90 artigos, excepcionou, em outrossim enunciados termos, caso julgado e prescrição nos termos do artº. 498º C.Civ., deduzindo ainda defesa por impugnação, em que, nomeada mente, negou a existência de nexo de causalidade entre a divulgação arguida e os danos reclamados.
A DGAC, na contestação respectiva, excepcionou, dilatoriamente, a incompetência do tribunal comum em razão da matéria por virem reclamados danos emergentes de actos de gestão pública (artº. 815º, §1º, al.b), C. Adm.) e a sua ilegitimidade passiva, com fundamento na inexistência de nexo de causalidade entre a divulgação do relatório médico e o não pagamento da indemnização pretendida, e, peremptoriamente, prescrição do direito de indemnização ajuizado (predito artº. 498º C.Civ). Deduziu também defesa por impugnação, negando a ilicitude daquele facto.
Houve réplica, em que se contrariaram as excepcionadas incompetência material, em vista do artº. 4º, nº. 1, al. f), ETAF (DL 129/84, de 27/4), ilegitimidade passiva, repetição de causa, e prescrição, esta com referência ao artº. 323º, nº. 2, C.Civ.

3. Após tentativa de conciliação infrutífera, veio, com data de 12/2/2002, a ser proferido saneador-sentença que esclareceu, antes de mais, ser a causa de pedir na invocada acção anterior o incumprimento de contrato de seguro e ser accionada nesta responsabilidade civil extracontratual fundada em violação de direito de personalidade.
Julgou-se então não ocorrer por isso a repetição de causa excepcionada; nem também, por via do disposto no artº. 323º, nº. 2, C.Civ., a prescrição arguida; nem, ainda, a incompetência material oposta, dado que, respeitando a gestão pública a actos praticados na esfera das atribuições de carácter administrativo do agente do Estado, reguladas pelo direito administrativo, a DGAC facultou o acesso a parecer clínico de médico dos seus serviços no âmbito de relações privadas com companhia de seguros, para esta poder decidir sobre o pagamento, ou não, de indemnização a segurado sob a tutela dessa Direcção Geral, sendo o tribunal comum o competente em vista do artº. 51º, nº. 1, al. h), ETAF; nem, por último, a ilegitimidade passiva alegada pela mesma, dado o estabelecido no artº. 26º, nº. 3, CPC (na versão reformada entretanto entrada em vigor; mas já antes assim se vindo predominantemente a entender).
Considerou-se, todavia, em síntese, com referência ao artº. 26º, nº. 2, CRP, não ocorrer ilícito extracontratual algum, por terem agido, a Ré seguradora, no exercício de um direito, de acesso ao relatório clínico, para apreciar a situação com vista a decidir sobre o pagamento, ou não, da indemnização, e os demais RR - Sindicato e Direcção Geral -, no cumprimento dum dever de colaboração nesse sentido; o primeiro na defesa dos interesses dos seus associados, com verdade e justiça; tendo esta última, enquanto órgão de tutela dos pilotos de aviação civil, o dever de facultar o acesso aos elementos médicos relativos ao A., já que havia dúvidas sobre se tinha, ou não, direito a indemnização decorrente de seguro de grupo, conforme as condições estipuladas nesse contrato; o que tudo respectivamente constitui causa de exclusão da ilicitude, tanto na lei penal (artºs. 31º e 36º CP), como na lei civil.
Por essas razões, a acção foi julgada improcedente e não provada, e os RR foram absolvidos do pedido.
4. Por outros fundamentos, embora, a Relação de Lisboa negou provimento à apelação do A., que, desta feita, considerava infringidos os artºs. 26º CRP, 31º, 34º, 35º, 192º e 195º CP (95).
Considerou-se então, em síntese estar em causa direito especial de personalidade - o direito à intimidade da vida privada - com estatuto, consoante artº. 26º CRP, de direito fundamental, que visa assegurar aos indivíduos o domínio da sua esfera privada e um espaço de vida resguardado das intromissões de outrem, em termos de poderem decidir quem e em que termos pode conhecer de factos concernentes à sua área de reserva, círculo de reserva esse em que se inclui a história médica.
Destarte proibidas informações abusivas, por não autorizadas, a esse respeito, aquele direito não é, no entanto, absoluto, antes tem limites, nomeadamente decorrentes das exigências sociais da vida em comum, da ponderação prática de interesses em colisão, e do consentimento do titular.
O acórdão proferido refere-se depois aos artºs. 192º CP 95 e 80º C.Civ.
Relativamente a este último (cfr. seu nº. 2), notou terem os limites do direito em causa a ver com a maior ou menor gravidade da lesão e as características culturais, sociais e profissionais do titular.
Concluiu então estar-se perante uma intromissão na esfera de reserva da vida privada do apelante, abusiva e ilícita porque por ele não consentida, nem envolvente do exercício dum direito ou do cumprimento de um dever, e, assim, perante facto civilmente ilícito, previsto no artº. 80º, nº. 1, C.Civ. No entanto:
Alegados danos patrimoniais de montante equivalente ao previsto no contrato de seguro com fundamento em ter sido a dúvida suscitada pelo relatório médico em causa que levou ao não pagamento daquela quantia, julgou-se nesse acórdão, em indicados termos, inexistir nexo de causalidade adequada entre o acesso da seguradora apelada àquele relatório e a recusa desse pagamento. Quanto, por sua vez, aos danos não patrimoniais reclamados, considerou-se estar-se perante "um quadro de afirmação essencialmente conclusivo e envolvente de juízos de valor", não havendo, por isso, que prosseguir com o processo para a fase instrutória.
O A. pede, agora, revista dessa decisão.

5. A finalizar a alegação respectiva, formula, em termos úteis, as conclusões seguintes:
1ª - Controvertido o efectivo recebimento das convocatórias para exames médicos referidas na matéria de facto provada - facto sobre o qual a prolação de sentença em sede despacho saneador não permitiu se fizesse luz -, ao contrário do que poderá concluir-se da formulação usada no enunciado dos factos provados - a saber, que o ora recorrente terá sido convocado várias vezes para se submeter a exames médicos, sem nunca ter comparecido -, a verdade é que não se provou que tais convocações tenham chegado ao recorrente, excepto uma, remetida fora de prazo.
2ª - Existe um evidente, directo e imediato nexo de causalidade entre o conhecimento conseguido - com ilicitude - pela GAN, da história médica do recorrente detida pela DGAC e a recusa daquela companhia de seguros de pagar ao recorrente a indemnização que lhe era devida, estipulada em contrato de seguro.
3ª - Os exames médicos a que a GAN, pretendia ver o recorrente submetido não passaram de um pretexto encavilhado por essa recorrida em todo o processo ínvio de se furtar ao pagamento de indemnização fundada em seguro.
4ª - Com efeito, qualquer que viesse a ser o seu resultado, esses exames não teriam eficácia, visto respeitarem a quem já tinha sido declarado definitivamente inapto para o exercício da sua actividade profissional - piloto de aeronaves - por duas entidades, a Segurança Social e a DGAC, que é recorrida, ambas competentes para o efeito; actividade essa a que ficou vedado ao recorrente voltar, desde logo sob pena de incorrer em responsabilidade criminal.
5ª - A única convocatória para exames médicos comprovadamente recebida pelo recorrente foi-lhe remetida já depois de expirado o prazo competente, nos termos da respectiva apólice de seguro.
6ª - Mesmo que fosse de atribuir relevância ao facto da realização de exames médicos para a aferição do nexo de causalidade, isso não poderia invalidar que há nexo de causalidade, directo e imediato, entre a lesão - violação do direito de intimidade do recorrente - e o dano - a recusa a que se remeteu a recorrida GAN, a pagar a indemnização convencionada.
7ª - Ao invocar que teve de se endividar, que se viu obrigado a recorrer a familiares e amigos para suprir deficiências orçamentais perfeitamente provadas pelo facto da drástica perda de réditos mensais, de 530.179$00 para 153.179$00, que se sentiu humilhado ante suspeição sobre a sua honorabilidade, e que a divulgação da sua ficha médica atentou por forma rude e grave contra o seu bom nome e consideração social, o recorrente não se limitou a traçar "um quadro de afirmação essencialmente conclusivo e envolvente de juízos de valor, à margem de factos concretos".
8ª - Não fora o facto de a sentença ter sido proferida em sede despacho saneador, o recorrente teria tido, como elementos de prova, testemunhas, documentação em poder dos recorridos, por aplicação do artº. 528º CPC, e os depoimentos de parte por banda dos representantes legais dos recorridos.
9ª - O acórdão recorrido violou, pelo menos, os artºs. 483º e 484º C.Civ.

