Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6ª SECÇÃO | ||
Relator: | CATARINA SERRA | ||
Descritores: | RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL ACIDENTE DE VIAÇÃO DANO BIOLÓGICO CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO DANOS PATRIMONIAIS EQUIDADE DANOS NÃO PATRIMONIAIS DANOS FUTUROS DIREITOS DE PERSONALIDADE DUPLA CONFORME PARCIAL RECURSO DE REVISTA ADMISSIBILIDADE DE RECURSO ATROPELAMENTO PRINCÍPIO DA IGUALDADE | ||
Apenso: | |||
Data do Acordão: | 01/08/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE POR FACTOS ILÍCITOS / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÕES PECUNIÁRIAS / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO. | ||
Doutrina: | - A. Carneiro da Frada, Nos 40 anos do Código Civil Português, Tutela da Personalidade e Dano Existencial, Forjar o Direito, Coimbra, Almedina, 2015, p. 289 e ss.; A equidade ou a justiça com coração, A propósito da decisão arbitral segundo a equidade, Forjar o Direito, Coimbra, Almedina, 2015, p. 656,675,676 e 685; - A. Castanheira Neves, Curso de Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, Faculdade de Direito de Coimbra, 1971-1972, p. 244 - Maria da Graça Trigo, Adopção do conceito de dano biológico pelo Direito português, Revista da Ordem dos Advogados, 2012, Volume I, p. 147, in https://portal.oa.pt/upl/%7B5b5e9c22-e6ac-4484-a018-4b6d10200921%7D.pdf) ; Responsabilidade civil, Temas especiais, Lisboa, Universidade Católica Portuguesa Editora, 2015, p. 69 a 78 e ss.; - Maria Manuel Veloso, Danos não patrimoniais, Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da reforma de 1977, Volume III , Direito das Obrigações, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 497 e 512 e ss. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 483.º, 494.º, 496.º, N.ºS 1 E 4, 562.º, 564.º, N.ºS 1 E 2 E 566.º, N.º 3. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: - DE 07-02-2002, PROCESSO N.º 3985/01; - DE 25-06-2002, PROCESSO N.º.02A1321; - DE 26-06-2012, PROCESSO N.º 49/07.2TBFLG.G1.S1; - DE 01-10-2012, PROCESSO N.º 338/08.9TCGMR.G1.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT. | ||
Sumário : |
I. Não obstante a decisão impor uma obrigação de indemnização com um montante global, os segmentos respeitantes às parcelas delimitadas ou delimitáveis da indemnização devem ser analisados separadamente para o efeito da dupla conforme. II. O conceito de “dano biológico” ou “dano existencial” visa manifestar a percepção crescente dos “multifacetados níveis de protecção que a personalidade humana reclama” e permite ao julgador tomar consciência do conjunto diversificado de danos (não absolutamente autónomos) resultantes da lesão de direitos de personalidade. III. O dano biológico ou dano existencial compreende ou “contém” os tradicionais danos patrimoniais futuros e os danos não patrimoniais mas não se esgota neles. IV. Age bem o julgador quando, para fixar o quantum indemnizatório respeitante aos danos patrimoniais futuros, parte dos factos provados e observa os casos análogos e os critérios objectivos usados na jurisprudência mas não deixa de proferir um juízo de equidade. V. Age bem o julgador quando, para fixar o quantum compensatório respeitante aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, parte dos factos provados e profere o seu juízo de equidade, sem descurar o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso que resultem dos factos apurados. | ||
Decisão Texto Integral: | I. RELATÓRIO
Recorrente: AA, S.A. Recorridos: BB
BB, menor, representado por sua mãe, intentou acção declarativa de condenação contra AA, S.A., pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia total de 39.987,50 euros, como indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que lhe advieram de acidente e da quantia que se apurasse em execução de sentença relativa à indemnização pelos danos futuros. Proferiu-se sentença a julgar a acção parcialmente procedente, condenando-se a ré a pagar ao autor a quantia de 217,50 euros, a título de indemnização pelos danos patrimoniais, a quantia de 5.000,00 euros, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais e a quantia de 3.500,00 euros [1], a título de indemnização pelos danos futuros, absolvendo-se a ré quanto ao mais peticionado pelo autor. Do assim decidido, interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Guimarães o autor e a ré. No Acórdão de 7.06.2018, os juízes do Tribunal da Relação acordaram em julgar parcialmente procedente o recurso do autor, e improcedente o recurso da ré, e em consequência, alteraram a sentença, condenando a ré a pagar ao autor a quantia de 10.000,00 euros a título de dano patrimonial futuro e a quantia de 10.000,00 euros, a título de danos não patrimoniais[2], mantendo-se, no mais, o decidido. É desta decisão que a recorrente vem agora interpor recurso de revista, pedindo que seja: 1.