Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1114/11.7TBAMT.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL BANCÁRIA
REVOGAÇÃO DE CHEQUE
PROVA DO DANO E DO NEXO DE CAUSALIDADE
SUFICIÊNCIA DA DEMONSTRAÇÃO DA SÉRIA PROBABILIDADE DE RECEBIMENTO DO VALOR DO CHEQUE
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 04/28/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO BANCÁRIO - ACTOS BANCÁRIOS EM ESPECIAL ( ATOS BANCÁRIOS EM ESPECIAL ) / CHEQUE.
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Doutrina:
- Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 5.ª ed., 631.
- Paulo Mota Pinto, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, vol. I, 640.
- Paulo Olavo Cunha, Cheque e Convenção de Cheque, 626.
- Rui Cardona Ferreira, “A perda de chance revisitada”, na ROA, ano 73.º, tomo IV, 1325.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342.º, N.º1, 346.º, 483.º, N.º1, 562.º, 563.º E 566.º, N.º 2.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 414.º, 662.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 15-3-2005, DE 10-5-2012, DE 21-3-2013, DE 8-5-2013 DE 30-5-2013, DE 26-9-2013, DE 20-11-2014 E DE 15-4-2015 (WWW.DGSI.PT).
-DE 19-4-2008, DE 2-2-2010, DE 8-12-2012, DE 21-3-2013, DE 11-7-2013, DE 14-1-2014 E DE 14-10-2014 (WWW.DGSI.PT).
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AUJ N.º 4/08, EM WWW.STJ.PT .
AUJ N.º 3/16, EM WWW.STJ.PT .
Sumário :
1. O AcUJ nº 4/08 fixou jurisprudencialmente que, para efeitos de responsabilidade civil extracontratual imputada à entidade bancária, constitui facto ilícito a recusa de pagamento de cheque que tenha sido apresentado dentro do prazo legal, com fundamento na revogação injustificada que lhe foi participada pelo respectivo sacador (ilicitude).

2. Por seu lado, o AcUJ nº 3/16 fixou jurisprudência no sentido de que o reconhecimento do direito de indemnização exige a prova de factos reveladores do dano de natureza patrimonial causalmente imputado ao facto ilícito (dano e nexo de causalidade), dano que não corresponde necessariamente ao valor inscrito no cheque.

3. Na acção de responsabilidade civil extracontratual, é susceptível de integrar a matéria de facto provada a possibilidade de verificação de um certo resultado na eventualidade de o agente ter adoptado uma conduta diversa.

4. Numa situação em que a entidade bancária sacada aceitou a revogação injustificada de cheques, basta para a demonstração do dano patrimonial e do nexo de causalidade a possibilidade da sua verificação, designadamente quando esta decorra de um juízo de séria probabilidade sustentado no facto de se verificar alguma circunstância que permitisse obter o pagamento dos cheques.

5. Apesar de não existir provisão suficiente nas datas em que os cheques foram apresentados a pagamento e em que foram devolvidos pelo banco sacado com fundamento na revogação injustificada, devem considerar-se suficientemente preenchidos os pressupostos do dano e do nexo de causalidade se as instâncias concluíram que, não fora a actuação do banco sacado, o tomador dos cheques “podia vir a receber” os montantes neles inscritos.

Decisão Texto Integral:

I – AA - COMÉRCIO de PNEUS, Ldª, intentou acção ordinária contra a Caixa BB, S.A., pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia global de € 89.890,76 e no pagamento de juros à taxa de 5% ano, desde a data do trânsito em julgado da sentença condenatória, nos termos do art. 829º-A, nº 4, do CC.

Alegou que vendeu e prestou diversos bens à empresa CC, Lda, que para seu pagamento preencheu, assinou e lhe entregou 11 cheques sacados sobre uma conta bancária por si titulada na R.

Apresentados a pagamento dentro do prazo legal, os cheques foram devolvidos por alegada falta ou vício de vontade que a R. aceitou sem que se tivesse certificado acerca da veracidade ou justa causa de tal revogação, razão pela qual a A. nunca recebeu as quantias por eles tituladas.

Concluiu que a recusa da R. em pagar aquelas quantias foi ilegítima, sendo certo que, não fora a atitude daquela, a A. receberia as quantias tituladas pelos cheques.

A R. contestou alegando ter aceite o pedido da CC, Lda, no sentido de não pagar os cheques pelo facto de a A. não ter cumprido as obrigações contratuais a que se obrigara e que teriam justificado a sua emissão.

Mais referiu que, nas datas da apresentação dos cheques a pagamento, a conta sacada não dispunha de fundos suficientes para garantir o seu pagamento, pelo que, não fora a aceitação da revogação, sempre seriam devolvidos por falta de provisão.

Para além disso, referiu que 3 desses cheques tinham validade até 31-12-09, tendo sido apresentados a pagamento para além desse prazo, pelo que, ainda que a R. não tivesse aceitado o pedido de revogação, jamais pagaria tais cheques. Ademais, quanto a estes cheques, a data da emissão e a sua apresentação a pagamento é posterior à sentença de declaração de insolvência da sacadora, pelo que também nunca seriam pagos, na medida em que a administração da insolvente suspendeu o pagamento de quaisquer créditos de terceiros.

Deduziu o incidente de intervenção acessória da CC, Lda, e de DD, incidente que acabou por ser admitido, sem que os intervenientes tivessem contestado.

A A. replicou.

Procedeu-se a julgamento e foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, condenando a R. a pagar à A. a indemnização de € 57.520,00 pelos danos patrimoniais por si sofridos respeitante a 8 dos 11 cheques, com juros de mora, à taxa de 4%, desde a citação e até efectivo pagamento.

A R. apelou, mas a Relação confirmou a sentença.

A R. interpôs recurso de revista excepcional sustentado na verificação de uma contradição essencial entre o acórdão da Relação e um acórdão deste Supremo Tribunal, de 21-1-13, relatado pelo ora relator) acerca da necessidade de o tomador do cheque demonstrar a ocorrência do dano patrimonial e do nexo de causalidade entre a recusa de pagamento do cheque e aquele dano.

No recurso de revista foram suscitadas as seguintes questões essenciais:

a) Natureza conclusiva da resposta ao ponto 4º da base instrutória;

b) Falta de preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do dano e do nexo de causalidade, considerando que a R. apenas estaria obrigada a descontar os oito cheques se a conta sacada tivesse provisão, o que não sucedia.

Houve contra-alegações.

Cumpre decidir.