Houve contra-alegação da seguradora recorrida e do SPAC.
A exemplo do sucedido na apelação, a DGAC - ora INAC - não contra-alegou.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

6. A matéria de facto considerada pelas instâncias é, convenientemente ordenada, a seguinte:
(a) - O A. prestou à LAR, a sua actividade profissional, como comandante de avião.
(b) - Nessa qualidade, era sócio do SPAC, fazendo parte, desde 1977, de um grupo de profissionais que se encontrava abrangido pelo contrato de seguro de grupo celebrado entre esse Sindicato e a Ré seguradora, titulado pela apólice nº. 426.000, e que se regia pelas Condições Particulares e Suplemento de Alteração a fls. 29 a 46 e 55 e 56.
(c) - Dessas Condições Particulares consta:
1 - No caso de perda definitiva da licença de voo em consequência de doença ou de acidente ocorrido até à data do 60º aniversário da pessoa segura, a Ré seguradora garante-lhe o pagamento de um capital de acordo com a tabela fixada, que no caso do A. era de 20 vezes o salário mensal de 530.179$00.
2 - Na eventualidade de a Companhia o pedir, a pessoa segura compromete-se a assinar uma autorização permitindo-lhe obter todas as informações médicas existentes na DGAC ou de qualquer outro organismo que se lhe tenha substituído na concessão, restrição ou privação da licença de voo - artº. 6º.4.
3 - Nos 30 dias seguintes àquele em que lhe for dado conhecimento da perda da licença de voo, o SPAC participá-lo-á, por carta registada à Companhia seguradora, habilitando-a com o certificado e a documentação fornecida pela DGAC ou por qualquer outro organismo oficial que se lhe tenha substituído na privação da licença de voo (artº. 12º.1.).
4 - A perda da licença de voo e a incapacidade total e permanente são decretadas pelos serviços médicos oficiais da DGAC ou de qualquer outro organismo que se lhe tenha substituído na concessão, restrição ou privação da referida licença, sendo a decisão vinculativa para a Companhia, sem prejuízo de esta, por, não conformada com essa decisão, considerar não irreversível o evento determinante da perda da licença de voo ou de incapacidade total e permanente, poder, uma vez obtido o consentimento escrito do segurado no prazo de 30 dias após o conhecimento do sinistro, sujeitar a pessoa segura a exames médicos nos 60 dias posteriores (artº. 12º.2. e 12º.3.)
5 - Se a DGAC, em função dos exames, vier a rever a decisão proferida, a pessoa segura devolverá à Companhia as importâncias a que houver lugar.
6 - Se, não obstante o consentimento escrito do segurado, a pessoa segura se recusar a sujeitar-se aos preditos exames médicos, perderá o direito ao recebimento dos capitais a que havia lugar.
(d) - Em 31/3/92, a Caixa Nacional de Pensões escreveu ao A., a informar que o requerimento de pensão por invalidez fora deferido com início em 18/11/91.
(e) - Em 10/11/92, o A. entregou em mão na secretaria do SPAC cópia do ofício da DGAC pelo qual lhe era comunicado que "a Junta Médica Central desta Direcção Geral o considerava definitivamente inapto para o voo".
(f) - Em 11/11/92, aquele Sindicato enviou cópia desse ofício à Ré seguradora.
(g) - Por carta de 19/11/92, a Ré seguradora solicitou à DGAC que o dossier clínico do A. fosse facultado, para consulta, ao seu médico, Dr. B.
(h) - As Rés seguradora e DGAC confessam o acesso que esta facultou àquela do documento a fls. 96 e 97 - relatório do Dr. C que integra uma opinião médica sobre o estado clínico do A.
- Justifica-se transcrição desse relatório do Chefe da Divisão de Medicina Aeronáutica, relativo ao ora recorrente.
Assim (nosso o grifado):
"Piloto desde há muitos anos, seguido periodicamente nesta Divisão, sem que (,) ao longo de todos eles (,) tenha manifestado sinais ou sintomas das vias aéreas (,) ou qualquer outro tipo de patologia (,) salvo, segundo parece, uma sinusopatia operada em África (,) em 1960.
Em 1991 (,) baixa pela Caixa - confirma-se a existência de polisinusopatia com episódio agudo de crises esternutatórias, hidrorreia e possível compromisso bronco pneumónico (,) como tal tratado com antibióticos. Cinco meses depois, já recuperado (,) é reformado pelos Serviços Médico-Sociais, por incapacidade definitiva para o voo. A par da rapidez com que a reforma foi conseguida, surpreende-nos a decisão de considerar este piloto definitivamente inapto para o voo.
Não se duvida aqui do diagnóstico feito, nem sequer da possibilidade de ocasionais agravamentos por condições ambientais diversas.
Sob o ponto de vista do doente e do próprio médico especialista, não se duvida também da necessidade de evitar tais factores (,) que, ocasionalmente poderão despoletar episódios agudos.
Mas (,) em termos de normas internacionais, não há patologia que justifique, por agora, uma inaptidão definitiva, já que não estão em jogo problemas de segurança aérea (,) quer pela patologia apresentada (,) quer pelas condições em que voa.
Pensamos terem os S.M.S. (Serviços Médico-Sociais) exorbitado das suas funções ao tomarem uma decisão definitiva sem consulta aos nossos serviços. Com efeito (,) o que poderá ser aceite sob o ponto de vista do doente e do próprio médico dos S.M.S. não preenche muitas vezes os requisitos para uma inaptidão definitiva.
Estamos (,) assim (,) perante um facto consumado (,) em que o piloto não pode voar por estar reformado, mas (,) no nosso ponto de vista (,) não reúne condições para ser considerado definitivamente inapto.
Ao reformar este piloto (,) os S.M.S. criaram uma nova perspectiva profissional que o desmotiva para a sua função. Após um ano de afastamento da actividade (,) tal falta de motivação aeronáutica é, essa (,) sim, já uma razão que nos impede de o mandar prosseguir na sua verdadeira função.
Este impasse criado pelos S.M.S. poderá ser ultrapassado se o considerarmos definitivamente inapto, mas fica aqui expressa a nossa opinião como protesto e para uso de quem achar conveniente.".
(i) - A Ré seguradora solicitou ao SPAC autorização para submeter o A. a exames médicos.
(j) - Em 17/12/92, esse Sindicato enviou à Ré seguradora carta pela qual dá o seu acordo "a que sejam cumpridas as formalidades necessárias ao cumprimento da apólice".
(l) - A partir de 28/1/93, aquela Ré marcou ao A. datas sucessivas - 7 e 9/2/93 - para este comparecer, a fim de ser submetido a exames médicos, mas o A. nunca compareceu.
(m) - Por carta de 28/5/93, a fls.102 dos autos, D dirige-se ao A., a lamentar não lhe poder prestar informação através do SPAC, porque, falando com o seu Presidente, este, talvez a título de o convencer de que estaria a defender qualquer tentativa de fraude, passou a ler-lhe o relatório (atrás transcrito) do médico chefe da Aeronáutica Civil (frisado nosso).
Esta a situação de facto delineada pelas instâncias, importa, agora, proceder ao seu enquadramento jurídico.

