Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06P771
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SANTOS CARVALHO
Descritores: QUESTÃO NOVA
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
Nº do Documento: SJ20060330007715
Data do Acordão: 03/30/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: INCIDENTE
Decisão: DADO PROVIMENTO AO RECURSO
Sumário : I - Os recursos são remédios jurídicos destinados a colmatar os erros in judicando ou in procedendo cometidos nas decisões recorridas e não a obter ex novo decisões sobre questões não submetidas aos tribunais recorridos.
II - O tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25.º do DL 15/93, de 22-01, funda-se na diminuição considerável da ilicitude do facto revelada pela valoração em conjunto dos diversos factores, alguns deles enumerados na norma, a título exemplificativo (meios utilizados, modalidade e circunstâncias da acção, qualidade e quantidade das plantas, substâncias ou preparados).
III - Tal como não basta para se configurar este tipo privilegiado de crime a constatação de que a detenção era de uma dose diminuta, será suficiente para que não exista, que tenha ocorrido uma única circunstância especialmente censurável.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1. AA e BB foram julgados na 4ª Vara Criminal da Comarca de Lisboa e condenados pela co-autoria material de um crime de tráfico de estupefacientes, p.p. no art.º 21.º, n.º 1, do DL nº 15/93, de 22/01, com referência às Tabelas I-B, I-C e II-A anexas ao mesmo diploma, o primeiro (AA) na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão, a segunda (BB) na pena de 4 (quatro) anos de prisão.
Ambos interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, mas este Tribunal, por acórdão de 15 de Dezembro de 2005, decidiu rejeitar o recurso, por manifestamente improcedente, confirmando o acórdão recorrido.
2. Inconformados, recorrem agora os mesmos arguidos para este Supremo Tribunal de Justiça e, da sua motivação conjunta, extraem as seguintes conclusões:
1ª- O aresto recorrido, ao ter concluído no sentido da comissão pelos arguidos de actos de tráfico de estupefacientes pela comercialização e circulação dos mesmos, quando os factos recolhidos apenas de reportam no essencial a conversas telefónicas dos arguidos, enferma de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício clausulado na alínea a) do n.º 2 do artigo 410° do CPP, ou, quando assim se não entenda, contradição insanável da fundamentação, vício esse decorrente da alínea b) do n.º 2 do artigo 410° do CPP.
2ª- O aresto recorrido enferma de erro notório na apreciação da prova, nos termos da alínea c) do n.º 2 do artigo 410° do CPP, pois a prova recolhida aponta no sentido da verificação no caso do tipo de crime previsto no artigo 26° do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01 [traficante consumidor];
3ª- A decisão recorrida, ao não ter determinado a efectivação de relatório social, como instrumento de aferição da personalidade e do enquadramento social dos arguidos, enferma de erro de Direito, pela não aplicação ao caso do artigo 370° do CPP, quando efectivamente, em função de tal comando legal, vista a natureza do caso e as circunstâncias pessoais dos arguidos, mormente o serem primários, se impunha o recurso a tal instrumento de auxílio à determinação da espécie e medida da pena, o que integra o vício previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 410° do CPP.
4ª- O aresto recorrido, ao ter valorado, para a determinação da espécie da pena aplicável, a existência de «meios sofisticados» para a prática da conduta quando os factos adquiridos na sua fundamentação afastam a existência de meios com essa natureza, tudo recaindo em torno de meras conversas telefónicas, enferma de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [alínea a) do n.º 2 do artigo 410° do CPP].