II – Factos provados (cronologicamente enunciados):

1. A A. forneceu à CC, Lda, a pedido desta, acessórios e peças auto e inerentes serviços, tendo recebido como contrapartida os cheques referidos nos pontos 3. e 4. – resposta ao ponto 1º da b.i.;

2. O fornecimento referido no ponto 1. não foi objecto de reclamação pela CC, Lda – resposta ao ponto 2º da b.i.;

3. Foram emitidos à ordem da A. AA, Ldª, os cheques referidos no ponto 4. (fls. 13 a 34), no valor total de € 80.076,13, em que figura como sacada a R. Caixa BB, S. A., e como sacadora CC, Lda – A);

4. Os cheques referidos no ponto 3. foram devolvidos na Compensação com a menção de cheque revogado por “falta/vício de vontade” – B).

Concretizando:

a) O cheque de fls. 13, no valor de € 7.400,00, emitido em 30-7-09, foi apresentado a pagamento em 31-7-09 e foi devolvido pelos serviços de compensação em 31-7-09 com a menção “revogado p/falta/vício da vontade”;

b) O cheque de fls. 15, no valor de € 7.400,00, emitido em 30-8-09, foi apresentado a pagamento em 1-9-09 e foi devolvido pelos serviços de compensação em 2-9-09 com a menção “ch. revogado por falta de vício da vontade” (sic);

c) O cheque de fls. 17, no valor de € 4.000,00, emitido em 16-9-09, foi apresentado a pagamento em 17-9-09 e foi devolvido pelos serviços de compensação em 17-9-09 com a menção “ch. revogado por falta/vício da vontade”;

d) O cheque de fls. 19, no valor de € 9.000,00, emitido em 25-9-09, foi apresentado a pagamento em 28-9-09 e foi devolvido pelos serviços de compensação em 28-9-09 com a menção “falta/vício da vontade”;

e) O cheque de fls. 21, no valor de € 7.400,00, emitido em 30-9-09, foi apresentado a pagamento em 1-10-09 e foi devolvido pelos serviços de compensação em 1-10-09 com a menção “ch. revogado p/falta/vício da vontade”;

f) O cheque de fls. 23, no valor de € 7.400,00, emitido em 30-10-09, foi apresentado a pagamento em 2-11-09 e foi devolvido pelos serviços de compensação em 3-11-09 com a menção “falta ou vício vontade”;

g) O cheque de fls. 25, no valor de € 7.400,00, emitido em 30-11-09, foi apresentado a pagamento em 30-11-09 e foi devolvido pelos serviços de compensação em 2-12-09 com a menção “cheque revogado p/falta/vício da vontade”;

h) O cheque de fls. 27, no valor de € 7.400,00, emitido em 30-12-09, foi apresentado a pagamento em 30-12-09 e foi devolvido pelos serviços de compensação em 31-12-09 com a menção “cheque revogado p/falta/vício da vontade”;

i) O cheque de fls. 29, no valor de € 7.400,00, emitido em 30-1-10, foi apresentado a pagamento em 2-2-10 e foi devolvido pelos serviços de compensação em 2-2-10 com a menção “cheque rev. falta/vício vontade”;

j) O cheque de fls. 31, no valor de € 7.400,00, emitido em 28-2-10, foi apresentado a pagamento em 2-3-10 e foi devolvido pelos serviços de compensação em 2-3-10 com a menção “cheque revogado falta/vício vontade”;

k) O cheque de fls. 33, no valor de € 7.876,13, emitido em 30-4-10, foi apresentado a pagamento em 3-5-10 e foi devolvido pelos serviços de compensação em 4-5-10 com a menção “chq rev. justa causa fv.fv”;

5. A R. aceitou a revogação da ordem de pagamento dos cheques referida no ponto 4. sem indagar se existia fundamento – resposta ao ponto 3º da b.i.;.

6. À data da apresentação a pagamento de cada um dos cheques referidos nas als. b) a k) do ponto 4. (fls. 15 a 34), a conta sacada não dispunha de fundos em numerário suficientes para garantir o pagamento dos montantes titulados em cada um desses cheques – resposta ao art. 9º da contestação;.

7. A A. ficou sem receber a quantia de € 80.076,13 referida no ponto 3. e, não fora a aceitação pela R. daquela revogação, podia vir a receber, pelo menos, os montantes titulados nos cheques cujas cópias estão juntas aos autos a fls. 13 a 28 (als. a) a h) do ponto 4.) (com excepção dos montantes titulados pelos cheques referidos nas als. i), j) e k) do ponto 4, nº …028, de fls. 29 e 30, nº …029, de fls. 31 e 32 e nº …031, de fls. 33 e 34) – 4º.

8. Os cheques referidos nas als. i), j) e k) do ponto 4. (nº …028, de fls. 29 e 30, nº …029, de fls. 31 e 32 dos autos e nº …031, de fls. 33 e 34) tinham validade até 31-12-09 – facto considerado assente;

9. A A. despendeu a quantia global € 172,51 com a devolução dos cheques referidos em 3. e 4., a qual resultou da despesa daquela devolução no montante de € 15,00 por cada um dos cheques – resposta ao ponto 5º da b.i.;.

10. A CC, Lda, foi declarada insolvente em 3-12-09 e com data de 21-12-09, o Administrador da Insolvência enviou à R. uma carta na qual solicitava o cancelamento de todos os cheques emitidos sobre contas da insolvente, carta esta que deu entrada na R. em 4-1-10 – C) e resposta ao art. 8º da contestação.


III – Decidindo:

1. A pretensão indemnizatória deduzida pela A. envolve a apreciação da actuação da R. Caixa BB, SA, na sua qualidade de entidade bancária sacada, a quem é imputada a prática de acto ilícito, mais concretamente a recusa de pagamento de cheques que lhe foram apresentados pela A. e que lhe foram devolvidos com fundamento na revogação injustificada anteriormente operada pelo sacador.

Tal envolve o instituto da responsabilidade civil extracontratual, na ponderação de que entre o tomador dos cheques é terceiro por referência à relação jurídica contratual que unicamente se estabelece entre a entidade bancária e o titular da conta a quês e reportam os cheques emitidos por aquela e por este sacados (contrato de abertura de conta associada ao contrato de provisão e de cheque).

Como se refere no AcUJ nº 3/16:

“Na base da emissão de um cheque – cuja origem está numa relação jurídica anterior (a relação subjacente ou causal) que se pretende regularizar – existem, pois, duas relações jurídicas distintas:

a) A relação de provisão (v.g., depósito, abertura de crédito e descoberto em conta);

b) O contrato ou convenção de cheque, que pode ser meramente tácito, celebrando-se, na prática, mediante a requisição, pelo cliente, de uma ou mais cadernetas de cheques e a entrega destes ao banco.