º) reapreciado o montante indemnizatório a título de danos morais, fixado em 10.000,00 euros e reduzido para o montante de 2.500,00 euros; e 2.º) o montante de 10.000,00 euros fixado a título de dano patrimonial futuro revogado na sua totalidade, em face da inexistência de prova que fundamente tal indemnização. Alega a recorrente, em síntese, que o apelo a juízos de equidade para efeitos de quantificação de danos desempenha uma função meramente complementar e acessória, que tem em vista suprir eventuais insuficiências probatórias relativamente a danos provados mas relativamente indeterminados quanto ao seu preciso montante. Entende que, tendo em conta a matéria dada como provada, o Tribunal a quo não podia fixar a indemnização no montante que fixou. * Aprecie-se, antes de mais, a admissibilidade do presente recurso. Dispõe o n.º 3 do artigo 671.º do CPC que “[s]em prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância”. É inequívoco que ambas as instâncias fixaram, a título de danos patrimoniais futuros e de danos não patrimoniais, uma obrigação de indemnização a cargo da ré / ora recorrente. Acresce que, ao contrário do que defende a recorrente, a fundamentação das duas decisões não é essencialmente diversa, uma vez que ambas convocam, como também reconhece a recorrente, os mesmos critérios para a avaliação e a fixação do quantum indemnizatório, tanto destes danos como dos danos não patrimoniais. Quer dizer: não é o arbitramento de valores pecuniários diferentes, por aplicação daqueles critérios,[3] que representa uma “fundamentação essencialmente diversa” para os efeitos previstos no artigo 671.º, n.º 3, do CPC. Verifica-se, assim, aparentemente, uma hipótese de dupla conforme. Entende-se, no entanto, como relatado em Acórdão recente deste Supremo Tribunal[4], que a decisão não é absolutamente incindível mas sim composta de segmentos decisórios autónomos, devendo o critério da dupla conforme ser aferido relativamente a cada um. Assim, não obstante a decisão impor à ré / ora recorrente uma obrigação de indemnização com um montante global, os segmentos respeitantes às parcelas delimitadas ou delimitáveis da indemnização, e que são, in casu, a dos danos patrimoniais futuros e a dos danos não patrimoniais, devem ser analisados separadamente para aqueles efeitos. Quanto aos danos patrimoniais futuros, pede, como se viu, a recorrente que o montante fixado seja “revogado na sua totalidade em face da inexistência de prova que fundamente tal indemnização”. O que resulta desta alegação, tanto implícita (do pedido: revogação total) como explicitamente (do argumento: inexistência de prova), é que a recorrente entende que não existem danos patrimoniais futuros. Ora, ambas as instâncias deram por verificada a existência destes danos e fixaram, a esse título, uma obrigação de indemnização a cargo da ré / ora recorrente. Em face da dupla conforme, ficaria este Tribunal impedido de conhecer do recurso quanto a este segmento da decisão. Se se entender, no entanto, que, no pedido de revogação ou de redução a zero de certo montante, está contido um pedido de redução (i.e., alteração para um qualquer montante desde que inferior), poder-se-á ainda admitir o recurso. Na realidade, o Tribunal de 1.ª instância e o Tribunal recorrido atribuíram valores diversos à indemnização por danos patrimoniais futuros (respectivamente 3.500,00 e 10.000,00 euros), não sendo, por isso, possível considerar, nem por aplicação do “critério da inclusão quantitativa”[5], que existe dupla conforme. Quanto aos danos não patrimoniais (ou danos morais, como lhes chama a recorrente[6]), pede esta que o montante seja reapreciado e reduzido para o montante de 2.500,00 euros. Aplicando o mesmo raciocínio à parte da sentença respeitante a estes danos, logo se conclui que tão-pouco se verifica dupla conforme, porquanto o valor fixado pelo Tribunal recorrido (10.000,00 euros) não pode considerar-se “quantitativamente incluído” no valor fixado Tribunal de 1.ª instância (5.000,00 euros).
Esclarecido isto, pode agora prosseguir-se para a análise do mérito do recurso, sendo o respectivo objecto delimitado por duas questões: 1.ª) Procedeu o Tribunal recorrido bem ao fixar o montante indemnizatório respeitante aos danos patrimoniais futuros em 10.000,00 euros? 2.ª) Procedeu o Tribunal recorrido bem ao fixar o montante indemnizatório respeitante aos danos não patrimoniais em 10.000,00 euros?
* O DIREITO
Pelos motivos expostos no presente Relatório (e que se consideram reproduzidos aqui), o objecto do recurso desdobra-se em duas questões:
1.ª) Procedeu o Tribunal recorrido bem ao fixar o montante indemnizatório respeitante aos danos patrimoniais futuros em 10.000,00 euros? 2.ª) Procedeu o Tribunal recorrido bem ao fixar o montante indemnizatório respeitante aos danos não patrimoniais em 10.000,00 euros?
É natural que um atropelamento, como outro acidente de viação, implicando a violação de direitos de personalidade, provoque diversos tipos de danos ao lesado, cabendo ao lesante indemnizar o lesado por forma a reconstituir, tanto quanto possível, a situação que existiria se o facto não se tivesse verificado (cfr. artigos 483.º e 562.º do CC). Resulta da lei portuguesa que a medida da indemnização deverá ter em conta, em primeiro lugar, atendendo ao disposto no artigo 564.º, n.ºs 1 e 2, do CC, os danos presentes bem como os danos futuros[7]. A única exigência legal a de que estes sejam previsíveis, determinando a norma do artigo 566.º, n.º 3, do CC que “[s]e não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”[8]. Na fixação da indemnização deverá atender-se, em segundo lugar, aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, nos termos do artigo 496.º, n.º 1, do CC. O montante da indemnização – dispõe-se no n.º 4 da mesma norma – é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º do CC, ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso. Apesar da aparente simplicidade destas classificações legais, a verdade é que é difícil, se não mesmo impossível, identificar todos os danos susceptíveis de resultar da ofensa de direitos de personalidade e distinguir entre os vários tipos, tendo em conta a unidade da pessoa nos seus aspectos biológicos e não biológicos. Tornou-se por isso, habitual reconduzi-los a um conceito tentativamente englobalizador ou (re)unificador. Este tanto pode ser o de “dano biológico”, “dano da saúde”[9] ou “dano corporal”[10], como o conceito, assumidamente mais abrangente, de “dano existencial”[11], importando, em qualquer caso, manifestar a percepção crescente dos “multifacetados níveis de protecção que a personalidade humana reclama”[12]. Pondo imediatamente em causa a rigidez da distinção entre danos patrimoniais e não patrimoniais[13], ela conduziu à ampliação do número e do tipo de consequências que o julgador deve ter em consideração no momento de calcular o montante da indemnização e propiciou as condições para o cálculo de uma indemnização mais justa., uma vez que permitiu àquele compreender, mais claramente, que o facto lesivo origina um conjunto de consequências que não são absolutamente autónomas ou dissociáveis e em que se incluem as consequências conhecidas como de natureza não patrimonial bem como de natureza patrimonial futura, não se esgotando, contudo, nestas. Para fixar a indemnização do “dano existencial” resultante de um acidente de viação, o julgador terá, portanto, de ponderar, consoante o caso concreto, circunstâncias variadas, que podem ir das restrições que o sujeito tem de suportar na qualidade da sua vida em virtude das lesões biológicas, à criação ou indução de dependências que afectam o exercício da sua liberdade pessoal, aos prejuízos nas suas aptidões familiares ou afectivas ou às necessidades especiais das pessoas débeis, como os idosos ou as crianças. Esta nova visão das coisas teve origem no Direito italiano[14], mas foi bem recebida pela doutrina e pela jurisprudência portuguesas, sendo aplicada por esta, em particular, no âmbito da fixação da indemnização por acidentes de viação, como no caso em apreciação. Regresse-se a ele. Através do presente recurso vem a recorrente manifestar o seu inconformismo com os montantes arbitrados pelo Tribunal da Relação de Guimarães a título de indemnização por danos não patrimoniais futuros e por danos não patrimoniais, pugnando, como se viu, pela sua redução, respectivamente, para zero e para 2.500,00 euros. Chamando, com insistência, a atenção para a diferença entre estes montantes e os montantes arbitrados pelo Tribunal de 1.ª instância (com os quais tão-pouco se conforma), pretende a recorrente que seja reconhecido que o Tribunal da Relação não observou os critérios legalmente previstos para o cálculo da indemnização adequada ao caso em apreço. O seu argumento central está bem sintetizado na conclusão j) das suas alegações, onde se afirma que “[o] apelo a juízos de equidade para efeitos de quantificação de danos – morais ou patrimoniais – resultantes das lesões corporais sofridas pelo lesado, desempenha uma função meramente complementar ou acessória, representando um instrumento destinado a suprir possíveis insuficiências probatórias relativamente a um determinado dano inquestionavelmente sofrido pelo lesado, mas relativamente indeterminado quanto ao seu exacto montante, sempre se pressupondo que o núcleo central do dano está suficientemente concretizado e processualmente demonstrado, razão pela qual sempre o juízo de equidade deverá ter por base o caso concreto, fazendo apelo a dados de razoabilidade, proporção e adequação às circunstâncias concretas, sem cair no arbítrio”[15]. Sucede que a recorrente não indica os factos constantes da factualidade provada que foram, no seu entender, indevidamente desconsiderados pelo Tribunal. A única circunstância alegada pela recorrente, nas conclusões o), p) e q) das suas alegações, e que poderia reconduzir-se a esta categoria, é a ausência do exercício de uma profissão remunerada por parte do lesado, decorrente do seu estatuto de estudante (cfr. ponto 24). Mas esta alegação não é justa, uma vez que, antecipadamente, o Tribunal recorrido explicou, de forma mais do que suficiente, por que motivo esta circunstância não é – não pode ser – determinante para o cálculo dos danos patrimoniais futuros. Vendo bem, a única razão pela qual a recorrente não indica os factos constantes da factualidade provada que foram, no seu entender, indevidamente desconsiderados é a de que o Tribunal recorrido se reportou constantemente, para o cálculo da indemnização, aos factos constantes da factualidade provada. O Tribunal da Relação de Guimarães começa por enquadrar o caso “num nível gravíssimo de sinistralidade rodoviária”. Relativamente aos danos patrimoniais futuros, teve expressamente em consideração que estava em causa um atropelamento (facto 7) de um menor de 14 anos de idade (facto 38), quando já tinha percorrido sensivelmente metade do comprimento da passadeira destinada a peões (facto 7), localizada em frente da Escola Secundária de ... da qual é aluno e para onde se dirigia para as aulas (facto 1) por um veículo cuja condutora estava, na altura, distraída (facto 12). Para calcular o valor indemnizatório, considerou, depois, o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica e o sofrimento físico (facto 24). Explicou ainda por que a circunstância de o lesado não exercer uma actividade profissional remunerada, por ser estudante (facto 24), não deveria impedir a ressarcibilidade dos danos patrimoniais futuros, sendo usados na jurisprudência diversos critérios para calcular, nesta hipótese, o valor da indemnização. Considerando a que o lesado, na data do acidente, tinha 14 anos de idade (facto 38) e frequentava o 10.º ano de escolaridade (facto 42), entendeu adequado adoptar o critério do valor do salário mínimo e meio. Para a fixação do quantum compensatório pelos danos não patrimoniais, o Tribunal teve presente o seguinte quadro factual: que o lesado passou a desenvolver uma série de sintomas intrusivos, associados a lembranças do acontecimento traumático (facto 27), padecendo de sonhos perturbadores (facto 29), e que teve necessidade de se socorrer da ajuda da uma psicóloga (facto 30) e de um psiquiatra (facto 40), tendo chegado a iniciar tratamento com anti-depressivos (facto 39), e, não obstante essa assistência, continua a manifestar mal-estar psicológico quando exposto a passadeiras de travessia de peões (facto 33) uma vez que lhe simbolizam e assemelham ao acontecimento traumático (facto 34), causando-lhe ansiedade (facto 35), que tende a evitar o contacto com os colegas, como a ida para a escola, de forma despreocupada, como se verificava antes do atropelamento (facto 41), que, em consequência do acidente, deixou de sair de casa com os amigos, de jogar à bola, ir ao cinema, à praia (facto 46), isolando-se e tornando-se um jovem “fechado” e “contraído” (facto 47). É visível, portanto, que o Tribunal recorrido nunca perdeu de vista que a equidade só pode funcionar dentro dos limites da factualidade provada – a equidade é a justiça do caso concreta[16] –, sendo, além de tudo o mais, claramente assumida no Acórdão, a convicção de que “[a] equidade [deve ser] sustentada nos factos provados (…)”[17]. Quanto ao juízo de equidade, sabendo que ele não é – não deve ser – ser um mero juízo discricionário ou puramente arbitrário[18], o Tribunal recorrido cuidou de conhecer e de observar as orientações seguidas na jurisprudência (designadamente deste Supremo Tribunal), com vista a encontrar uma solução que respeitasse o princípio da igualdade e pudesse contribuir para a uniformidade das decisões. No tocante, em particular, aos danos patrimoniais futuros, procedeu, assim, à aplicação dos auxiliares matemáticos e das tabelas que são habituais na jurisprudência, tomando, na senda das decisões mais recentes, o limite dos 70 anos de vida média activa como mero referencial e aplicando o factor de correcção pelo facto do lesado receber, na totalidade e de uma só vez, o capital indemnizatório por perda de ganhos futuros, com consideração pela inflação e pelas taxas de juros aplicáveis aos contratos de depósito bancários e outras aplicações financeiras. O Tribunal baseou-se, em suma, nos factores de correcção e de valoração da indemnização. Mas não deixou de fazer – note-se – o seu juízo de equidade. Procedeu o Tribunal como devia. É pacífico e reconhecido, há tempo, que aqueles factores funcionam apenas como uma orientação para o cálculo da indemnização, não sendo, em caso algum, susceptíveis de dispensar ou substituir o juízo de equidade que cabe ao julgador nesta hipótese. Veja-se, desde logo, neste Supremo Tribunal, o Acórdão de 7.02.2002, Proc. 3985/01, em que se sustentava que “[o] recurso às fórmulas matemáticas ou de cálculo financeiro para a fixação dos cômputos indemnizatórios por danos futuros/lucros cessantes não pode substituir o prudente arbítrio do julgador, ou seja, a utilização de sãos critérios de equidade”. Veja-se ainda o Acórdão de 25.06.2002, Proc. 02A1321, em que se dizia que “[a] utilização de tais tabelas financeiras, como qualquer outro que seja expressão de um critério abstracto, constitui, porém, sublinhe-se, um método de cálculo de valor meramente auxiliar (…), Na verdade, sendo vários os critérios que vêm sendo propostos para determinar a indemnização devida pela diminuição da capacidade de ganho, e nenhum deles se revelando infalível, devem eles ser tratados como meros instrumentos de trabalho com vista à obtenção da justa indemnização, pelo que o seu uso deve ser temperado por um juízo de equidade, nos termos do n.º 3 do artigo 566º”[19] [20]. Por fim, quanto aos danos não patrimoniais, é sabido que a única condição de compensabilidade é a sua gravidade, o que lhe confere um carácter algo indeterminado e de difícil quantificação. Para apurar o respectivo quantum compensatório nem tentou, pois, o Tribunal aplicar critérios matemáticos ou factores aparentemente objectivos. Em vão o faria. Tenham-se presentes as palavras de Pessoa Jorge, que, não obstante só serem plenamente pertinentes num quadro dogmático diverso do actual (da separação rígida entre danos patrimoniais e danos não patrimoniais) são, ainda assim, válidas na actualidade e, em especial, para os presentes efeitos: “[a] prudência manda separar os dois institutos, tanto na construção teórica como na aplicação prática”[21]. Nesta sede, o julgador tem, justamente, margem para valorar segundo critérios subjectivos (na perspectiva do lesado), isto é, “à luz de factores atinentes à especial sensibilidade do lesado [como] [a] doença, a idade, a maior vulnerabilidade ou fragilidade emocionais”[22]. A equidade é aqui o único recurso do julgador[23], ainda que não descurando as circunstâncias que a lei manda considerar, a saber: o grau de culpabilidade do agente[24], a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso (por exemplo, a natureza e a intensidade e da lesão infligida). Em síntese: todos os ditames de origem legal e jurisprudencial foram observados pelo Douto Tribunal a quo, afigurando-se adequada, segundo um juízo de equidade, a fixação da indemnização a ambos os títulos (danos patrimoniais futuros e danos não patrimoniais). Não existe razão para este Supremo Tribunal de Justiça rever – e muito menos censurar – a decisão contida no Acórdão recorrido.
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Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o acórdão recorrido.
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Custas pelo recorrente.
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LISBOA, 8 de Janeiro de 2019
Catarina Serra (Relator)
Salreta Pereira
Fonseca Ramos
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