5ª- O acórdão em causa ao não ter determinado a atenuação especial da pena e a sua concomitante suspensão, enferma de erro de Direito pela não aplicação ao caso dos artigos 71° e 50° do Código Penal, quando os factos adquiridos nos autos e no aresto recorrido legitimam uma tal decisão, pela condenação dos arguidos (i) ou no crime previsto no artigo 26° do Decreto-Lei n.º 15/93, em medida de pena cuja medida legitima a suspensão da respectiva execução (ii) ou mediante prévia atenuação especial da pena prevista no artigo 21° do referido diploma legal, com a concomitante suspensão da pena atenuada especialmente;
6ª- O aresto recorrido ao considerar que não foram apreendidas quantidades particularmente significativas de produto estupefaciente» e que a maior parte da actividade ilícita desenvolvida pelos arguidos não teve por objecto drogas ditas "duras", entendendo que estes factos configuravam o tipo de crime de tráfico, apenas poderiam estes ser subsumidos ao crime de tráfico de menor gravidade previsto no artigo 25° do Decreto-Lei nº 15/93, e nessa conformidade, por todo o exposto, aplicar uma pena suspensa na sua execução.
7ª- O facto de o acórdão de 1ª instância não ter referido expressamente ou feito qualquer alusão aos factos não provados, tal como lhes impunha o artigo 374.°, n.º 2, do Código de Processo Penal, impedia agora o acórdão recorrido de dar por não provado, aquilo que não foi claramente enunciado desse modo no acórdão confirmado, pelo que enfermam os referidos acórdãos de nulidade, tal como emerge claramente do disposto no artigo 379.°, n.º 1, a), do mesmo diploma adjectivo.
Nestes termos, e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve ser declarada a nulidade das decisões proferidas, por violação do nº 2 do art.º 374° do CPP; se assim não se entender então deve ser revogado o acórdão recorrido e verificando-se a situação prevista no n.º 2 do artigo 410° do CPP deve ser decretado o reenvio do processo para novo julgamento ou então, deverá ser proferida uma nova decisão punitiva, em substituição da recorrida, que (i) qualifique os factos como integrando o crime previsto no artigo 26° do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, punindo com pena suspensa na sua execução (ii), ou, caso se entenda qualificar os factos como tráfico, que os mesmos integrem o previsto no artigo 25° do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, punindo com pena suspensa na sua execução ou iii) mantendo a incriminação ao nível do artigo 21° do referido diploma legal, proceda à atenuação extraordinária da pena e à sua subsequente suspensão no que à respectiva execução respeita.
3. O Ministério Público junto do tribunal recorrido respondeu ao recurso e pugnou pela sua rejeição.
Neste Supremo, o Excm.º PGA pôs o seu visto.
4. Colhidos os vistos e realizada a audiência com o formalismo legal, cumpre decidir.
As principais questões a decidir são as seguintes:
1ª- Pode o STJ conhecer dos vícios da matéria de facto, já invocados e decididos no tribunal recorrido?
2ª- Os factos provados podem qualificar-se no tráfico de menor gravidade ou no do traficante-consumidor?
3ª- Qual a medida da pena e, se for o caso, pode ser suspensa na sua execução?
Os factos provados são os seguintes:
1. Pelo menos desde o mês de Outubro de 2002 que o arguido AA se vinha dedicando à comercialização de estupefacientes, concretamente cocaína, haxixe e comprimidos de ecstasy, os quais adquiria a terceiros e depois revendia a indivíduos seus conhecidos.
2. Parte dos produtos que o arguido AA o comercializava era vendido em festas nocturnas denominadas «raves», que tinham lugar em discotecas, para onde o arguido se deslocava.
3. O arguido AA também entregava os estupefacientes aos respectivos compradores, em sua casa, em locais de encontros previamente combinados ou em diversas áreas de Lisboa e de Loures.
4. Nessa actividade, o arguido AA prosseguiu a descrita actividade de forma reiterada, pelo menos, até Março de 2004.
5. Nessa actividade, o arguido contou, pelo menos a partir de Maio de 2003, com a colaboração da arguida BB, sua companheira e com quem residia desde Fevereiro de 2003 num andar sito no lote .... da Av.....,.... D, na zona J de Chelas, em Lisboa, procedendo ela, igualmente, a entregas a terceiros dos estupefacientes por ambos adquiridos.