A provisão – constituída pelos fundos disponíveis junto do banco – constitui um dos elementos intrínsecos do cheque e seu pressuposto lógico: o portador do cheque, uma vez legitimado em tal qualidade, está autorizado a cobrar o valor do cheque e a receber do banco sacado que, por sua vez, irá debitar, subsequentemente ao sacador, o montante dos valores que pagar”.

O tomador, contudo, é alheio a essas convenções, surgindo apenas como terceiro a quem interessa obter do banco o pagamento do cheque. Por isso, a invocação de um prejuízo de ordem patrimonial decorrente da recusa de pagamento de cheque apresentado aos balcões do banco sacado apenas pode ser sustentada na violação, por este, de alguma norma destinada a tutelar interesses alheios (art. 483º, nº 1, do CC).

Foi esta a solução que ficou jurisprudencialmente estabilizada a partir do AcUJ nº 4/08, no qual foi formulada a seguinte súmula uniformizadora:

Uma instituição de crédito sacada que recusa o pagamento de cheque, apresentado dentro do prazo estabelecido no art. 29º da LUCh, com fundamento em ordem de revogação do sacador, comete violação do disposto na 1ª parte do art. 32º do mesmo diploma, respondendo por perdas e danos perante o legítimo portador do cheque, nos termos previstos nos arts. 14º, 2ª parte, do Decreto nº 13.004 e 483º, nº 1, do CC”.

Tal solução foi extraída essencialmente do facto de o art. 14º do Decreto nº 13.004, de 12-1-1927, vedar ao banco sacado a recusa de pagamento de cheque dentro do prazo legal, responsabilizando-o “por perdas e danos”, sem embargo das situações de revogação justificada previstas em tal normativo e também ressalvadas no art. 8º, nº 3, do Dec. Lei nº 454/91, de 28-12, quando haja “sérios indícios” de falsificação, furto, abuso de confiança ou apropriação ilegítima do cheque.

Perante o último aresto uniformizador, ficou seguro que a injustificada aceitação pela entidade bancária da revogação de cheque apresentado a pagamento dentro do prazo legal constitui um facto ilícito que pode despoletar a sua responsabilidade civil extracontratual.

Estando em causa a responsabilidade civil extracontratual integrada por outros pressupostos, o reconhecimento do direito de indemnização ao tomador do cheque não se basta com a ilicitude da actuação do banco sacado, sendo ainda indispensável a determinação e quantificação do dano e a exigência de um nexo de causalidade, elementos cuja integração não deixa de suscitar dificuldades.


2. Nenhuma das questões conexas com estes pressupostos foi solucionada, com efeitos uniformizadores, pelo AcUJ nº 4/08. Sem embargo das considerações que neste foram feitas a respeito de tais elementos, o certo é que não era questionada na acção de que emanou a existência ou a quantificação do dano patrimonial, tendo-se partido pressuposto de que o mesmo correspondia ao valor dos cheques devolvidos.

Centrado apenas na resolução da questão da ilicitude, que foi resolvida, persistiu a controvérsia jurisprudencial quanto a saber se a entidade bancária sacada que recusasse injustificadamente cheque apresentado pelo tomador responderia, em quaisquer circunstâncias, pelo valor inscrito no cheque ou se a afirmação e a amplitude da sua responsabilidade dependeria da verificação de reais condições para o desconto do cheque, caso a revogação não tivesse sido aceite.

Efectivamente, enquanto na doutrina nacional a questão passava algo despercebida, sendo rodeada de afirmações que pontavam simplesmente para as regras gerais da responsabilidade civil extracontratual (cfr. Paulo Olavo Cunha, Cheque e Convenção de Cheque, pág. 626, e Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 5ª ed., pág. 631), a jurisprudência, com destaque para a deste Supremo Tribunal de Justiça, encontrava-se dividido quanto à resposta a dar a tal questão,

De um lado, defendia-se que bastaria ao tomador do cheque demonstrar a revogação injustificada para que a entidade sacada fosse responsabilizada pelo pagamento do respectivo montante, independentemente de existir ou não provisão suficiente ou de subsistir algum acordo entre os signatários da convenção de cheque no sentido de vincular a entidade sacada ao pagamento a descoberto ou enquadrado noutra linha de financiamento.

Para esta corrente era estabelecida, de modo praticamente automático, uma equivalência entre o valor inscrito no cheque e dano patrimonial, sendo este causalmente imputado à aceitação indevida da revogação.

Esta tese encontrou eco nos Acs. do STJ, de 15-3-05, de 10-5-12, de 21-3-13, de 8-5-13 de 30-5-13, de 26-9-13, de 20-11-14 e de 15-4-15 (www.dgsi.pt).

Do outro lado, negando a adopção de um critério diverso do que é exigido nas demais situações enquadradas na responsabilidade civil extracontratual, assumia-se que o dano é o resultado da diferença entre a situação decorrente da prática do acto ilícito e a que existiria se acaso o ilícito não tivesse sido praticado, recaindo sobre o lesado o respectivo ónus da prova.

Nesta perspectiva, a entidade bancária responderia apenas em função das reais condições existentes na data da apresentação do cheque a pagamento. Associando ao critério da reconstituição natural, a teoria da diferença, relevaria para a verificação e quantificação dano o facto de existir ou não provisão suficiente ou de se encontrar vigente algum acordo entre o sacador e o sacado susceptível de sustentar o pagamento de cheques por aquele emitidos. Em correspondência, o banco sacado responderia apenas em função dos prejuízos causalmente imputados àquela actuação ilícita.

Estoutra tese foi assumida nos Acs. do STJ de de 19-4-08 , de 2-2-10, de 8-12-12, de 21-3-13 (este relatado pelo ora relator),  de 11-7-13, de 14-1-14 e de 14-10-14 (www.dgsi.pt).

Foi esta a tese que veio a ser consagrada, com eficácia generalizante, pelo AcUJ nº 3/16, com a seguinte súmula uniformizadora:

A falta de pagamento do cheque, apresentado dentro do prazo previsto no art. 29º da LUC, pelo banco sacado, com fundamento em ordem de revogação do sacador, não constitui, por si só, causa adequada a produzir dano ao portador, equivalente ao montante do título, quando a conta sacada não esteja suficientemente provisionada, competindo ao portador do cheque o ónus da prova de todos os pressupostos do art. 483º do CC, para ter direito de indemnização com aquele fundamento”.

Assim, para que o banco sacado responda civilmente perante o tomador do cheque não basta o pressuposto da ilicitude – aceitação injustificada de revogação do cheque declarada pelo sacador – sendo necessário que, não fora essa actuação ilícita, o cheque apresentado a pagamento dentro do prazo legal seria (ou poderia ser) descontado, revertendo o respectivo quantitativo para o tomador.