7. Baseada a República Portuguesa, consoante artº. 1º CRP, na dignidade da pessoa humana (1), e baseado o Estado de direito democrático, que, conforme seguinte artº. 2º, constitui, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais, de harmonia com o nº. 1 do artº. 18º, os preceitos constitucionais relativos aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis, mesmo nas relações entre particulares.
Deste jeito compreendida a invocação do artº. 26º CRP, trata-se de preceito da lei fundamental que, inserido no Capítulo I, subordinado à rubrica Direitos, Liberdades e Garantias Pessoais, do seu Título II, subordinado à epigrafe Direitos, Liberdades e Garantias, reconhece, no seu nº. 1, a exemplo do artº. 12º da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 10/12/48 (2) e do artº. 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem de 4/11/50 (direito interno desde 3/9/53) (3), entre outros direitos pessoais, o direito à reserva da intimidade da vida privada (4).
O nº. 2 desse mesmo artigo determina, por sua vez, que a lei (ordinária) estabeleça garantias efectivas contra a utilização abusiva de informações relativas às pessoas.
Com tal não confundíveis as restrições a que se refere o nº. 2 do artº. 18º CRP, é, de facto, ao direito ordinário que cabe a regulamentação do exercício dos direitos fundamentais, estabelecendo os necessários desenvolvimentos e concretizações (5). Com efeito:
"O facto de os direitos especiais de personalidade terem fundamento comum na protecção constitucional da personalidade não significa que a sua definição e regime estejam rigidamente constitucionalizados.
Aqui, como noutros lugares, cabe ao legislador ordinário um espaço de manobra, na concretização de orientações constitucionais".
"Os limites aos direitos de personalidade podem, como em qualquer outro direito, ser intrínsecos ou extrínsecos", isto é, demarcados, aqueles primeiros, por lei ao estabelecer o conteúdo do direito, ou resultantes, estes últimos da necessidade de conjugação com outras situações protegidas (6).

8. Sempre revestido o direito penal da natureza ou carácter de ultima ratio, logo, outrossim, cabe fazer notar, primeiro, que, dada a não retroactividade da lei penal (cfr. artºs. 29º, nº. 1, CRP e 1º a 3º CP 95), cogente, seria, de facto, neste caso, o artº. 178º, nºs. 1º e 2º, CP 82, e não o correspondente artº. 192º, nºs. 1, al. d), e 2, CP 95, ora vigente, e depois, que um e outro se referem a doença grave e exigem dolo específico (intenção dolosa) - o "propósito de devassar" antes referido na Base I da Lei nº. 3/73, de 5/4 (7).
Em vista, por último, ainda, da natureza semi-pública, consoante nº. 3 daquele artº. 178º CP 82 (8), do aventado delito de indiscrição (Indiskretionsdelikt, delitto di indiscrezioni) importa, antes de mais, sublinhar que não é de eventual responsabilidade criminal que nestes autos se trata, mas sim de responsabilidade civil (extracontratual), prevenida nos artºs. 70º, nº. 2, e 483º, nº. 1, fundada em arguida lesão do direito à reserva ou resguardo da intimidade da vida privada, por sua vez regulado no artº. 80º, todos do C. Civ.
Não há, enfim, que cuidar, nestes autos, de averiguar, da existência, ou não, de facto ilícito penal e da concorrência, ou não, de causas de exclusão dessa ilicitude (9), mas sim da ocorrência, ou não, de facto ilícito civil; e, sendo certo que a sua essencialidade conduz a que os direitos de personalidade sejam, em regra, considerados direitos fundamentais (10), importa deixar claro, antes de mais, que é o correspondente privatístico para a tutela de certos bens da personalidade pela Constituição, e não, propriamente, a directa aplicação de norma constitucional, que está em causa neste processo (11).
Como assim, com ciência e consciência, embora, de que, para além de exigir ou postular outra espécie de garantias (constitucionais, criminais, administrativas), o espaço civil não é estanque (12), e, assim, do valor heurístico e hermenêutico, isto é, a nível de indagação e interpretação, dos já referidos textos e preceitos constitucionais e penais, todavia mais que tempo vem a ser, agora, de final e decididamente colocar a questão sub judicio nesta acção de indemnização no plano do direito privado que lhe é próprio, que é o do direito civil.
Assim alcançado o enquadramento jurídico que lhe é próprio (13), cumpre averiguar se nos factos provados atrás enunciados realmente se consubstanciam ofensa ilícita do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, direito de personalidade especial regulado no artº. 80º - que, nestes autos, só a Relação veio a mencionar -, e os demais elementos, pressupostos, requisitos ou condições da responsabilidade civil por facto ilícito accionada indicados no artº. 483º, nº. 1, para que, neste âmbito, remete o artº. 70º, nº. 2, todos do C.Civ.

9. Está consagrado no nosso direito civil um direito geral de personalidade (allgemeines Personlichkeits recht), "direito-matriz ou direito fundante" (14) e direito-quadro de que, sem o esgotarem, se desentranharam diversos direitos especiais, autónomos, de personalidade (besondere Personlichkeitsrechte) (15).
A lei protege-os enquanto atributos essenciais e inderrogáveis da personalidade, cujo núcleo ou conteúdo mais essencial não pode ser afectado sem diminuição da dignidade própria da pessoa humana (16).
É assim que, a par da cláusula geral de tutela da personalidade estabelecida no artº. 70º C.Civ., que, designadamente, proíbe toda e qualquer ofensa ilícita à personalidade moral, e em que na parte inicial do nº 2, se refere a competente responsabilidade civil, o artº. 80º desse mesmo compêndio legal determina que "todos devem guardar reserva quanto à intimidade da vida privada de outrem" (17).
Já considerado que a dificuldade da definição do direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar com referência ao seu objecto conduz à inadequação de uma qualquer definição dogmática, aprioristicamente construída (18), revela-se, em todo o caso, útil, na falta de uma definição legal de "vida privada", o entendimento doutrinário de que o direito do seu resguardo é "o direito que toda a pessoa tem a que per permaneçam desconhecidos determinados aspectos da sua vida, assim como a controlar o conhecimento que terceiros tenham dela" (19).
Anotando o artº. 26º CRP, Vital Moreira e Gomes Canotilho ("CRP Anotada", 3ª ed., 1993, 181-VIII), explicam que esse direito se analisa em dois direitos menores: a) - o direito a impedir o acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e familiar; b) - o direito a que ninguém divulgue as informações que tenha sobre a vida privada e familiar de outrem.
Ambas essas vertentes da tutela do direito à intimidade da vida privada - de protecção contra intromissão na esfera privada (por parte da seguradora demandada) e de revelações a ela relativas (por banda dos demais) - estão em causa nestes autos.

10. A saúde faz parte da individualidade privada do ser humano, e, assim, do contemplado resguardo da vida particular contra a eventualidade de divulgação pública (20).
Como assim, o direito à reserva da intimidade da vida privada, incluirá, em princípio, a proibição de acções com o objectivo de tomar conhecimento ou obter informações sobre a vida privada de outrem, incluindo, "obviamente", os elementos respeitantes à saúde.
Esse direito não é, no entanto, "absoluto em todos os casos e relativamente a todos os domínios", havendo que atender à contraposição do interesse do indivíduo em obstar à tomada de conhecimento ou à divulgação de informação a seu respeito e dos interesses de outros em conhecer ou revelar a informação conhecida - "interesses que ganharão maior peso se forem também interesses públicos" (21).
Como decorre do nº. 2 do artº. 81º C.Civ., é essencial ou nuclearmente prevenida a lesão grave da dignidade da pessoa como tal em termos de constituir ofensa da ordem pública ou dos bons costumes (22).
Para além disso, a extensão do dever de resguardo, e, assim, do correlativo direito, deverá ser apreciada, na expressão do anteprojecto de Manuel de Andrade, "segundo as circunstâncias do caso e das pessoas" - ou, como dito no nº. 2 do artº. 80º C.Civ., "conforme a natureza do caso" (elemento objectivo) "e a condição das pessoas" (consideração, ainda assim, de carácter objectivo, mesmo se referida aos sujeitos) (23).

11. Bem que se trate de conceitos indeterminados (24), por essa forma de algum modo, ou em certa medida, aclarados e definidos - em função das pessoas e das concretas situações - os limites intrínsecos, internos ou imanentes do direito fundamental invocado (25), mostra-se, por essa forma, afirmado o carácter relativo do falado direito ao resguardo da esfera íntima da pessoa (26), com conteúdo em último termo dependente das - conformado pelas - condições concretas do seu exercício.
Como assim, a aplicação prática deste preceito depende, em larga medida, do critério do julgador - ou seja, em apreciação casuística, do denominado prudente arbítrio do juiz, de que outrossim se espera - e exige - que actue, na expressão de Guilherme Moreira, como "um árbitro prudente e reflectido das exigências da vida social" (27).
É, na verdade, a quem julga que compete, em último termo, avaliar se se está efectivamente perante factos estritamente relacionados com a vida privada, e, assim, perante questão de interesse estritamente pessoal, que seja legítimo subtrair ao conhecimento de terceiros por atendíveis razões de resguardo ou melindre (designadamente porque, vistos esses factos de fora, tenderiam a apoucar a ideia que o público em geral faz da pessoa a que se referem) (28), ou se, - como, se bem se crê, acontece na hipótese vertente -, tudo devidamente ponderado, nos termos prescritos no nº. 2 do artº. 80º C.Civ., nem tanto assim, afinal. Na verdade:
Logo por via constitucional, pelo menos, reposto o indivíduo e os seus direitos no topo da regulamentação iure civili, não poderão, no entanto, prejudicar-se, nomeadamente, "as exigências de uma economia salubre" (29).
Cabe, nestes autos, ajuizar se, em vista das circunstâncias apuradas, é, ou não, de considerar ter realmente ocorrido devassa da vida particular do ora recorrente, constituída, duma banda, por indevida obtenção e tomada de conhecimento pela seguradora demandada de informação tal que representa intromissão em área de reserva, e doutra, por abusiva revelação pelos demais recorridos de informação dessa área (30): devassa essa susceptível de justificar a responsabilidade civil dos demandados por lesão de direito de personalidade do recorrente relativo ao sigilo da vida privada. Avulta, então, de imediato, que, reformado o recorrente na sequência de episódio agudo de (poli)sinusopatia debelado ao fim de 5 meses, o que, em último termo, estava em questão era a existência, ou não, de fundamento clínico para o cancelamento da sua licença de voo. Por tratar-se, numa parte e noutra, nos termos considerados na sentença apelada, da prossecução de interesses legítimos, concorria, haverá que convir, justa causa de acesso ao e de transmissão ou revelação (hoc sensu, divulgação) do parecer transcrito em 6., (h), supra; o qual, nas concretas circunstâncias deste caso, bem se não vê como aceitar que devesse efectivamente ficar sujeito à confidencialidade e segredo pretendidos pelo ora recorrente (31).

12. Como, por outro lado, decorre, a contrario do nº. 1 do artº. 81º, desde que não se mostrem contrariados por esse modo os princípios da ordem pública (interna), é lícita a limitação voluntária do exercício dos direitos de personalidade.
De entender, a esta luz, que "o exercício do direito ao resguardo, nas suas várias manifestações (...), pode, em princípio, ser objecto de limitações voluntárias" (32), é tal que, sem dúvida, se configura na cláusula - artº. 6º.4. - das condições particulares da apólice em questão mencionada em 6., (c) - 2., supra, que, a coberto do (e com a consequência prevista no) nº. 2 do mesmo artº. 81º, estabelece circunstância que excluiria a ilicitude do acto (dito) lesivo. Em todo caso:
Em nosso entender não abrangido o relatório em questão na esfera da privacidade, não importa, sequer, considerar, agora, eventual renúncia ao segredo (33).

13. Objecto o direito à reserva da intimidade da vida privada, como já visto, de diversas disciplinas jurídicas, falou-se já do Direito Constitucional e do Direito Penal. Daquele primeiro dito então quanto cabia (v. 7., supra), e, em todo o caso, fora de questão, como igualmente já notado (v. 8., supra), a consideração nestes autos de eventual ilícito penal, importa reverter, agora, aos requisitos, pressupostos, elementos ou condições da responsabilidade civil reclamada, enunciados no nº. 1 do artº. 483º C.Civ.
O primeiro ponto a ajuizar é, deste jeito, o de determinar, - como, enfim, claro decorre do já exposto, no plano do direito civil -, se com a divulgação de que o ora recorrente, piloto da aviação civil (comandante de aeronave), padece de sinusopatia susceptível de episódio agudo incapacitante, em consequência do que foi reformado pelos SMS sem prévia consulta ao departamento médico da DGAC, com, nessas condições, subsequente discordância desse departamento, efectivamente será de considerar ocorrer infracção da reserva da vida privada do recorrente constitutiva de ilícito civil, capaz de justificar a indemnização reclamada.
Cumpre reconhecer que se está, no caso dos autos, perante a revelação não autorizada de parecer clínico relativo ao ora recorrente, que, conquanto situado no âmbito da sua reforma e subsequente perda da licença de voo, e, nessa medida, eventualmente acessível ao conhecimento alheio, lhe era, sem dúvida, lícito exigir que não fosse indiscretamente difundido.
Mas bem, afinal, igualmente se não vê que, nos concretos parâmetros que logo a sentença apelada salientou (v. 1., supra, parte final), de verdadeira, efectiva, indiscrição possa legitimamente falar-se, causadora dos danos, nomeadamente no plano da reputação e prestígio social e da consideração ou estima públicas, cujo ressarcimento se pretende.
Bem, na verdade, não se vê, nas circunstâncias do caso, que efectivamente deva considerar-se legítimo o interesse do ora recorrente na não transmissão daquele relatório à seguradora demandada. Desta sorte:

14. Sendo certo que "o tema da reserva da intimidade da vida privada tem sido geralmente debatido no quadro de situações conflituais" (34), é, no entanto, logo em sede de juízo de ilicitude da lesão arguida que se afigura dever falhar esta acção: tal assim, até, com a consideração de que "mesmo para saber se houve lesão - e não só para a qualificar - tem de se fazer uma ponderação de interesses " (35).
Neste caso, essa ponderação é, até, imposta pelo nº. 2 do artº. 80º C.Civ., sendo nesse plano que há que considerar a contraposição de interesses salientada na sentença apelada (v. 1., supra, parte final), designadamente entre o interesse em conhecer da seguradora demandada e o interesse em não deixar conhecer (interesse na privacidade) do ora recorrente.
Objectivamente ponderadas, em obediência àquela disposição legal, as circunstâncias do caso e de quem nele envolvido, crê-se claro não existir realmente o direito de resguardo arguido e que a invocada prioridade - em abstracto - do direito especial de personalidade invocado não passa, por isso mesmo, de um falso argumento, que, como tal, terá de afastar-se (36).
Longe, aliás, que, como salientado na sentença apelada, de facto, se está de situação - de seguro de grupo de pilotos da aviação civil - em que na realidade se configure apenas a protecção de interesse meramente comercial, bem não parece, ponderado o disposto no nº. 2 do artº. 80º C.Civ., que efectivamente se esteja perante a abusiva intromissão na, ou devassa da, vida privada arguida ou reclamada pelo ora recorrente.
Não acompanhando, pois, neste ponto, o acórdão sob revista, crê-se inexistir, desde logo, o ilícito arguido.
Do CPC os preceitos adiante referidos, ainda que, independentemente do estabelecido nos artºs. 664º, 713º, nº. 2, e 726º, todavia se houvesse, em vista do disposto no nº. 4 do artº. 684º (37), que dar por arrumada essa questão, sobra mostrar-se preenchida na contra-alegação do SPAC a previsão do nº. 1 do artº. 684º-A, posto que nela se persiste em negar a ilicitude considerada pela Relação.

15. Por aí sossobrando, de imediato, a acção, como, mesmo se em porventura menos ajustados termos, considerado na 1ª instância, ainda assim subsequentemente considerado o disposto no nº. 2 do artº. 487º C. Civ, bem também se não descortina que ao proverbial bonus pater familias fosse, nas concretas circunstâncias deste caso, efectivamente exigível actuação ou comportamento diverso do adoptado pelos ora recorridos. Por outro lado:
Ainda quando em concreto motivada pelo acesso ao relatório médico em referência a recusa do pagamento da importância prevista no contrato de seguro de grupo sem sujeição a exames médicos, sempre, no entanto, na disponibilidade da seguradora demandada a faculdade de, consoante 6., (c) - 4., supra, e artº. 12º.2. e 3. das Condições Particulares da apólice, exigir esses exames, subsiste, de todo em todo, por demonstrar que o acesso ao falado relatório - não, propriamente, enfim, ficha clínica - foi condição sem a qual a recusa de pagamento não teria ocorrido (38). Terá, pois, de concluir-se, desta feita com o acórdão recorrido, e contra o sustentado nas conclusões 2ª, 3ª, e 6ª da alegação do recorrente, encontrar-se por demonstrar a efectiva existência de nexo de causalidade adequada entre o acesso da seguradora apelada àquele relatório e a recusa do pagamento da importância prevista na apólice em referência.
A conclusão 4ª da mesma alegação é, com evidência, descabida face ao artº. 12º-2. e 3. das Condições Particulares da apólice em referência, transcrito em 6., (c) - 4., supra.
Embora já em sede de apreciação de direito (39), a Relação considerou ainda, no tocante à notificação para exame médico, resultar do processo terem sido remetidos ao A., através dos serviços postais, uma carta e um telegrama, para determinado local onde se situaria a sua casa de residência, e que não foram por ele reclamados.
De salientar a este respeito o disposto no nº. 2 do artº. 224º C.Civ., a apreciação de direito já adiantada torna inútil mais desenvolvida referência às conclusões 1ª e 5ª da alegação do recorrente (cfr. artºs. 660º, nº. 2, parte final da sua 1ª parte, 713º, nº. 2, e 726º CPC). Finalmente:

16. Ainda que admitida, em contrário do entendido na instância recorrida, articulação suficiente dos danos não patrimoniais reclamados (conclusões 7ª e 8ª da alegação do recorrente), caberia concluir, em iguais termos (v. 15., supra), pela inexistência também de nexo de causalidade (adequada) entre a divulgação do relatório aludido e o estado de necessidade e consequente humilhação arguidos.
De ter, ainda, em atenção o disposto no nº. 1 do artº. 496º C.Civ., vê-se mal que real choque possa ter na realidade resultado para o ora recorrente, ou outros, da revelação desse relatório - a ter em conta na integralidade constante de 6., (h), supra -, à seguradora demandada.
Bem não se vê também que - assim considerado - dele pudesse, de facto, resultar, em termos de causalidade adequada (artº. 563º C.Civ.), a diminuição de prestígio e consideração social arguidos.
"Ponto é", por fim, "que, nos termos gerais, os danos possam considerar-se efectivamente causados pela ofensa à reserva sobre a intimidade da vida privada, e não pelo próprio evento relatado" (40).
Tudo, deste modo, leva a concluir haver-se, de facto, arquitectado colmatar, por via de putativo noli me tangere garantido por direito absoluto (de exclusão) e em tal baseada responsabilidade aquiliana, o fracasso de anterior acção de indemnização, fundada em responsabilidade contratual.
Menos bem assim, por quanto ficou exposto.
Não foram, na realidade, violados os preceitos invocados na conclusão 9ª da alegação do recorrente (ou quaisquer outros).

17. Daí, a seguinte decisão:
Nega-se a revista.
Custas pelo recorrente.

Lisboa, 25 de Setembro de 2003
Oliveira Barros
Ferreira de Sousa
Armindo Luís
_____________
(1) Hominum causa omne ius constitutum (Digesto, 1, 5, 2, apud Orlando de Carvalho, "A Teoria Geral da Relação Jurídica. Seu sentido e limites.", RDES, ano XVI (1969), nºs. 1-2, 90 e 101), essa referência à dignitas humana (die Wurde des Menschen), elevada a valor supremo da ordenação constitucional, como salientado no Comentário Conimbricense do Código Penal, I (1999), 726, consagra o axioma antropológico referido por Barbosa de Melo, e, como tal, a directriz personalista a que aludia Orlando de Carvalho (rev. e ano cits, nºs. 3-4, 262 - 6.), com necessária repercussão na esfera civilística, ou seja, com a consequente acentuação da sua raiz antropocêntrica (ibidem). Este último cita igualmente (idem, 263, nota 94 e 264) Enneccerus-Nipperdey, "Lehrbuch des burgerlichen Rechts", I, 75 e 78: "Fundamento de toda a ordem jurídica (...) é a dignidade do homem.". Vale, desta sorte, em último termo, o clássico "Cada homem é a medida de todas as coisas". Como elucida Paulo Mota Pinto, "O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada", BFDUC, vol. LXIX (1993), 479-586, apoio de muito do adiante manifestado em texto, na Alemanha são também invocados para fundar a protecção ou defesa da esfera íntima ou privada (Geheimsbereich, Geheimsphare, Intimsphare ou Privatesphare) os artºs.1º (§1º) e 2º (§1º) da Grundgesetz fur die Bundesrepublik Deutschland, que tutelam a dignidade humana e o desenvolvimento da personalidade (v. esse mesmo estudo, Bol. cit., 509-510 e notas 86 e 87). V., ainda, o relatório do mesmo autor, "A Protecção da Vida Privada e a Constituição", BFDUC, vol. LXXVI (2000), 153-204. Colheu-se, mais, útil esclarecimento no estudo de Rita Amaral Cabral, "O Direito à Intimidade da Vida Privada", integrado nos Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha (1989), 373 ss. Sobre a terminologia plural empregue a este respeito, v. Ricardo Leite Pinto, "Liberdade de Imprensa e Vida Privada", ROA, ano 54 (1994), 66 (3.2.) - 67., onde se acha igualmente desenvolvida informação histórica e de direito comparado e internacional. Também ao por este último proposto e esclarecido se voltará, por várias vezes, adiante. Só com o processo já em tabela se proporcionou a leitura da obra de Claus Wilhelm Canaris, "Direitos Fundamentais e Direito Privado", na tradução de Ingo Wolfgang Sarlet e Paulo Mota Pinto, ed. Almedina, Julho de 2003, onde, nomeadamente (pág. 20), se salienta a actualidade das questões relativas à relação entre a Constituição e o direito privado.
(2) V., a propósito, artº. 16º, nº. 2 CRP, com, no entanto, a prevenção feita por Vital Moreira e Gomes Canotilho, na sua "CRP Anotada", em anotação a esse artigo.
(3) De cujo nº. 2 interessa reter a referência à protecção dos direitos de terceiros.
(4) Como elucida Ricardo Leite Pinto, cit., 96 (3.4.2.2.1.) a qualificação dos direitos previstos no artº. 26º, nº. 1, CRP como direitos pessoais decorre de se encontrarem estritamente ligados à protecção do núcleo essencial da pessoa humana, e, desde logo, da vida. Das conclusões do relatório da 2ª Comissão de Estudos (direito e processo civil) da União Internacional dos Magistrados aprovadas na 40ª reunião anual realizada de 5 a 9/9/93 em S. Paulo, Brasil, publicadas na CJSTJ, II, 3º, 11, retêm-se as seguintes: "1) - Tout système juridique devrait garantir ou reconnaître le droit au respect de la vie privée comme un droit fondamental de l'homme. - (...) - 5) - Aucun des droits fondamentaux n'est absolu. - 6) - Tout système juridique devrait prévoir des moyens de réponse pour l'individu a la vie privée duquel il a été porté atteinte au delà des limites raisonnables. Les juridictions doivent définir les remèdes efficaces, telles les dommages-interêts, les poursuites pénales (...)." (destaques nossos). Por absoluto há-de entender-se, aqui, sem limites. V. também Paulo Mota Pinto, relatório e Bol. cits, 186 ss.
(5) V. anotação de Vital Moreira e Gomes Canotilho a esse artº. 18º, Costa Andrade, RLJ, 130º/377, e Canaris, ob. cit., 115-a)-aa) e 116. Sobre a intimidade ou privacidade enquanto bem jurídico-penal típico, v., reportando-se ao artº. 192º CP 95, Costa Andrade, rev. e ano cits, 380-5.- a), ss. Como refere Rita Amaral Cabral, "CRP Anotada", cit., 377, a protecção constitucional - de que é frequente vã invocação - não organiza uma defesa específica para as relações interindividuais. Como, em todo caso, faz notar Ricardo Leite Pinto, cit., 112, "para se saber se existe (,) ou não (,) restrição de um direito fundamental, (-) e essa é (,) seguramente (,) a primeira tarefa a empreender para dar resposta ao problema, é necessário, antes de mais, delimitar o âmbito do próprio direito": tal sendo, como adiante esclarece (idem, 113), o que no artº. 80º, nº. 2, C.Civ. se fez. Sobre a distinção entre normas restritivas e normas conformadoras, v. Gomes Canotilho, "Direito Constitucional", 6ª ed. (1993), 633-II-1.-634-2.
(6) Oliveira Ascensão, "Direito Civil - Teoria Geral", I (1997), 75 - nº. 43.-I e 84-II. V. também Canaris, ob. cit., 34, 35-bb), 40, 41, 66 (último par.), 74 (último par.), 119-b)-aa), e 138-b), onde conclui que "a função dos direitos constitucionais de imperativo de tutela carece, em princípio, para a sua realização, de transposição pelo direito infra-constitucional", não sendo os diversos regimes específicos, enquanto tais, determinados constitucionalmente, antes ficando, em princípio, aberta ao legislador "uma ampla margem de manobra", id est, "um amplo espaço livre de conformação"; e Castro Mendes, "Teoria Geral do Direito Civil", I (1978), 353 e 354, nºs. 113 e 114.
(7) V., a propósito, 3., (h) e (m), supra, e Leal Henriques e Simas Santos, "O Código Penal de 1982", 2º vol., (1986), 248. A exigência de dolo específico é igualmente mencionada por Maia Gonçalves, "Código Penal Português - Anotado e comentado", 12ª ed. (1998), 596-4., e no Comentário cit., 735 -§24, onde se refere que se trata de um daqueles crimes em que a lesão do bem jurídico só é punida enquanto consequência "de uma direcção de vontade hostil ao bem jurídico" (frisado nosso), sendo, inclusivamente, de afastar a punibilidade de dolo eventual (ibidem, § 25). Relativa à preparação da referida Lei nº. 3/73, permanece interessante a comunicação do Dr. Mário Raposo, "Sobre a Protecção da Intimidade da Vida Privada", ROA, ano 32 (1972), 572 ss. De claro e desenvolvido modo, mesmo se já referido à lei ora vigente (CP 95), v. Costa Andrade, anotação cit., RLJ 131º/15 -7., ss, e Comentário cit., 727- §5º, onde esclarece estar em causa bem jurídico pessoal que assegura ao indivíduo um espaço de isolamento e auto-determinação resguardado contra as intromissões e injunções da sociedade e do Estado. Porque relativamente a tal se insiste, na contra-alegação do SPAC (respectiva pág. 7, a fls. 570 dos autos), em tergiversar, cabe, fazer notar ainda, que, neste contexto, divulgação não significa mais que transmissão (v. RLJ 131º/15, 2ª col.-a)-2.) ou revelação, como diz Paulo Mota Pinto no estudo cit.
(8) Que, como o actual artº. 198º, exigia queixa para abertura do procedimento criminal.
(9) Menos cabida a invocação dos artºs. 178º, 184º e 433º CP 82 em acção destinada a exigir responsabilidade civil, por igual o vem a ser a correspondente consideração, no plano do direito penal, das causas de exclusão da ilicitude que são o exercício de direito (qui iure suo utitur nemini facit iniuriam) e o cumprimento de dever imposto por lei - idem, artºs. 31º e 36º. V., no âmbito do direito civil, Vaz Serra, "Causas Justificativas do Facto Danoso", BMJ 85/87 (23.) ss e 104 (27.) ss. Neste outro domínio um tal discurso teria de (re)fazer-se face ao disposto nos artºs. 335º e 340º C.Civ. Consagrado neste último o princípio volenti non fit iniuria, o primeiro regula a concorrência de interesses - mais ou menos valiosos, mas, antes de mais, supostos dignos, e efectivamente a coberto, de protecção legal: e é tal, precisamente, que, de imediato, se irá, no texto, averiguar se na realidade ocorre na hipótese vertente. Com efeito, só uma vez alcançado, nessa averiguação, resultado positivo terá, então, cabimento considerar que vem, na verdade, sendo pacífica a "suprema dignidade em hierarquia dos direitos que integram a esfera jurídica da pessoa humana" enquanto tal, já referida, v.g., por Penha Gonçalves, "Direitos de Personalidade e sua Tutela", Luanda, 1974, p. 8 - 1.2., isto é, que os direitos de personalidade se encontram hierarquicamente colocados acima dos demais, sobre os quais prevalecem em caso de confronto - v., referindo anteriores, ARP de 8/3/99, CJ, XXIV, 2º, 179, 1ª col., último par., onde, nomeadamente, se cita o Ac. STJ de 24/10/95, BMJ 450/403 (- I e 408). Antes, porém, de atender a eventuais limites extrínsecos impostos ao exercício do direito invocado em caso de colisão com outro(s) direito(s), há, como já notado, que precisar-lhe os contornos ou conteúdo, e, assim os seus limites intrínsecos, delineados no nº. 2 artº. 80º C.Civ., adiante analisado - v., sobre este ponto, Rita Amaral Cabral, cit., 392-5. e nota 2.
(10) Cujo reduto mínimo seria, neste caso, o direito a excluir do conhecimento dos outros factos que, ao serem conhecidos ou revelados, poderiam causar perturbação moral no seu titular - v. Ricardo Leite Pinto, cit., 108 (3.4.2.2.5.). Como elucida Canaris, ob. cit., 59-b)-60, 74, e 118, a Constituição só "proíbe que se desça abaixo de um certo mínimo de protecção".
(11) Referido ao nosso sistema jurídico, v., no texto, 7., supra. Reportando-se ao direito alemão, v., em contrário da eficácia imediata dos direitos fundamentais em relação a terceiros, Canaris, ob. cit,. 53 ss, 132 -3) e 133-a).
(12) Orlando de Carvalho, rev. e ano cits, 264.
(13) E nem por isso esquecida a dimensão jurídico-constitucional da questão sub judicio, uma vez que, "mesmo onde os direitos fundamentais não sejam aplicáveis na sua dimensão jurídico-constitucional, (...) podem ser relevantes para a interpretação do direito privado, e, em especial, para a concretização das suas cláusulas gerais" - Canaris, ob. cit., 75.
(14) Orlando de Carvalho, "Teoria Geral do Direito Civil - Sumários desenvolvidos" (1981) (fascículos), 185, apud Paulo Mota Pinto, estudo e Bol. cits., 490. Como esclarecido por aquele mestre, em "A Teoria Geral da Relação Jurídica. Seu sentido e limites.", RDES, ano XVI (1969), nºs. 1-2, 94, a ideia do direito geral da personalidade foi cunhada e lançada pelo Código Civil Suíço de 1907.
(15) V. Mota Pinto, "Teoria Geral do Direito Civil", 3ª ed., 206 ss (nº. 48.), e Rabindranath Capelo de Sousa, "O Direito de Personalidade" (1995), 139 ss e, sobre o ora em causa, 316 ss. Sobre a noção de direitos da personalidade, v., v.g. , Carvalho Fernandes, "Teoria Geral do Direito Civil", I, 3ª ed., 216, segundo o qual são direitos que constituem atributos da própria pessoa e que têm por objecto bens da sua personalidade física, moral e jurídica. Sua característica a indisponibilidade, todavia consente esse princípio atenuação, desde que observada a limitação imposta no nº. 2 do artº. 81º C.Civ. - idem, 217 e 218-IV-219. Esclarece que se trata de direitos subjectivos, isto é, de poderes jurídicos conferidos a certa pessoa em vista da realização de interesses próprios. Que o direito de personalidade é um direito subjectivo é o que outrossim consta da citação de Otto von Gierke feita por Menezes Cordeiro, "Teoria Geral do Direito Civil", 1º vol., 2ª ed., (1994), 312, e o que afirmava Orlando de Carvalho, "A Teoria Geral da Relação Jurídica. Seu sentido e limites.", RDES, ano XVI (1969), nºs. 1-2, 66, dizendo os direitos da pessoa direitos subjectivos mais fundos, que urge distinguir da generalidade dos direitos subjectivos, que são apenas um modo de realização daqueles primeiros. Referindo que como tal se configuram, v., ainda, Penha Gonçalves, cit., 19. Bem assim são direitos absolutos e de exclusão. Sobre a sua caracterização, v. Penha Gonçalves, cit., 16 a 20. Na desenvolvida definição, cingida aos efeitos civis, de Rabindranath Capelo de Sousa transcrita por Heinrich Ewald Horster, "A Parte Geral do Código Civil Português - Teoria Geral do Direito Civil" (1992), 258, os direitos da personalidade são "direitos subjectivos, privados, absolutos,", isto é, tal como os direitos reais e o direito de autor, com eficácia erga omnes, "gerais, extrapatrimoniais, inatos, perpétuos, intransmisíveis, relativamente indisponíveis, tendo por objecto os bens e as manifestações interiores da pessoa humana, visando tutelar a integridade e o desenvolvimento físico e moral dos indivíduos, e obrigando todos os sujeitos de direito a absterem-se de praticar ou de deixar de praticar actos que ilicitamente ofendam ou ameacem ofender a personalidade alheia, sem o que incorrerão em responsabilidade civil e/ou na sujeição às providências cíveis adequadas a evitar a consumação da ameaça ou a atenuar os efeitos da ofensa cometida" (v. artº. 70º, nº. 2, C.Civ.). Sobre a noção de direitos da personalidade, v., por fim, Paulo Mota Pinto, "Os Direitos da Personalidade no Código Civil de Macau", BFDUC, vol. LXXVI (2000), 205 ss.
(16) V. Vaz Serra, em "Requisitos da Responsabilidade Civil", BMJ 92/82 (12.), ss.
(17) V. respectivamente, artºs. 6º, § 1º e 3º, e 15º do anteprojecto de Manuel de Andrade no BMJ 102/161. Neste ultimo refere-se a vida particular, ora dita privada, e o mais adiante mencionado em texto. Como, de tal discordando, faz notar Penha Gonçalves, cit., 28, este direito, ou melhor, a relação jurídica respectiva é, neste normativo, visto pelo lado passivo.
(18) Ricardo Leite Pinto, cit., 98 (3.4.2.2.2.) a 100.
(19) Lucrecio Rebollo Delgado, "El derecho fundamental a la intimidad" (2000), 94, apud Ac. TC nº. 368/02 - Proc.577/98, de 25/ 9/2002, DR, II Série, nº. 247, de 25/10/2002, p.17 787, 1ª col. Na obra clássica de Adriano de Cupis, "Os Direitos da Personalidade", traduzida pelos Cons. Vera Jardim e Miguel Caeiro (1961), 129 e 144, é definido como "o modo de ser da pessoa que consiste na exclusão do conhecimento, por parte de outras pessoas, de quanto se refere à própria pessoa", compreendendo não apenas "o que deve permanecer completamente inacessível ao conhecimento dos outros, isto é, secreto", mas também o que, "embora acessível ao conhecimento alheio, não deve ser indiscretamente difundido" - ibidem, 146. O denominado direito de resguardo (diritto alla riservatezza) é referido por Orlando Gomes, em "Direitos de Personalidade", rev. Scientia Iuridica, nº. 83, 28 ss, como direito de recato.
(20) Incontestavelmente, afirma Rabindranath Capelo de Sousa, ob. cit., 325, nota 819. Sem dúvida, diz Paulo Mota Pinto, estudo e Bol. cits, 527, como, depois, no relatório e Bol. cits, 167 (já com apoio, nessa altura, no Ac. TC nº. 355/97, DR, I Série-A, de 7/6/97 e Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 37, 7 ss). Como referido na nota 18 do Parecer da PGR nº. 121/80,de 23/7/ 81, no BMJ 309/142, Raymond Lindon, "Les droits de la personnalité", ed. Dalloz, 15-16 (nº. 32.), admite a inclusão da vida profissional nos elementos da vida privada, mas exclui deles a saúde; o que, de facto, deverá suceder em situações em que deva prevalecer a máxima salus publica suprema lex. Como, por sua vez, elucida Rita Amaral Cabral, cit., 398 e 399, a doutrina alemã considera que o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada tutela a denominada vida íntima (der Geheimbereich), que, compreendendo os factos relativos ao estado do sujeito enquanto separado do grupo e a certas relações sociais, abrange os atinentes à saúde, mas não a actividade profissional, a qual, embora tenha relações estreitíssimas com a pessoa, "constitui, simultaneamente, uma das mais importantes manifestações da sua actividade social e cívica" (cita, a este propósito, o sobredito Parecer, Bol. cit., 149). Excluindo também a vida profissional, v. Paulo Mota Pinto, estudo e Bol. cits, 531. Avulta no caso ocorrente a constatação de que se está perante hipótese que se situa, por assim dizer, a cavalo na fronteira de ambas aquelas áreas ou domínios, a saúde e a actividade profissional.
(21) Ac. TC nº. 368/02, DR e loc. cits., 2ª col., referido no Ac. TC nº. 306/03 - Proc.382/03, de 25/6/2003, DR, I Série-A, nº. 164, de 18/7/2003, p. 4.145, 2ª col.-8.-1) e 2). Citando, nesse sentido, o já mencionado Ac. TC nº 355/97, publicado nos "Acórdãos do Tribunal Constitucional", vol. 37, 7 ss, repete-se adiante, no mesmo Ac. TC nº. 368/02, que os dados relativos à saúde constituem necessariamente dados relativos à vida privada; mas considera-se em seguida, repetidamente também, poder, em certos casos e condições, ser tida como admissível intromissão na vida privada tendo em conta a necessidade de harmonização do direito à intimidade com outros direitos ou interesses legítimos constitucionalmente reconhecidos ou protegidos, uma vez respeitado também o princípio da proporcionalidade. Conclui-se, nesse Ac. TC nº. 368/02, que "a inaptidão do trabalhador para o exercício de certa profissão ou género de trabalho por motivos relacionados com a própria saúde física ou psíquica se integra necessariamente nas restrições constitucionalmente admissíveis" (DR, II Série, nº. 247, de 25/10/2002, p. 17.790, 2ª col.-III, 4º par.).
(22) Estes, segundo Larenz (apud Conselheiro Manuel J. Gonçalves Salvador, em "A boa fé nas obrigações", RT 86º/18 -8.), referem-se apenas às exigências mínimas que derivam da condição social do homem.
(23) Cláusula, de óbvio modo, muito mais lata que a prevista no nº. 2 do artº. 178º, e, depois, do artº. 192º CP, que exclui a punibilidade da divulgação de factos relativos à vida privada ou a doença grave de outra pessoa quando praticada como meio adequado para realizar um interesse público legítimo e relevante. Como outrossim esclarece Rita Amaral Cabral, cit., 378, nota 2, o anteprojecto referido inspirou-se no C.Civ. suíço.
(24) Paulo Mota Pinto, estudo e Bol. cits., 524, nota 121. Trata-se, segundo Penha Gonçalves, conferência cit., 28, de critérios "muito gerais e vagos e que por isso mesmo deixam ainda largo campo livre para a discricionaridade jurisprudencial".
(25) V. Rita Amaral Cabral, cit., 401, citando Vieira de Andrade, "Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976" (2ª ed., 2001), (225 - 3.1.)-226. Logo assim na sua (pré-)compreensão constitucional, que, na tese, se bem se entende, de Ricardo Leite Pinto, relatório e rev. cits., 112 e 113, o nº. 2 do artº. 80º C.Civ. mais não faz que explicitar.
(26) V. Parecer e Bol. cits, 142-4.3., final do 2º par., e 154, 3º par. Como observa Paulo Mota Pinto, relatório e Bol. cits., 191 (35.) e 196 (41.), o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada deve ser conciliado com outros direitos fundamentais e interesses legítimos (frisado nosso). Também, pois, em sede de direito civil se conclui que, tal como observado no Comentário cit., 731, §14, em relação ao bem jurídico-penal, "na caracterização da privacidade/intimidade (...) sobrelevam, assim, as notas da relatividade e (da) variabilidade", encontrando-se a sua compreensão e a sua extensão "incindivelmente ligadas à pessoa do portador concreto, à sua conduta e circunstâncias" (idem). Outrossim ocorre tratar-se de bem jurídico marcado pela sua estrutura relacional e pela sua vinculação social (ibidem, 736, § 27). Referindo igualmente o relativismo que, precisamente, caracteriza o conceito de "vida privada" - o mesmo é dizer que a variabilidade do conteúdo da intimidade -, v. Ricardo Leite Pinto, cit., 101-102 e 104, salientando de imediato que - "sem que com isso se viole o princípio da igualdade" - "a esfera de protecção da vida privada não é seguramente igual para todos os cidadãos", nomeadamente sendo o muro da vida privada mais baixo em relação às denominadas figuras públicas. Continua, assim (relatório e Rev. cits., 108 - 3.4.2.2.4. , sob a epígrafe "A relatividade do bem jurídico intimidade da vida privada e familiar"), relevando que "o direito constitucional à intimidade da vida privada e familiar é um direito de definição problemática e de determinação normativa complexa", e que a "determinação do seu Tatbestand" - da respectiva previsão legal - "se prende directamente à natureza dos casos, à condição do seu titular, e a outros factores de ordem cultural, social ou económica". De registar a clareza e exactidão deste asserto, conclui: "Tal relatividade, expressa, por exemplo, nas normas jurídicas que, ao nível do direito civil e penal, tutelam o direito, coloca nas mãos do juiz uma margem de livre avaliação do caso concreto que é significativa". V. também conclusões g) e h) desse relatório - ibidem, 142.
(27) "Instituições de Direito Civil Português", I (1907), 136, apud Orlando de Carvalho, rev. e ano cits, 253.
(28) V. Pires de Lima e Antunes Varela , "C.Civ. Anotado", I, 4ª ed., 110, Rodrigues Bastos, "Notas ao C.Civ.", I, 130, e, citando este último, Parecer e loc. cits.
(29) Como respectivamente pretendia e concedia Orlando de Carvalho, rev. e ano cits, 265.
(30) V. a propósito Paulo Mota Pinto, estudo e Bol. cits., 534 e 535.
(31) V. mesmo estudo e Bol., 565. Contrária consideração do Comentário cit., 729-§ 9 encontra-se expressamente referida à lei penal e à denominada - nuclear e inviolável - esfera da intimidade, contraposta, neste ponto, à esfera da privacidade. É, a nosso ver, nos termos referidos no texto que haverá, aqui e agora, que entender a consideração de De Cupis, ob. cit., 161, de que as informações respeitantes à esfera íntima da vida privada podem ser consideradas lícitas quando sejam justificadas por interesses legítimos de quem as recebe. Trata-se, na verdade, de determinar se o fim que as informações servem tem, ou não, em concreto, maior valor que os interesses da pessoa a que se referem. Revisitado o discurso da sentença apelada resumido em 1., supra, crê-se não poder alcançar-se, de boa fé, e de acordo com o denominado senso comum, outra solução.
(32) Mário de Brito, "C. Civ. Anotado", I, 98. Também Mota Pinto, ob. e ed. cits, 213, (2º par.) refere que o direito à reserva sobre a intimidade pode ser objecto de limitações voluntárias.
(33) Como observa Rita Amaral Cabral, cit., 399, a renúncia a um direito supõe necessariamente que esse direito efectivamente exista. V., de todo o modo, 6., (c) - 2 , supra, de que resulta a exigibilidade de autorização escrita.
(34) Parecer e Bol. cits, 144.
(35) Orlando de Carvalho, "Teoria geral ...", cit., 181, apud Paulo Mota Pinto, estudo cit., 496, nota 48. Como este último igualmente refere, "o problema da privacidade e a sua solução (também através dos direitos de personalidade) são dominados por uma tensão de base entre o social e o individual".
(36) Observa Canaris, ob. cit., 112-c)-aa) (penúltimo par.), que "(...) como costuma ocorrer com as argumentações baseadas num critério de hierarquia - há que distinguir dois passos: a consideração da relação hierárquica abstracta, por um lado, e o peso concreto dos bens e interesses envolvidos, por outro lado" (destaque nosso).
(37) V., sobre este ponto, Alberto dos Reis, "Anotado", V, 305, e Fernando Amâncio Ferreira, "Manual dos Recursos em Processo Civil" (2000), 107.
(38) Sabido que a doutrina da causalidade adequada, consagrada no artº. 563º C.Civ., parte da teoria da condictio sine qua non - v. Pereira Coelho, "Obrigações - Aditamentos à Teoria Geral das Obrigações de Manuel de Andrade", 3ª ed. (1966), 460, vem alegado que isso mesmo "é evidente". "Evidente", porém, é, por definição, o que está à vista e não carece, por isso, de demonstração. Não é esse o caso. A petitio principii do discurso do recorrente é manifesta, uma vez que, sob a capa da evidência, dá por demonstrado o que clara e efectivamente o não está.
(39) A fls. 8 do acórdão sob revista, a fls. 483 dos autos (1º par.), e nesse ponto, pois, sem observância da discriminação - isto é, da indicação em separado - da matéria de facto imposta pelo nº. 2 do artº. 659º, então aplicável ex vi do nº. 2 do artº. 713º, CPC.
(40) Paulo Mota Pinto, estudo e Bol. cits., 580-581 (destaque nosso).