6. No dia 20/10/02, durante a madrugada, o arguido AA deslocou-se na sua viatura de matrícula ....-....-...., da marca Peugeot, modelo 106, para a zona da Av. ....., em Lisboa, que aí estacionou, tendo entrado para o estabelecimento de discoteca «Kremlin», sito nas Escadinhas da praia.
7. Nessa altura, o arguido trazia, no interior da viatura, na cavidade lateral da porta do lado esquerdo, uma embalagem em plástico incolor, vulgo «sabonete», que continha 241,900 gramas de canabis em resina, vulgarmente designada por haxixe.
8. No desenvolvimento da descrita actividade, os arguidos AA e BB utilizavam telemóveis, a fim de manter contactos com terceiros, tendentes a marcar encontros e a receber e entregar produtos estupefacientes.
9. Nesse contexto, o arguido AA fez uso do cartão de telemóvel n° ...... e a arguida BB do cartão de telemóvel nº ....... .
10. Ambos os arguidos utilizaram também, para os fins descritos no ponto 8, o telefone fixo instalado na sua residência, com o n° ....... .
11. Durante o período compreendido entre Março de 2003 e Fevereiro de 2004, o arguido AA efectuou conversas telefónicas no âmbito da descrita actividade de venda de estupefacientes, tendo combinado encontros e utilizado, tal como os seus interlocutores, expressões codificadas para se referir aos estupefacientes e respectivas quantidades, tais como: «...bolo...», «...um terço...» , «...para aí trinta...», «...até arranjo mais se ele quiser...», «...isto é do bom mel...» , «...a nível de guisas à partida sim...»:, «só não tenho é coisas para a dor de cabeça...» , «...praí dez CDs», «...quero 50 receitas iguais à que eu levei ontem...», «...vais a uma ganda party e ainda facturam...», «...chegas lá e montas a banca...», «...arranjar meio buguzito...», «...quartinho...», «...quero mais um quarto, corta-o e se puderes trazer-mo cá a Odivelas», «...à noite vai haver mais novidades, para aí duzentas e cinquenta gramas...», «...se por acaso arranjares deixa duas plaquitas aí...», «...queria fazer-te uma encomenda, vê se consegues arranjar dessas malucas,..», «...tás a dever à casa...» , «...queria umas linguetas...», «...mais dez de dois contos de ganza...», «...és capaz de orientar um buguzinho ... » «...isso o cortado corta-se na altura...», «...precisava dessa guita para fazer um investimento...», «...enviares-me uma branquinha por carta...», «...só um kapa...» , «...isto daqui a bocado acaba...», «...agarras na ganza, partes aos bocadinhos...», « ...o problema é que os preços variam conforme as quantidades...».
12. Noutras ocasiões, o arguido disse ter consigo para entrega «pastilhas», referindo-se a comprimidos de ecstasy.
13. A arguida BB também manteve conversas telefónicas para desenvolver a actividade de comercialização de estupefacientes, no período compreendido entre Maio de 2003 e Outubro de 2003, nas quais utilizou expressões codificadas para se referir aos produtos comercializados e respectivas quantidades, tais como: «...só uma língua, isso não, só cenas maiores...», «...para aí umas setenta e cinco, eu trato disso à tarde...», «...precisava de uma grama...» , «...prepara cento e cinquenta...» , «...tá-se mal das duas coisas...», «...tens que me ajudar a despachar isto, tenho tanto ...é branca, apanhas uma overdose só de ver...» , «...tenho branca ...é uma G...», «...a gente tem que ir as Odivelas levar uma cena...».
14. No dia 23/3/04, em casa dos arguidos, encontrava-se o seguinte:
- No escritório, numa gaveta da secretária, uma cigarreira com resíduos de canabis e vários pedaços de canabis em resina, vulgo haxixe, com o peso global de 3,701 gr. e um canivete com resíduos de canabis;
- Noutra gaveta, um tubo de plástico com vários fragmentos de MDA;
- Numa estante, um vaso metálico com resíduos de canabis e várias plantas de canabis, perfazendo o peso líquido de 13,200 gramas em folhas e sumidades, vulgo liamba.
- No quarto dos arguidos, um pacote de mortalhas, um envelope postal remetido desde o País de Gales por alguém que se identificou como CC, junto a fls. 509 e cujo teor se dá por reproduzido, oito folhas de caderno e um recorte de papel azul, com apontamentos manuscritos com indicação de quantias monetárias, um postal do restaurante «Bica do Sapato», com indicação manuscrita dos nomes de DD e EE, uma bolsa em nylon contendo mortalhas, uma revista denominada «Cânhamo», sobre cultura canábica, um telemóvel da marca Alcatel, com cartão da TMN e um cartão SIM da TMN.
15. O arguido AA destinava a quantidade haxixe mencionada no ponto 7 à venda a terceiros.
16. Os dois arguidos destinavam igualmente à venda a terceiros a canabis e o MDA encontrados na sua residência.
17. Ambos os arguidos tinham conhecimento da natureza estupefaciente dos produtos que detinham e transaccionavam e, não obstante, quiseram comercializá-los.
18. As mortalhas, a bolsa, a revista, os telemóveis e os cartões de telemóveis encontrados na residência dos arguidos eram utilizados na descrita actividade de comercialização de estupefacientes.
19. Os papéis manuscritos reportavam-se a transacções dos referidos produtos.
20. Durante o período em que desenvolveram conjuntamente a actividade de comercialização de estupefacientes, os dois arguidos actuaram em conjugação de esforços e de mútuo acordo.
21. Os arguidos agiram voluntária e conscientemente, sabendo que a sua descrita conduta lhes era proibida por lei.
22. Os arguidos não têm antecedentes criminais.
23. Os arguidos vivem um com o outro, em condições análogas às dos cônjuges, desde Fevereiro de 2003.
24. Habitam uma casa pertencente ao Município de Lisboa, pagando uma renda mensal no valor de 25 euros.
25. Têm um filho com 1 ano e 2 meses de idade.
26. O arguido AA trabalha como cozinheiro num restaurante, auferindo por mês 500 euros.
27. Possui como habilitações literárias o 8° ano de escolaridade.
28. A arguida BB trabalha como empregada de balcão, auferindo por mês 400 euros.
29. Possui como habilitações literárias o 9° ano de escolaridade.
Nas primeiras quatro conclusões os recorrentes reeditam a questão dos vícios do art.º 410.º do CPP, como já haviam feito, sem êxito, perante a Relação.
Repetidamente Por ser uma jurisprudência muitas vezes repetida, reproduz-se aqui profusamente o Ac. lavrado no processo n.º 2369/04-5, em que foi relator o Conselheiro Carmona da Mota e no qual o ora relator foi adjunto. vem este Supremo Tribunal de Justiça decidindo o seguinte:
«Pretendendo os interessados solicitar o reexame da matéria de facto fixada em 1.ª instância por decisão final de tribunal colectivo, terão que o fazer directamente para a Relação e nunca per saltum para o Supremo, uma vez que este só julga de direito. É que, tendo os recorrentes ao seu dispor o Tribunal da Relação para discutir a decisão de facto do tribunal colectivo e tendo aquele tribunal mantido tal decisão, vedado lhe está pedir ao Supremo Tribunal uma reapreciação da decisão de facto tomada pelo Tribunal da Relação e, muito menos, directamente do acórdão sobre os factos do tribunal colectivo de 1.ª instância» ( Manuel Leal-Henriques e Manuel Simas Santos, Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, «O Novo Código e os Novos Recursos», 2001, edição policopiada, ps. 9/10.)
«A competência das relações, quanto ao conhecimento de facto, esgota os poderes de cognição dos tribunais sobre tal matéria, não podendo pretender-se colmatar o eventual mau uso do poder de fazer actuar aquela competência, reeditando-se no Supremo Tribunal de Justiça pretensões pertinentes à decisão de facto que lhe são estranhas, pois se hão-de haver como precludidas todas as razões quanto a tal decisão invocadas perante a Relação, bem como as que o poderiam ter sido» ( Ibidem.)
Ora, o reexame/revista (pelo STJ) exige/subentende a prévia definição (pelas instâncias) dos factos provados (art. 729.1 do CPC).
E, no caso, a Relação – avaliando a regularidade do processo de formação de convicção do tribunal colectivo a respeito dos factos (re)impugnados no recurso – manteve-os, em definitivo, no rol dos «factos provados».
A revista alargada ínsita no art. 410.2 e 3 do CPP pressupunha (e era essa a filosofia original, quanto a recursos, do Código de Processo Penal de 1987) um único grau de recurso (do júri e do tribunal colectivo para o STJ e do tribunal singular para a Relação) e destinava-se a suavizar, quando a lei restringisse a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito (o recurso dos acórdãos finais do júri ou do colectivo; e o recurso, havendo renúncia ao recurso em matéria de facto, das sentenças do próprio tribunal singular), a não impugnabilidade (directa) da matéria de facto (ou dos aspectos de direito instrumentais desta, designadamente «a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não devesse considerar-se sanada»).
Essa revista alargada (do STJ) deixou, porém, de fazer sentido – em caso de prévio recurso para a Relação – quando, a partir da reforma processual de 1998 (Lei 59/98), os acórdãos finais do tribunal colectivo passaram a ser susceptíveis de impugnação, «de facto e de direito», perante a Relação (art.ºs 427.º e 428.1).
Actualmente, com efeito, quem pretenda impugnar um acórdão final do tribunal colectivo, de duas uma: se visar exclusivamente o reexame da matéria de direito (art. 432.d), dirige o recurso directamente ao Supremo Tribunal de Justiça e, se o não visar, dirige-o, «de facto e de direito», à Relação, caso em que da decisão desta, se não for «irrecorrível nos termos do art. 400.º», poderá depois recorrer para o STJ (art. 432.b).
Só que, nesta hipótese, o recurso – agora, puramente, de revista – terá que visar exclusivamente o reexame da decisão recorrida (a da Relação) em matéria de direito (com exclusão, por isso, dos eventuais «erro(s)» – das instâncias «na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa») «Salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe [ou «anule», no caso dos «meios proibidos de prova»] a força de determinado meio de prova» (art. 722.2 do CPC)..
O recurso de revista terá assim que circunscrever-se a questões «exclusivamente» de direito. Pois que – insiste-se – as questões «de facto»( Ou «de direito» delas instrumentais e, por isso, «não exclusivamente de direito».) deverão considerar-se definitivamente decididas pela Relação.
Feitas estas considerações, há que declarar definitiva a matéria de facto estabelecida pelas instâncias.
Os recorrentes dizem que «o facto de o acórdão de 1ª instância não ter referido expressamente ou feito qualquer alusão aos factos não provados, tal como lhes impunha o artigo 374.°, n.º 2, do Código de Processo Penal, impedia agora o acórdão recorrido de dar por não provado, aquilo que não foi claramente enunciado desse modo no acórdão confirmado, pelo que enfermam os referidos acórdãos de nulidade, tal como emerge claramente do disposto no artigo 379.°, n.º 1, a), do mesmo diploma adjectivo.»
Contudo, se o acórdão da 1ª instância não indicou os factos não provados e assim (eventualmente) incorreu em nulidade é questão nova, pois não foi suscitada nas conclusões do recurso para o Tribunal recorrido.
Ora, como é sabido, os recursos são remédios jurídicos destinados a colmatar os erros in judicando ou in proccedendo cometidos nas decisões recorridas e não a obter ex novo decisões sobre questões não submetidas aos tribunais recorridos.
Por isso, não se conhece dessa questão.

Mas, mesmo que assim não fosse, este Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que «1- Embora a elaboração dos acórdãos que decidem os recursos em audiência veja regulada, correspondentemente, pelo disposto nos art.ºs 379.º e 380.º do CPP, previstos para as sentenças proferidas em 1.ª instância, na prática não o poderão ser exactamente nos mesmos termos. 2 - Nem poderiam sê-lo, dado que o seu objecto é a decisão recorrida e não directamente a apreciação da prova produzida na 1.ª instância» (proc. n.º 4253/03-3, Relator: Conselheiro Silva Flor).

Deste modo, para além de estarmos perante questão nova e que, por isso, não tem de ser conhecida, sempre se concluiria que a Relação não tinha de enumerar factos não provados já que a decisão da 1ª instância por sua vez não os terá indicado.

O tribunal recorrido subsumiu os factos na previsão do art.º 21.º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro (tráfico de estupefacientes). Mas os recorrentes entendem que devem ser integrados ou no art.º 26.º ou no art.º 25.º do mesmo diploma.
O art.º 21.º do DL n.º 15/93 define o tipo fundamental do crime de tráfico de estupefacientes, pelo qual se punem diversas actividades ilícitas, cada uma delas dotada de virtualidade bastante para integrar o elemento objectivo do crime. Trata-se de um crime de perigo abstracto ou presumido, pelo que não se exige para a sua consumação a verificação de um dano real e efectivo.
«O crime consuma-se com a simples criação de perigo ou risco de dano para o bem protegido (a saúde pública na dupla vertente física e moral), como patenteiam os vocábulos definidores do tipo fundamental – “cultivar”, “produzir”, “fabricar”, “comprar”, “vender”, “ceder”, “oferecer”, “detiver”. O crime em causa não exige que a detenção se destine à venda, bastando a simples detenção ilícita ou proporcioná-la a outrem, ainda que a título gratuito; basta que o estupefaciente não se destine, na totalidade, ao consumo do próprio para tal crime estar perfectibilizado” (Ac. do STJ de 24/11/99, proc. 937/99).
O art.º 24.º prevê o tipo agravado de tráfico, com a enumeração taxativa das circunstâncias agravantes que têm essa virtualidade.
Por sua vez, os art.ºs 25º e 26ª estabelecem os tipos privilegiados de tráfico.
O art.º 26.º reporta-se ao traficante-consumidor, estabelecendo o seguinte: «1 - Quando, pela prática de algum dos factos referidos no artigo 21.º, o agente tiver por finalidade exclusiva conseguir plantas, substâncias ou preparações para uso pessoal, a pena é de prisão até três anos ou multa, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, ou de prisão até 1 ano ou multa até 120 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV».
Ora, a aplicação desta norma está fora de questão no caso dos autos, pois nem sequer se mostra provado que os recorrentes sejam consumidores de estupefacientes.
Quanto ao art.º 25º, para o qual os recorrentes também apelam, refere-se ao tráfico de menor gravidade, fundamentado na diminuição considerável da ilicitude do facto revelada pela valoração em conjunto dos diversos factores, alguns deles enumerados na norma, a título exemplificativo (meios utilizados, modalidade e circunstâncias da acção, qualidade e quantidade das plantas, substâncias ou preparados); e, assim, tal como não basta para se configurar este tipo privilegiado de crime a constatação de que a detenção era de uma dose diminuta, será suficiente, para que não exista, que tenha ocorrido uma única circunstância especialmente censurável.
“Para se aquilatar do preenchimento do tipo legal do art.º 25.º, do DL 15/93, de 22-01, haverá de se proceder a uma "valorização global do facto", não devendo o intérprete deixar de sopesar todas e cada uma das circunstâncias a que alude aquele artigo, podendo juntar-lhe outras” (Ac. STJ de 7/12/99, proc. 1005/99).
“A tipificação do art. 25.º, do DL 15/93, parece significar o objectivo de permitir ao julgador que, sem prejuízo do natural rigor na concretização da intervenção penal relativamente a crimes desta natureza, encontre a medida justa da punição em casos que, embora porventura de gravidade ainda significativa, ficam aquém da gravidade do ilícito justificativo da tipificação do art. 21.º e têm resposta adequada dentro da moldura penal prevista na norma indicada em primeiro lugar” (Ac. STJ de 15/12/99, proc. 912/99).
O acórdão recorrido sobre esta questão disse que «Relativamente à qualidade da droga, verifica-se que se tratava não só de haxixe (droga considerada leve), mas também de cocaína e comprimidos de ecstasy. Os recorrentes utilizavam telemóveis e o telefone fixo instalado na sua residência, a fim de manter contactos com terceiros, tendentes a marcar encontros e a receber e entregar produtos estupefacientes, sendo que tal actividade de venda de produtos estupefacientes se prolongou desde o mês de Outubro de 2002 até Março de 2004, em relação ao arguido, e pelo menos desde Maio de 2003 até Março de 2004, em relação à arguida. O móbil da actuação dos arguidos era, segundo presunção judicial legitimada nos factos apurados, tão só o lucro fácil. Com efeito, nem sequer vem provado que os arguidos fossem consumidores de estupefacientes
Mas, também é verdade que as quantidades apreendidas não foram significativas (241,900 gramas de haxixe, mais 3,701 gramas de haxixe, mais 13,200 gramas de liamba, mais vestígios de MDA) e não se sabe exactamente que quantidades foram vendidas ao longo do tempo pelos arguidos, pelo que, em atenção ao princípio in dubio pro reo, tem de se considerar que estas foram quantidades diminutas. E mais impressivo é pensar que, apesar de ter ficado provada uma actividade de venda de vários tipo de droga durante mais de um ano quanto ao arguido e de quase um ano quanto à arguida, o que é certo é que ambos exercem uma actividade profissional, modestamente remunerada (o arguido é cozinheiro num restaurante, auferindo por mês 500 euros e a arguida é empregada de balcão, auferindo por mês 400 euros) e vivem numa casa camarária, pelo que é seguro que não auferiram fartos lucros pela sua actividade criminosa. Também as regras de experiência comum levam-nos a concluir que vendiam por conta de outrem, embora tal facto não esteja concretamente apurado, pois caso contrário existiriam sinais exteriores de riqueza.
Assim, a imagem global dos factos leva-nos a admitir que o caso presente tem uma ilicitude cuja gravidade não justifica a tipificação do art. 21.º e tem uma resposta adequada dentro da moldura penal prevista no art.º 25.º, al. a), do DL 15/93, de 22 de Janeiro.
Quanto à medida da pena, temos de considerar que, no âmbito de um tráfico de menor gravidade, a ilicitude não é baixa, já que houve reiteração de conduta durante bastante tempo e foram vendidos vários tipos de droga.
A exigência de prevenção geral é muito elevada, pois estamos perante um tipo de crime que é um flagelo para a sociedade, pelas inúmeras repercussões negativas que tem, no domínio da saúde, da família, da criminalidade, etc.
Impõe-se, pois, uma pena de prisão, pois a pena de multa não realiza de forma adequada as finalidades da punição (art.º 70.º, do CP).
A ilicitude é maior no que respeita ao arguido AA, pois dedicou-se à venda por mais tempo e foi ele que levou a arguida a traficar, depois de com ela começar a viver.
Os arguidos não confessaram os factos.
Mas são ambos delinquentes primários e têm uma actividade profissional, como já se referiu.
Tendo em conta que o crime é punível em abstracto com prisão de 1 a 5 anos de prisão, considera-se adequado, face aos critérios definidos nos art.ºs 70.º e 71.º do C. Penal – e é quase absurdo invocar aqui o art.º 72.º, pois a atenuação especial só se justifica perante circunstâncias excepcionais que de todo não se verificam – entende-se adequado punir o arguido com 3 anos de prisão e a arguida com 2 anos e 6 meses de prisão.
Dadas as penas encontradas para os arguidos, há que enfrentar a questão de saber se devem ser substituídas por penas de prisão suspensas na sua execução (art.º 50.º do CP).
Dispõe o art.º 50°, n.º 1, do C. Penal:
"O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida; à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição".
Este preceito consagra agora um poder-dever, ou seja um poder vinculado do julgador, que terá que decretar a suspensão da execução da pena, na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização daquelas finalidades, sempre que se verifiquem os necessários pressupostos (Maia Gonçalves, Código Penal Anotado, 14ª edição, pág. 191).
Sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos, o juiz tem o dever de suspender a execução da pena: esta é uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico (Ac. do STJ, de 27 de Junho de 1996; in CJ, Acs do STJ, IV, tomo 2, 204).
Para este efeito, é necessário que o julgador, reportando-se ao momento da decisão e não ao da prática do crime, possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de que a ameaça da pena seja adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição (Ac. do STJ, de 11/05/1995, in proc. n.º 4777/3ª).
Este juízo de prognose favorável ao comportamento futuro do arguido pode assentar numa expectativa razoável de que a simples ameaça da pena de prisão será suficiente para realizar as finalidades da punição e consequentemente a ressocialização (em liberdade) do arguido (acórdãos do STJ, de 17/09/1997, in proc. n.º 423/97 da 3ª Secção e de 29/03/2001, in proc. n.º 261/01 da 5ª Secção).
Ou dito de outro modo: a suspensão da execução da pena "deverá ter na sua base uma prognose social favorável ao réu, a esperança de que o réu sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime" (Acórdão do STJ, proc. n.º 1092/01 – 5ª secção).
"O tribunal deverá correr um risco prudente, uma vez que esperança não é seguramente certeza, mas se tem dúvidas sobre a capacidade do réu para compreender a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, a prognose deve ser negativa" (Leal-Henriques e Simas Santos, Código Penal, em anotação ao art.º 50°, citado no acórdão supra referido e com sublinhados nossos).
No caso vertente verifica-se que os arguidos são primários, têm trabalho fixo, têm um filho de tenra idade e encontram-se ambos em liberdade, sujeitos apenas a TIR, há dois anos e não há notícia de nova delinquência. São ainda jovens, ela com 23 anos, ele com 29. Estas circunstâncias favoráveis levam-nos a admitir que é possível correr o risco de fazer um juízo de prognose favorável, apesar dos arguidos não terem confessado os factos e de, em consequência, não terem mostrado arrependimento.
Assim, considerando que a simples censura dos factos e a ameaça da execução da pena são suficientes para os afastar da criminalidade e realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, suspende-se-lhes a execução da pena por quatro anos em relação ao arguido e por três anos em relação à arguida, com regime de prova (art.º 53.º), a fixar na 1ª instância depois de ouvido o IRS.
5. Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em conceder provimento aos recursos dos arguidos AA e BB e em condená-los pela co-autoria de um crime de tráfico de menor gravidade, p.p. no art.º 25.º, al. a), do Dec.-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, o AA na pena de 3 (três) anos de prisão e a BB em 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, sendo que estas penas são suspensas na sua execução por 4 anos quanto ao AA e 3 anos quanto à BB , mediante regime de prova (art.º 53.º), a fixar na 1ª instância depois de ouvido o IRS.
Não há lugar a tributação.
Notifique.

Lisboa, 30 de Março de 2006

Santos Carvalho
Costa Mortágua
Rodrigues da Costa
Arménio Sottomayor