3. Porém, as anteriores refregas jurisprudenciais já deixavam adivinhar que as divergências interpretativas não se esgotariam naqueles domínios, antecipando-se a abertura de outras frentes com outros argumentos em redor de outros aspectos relevantes. Nos acórdãos que foram proferidos no intervalo entre os referidos arestos uniformizadores já se identificavam outras linhas de ruptura.

A amplitude quer do direito de acção, quer do direito de defesa abre um largo espaço de manobra para a controvérsia (e por vezes para a imaginação ou criatividade), de modo que, afora os casos susceptíveis de cair na alçada da litigância de má fé, é natural que a discussão tenha prosseguido com a invocação de outros argumentos terçados para sustentar, respectivamente, o reconhecimento da pretensão indemnizatória ou a sua negação.

A principal dessas frentes está focada no modo de determinação e de quantificação do dano ou, com semelhante efeito, no apuramento factual ou normativo do nexo de causalidade – que se pretende adequado - entre a actuação ilícita da entidade sacada e os reflexos de ordem patrimonial na esfera do tomador do cheque.

Referiu-se a este respeito na fundamentação do AcUJ nº 4/08 que:

“O banco sacado comete, assim, um acto ilícito e culposo e será responsável pelos danos que, em relação de causalidade adequada, tal comportamento determine.

A relação de causalidade adequada existe se:

1– O facto foi conditio sine qua non do resultado;

2 – À luz das regras da experiência e a partir das circunstâncias do caso, era provável que de tal facto decorresse tal resultado de harmonia com a evolução normal (e, portanto, previsível) dos acontecimentos;

3 – O efeito tenha resultado pelo processo por que este é abstractamente adequado a produzi-lo”.

Por seu lado, na fundamentação do AcUJ nº 3/16 ficou expresso que:

“… pode não haver provisão stricto sensu, mas ter sido acordado entre o banco e o sacador aquele pagar os cheques por este emitidos, como ocorre nas situações em que, ao abrigo de um contrato de abertura de crédito, o titular da conta bancária beneficia de uma linha de crédito até certo montante, ou em que o banco permite ao titular da conta o direito de sacar a descoberto, isto é, mesmo que o saldo seja negativo para o cliente ou se torne negativo em virtude do saque.


Em síntese: a provisão não tem de ser considerada em sentido puramente literal de entrega de dinheiro ao banco – há provisão se o cliente dispõe de dinheiro depositado em conta corrente, se existe abertura de crédito em conta corrente, se há acordo para concessão de crédito com autorização de movimentação de cheques, etc. Se faltar a provisão, no sentido lato antes firmado, então o banco sacado não deverá proceder ao pagamento do cheque.


A obrigação de pagamento do cheque ao seu portador legítimo, pelo banco sacado, existirá, assim, sempre que o respectivo sacador disponha de fundos numa conta bancária, haja contrato de cheque, não exista oposição ao pagamento por alguma causa legalmente permissiva e concorram os demais requisitos de validade do cheque”.

Como refere Paulo Mota Pinto, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, vol. I, pág. 640, “a própria determinação da extensão do dano a indemnizar é ainda um resultado da causalidade, tendo que se aplicar o critério da causalidade (ou imputação) adequado para determinar a extensão”.

Recaindo sobre o lesado e tomador do cheque o ónus da prova dos factos demonstrativos de que a conduta do sacado foi causa adequada de um reflexo negativo de ordem patrimonial na sua esfera jurídica, o facto de o mesmo assumir a posição de terceiro perante a relação contratual estabelecida unicamente entre o sacador do cheque e o banco sacado e a circunstância de os actos relevantes ocorrerem no âmbito da convenção de cheque ou decorrerem do restante relacionamento estabelecido exclusivamente entre esse sujeitos levam a que fiquem inacessíveis ao tomador, enquanto terceiro, reflectindo uma clara assimetria informativa prejudicial a este último.

Afinal, em situações como a que os autos revelam – e que correspondem ao paradigma que é detectável noutros arestos - apenas aqueles têm acesso livre, directo e ilimitado à conta bancária, às operações que na mesma estão envolvidas e registadas e aos eventuais acordos que, de forma expressa ou tácita, sustentam cada uma das operações a débito ou a crédito, detendo em exclusividade a informação que pode ser relevante para a tutela de interesses de terceiro.

Mais concretamente, é na esfera de relacionamento desses sujeitos que se opera a apresentação da declaração de revogação do cheque e o correspectivo recebimento e aceitação, com ou sem indicação dos respectivos motivos por parte do sacador e acompanhada ou não da indagação séria por parte da entidade sacada da veracidade ou da razoabilidade dos motivos invocados. São esses sujeitos que estão a par dos reais motivos que levaram a entidade bancária (à qual, independentemente da vinculação ao cliente, também compete assegurar a tutela dos interesses do portador de cheques e a confiança que deve ser atribuída a este meio de pagamento) a optar pela manutenção de uma relação privilegiada com o sacador-cliente que (porventura, não quer perder), em detrimento dos interesse de um terceiro posicionado apenas como portador de um cheque. Enfim, é deles o monopólio informativo quanto à verificação das reais condições que existiam na ocasião em que o cheque é devolvido e quanto ao que porventura sucederia se acaso não tivesse sido declarada e aceite a revogação do cheque, ou seja, se a entidade sacada estaria ou não em condições de proceder ao pagamento do cheque, atenta a existência de saldo suficiente ou de outra razão que autorizasse ou obrigasse a entidade bancária a proceder ao adiantamento do valor inscrito no cheque (v.g. tendo em conta a contratualização do descoberto em conta ou de qualquer outra das múltiplas formas e fórmulas que pode assumir o financiamento bancário).

Estas são algumas das reais dificuldades com que se depara o tomador do cheque quando, depois de ser confrontado com a sua devolução, acompanhada de uma justificação formal de “falta/vício da vontade” ou outra equivalente, tem de alegar os factos constitutivos da sua pretensão (art. 342º, nº 1, do CC). Dificuldades que, com mais acuidade, se revelam ainda quando os factos controvertidos são submetidos a julgamento, sujeitos quer aos meios de prova apresentados ou requeridos pelo tomador, quer aos de contraprova apresentados pela entidade sacada, com o desenlace, para situações duvidosas, que decorre dos arts. 346º do CC e 414º do CPC.

Em suma, são estas algumas das “pedras que podem surgir no meio do caminho” entre a prática dos factos e a ocasião em que as instâncias enunciam os factos provados e não provados, necessariamente ponderando as dificuldades de prova que o tomador do cheque enfrentou, em comparação com as maiores facilidades da entidade bancária para explicar os motivos que determinaram a recusa da devolução com base na insuficiência ou falta de provisão, ou que impediriam o pagamento dos cheques por outro motivo não directamente associado ao provisionamento formal da conta sacada.

Sem abrir mão das regras de distribuição do ónus da prova que continua a incidir sobre o tomador do cheque - cujo preenchimento, contudo, deve ser casuisticamente ajustado às circunstâncias - era função das instâncias tomar posição sobre a matéria de facto controvertida, reflectindo através da enunciação dos factos provados e não provados a convicção livremente formada sobre os diversos meios de prova.

No caso concreto, essas dificuldades foram reais, tendo sido enfrentadas tanto pela 1ª instância, como pela Relação, como o revelam quer os segmentos decisórios em que se enunciam os factos provados e não provados, quer os motivos determinantes de um tal resultado.

Cumprida essa função pelas instâncias, o objecto essencial do presente recurso de revista é integrado pela apreciação da suficiência ou não dos factos apurados para o reconhecimento à A. do direito de indemnização por danos decorrentes da actuação ilícita da R.


4. Desta discussão ficam desde já excluídos os 3 cheques assinalados nas als. i), j) e k) do ponto 4. (fls. 29 a 34).

Ainda que o pagamento de tais cheques também tenha sido recusado por “falta ou vício de vontade”, já haviam excedido o prazo de validade, sendo por isso legítima a recusa de pagamento pela entidade sacada. Ou seja, ainda que, porventura, a R. não tivesse dado seguimento à revogação declarada pela sacadora, a recusa de pagamento sempre seria legitimada pela caducidade dos cheques.

Aliás, a pretensão indemnizatória correspondente aos referidos três cheques foi julgada improcedente logo na 1ª instância e tal decisão não foi impugnada pela A., tendo-se formado caso julgado que é impeditivo da sua reapreciação no âmbito do presente recurso de revista.


5. Por motivo inverso, também se encontra excluída da discussão a pretensão indemnizatória emergente do cheque identificado na al. a) do ponto 4. (fls. 13), no valor de € 7.400,00, relativamente ao qual a afirmação do dano e do nexo de causalidade é directa e inequívoca.

Na verdade, como o revela a matéria de facto provada e não provada, a falta de fundos suficientes na conta sacada foi circunscrita às datas em que foram devolvidos os demais cheques (resposta ao art. 9º da contestação, fls. 764), e, por outro lado, foi considerado “não provado” que, relativamente àquele cheque, a conta não dispusesse de fundos suficientes que permitissem à R. proceder ao seu pagamento (fls. 765).

Relativamente a tal cheque, na data em que o mesmo foi apresentado a pagamento, não subsistia qualquer obstáculo decorrente da ausência de provisão, sendo evidente que a R. deve ser responsabilizada pelo pagamento do valor nele inscrito, pelo facto de ter acolhido injustificadamente a revogação que lhe foi declarada pela sacadora (ilicitude), o que motivou (causalidade adequada) a falta de recebimento do montante titulado pelo cheque (dano).


6. Quanto aos restantes 7 cheques identificados nas als. b) a h)  do ponto 4.:

6.1. Provou-se, por um lado, que:

- “A conta sacada não dispunha de fundos em numerário suficiente para garantir o pagamento dos montantes titulados em cada um” (resposta ao art. 9º da contestação).

Mas, por outro lado, também se provou que:

- “Não fora a aceitação pela R. daquela revogação, podia vir a receber, pelo menos, os montantes titulados” nesses cheques (resposta ao ponto 4º da base instrutória, com sublinhado nosso).

E complementarmente não se provou o que fora alegado pela R., mais concretamente que:

- “Mesmo que não tivesse aceitado o pedido de revogação dos cheques … não os pagaria … limitando-se a recusar o seu pagamento, devolvendo-os à A.” (ponto 4º dos factos não provados);

- Que “a R. não tivesse concedido crédito à sacadora e autorizado esta, pelo menos tacitamente, a sacar a descoberto o valor de qualquer desses cheques ou outra importância ainda que inferior” (ponto 6º dos factos não provados);

- E que “não fora a aceitação da revogação e todos os cheques teriam sido devolvidos por falta de provisão” (ponto 7º dos factos não provados).


6.2. Como já se referiu, não há quaisquer dúvidas quanto à ilicitude da R. no que toca à devolução destes cheques, na medida em que a mesma, sem motivo justificado, acolheu a revogação que foi declarada pela sacadora dentro do prazo legal de apresentação a pagamento, período em que esta estava obrigada a ter a conta provisionada ou em condições de permitir o desconto dos cheques.

Tal não basta, porém, para condenar a R., na medida em que o pagamento dos valores inscritos nos cheques apenas lhe seria exigível se, não fora a referida revogação, estivesse vinculada a proceder ao seu pagamento pelo facto de a conta se encontrar provisionada ou em consequência de qualquer outro acordo com a sacadora no sentido de ser permitido o saque de cheques a descoberto ou ao abrigo de outra linha de financiamento bancário.

Como já se referiu anteriormente, a par da ilicitude, é necessária a prova da existência do dano de natureza patrimonial correspondente à diferença entre a situação actual e aquela que existiria se acaso a R. não tivesse dado seguimento à declaração de revogação dos cheques.


6.3. Quanto ao dano e quanto ao nexo de causalidade:

6.3.1. Da análise da matéria de facto provada (aquela que verdadeiramente importa para a integração da pretensão da A.) e do cruzamento com a matéria de facto não provada decorre que, relativamente aos cheques em análise, a possibilidade de pagamento dos respectivos valores que foi assumida pelas instâncias (“a A. podia vir a receber”) não foi extraída da verificação de um efectivo aprovisionamento da conta, sendo sustentada noutros motivos que foram devidamente expostos.

Refere-se na motivação da sentença da 1ª instância que a prova da “possibilidade” de serem pagos os aludidos cheques “resultou da análise das movimentações existentes na conta” e de outros documentos, “tudo conjugado com a experiência comum e critérios de normalidade”. Explicita-se também que “daquele extracto bancário resulta que, entre Maio de 2009 e Dezembro de 2009, existem operações a descoberto em conta, independentemente de se tratar de descoberto autorizado ou não autorizado (sendo certo que o valor das comissões cobradas até apontam para a primeira hipótese) ou seja, a R. aceitou pagar diversos cheques sem que a conta estivesse aprovisionada em numerário, ao invés de os devolver, ao que acresce que, logo a seguir, existem valores em numerário lançados a crédito suficientes para pagar o respectivo descoberto)”. Concluiu-se depois que “durante este período existiu financiamento por parte da R. à CC”, ainda que também se afirme que “outros cheques existem que, apresentados a pagamento, foram devolvidos por falta de provisão, não permitindo o quadro probatório exposto extrair uma ilação segura sobre o critério utilizado pela R. para justificar esta situação (fls. 769).

O Tribunal assumiu que “não pode retirar uma ilação segura sobre se a A. receberia os montantes dos cheques em causa ou não … ficando sempre a dúvida (por existem situações das duas naturezas – cheques apresentados a pagamento pela existência de provisão ou a descoberto regularizado e cheques devolvidos por falta de provisão”. Ainda assim, referiu que “pode retirar uma ilação segura sobre a existência de uma possibilidade séria de isso acontecer (recebimento dos valores inscritos nos cheques de fls. 13 a 28) … num dos primeiros casos porque a conta tinha provisão (cheque da al. a) do ponto 4.) e nos outros por terem existido vários cheques pagos a descoberto que logo a seguir foi regularizado”. “Com efeito”, asseverou, “trata-se de uma ilação lógica, tendo presente um prognóstico objectivo que é plausível fazer-se perante as circunstâncias conhecidas supra expostas (presunção judicial)” (fls. 770, com sublinhado nosso).

Ou seja, a 1ª instância, procedendo à livre apreciação dos meios de prova que foram apresentados, conexionados com as regras da experiência, malgrado as dificuldades enfrentadas, considerou provado que “não fora a aceitação pela R. daquela revogação, podia vir a receber, pelo menos, os montantes titulados nos cheques cujas cópias estão juntas aos autos a fls. 13 a 28” (sublinhado nosso).

Foi essencialmente nesse facto que na mesma peça processual foi sustentada a existência de um dano na esfera patrimonial da A. e de um nexo de causalidade entre a actuação da R. e esse dano revelado pelo não recebimento efectivo dos valores inscritos nos cheques de fls. 13 a 28.


6.3.2. Tal decisão foi impugnada pela R., mas a impugnação foi julgada improcedente pela Relação, referindo-se no acórdão recorrido, além do mais, que:

 “… bem andou o Tribunal a quo quando entendeu que dos elementos ao seu dispor nos autos, era possível retirar uma ilação segura sobre a existência de uma probabilidade séria da autora/apelada vir a receber os montantes de fls. 13 a 28, no valor global de € 57.400,00” (fls. 875, vº, com sublinhado nosso). Acrescentou ainda que “da análise mais cuidada de tais elementos (extractos da conta, comprovativos das operações a descoberto, contratos de financiamento e contrato de abertura de crédito) o que se pode retirar é que nem no momento da revogação dos cheques em apreço nem posteriormente, a conta sacada sofria de falta de provisão (sublinhado nosso). E mesmo que ainda tal sucedesse, valia o descoberto para pagamento de valores e ainda os depósitos entretanto efectuados pela titular da conta e que permitiriam cobrir os valores correspondentes aos cheques que entrassem em débito” (fls. 876).

Ou seja, a Relação, agindo como Tribunal de instância e dentro das atribuições respeitantes à reapreciação de elementos probatórios não sujeitos a prova plena (art. 662º do CPC), acabou por confirmar o que a 1ª instância decidira, com uma fundamentação reforçada decorrente de uma mais atenta análise dos documentos apresentados. Mantendo a afirmação da “probabilidade séria de os referidos cheques poderem ser pagos” (fls. 878, vº), culminou com a confirmação da existência de um dano ressarcível correspondente ao valor dos cheques referidos.


6.3.3. Obtempera a R., num primeiro passo argumentativo, que o segmento “não fora a aceitação pela R. daquela revogação, podia vir a receber, pelo menos, os montantes titulados” constitui matéria conclusiva, devendo ser excluído dos factos que as instâncias consideraram provados.

Tal pretensão não procede.

A delimitação da matéria de facto provada não se reconduz a uma única situação paradigmática. A realidade - e mais ainda a realidade que subjaz a processos litigiosos, associados a institutos jurídicos complexos - exige, por vezes, que se assuma a prova de factos do foro interno que nem sequer são susceptíveis de apreensão pelos sentidos (v.g. intenções, objectivos, etc.), que se afirmem certos factos desconhecidos em função da sua maior ou menor previsibilidade ou probabilidade, que se assumam determinados factos de ocorrência meramente eventual ou que se considerem factos meramente hipotéticos, mas que, apesar dessas características, são necessários para integrar determinados segmentos normativos aplicáveis ao caso.

No caso concreto, se acaso a R. tivesse recusado os aludidos cheques com fundamento na falta de provisão, a realidade correspondente aos reais motivos da devolução ficaria claramente exposta, o que facultaria à tomadora um conjunto de acções que tanto poderiam passar pela impugnação e recusa dos motivos da devolução (se, contra o declarado, a conta estivesse provisionada ou houvesse algum acordo paralelo que a obrigasse ao desconto dos cheques), como por outras acções dirigidas contra a sacadora, na frente administrativa e regulatória (Banco de Portugal), cível (título executivo) ou mesmo criminal (crime de emissão de cheque sem provisão).

Não foi isto que a R. fez. Sem que alguma vez tivesse invocado perante a A. a falta de provisão ou a provisão insuficiente como motivo da devolução dos cheques, aceitou a sua revogação com um motivo formal sustentado numa fórmula tabelar e genérica de “falta/vício da vontade” cujo fundamento real ou circunstancialismo a R., contudo, não indagou e do qual se desligou por completo, como se os deveres que decorrem da actividade financeira desenvolvida estivessem circunscritos à sua relação com a sacadora – sua cliente – e não devessem também ser assegurados perante outros sujeitos ou em função de assegurar o reforço do cheque como meio de pagamento.

Contra o afirmado pela R., o referido segmento não deve ser erradicado, constituindo, ao invés, matéria de facto cuja relevância é bem patente no contexto da presente acção e cuja motivação se encontra bem explicitada no acórdão recorrido.

As dificuldades que rodeavam tal segmento foram ou deveriam ter sido enfrentadas em sede de audiência de julgamento ou no recurso da decisão da matéria de facto, não fazendo sentido deslocar para o presente recurso de revista, centrado na matéria de direito, a mesma discussão em torno de uma realidade em que a R. foi a principal interveniente.

As instâncias e em especial a Relação consideraram que a A. “podia vir a receber” os montantes dos cheques de fls. 13 a 28, conclusão que foi extraída não apenas da análise da prova documental, como ainda da prova testemunhal e das regras da experiência, tendo em conta o relacionamento que existia entre a R. e a sacadora dos cheques reflectido, além do mais, pelos extractos da conta bancária e por outros documentos demonstrativos de outros acordos que existiram e que permitiram à sacadora sacar cheques a descoberto.

Nesse contexto, a afirmação daquela “possibilidade” não corresponde a uma mera hipótese abstracta, tendo sido sustentada num critério de “probabilidade séria” que as instâncias justificaram com argumentos cuja lógica é irrebatível e cuja amplitude é corolário da natural inviabilidade de formulação de um juízo de certeza absoluto – que, aliás, em direito e na generalidade das ciências humanas não existe – quanto ao efectivo rebate dos cheques na eventualidade de a R. não ter praticado, como praticou, o facto ilícito.

Ora, no contexto da presente acção ou de outras rodeadas de semelhante circunstancialismo, a conclusão expressa pela 1ª instância e confirmada pela Relação é e sempre será matéria de facto, cujo relevo, aliás, encontra eco na formulação do critério legal que o legislador adoptou para demonstração ou quantificação dos danos emergentes e dos lucros cessantes, nos termos dos arts. 562º, 563º e 566º, nº 2, do CC.

Discorda-se do argumento arrolado pela R. de que os factos hipotéticos não podem integrar a matéria de facto, tese que, sendo validada, esvaziaria de conteúdo, por exemplo, figuras como a do erro negocial que precisamente tem como pressuposto a detecção da declaração que seria emitida se acaso a declaração real não tivesse sido influenciada pela errada convicção acerca do seu conteúdo ou do seu objecto. É ainda com base em factos hipotéticos que, no âmbito da responsabilidade civil em geral, se pondera e quantifica o ressarcimento de danos futuros cuja existência e amplitude, como é óbvio, jamais se podem afirmar com absoluta certeza.

A actuação da própria R., ao privilegiar declaração unilateral apresentada pela sacadora do (quiçá por ser sua cliente e pretender preservar a relação comercial, em detrimento da A. que se apresentava como tomadora dos cheques) esteve na raiz da necessidade de se identificar a reacção alternativa que provavelmente teria adoptado se acaso tivesse agido de forma diversa, assumindo a posição que decorria das relações estabelecidas com a sacadora: devolvendo o cheque com fundamento em falta de provisão ou adiantando à tomadora a totalidade ou parte dos respectivos valores em função dos saldos bancários ou de qualquer outro acordo específico que vigorasse entre si e a sacadora.

Para além daquela expressão ser, no contexto da presente acção, matéria de facto com inegável relevo para a resolução do caso, as circunstâncias que rodearam a actuação da R. e as dificuldades que foram expostas pelas instâncias quanto ao apuramento dos factos constitutivos do direito reclamado pela A. justificam, sem qualquer espécie de dúvida, a sua manutenção dentro do leque de factos provados.

Acresce que como se refere na fundamentação do AcUJ nº 3/16, a respeito da problemática anunciada do dano e do nexo de causalidade:

“É aqui – ao nível da análise dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual – que, no vertente caso, se centram, de modo claro e ostensivo, as divergências da jurisprudência sinalizadas, ao debruçar-se sobre a temática da responsabilidade bancária derivada da aceitação (ilícita) da revogação do cheque, porquanto uma das correntes sustenta que o banco sacado será sempre responsável pelo pagamento ao tomador de uma indemnização correspondente, em princípio, ao valor dos cheques, quando tenha ilicitamente aceite a revogação desses títulos comunicada pelo sacador – durante o prazo legal de apresentação a pagamento –, existindo dano para o portador, mesmo que a conta sacada não tenha provisão, ao passo que a outra corrente ampara que o tomador dos cheques terá sempre de provar quer o dano resultante da aceitação da revogação, quer o nexo de causalidade entre a revogação ilegítima e aquele dano, o que implica que seja efectuada a alegação e prova de que não fora a revogação e a devolução do cheque apresentado a pagamento no prazo legal, o cheque seria ou poderia vir a ser descontado pelo banco sacado, uma vez que o dano não se presume” (sublinhado nosso).

E mais adiante que:

“Está consensualizado que, ali, naquele dispositivo (art. 563º do CC), se adoptou a teoria da causalidade adequada, segundo a qual, não é suficiente que o facto do agente tenha sido, em determinado caso concreto, condição sine qua non do dano. É ainda necessário que, em abstracto ou em geral, isto é, segundo o curso natural das coisas, o facto seja causa adequada desse mesmo dano. O que quer dizer que é necessário que o dano seja uma consequência normal ou típica do facto, isto é, sempre que verificado este, se possa prever o dano como consequência natural ou como efeito provável dessa verificação” (sublinhado nosso).

A probabilidade de ocorrência do dano, mais concretamente, a possibilidade (séria) de o cheque ser descontado, malgrado a falta de provisão em sentido formal, foi, aliás, reconhecida na fundamentação do AcUJ nº 4/08, como critério suficiente para a afirmação do dano causalmente imputado à actuação ilícita em situações como a dos autos:

Nele se disse que:

A relação de causalidade adequada existe se:

1– O facto foi conditio sine qua non do resultado;

2 – À luz das regras da experiência e a partir das circunstâncias do caso, era provável que de tal facto decorresse tal resultado de harmonia com a evolução normal (e, portanto, previsível) dos acontecimentos;

3 – O efeito tenha resultado pelo processo por que este é abstractamente adequado a produzi-lo”.

Aliás, não faz sentido terçar armas nesta sede em torno dos factos que foram ou deveriam ter sido julgados provados. Por um lado, o critério que decorre dos arts. 346º do CC e o 414º do CPC apenas funciona ao nível da decisão da matéria de facto, levando a uma resposta negativa quando o Tribunal se defrontar com uma situação duvidosa. Por outro lado, no presente recurso de revista este Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece, em regra, matéria de direito, não podendo interferir na decisão de facto.


6.3.4. No acórdão recorrido assumiu-se como válida a tese de que bastaria a aceitação injustificada da revogação dos cheques para fazer incorrer a R. na responsabilidade civil pela reparação dos danos que corresponderiam ao valor dos cheques.

Como já se referiu, tal tese foi recentemente infirmada pelo AcUJ nº 3/16, tal como já fora negada, entre outros, pelo Ac. do STJ, de 21-3-13 (www.dgsi.pt), relatado pelo ora relator, que serviu de fundamento à presente revista excepcional com o seguinte sumário:

 “1. Na acção de responsabilidade civil extracontratual do banco sacado decorrente da devolução de cheque apresentado a pagamento com fundamento em revogação ilegítima recai sobre o tomador do cheque o ónus da prova da existência quer do dano, quer do nexo de causalidade entre a revogação ilegítima e o dano.

2. A devolução do cheque com alegada “falta ou vício de vontade” apenas é susceptível de integrar os pressupostos da ilicitude e da culpa, sendo insuficiente para demonstrar o dano.

3. A verificação do dano ressarcível depende da alegação e prova de que, não fora a revogação e a devolução ilegítima do cheque apresentado a pagamento, o mesmo seria ou poderia vir a ser descontado pelo banco sacado”.

Consta da respectiva fundamentação o seguinte:

“Em sede do instituto genérico da responsabilidade civil extracontratual que essencialmente se encontra concentrado nos arts. 483º e segs. do CC, não existe norma alguma que permita presumir a existência de danos a partir da mera invocação da prática de um facto ilícito, recaindo sempre sobre o lesado o ónus da prova respectivo, a par do ónus da prova da verificação de um nexo de causalidade adequado estabelecido entre o dano e o facto ilícito

..

Sem embargo de se reconhecerem as dificuldades que recaem sobre o tomador do cheque quando seja confrontado com uma situação como a dos autos, não vemos como possam ultrapassar-se de outro modo as exigências colocadas pela consagração legal de um regime de responsabilidade civil extracontratual em que não é atribuído relevo a danos abstractos e em que é sempre exigido o apuramento de danos concretos, cuja quantificação deve ser feita em função de um critério assente na teoria da diferença bem espelhado nos arts. 562º, 563º e 566º, nº 2, do CC”.

 

Apesar de se discordar da tese assumida no acórdão recorrido, os factos apurados acabam por sustentar a confirmação do resultado nele declarado.


6.3.5. A demonstração dos factos constitutivos do direito de indemnização impende sobre a A., sendo constitutivos desse direito não apenas a ilicitude (revogação injustificada) como a causalidade adequada entre essa actuação e o não pagamento ao tomador dos valores inscritos nos cheques (dano).

Refere-se no AcUJ nº 3/16 que:

“O provisionamento da conta sacada com fundos bastantes não poderá deixar de funcionar como circunstância positiva em que a recusa de pagamento de um cheque determinará, de acordo com as regras da experiência, que o tomador se veja privado do montante titulado pelo cheque que apresenta a pagamento.

Pelo contrário, a aceitação por parte do banco sacado da revogação ilegítima de um cheque que tenha sido declarada pelo respectivo sacador, por si só, é insusceptível de conferir ao respectivo tomador um direito que em caso algum seria satisfeito se acaso a devolução se fundasse na efectiva falta de fundos bastantes para se efectivar o desconto: o dano não se presume e deve ser provado pelo lesado, em consonância com o que exposto anteriormente de modo detalhado”.

Para a condenação da entidade bancária necessário se torna a prova da existência de um dano real, necessariamente dependente do aprovisionamento da conta ou de outro circunstancialismo susceptível de sustentar o desconto dos cheques.

Para o efeito, não se mostra necessária a demonstração da certeza absoluta - como se esta fosse um objectivo atingível em situações como estas – que os cheques seriam descontados se acaso a R. não tivesse optado pela aceitação da sua injustificada revogação.

Os danos relevantes para efeitos de indemnização, quando se reportem a situações que impliquem uma projecção no futuro dos efeitos de determinado comportamento do agente, são determinados em função de um critério de probabilidade, não exigindo a lei a certeza quanto à sua ocorrência.

Tal decorre quer do art. 562º e 666º, nº 2, do CC, quer fundamentalmente do art. 563º do CC, sendo de apoiar a argumentação tecida na sentença de 1ª instância de que a prova de que a A. “podia vir a receber os montantes titulados” pelos cheques é bastante para sustentar a sua pretensão. “Esta possibilidade é suficiente para afirmar a existência de um dano real, e bem assim aquele nexo de causalidade. Exigir a prova de que a A. receberia em absoluto tais montantes num caso com as características dos autos, seria exigir uma prova impossível, pois que a mesma pressupunha que o banco não tivesse aceitado a revogação, pois só neste caso se poderia saber se iria ou não existir um descoberto autorizado ou não” (fls. 774).

Vai neste sentido também Júlio Gomes, “Sobre o dano de perda de chance”, em Direito e Justiça, vol. XIX, tomo II, pág. 11, quando refere explicitamente que “importa, no entanto, não confundir a certeza do dano, isto é, o ter-se verificado ou a existência de circunstâncias que o tornam inevitável ou simplesmente provável, com o seu carácter imediato”, mencionando François Chabas que afirma que “é preciso que os juízes tenham a certeza de que se o facto incriminado não tivesse ocorrido, o acontecimento teria podido realizar-se” e, por outro lado, Jacques Flour/Jean-Luc Albert para quem a “exigência de certeza suscita sérias dificuldades, porque a vida social não é feita de certezas matemáticas. A certeza a que aqui se faz referência é apenas uma probabilidade suficiente”.

Para o efeito nem sequer importa recorrer a outros argumentos debatidos na problemática da perda de chance cuja invocação vem ocorrendo, nem sempre a propósito, em múltiplas acções de responsabilidade civil. Tal apenas relevaria se, porventura, as instâncias não tivessem assumido, como assumiram, ainda que com base num critério de probabilidade, o efeito alternativo que resultaria de uma actuação diversa da R. ou se acaso a acção se fundasse explicitamente na perda de alguma oportunidade.

No caso, a matéria de facto explicitamente apurada tem uma interferência directa no resultado, sem a necessidade de intermediação daquela figura de criação doutrinária, atalhando e facilitando o caminho que nos conduz à confirmação da pretensão indemnizatória que foi reconhecida pelas instâncias, atenta a demonstração de um dano especificamente imputado à aceitação ilícita da revogação declarada pela sacadora dos cheques.

As instâncias concluíram que a A. “podia ter obtido” o pagamento do cheque, facto que, no contexto da presente acção e tendo em conta a ilicitude da conduta da R., as circunstâncias que o rodearam e os motivos que levaram as instâncias a assumir aquele facto objectivo, se mostra suficiente para sustentar um juízo afirmativo quanto à verificação desses pressupostos da responsabilidade extracontratual.

O trabalho que tem sido desenvolvido em torno da perda de chance tem, para o caso, apenas a virtualidade de justificar que também para a determinação do nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano, em situações como a que está sob apreciação, o juízo decisório seja formulado a partir de um critério de probabilidade, ponderando a gravidade da actuação da R. que, contra o que alegou na contestação - art. 5º - sem se informar minimamente, deu seguimento a uma declaração de revogação ilegítima, elevando o risco de materialização do dano final (Rui Cardona Ferreira, “A perda de chance revisitada”, na ROA, ano 73º, tomo IV, pág. 1325).

Pelo exposto, ainda que seguindo um caminho não totalmente coincidente com o trilhado pela Relação, confirma-se o resultado declarado.


IV – Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente a revista, confirmando, ainda que por uma via não inteiramente coincidente, o acórdão recorrido.

Custas da revista a cargo da R.

Notifique.

Lisboa, 28-4-16


Abrantes Geraldes (Relator)

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo