Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1122/12.0TJPRT.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
COISA MÓVEL SUJEITA A REGISTO
NULIDADE
BOA FÉ
Data do Acordão: 11/17/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO COMERCIAL - CONTRATOS COMERCIAIS / LOCAÇÃO FINANCEIRA.
DIREITO BANCÁRIO - ACTOS BANCÁRIOS EM ESPECIAL ( ATOS BANCÁRIOS EM ESPECIAL ) / CRÉDITO BANCÁRIO / LOCAÇÃO FINANCEIRA.
DIREITO DO CONSUMO - CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS.
Legislação Nacional:
D.L. N.º 446/85, DE 25.10 ( REGIME DAS CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS - LCCG ): - ARTIGOS 15.º, 18.º, ALS. C) E F), 21.º, AL. H).
D.L.N.º149/95, DE 24 DE JUNHO ( REGIME JURÍDICO DO CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA ): - ARTIGO 9.º, N.º1, ALS. A), B), C),
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:
-DE 08/02/2011, PROC. N.º 851/09OTJLSB.L1-7, EM WWW.DGSI.PT .

-*-

ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 13/10/2011, EM WWW.DGSI.PT .
*
- DE 17/02/2000, PROC. N.º 1174/99 -7.ª, SUMÁRIOS CÍVEL, EM WWW.STJ.PT ;
- DE 17/01/2005, PROC. N.º 3071/04 – 1.ª, SUMÁRIOS CÍVEL, EM WWW.STJ.PT ;
-DE 04/04/2006, PROC. N.º 626/06 – 6.ª, , SUMÁRIOS CÍVEL, EM WWW.STJ.PT ;
-DE 24/03/2015, PROC. N.º 3193/12.0TJLSB.S1 – 1ª, SUMÁRIOS CÍVEL, EM WWW.STJ.PT .
Sumário :
I - Estão sujeitas ao regime jurídico das cláusulas contratuais gerais aprovado pelo D.L. n.º 446/85, de 25.10., as cláusulas elaboradas pela locadora, sem previa negociação individual e cujo conteúdo os potenciais destinatários não podem influenciar, destinadas a ser incluídas em contratos de locação financeira.

II - São nulas, por violação do disposto nos arts. 18.º al. c) e 21., al. h), e proibidas, por violação da boa fé contratual afirmada no art. 15.º, todos daquele diploma legal, as cláusulas que, naquelas condições e conjugadas entre si, prevêem, primeiro, que o locador não possa exigir a suspensão do cumprimento das suas obrigações se se encontrar impossibilitado de utilizar o bem por razão alheia à vontade do locador (cláusula 5.ª); segundo, que incumbe ao locatário promover a realização do registo do bem, quando for esse o caso (cláusula 10.ª, n.º1); e, terceiro, que é da responsabilidade do locatário não poder utilizar o bem enquanto não obtiver toda a documentação para o efeito (cláusula 10.ª, n.º2).
Decisão Texto Integral:       

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

O Ministério Público propôs uma acção declarativa, ao abrigo do DL 108/2006 de 6 de Junho, contra o Banco AA, SA, com sede no Porto, pedindo que, na sua procedência:

1) - Se declarem nulas as cláusulas 5ª nº 2, e 10º nº 1 e 2, ambas das “Condições Gerais”, incluídas no documento nº 2 junto com a petição inicial, condenando-se o réu a abster-se de as utilizar em contratos que de futuro venha a celebrar, e especificando-se na sentença o âmbito de tal proibição, nos termos do artº 30º, nº 1, do DL nº 446/85, de 25/10 – Cláusulas Contratuais Gerais).

2) - Se condene o réu a dar publicidade a tal proibição e a comprová-la nos autos, em prazo a determinar na sentença, sugerindo-se que a mesma seja efectuada em anúncio a publicar em dois jornais diários de maior tiragem editados em Lisboa e no Porto, durante três dias consecutivos, (art. 30º, nº 2 do DL nº 446/85, de 25/10), de tamanho não inferior a ¼ de página.

3) - Se dê cumprimento ao disposto no artº 34º do referido diploma, remetendo-se ao Gabinete de Direito Europeu do Ministério da Justiça certidão da sentença para os efeitos previstos na Portaria nº 1093/95, de 6 de Setembro.

Alegou, resumidamente, que no exercício da actividade bancária o réu celebra contratos de locação financeira mobiliária contendo clausulados já impressos, nos termos do doc. nº 2 junto com a petição, que são contratos de adesão, e como tal subsumíveis ao regime jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais aprovado pelo DL 446/85 de 25/10, sendo certo que algumas das cláusulas neles inseridas, designadamente as supra mencionadas, são absolutamente proibidas, pois afastam a responsabilidade do locador financeiro pelo não cumprimento definitivo, mora ou cumprimento defeituoso do contrato - artº 18º al. c) e 21º, al. h) do DL 446/85.

O réu contestou (fls. 116 e sgs), alegando que, não sendo os contratos de locação financeira mobiliária que celebra contratos de adesão, as respectivas cláusulas não estão sujeitas ao regime jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais; no entanto, mesmo que assim não se entenda, as três cláusulas trazidas a juízo são válidas, devendo, por isso, julgar-se a acção improcedente.

Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, em 28/5/2013, nos seguintes termos:

“Decisão:

Face ao exposto, julga-se a presente acção procedente e, consequentemente:

a) declara-se a nulidade das cláusulas 5 n.º 2 e 10 n.º 1 e 2 nos contratos de locação financeira comercializados pelo réu Banco AA, S.A.

b) condena-se o réu a abster-se de utilizar as referidas cláusula nos contratos de locação financeira por si comercializados e

c) condena-se o réu a dar publicidade à declaração de nulidade e proibição, no prazo de trinta dias a contar do trânsito em julgado da sentença, através de publicação em dois dos jornais diários de maior tiragem editados em Lisboa e no Porto, durante 3 dias consecutivos, de tamanho não inferior a ¼ de página, o que deverá ser comprovado nos autos no prazo de dez dias a contar da última publicação.

O réu apelou, mas a Relação do Porto, por acórdão unânime de 16/3/15, julgou improcedente o recurso, confirmando a sentença.

Ainda inconformado, o réu interpôs recurso de revista excepcional, que a formação do artº 672º, nº 3, do CPC, admitiu por decisão de 11/9/2015, com fundamento na al. b) do artº 672º, nº 1 (particular relevância social dos interesses em jogo).

Alegando, concluiu, de útil, o seguinte:

1ª) Uma vez que a proibição do artº 18º, al. c), do DL 446/85 tem como campo de aplicação a responsabilidade contratual do Proponente (no caso, o locador) e somente para casos de dolo ou de culpa grave, a cláusula 5ª, nº 2, não pode ser havida como nula por violação deste normativo tendo em conta que não versa sobre qualquer responsabilidade contratual, nem muito menos para casos de dolo ou culpa grave;

2ª) O seu campo de aplicação está limitado às situações em que o locatário se encontra impossibilitado de utilizar o bem, total ou parcialmente, por qualquer razão alheia à vontade do locador, incluindo força maior, o que significa que a responsabilidade do locador apenas se terá por excluída caso a ele - locador - não possa ser imputado o facto gerador da impossibilidade do uso do bem; caso contrário responde, e responde sem que essa sua responsabilidade fique excluída pela cláusula anulanda;

3ª) Ao prever esta cláusula, o recorrente quis e quer apenas confirmar numa disposição do contrato que não responde perante o locatário, nem pelos vícios do bem locado ou pela sua inadequação (salvo o disposto no artº 1034° do Cód. Civil), nem pelo risco de perda ou deterioração do bem (cfr. artºs 12º, 13º e 15º do DL 149/95);

4ª) Na ideia de ultrapassar este irrefutável argumento, a Relação decretou a nulidade da cláusula sob o pretexto de o artigo 12° DL 149/95 ressalvar a aplicação do artº 1034° do Cód. Civil, nomeadamente no que diz respeito à responsabilidade do locador perante o locatário pelo incumprimento da obrigação de entrega da coisa locada;

5ª) Porque se fundou neste pretexto, pôde o acórdão recorrido concluir, embora erradamente, que a existência de uma cláusula como a que está sob análise levaria a que o locador financeiro não respondesse “em nenhum caso pela impossibilidade de utilização do bem”, sendo este o erro palmar em que labora: em primeiro lugar porque não recai sobre o locador qualquer obrigação de entrega da coisa locada; e depois porque, ainda que recaísse, a cláusula não afastaria a sua responsabilidade nesse particular, uma vez que não está integrada na sua previsão a responsabilidade contratual do locador;

6ª) O locador financeiro não está constituído na obrigação de entrega da coisa: antes de mais porque o DL 149/95 não tipifica no seu artº 9º essa obrigação; e depois porque o dever de conceder o gozo, ao contrário do que sustenta o acórdão recorrido, concretiza-se apenas no facto de o locador não obstar à sua utilização, não impedir o seu uso pelo locatário;

7ª) Nos artigos 12º e 13º do DL 149/95 o legislador quis colocar o risco da omissão da entrega da coisa locada a cargo do locatário, exonerando o locador de qualquer responsabilidade: é isto que nos ensina a doutrina - GRAVATO MORAIS, RUI PINTO DUARTE, LEITE CAMPOS, PEDRO ANTÓNIO SEQUEIRA DE OLIVEIRA e RAQUEL TAVARES DOS REIS -  por ser a solução que mais se coaduna com o próprio regime da locação financeira;

8ª)  E é neste sentido a jurisprudência, de que é exemplo, entre outros citados em texto, o acórdão da Relação de Lisboa de 8/11/94 que, chamado a pronunciar-se sobre o tema, lapidarmente concluiu que "É válida a cláusula de tais contratos em que se estabelece que” A não entrega do equipamento pelo fornecedor ou a desconformidade do mesmo com o constante das condições particulares não exoneram o locatário das suas obrigações face ao locador, nem lhe concedem qualquer direito face a este, competindo- -lhe exigir do fornecedor toda e qualquer indemnização a que se ache com direito, nos termos da lei e da cláusula segunda destas condições gerais".

9ª) O argumento do acórdão recorrido de que a cláusula anulanda afasta a responsabilidade do locador nos casos expressamente previstos no artº 1034° do Cód. Civil, para o qual remete o artº 12º do DL 145/95, não procede, pois este artigo, tal como consta da sua epígrafe, diz apenas respeito a casos de ilegitimidade do locador ou deficiência do seu direito, sendo que a hipótese contemplada na al. a) do artº 1034º do CC reconduz-se por exemplo ao caso de o locador financeiro ser um mero usuário do bem (artº 1488º CC) e conceder o seu gozo ao locatário financeiro, que ignora os poderes daquele;

10ª) Nestas circunstâncias, é imputável ao locador a responsabilidade pela falta de legitimidade; logo, a sua responsabilidade não é afastada pela cláusula anulanda, que apenas prevê a desresponsabilização para casos em que a impossibilidade de utilização do bem não é imputável ao locador - daí ser alheio à sua vontade.

11ª) A cláusula também não é nula por violação do disposto no artº 21º, al h), do DL 446/85, já que apenas exclui a responsabilidade do locador nos casos em que essa exclusão está directamente prevista no próprio direito material.

12ª) As cláusulas previstas nos nºs 1 e 2 do artº 10° das Condições Gerais do Contrato de Locação Financeira Mobiliário também não violam o disposto nos artºs 18º al. c) e 21º al h) do DL 446/85;

13ª) É esta a solução que a doutrina - como RUI PINTO DUARTE e GRAVATO MORAIS - considera que mais se harmoniza com o regime especial da Locação Financeira, desde logo devido à circunstância de o locatário ser o proprietário económico da coisa, gozando o bem na vigência do contrato;

14ª) É a própria lei que põe a cargo do locatário financeiro a realização das diligências administrativas relativas ao bem locado: na verdade, o Decreto-Lei nº 11/84 de 7 de Janeiro, que ainda hoje se encontra em vigor no nosso ordenamento jurídico, tem como artigo único “A posição do locatário, na locação financeira de veículos, é equiparada à do proprietário para efeitos de aplicação da legislação relativa ao licenciamento e utilização de veículos automóveis e seus reboques";

15ª) A Relação errou a quo ao declarar estas cláusulas nulas por violação dos artºs 18,º al. c), e 21º, al. h), do DL 446/85: não se vislumbra de que forma é que estas cláusulas, por colocarem a cargo do locatário determinados encargos, podem estar, a um só tempo, a excluir ou a limitar a responsabilidade do locador por todo e qualquer evento relacionado com as condições de utilização dos bens e a excluir a possibilidade de requer tutela judicial para situações litigiosas que surjam entre os contraentes;

16ª) A decisão vertida no acórdão recorrido conflitua, aliás, com o que tem sido o entendimento sufragado pela jurisprudência portuguesa e de que é exemplo o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8.2.11, onde se decidiu “Não é nula a cláusula segundo a qual “durante todo o período de vigência do contrato, o locatário obriga-se providenciar todas as diligências junto do fornecedor para obtenção do registo, matrícula ou licenciamento do bem locado, não podendo utilizar o bem enquanto não obtiver toda a documentação necessária para o efeito”.

17ª) Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo foi alheio às especificidades que os contratos de locação mobiliária podem apresentar - quer em relação ao seu concreto objecto, quer em relação ao próprio sujeito/cliente, que nem sempre é consumidor final - e, mais grave ainda, às características intrínsecas que definem a locação financeira, nomeadamente ao facto de o locador financeiro não conhecer, muitas das vezes, o fornecedor dos bens e redundar num colossal encargo, a coberto de protecção do consumo de quem, afinal, nem consumidor é, colocar a seu cargo a obrigação de promover diligências que estão muito mais facilmente ao alcance do locatário financeiro.

18ª)  O acórdão recorrido violou o disposto nos arts. 1°, nº 3, 18º al. c) e 21º h) todos do DL 446/58, os arts. 9°, 12°, 13° e 15° do DL 149/95, o artigo único do DL 11/84 de 7 de Janeiro e ainda o art. 1034° do Cód. Civil.

O MP contra alegou, defendendo a manutenção do julgado.

II. Fundamentação

a) Matéria de Facto

1) O réu encontra-se matriculado sob o nº 501525882, com a sua constituição inscrita na Conservatória do Registo Comercial do Porto, e tem como objecto social “actividade bancária com a latitude consentida pela lei”.

2) No exercício dessa actividade procede à celebração de “Contratos de Locação Financeira”, quer com pessoas singulares quer com pessoas colectivas, que têm por objecto a locação financeira dos equipamentos referidos nas “ Condições Particulares”.

3) Para tanto apresenta a cada um dos interessados que com ele pretendam contratar clausulados já impressos, previamente elaborados.

4) O clausulado relativo ao “ Contrato de Locação Financeira” contém páginas impressas, sendo que a primeira contém na face espaços em branco destinados apenas à identificação dos locatários e, na parte intitulada “Condições Particulares”, a identificação dos fornecedores, do bem e/ou serviço, do preço da aquisição e do prazo da locação e do nº de rendas.

5) As restantes páginas impressas do contrato, designadamente na parte relativa a “Condições Gerais”, não contêm quaisquer espaços em branco para serem preenchidos pelos contraentes que em concreto se apresentem a contratar com o réu, com excepção dos espaços destinados à colocação da data e das assinaturas do locador e locatário.

6) Assim, estas páginas impressas, designadamente na parte relativa as “Condições Gerais”, contêm apenas cláusulas previamente elaborados pelo réu que os consumidores se limitam a aceitar.

7) Tal impresso, com as cláusulas nele insertas, destina-se a ser utilizado pelo réu, no presente e futuro, para contratação com quaisquer interessados consumidores.

8) No documento de fls. 54 a 56 verso consta além do mais que “(…):

Artº 5º (Utilização do Bem)

(…)

2 – Se o locatário se encontrar impossibilitado de utilizar o Bem, total ou parcialmente, por qualquer razão alheia à vontade do locador, incluindo força maior, não poderá exigir deste qualquer indemnização, suspensão do cumprimento das suas obrigações ou redução das rendas incumbindo-lhe a obrigação de defender perante terceiros, a integridade quer do seu direito quer do próprio Bem.

(…)

Artº 10º (Registos e Encargos)

1 - Tratando-se de bem sujeito a registo, o locatário deverá promover a sua respectiva realização”.

2 - A obtenção das matrículas ou licenças administrativas será da responsabilidade do locatário, não podendo este utilizar o bem enquanto não obtiver toda a documentação para esse efeito.

(….)”.

9) Até à celebração do contrato de leasing o processo negocial passa por várias fases que começam com o pedido do cliente de uma simulação das condições financeiras e que termina, em caso de acordo, na celebração do contrato.

10) A simulação tem um prazo de 30 dias.

b) Matéria de Direito

Nesta fase do processo já não se discute a aplicabilidade ao caso do regime jurídico das cláusulas contratuais gerais aprovado pelo DL 446/85, de 25 de Outubro; o réu começou por contestá-la, mas entretanto aceitou-a por ser evidente que estão em causa estipulações gerais elaboradas sem prévia negociação individual e cujo conteúdo os potenciais destinatários não podem influenciar, mas apenas aceitar, nos termos do artº 1º, nºs 1 e 2, do referido diploma legal.

As três cláusulas objecto da presente acção inibitória destinam-se a ser incluídas em contratos de locação financeira, cujo regime jurídico consta do DL 149/95, de 24 de Junho.

De acordo com o artº 9º, nº 1, a), b) e c) deste diploma são, nomeadamente, obrigações do locador adquirir ou mandar construir o bem a locar (a); conceder o gozo do bem para os fins a que se destina (b); e vender o bem ao locatário, caso este o queira, findo o contrato (c). Sobre a segunda das obrigações nucleares que se referiu – a da alínea b) – aquela que, considerando as cláusulas aqui em apreciação, interessa analisar com mais detalhe, não há unanimidade na doutrina a respeito do seu alcance. Assim, enquanto que para alguns autores a entrega efectiva do bem locado é instrumental à concessão, para outros o dever de concessão do gozo do bem circunscreve-se à não perturbação do respectivo uso pelo locatário. Na situação ajuizada, todavia, não parece que seja preciso tomar partido nesta discussão. Na verdade, uma vez que se trata de cláusulas predispostas respeitantes à locação financeira de bens móveis registáveis (leasing mobiliário), o que interessa saber é se nessa hipótese o locador está ou não obrigado, no âmbito do dever de concessão do gozo, a fornecer os documentos exigíveis para a circulação do bem. E não temos nenhuma dúvida em responder afirmativamente a esta pergunta. Na verdade, seria incompreensível que o locador pudesse exigir o pagamento das rendas a que tem direito sem, concomitantemente, entregar ao locatário os documentos legalmente exigidos para que este possa gozar o bem locado; por outro lado, subsistindo a propriedade do bem na titularidade do locador até ao final do contrato, torna-se evidente que tem de ser sobre ele que recai o dever de obter a referida documentação (para o efeito recorrendo, se necessário, à colaboração do fornecedor, que, note-se, nenhum contrato celebra com o locatário).

Ora, conjugando entre si as cláusulas em apreço – tenha-se em conta que, como justamente se observa no acórdão recorrido, a 10ª, nºs 1 e 2, tem de ser analisada em articulação com a 5ª, nº 2 – conclui-se, em primeiro lugar, que elas excluem de antemão, e em absoluto, a responsabilidade do locador pela falta de entrega do bem locado ao locatário, isto é, pela falta de cumprimento de um dos elementos essenciais integrantes do próprio contrato de locação financeira, e, em segundo lugar, que impedem o locatário de accionar o locador com base na falta de entrega da documentação legalmente exigida para gozar o bem locado, sem que, em contrapartida, o exonerem da obrigação de pagar as rendas devidas. Perante isto, tem de reconhecer-se que as cláusulas são nulas, por violação do disposto nos artºs 18º, al. c),  e 21º, al. h), da LCCG, bem como proibidas, por violação da boa fé contratual (artº 15º do mesmo diploma).

Reforçando as conclusões que antecedem poderá ainda dizer-se, analisando as coisas por outro prisma, que tratando-se de veículos automóveis o dever acessório de obter a respectiva matrícula se inclui na obrigação do locador de conceder o gozo do bem ao locatário, sob pena de este, desacompanhado dos poderes que o concretizam, se tornar  meramente simbólico. Deste modo, quando na cláusula 10ª, nº 2, se onera o locatário com a obrigação de obter a matrícula, do mesmo passo que se estipula a impossibilidade de ele gozar o bem locado se a não obtiver, e, para além de tudo isto, ainda se proíbe este aderente, através da cláusula 5ª, nº 2, de em tal caso suspender o pagamento das rendas, ao cabo e ao resto está-se na prática a impedi-lo de se defender com base na excepção de não cumprimento do contrato, o que em linha recta conduz à nulidade das cláusulas em questão, nos termos do artº 18º, f), da LCCG, segundo o qual “são em absoluto proibidas, designadamente, as cláusulas contratuais gerais que excluam a excepção de não cumprimento do contrato ou a resolução por incumprimento”.
Pronunciando-se sobre duas cláusulas contratuais gerais de conteúdo essencialmente idêntico a uma das que aqui se analisa – a constante do artº 5º, nº 2, - escreveu-se o seguinte no acórdão da Relação de Lisboa de 8/2/11 (Procº 851/09OTJLSB.L1-7), inteiramente transponível para o caso presente e que por isso se reproduz na parte relevante (os sublinhados são da nossa responsabilidade):
“Questiona a R. a sentença que considerou proibida a cláusula 3ª, nº 3, segundo a qual: “O locatário renuncia expressamente a qualquer acção contra o locador, ficando este exonerado quanto à construção, instalação, funcionamento ou rendimento do bem locado.”
Nos termos do art. 21º, al. h), do Dec. Lei nº 446/85, de 25-10, são absolutamente proibidas cláusulas contratuais gerais que “excluam de antemão a possibilidade de requerer a tutela judicial para situações litigiosas que surjam entre os contratantes …”.
Trata-se de preceito cuja finalidade principal é a de evitar um comprometimento genérico do contraente relativamente à intervenção de tribunal arbitral em substituição do tribunal judicial,[1] mas que, por maioria de razão, abarcará as situações, ainda mais graves, em que, de forma genérica e tabelar, se declara a renúncia antecipada ao exercício do direito de acção consagrado no art. 2º do CPC para todos os casos em que se descortine a existência de um direito material.
Não existe um total divórcio entre a referida cláusula geral e o regime geral do contrato de locação financeira, encontrando alguma correspondência no que se estabelece no art. 12º do Dec. Lei nº 149/95, de 24-6, segundo o qual “o locador não responde pelos vícios do bem locado ou pela sua inadequação aos fins do contrato…”. Porém, a mesma norma ressalva o que se estabelece no artº 1034º do CC que, por seu lado, terá de ser conjugado com o disposto no artº 1032º do mesmo diploma.
Daqui resulta que se pode considerar não cumprido o contrato de locação (e também o de locação financeira) se o locador:
- “Não tiver a faculdade de proporcionar a outrem o gozo da coisa locada”;
- Se “o seu direito … estiver sujeito a algum ónus ou limitação que exceda os limites normais inerentes a este direito”; ou
- Se “o direito não possuir os atributos que ele assegurou ou estes atributos cessarem posteriormente por culpa dele”.
Em qualquer dos casos, desde que as circunstâncias determinem “a privação, definitiva ou temporária, do gozo da coisa ou a diminuição dele por parte do locatário”.
Deste modo, sem necessidade de escalpelizar cada uma das referidas circunstâncias e o modo como podem interferir na execução do contrato de locação financeira, resulta claro que a cláusula geral sob suspeita pode implicar para os locatários que à mesma adiram a renúncia ao direito de acção, efeito este que não pode ser permitido por essa via genérica e tabelar.
Por certo que tal cláusula se inscreve num regime contratual que, nos termos do art. 13º do referido diploma, confere ao o locatário o direito de exercer directamente contra o vendedor ou contra o empreiteiro todos os direitos relativos ao bem locado ou resultantes dos contratos de compra e venda ou de empreitada. Por seu lado, nos termos do art. 15º, salvo estipulação em contrário, o risco de perda ou deterioração do bem locado corre por conta do locatário.
.....
Porém, sem embargo da tutela dos interesses do locatário que por essas vias pode ser conseguida, não está de todo eliminada a possibilidade de ocorrência de litígios directamente entre o locatário e o locador atinentes ao bem locado (entretanto adquirido pelo locador) que devam ou possam ser judicialmente dirimidos, tendo em conta o disposto no artº 12º e a ressalva do artº 1034º do CC.
Assim, uma tão genérica declaração de renúncia antecipada, além de não cumprir os limites da prudência e da boa fé que devem pairar sobre as relações contratuais, transporta consigo o perigo de ficarem sem suficiente ou eficaz tutela jurisdicional direitos do locatário, malgrado estes encontrarem acolhimento noutros normativos.
Sem pôr em causa os efeitos do regime geral do contrato de locação financeira inerentes à sua natureza trilateral, a possibilidade de o locatário demandar directamente o fornecedor do bem locado, designadamente em relação a defeitos que o bem apresente, não preenche todo o leque de situações que podem encontrar cobertura directa ou indirecta no ordenamento jurídico, importando salvaguardar, pela exclusão da mencionada cláusula, o exercício do direito de acção que se ajustar à concreta situação.
Quanto basta para que se considere proibida uma cláusula geral que, de forma directa ou indirecta, exclua o exercício do direito de acção constitucionalmente tutelado através do artº 20º da CRP.[2].
Questiona a R. também a decisão na parte referente à cláusula 9ª, nº 3, nos termos da qual:
“Encontrando-se o locatário impossibilitado de utilizar o bem locado por qualquer razão alheia à vontade e/ou responsabilidade do locador, não poderá exigir deste qualquer indemnização ou redução das prestações contratuais.”
Podem repetir-se em relação a esta cláusula os argumentos anteriormente referidos, já que a mesma é susceptível de deixar o locatário desprotegido relativamente a determinadas situações litigiosas, ainda que, em concreto, a locadora não seja responsável pela situação de impossibilidade de utilização do bem locado.
A situação referida pelo Ministério Público nas contra-alegações relativa a um contrato de compra e venda declarado anulado constitui um bom exemplo dos riscos inerentes a uma previsão, sem limites, de inibições genéricas quanto ao exercício de determinados direitos, como também já se decidiu, relativamente a um contrato de locação financeira, no Ac. da Rel. de Lisboa, de 10-4-08 (www.dgsi.pt)”.
Este aresto foi confirmado, com fundamentação essencialmente idêntica,  pelo acórdão deste STJ de 13/10/11 (disponível, de igual modo, em www.dgsi.pt), onde a dado passo se afirma, em conclusão, o seguinte: “As cláusulas contratuais acima referidas estabelecem, manifestamente, uma exclusão genérica e antecipada da responsabilidade da locadora perante o locatário. A responsabilidade da locadora não pode ser completamente previsível em termos concretos – como parece entender a recorrente – pelo que o englobamento desta concreticidade na generalidade da exclusão constante das cláusulas em causa necessariamente acarretaria uma renúncia antecipada a direitos, necessariamente ilegal e inconstitucional. Acima foram referidas as diversas facetas da responsabilidade da locadora. Estabelecer genericamente que qualquer actuação desta, mesmo com as ressalvas estabelecidas no artigo 12º do Decreto Lei 149/95, não daria origem a responsabilidade da locadora perante o locatário, implicaria necessariamente o reconhecimento da renúncia ao direito de acção, em oposição a normas legais e constitucionais acima referidas.
Temos, pois, que bem se decidiu nas instâncias em considerar tais cláusulas nulas e em condenar a ré a “abster-se de as utilizar em todos os contratos de locação financeira (contratos - tipo) que no futuro e no presente venha a celebrar com os clientes”.
Há mais jurisprudência do STJ pronunciando-se pela nulidade de cláusulas contratuais gerais de conteúdo e alcance idêntico ao das sindicadas no presente processo. Assim, por exemplo (transcrevem-se parte dos respectivos sumários): 
Revª nº 1174/99 -7ª, de 17/2/00:
- É nula, por violar o art.º 809º do CC, e absolutamente proibida pelo art.º 18 al. c) do DL 446/85, de 25 de Outubro, a seguinte cláusula: “A não entrega do equipamento pelo fornecedor, bem como a documentação necessária a actos de registo, matrícula e licenciamento, quando o equipamento a tal estiver sujeito, ou a desconformidade do mesmo com o constante nas condições particulares, não exoneram o locatário das obrigações com a BB, nem lhe conferem qualquer direito face a esta, competindo-lhe exigir do fornecedor toda e qualquer indemnização a que se ache com direito, nos termos da lei e do n.º 3 deste artigo”.
- Num contrato de locação financeira incidindo sobre veículos, a cedência do gozo da coisa em que se traduz a obrigação contratual da locadora, abrange o assegurar da entrega dos veículos objecto do contrato e da documentação necessária para que o locatário possa proceder a todos os registos a seu cargo.
Revª  3071/04 – 1ª , de 18/1/05:
- Do contrato consta uma cláusula que estipula, no que interessa considerar, que “A não entrega do bem pelo fornecedor … não exonera o locatário das suas obrigações para com o locador nem lhe confere qualquer direito contra este”.
- Tal cláusula implica a exclusão da responsabilidade contratual da locadora pelo não cumprimento do contrato, quando ele se funde na não disponibilidade do bem locado por parte do locatário, a quem a fornecedora não o entregou, e implica igualmente que o locatário ficará privado de, na referida situação de incumprimento, exercitar a excepção de não cumprimento do contrato perante a locadora, em relação à qual também não poderá resolver o contrato de leasing por incumprimento, renunciando, pois, antecipadamente a tais direitos.
- Uma tal cláusula contraria directamente o disposto nos art.ºs 9, n.º 1, b) e 17 do DL 149/95 e o art.º 809, do CC, além de que é contrária à boa fé contratual e por isso proibida nos termos do art.º 15 e 18 c) e f), do DL 446/85, sendo, por isso, nula (art.º 12, do DL citado e art.º 809, do CC).
Revª nº 626/06 – 6ª, de 4/4/06:
- A cláusula geral do contrato de locação financeira, excluindo a responsabilidade da locadora independentemente do grau de culpa no caso de falta de registo, matrícula ou licenciamento, ou de falta de entrega da documentação necessária para tal, não constitui resultado da conjugação do disposto nos artºs 12º e 13º do DL n.º 149/95, pois não se limita a consagrar a faculdade de a locatária accionar a fornecedora, antes a impedindo de exercer o seu direito à indemnização contra a locadora, pelo que tem de ser considerada nula, face ao disposto nos arts. 12º e 18º, al. c) do DL n.º 446/85, de 25-10, ou pelo menos no artº 809º do CC.
Revª nº 3193/12.0TJLSB.S1 – 1ª, de 24/3/15:
- É desajustada a desoneração da locadora pela falta de registo, matrícula ou licenciamento do veículo, dado que constitui obrigação do locador “conceder o gozo do bem para os fins a que se destina”, como decorre do artº 9.º, nº 1, al. b), do dito DL n.º 149/95, o que passa pelo fornecimento de uma viatura legalizada com vista a poder circular legalmente na via pública, pelo que nessa parte a estipulação é nula.
- É igualmente desajustado considerar ser obrigação do locatário usar dos meios judiciais e/ou extrajudiciais para reagir a qualquer incumprimento do fornecedor já que isso significa colocar nos ombros do locatário uma obrigação que compete, em primeira linha, ao locador, como proprietário do bem. O artº 13.º do DL nº 149/95 concede ao locatário a possibilidade de exercer contra o vendedor do bem “quando disso seja caso, todos os direitos relativos ao bem locado ou resultantes do contrato de compra e venda”, mas deste dispositivo não se poderá retirar que só o locatário deverá (e poderá) usar dos ditos meios contra o fornecedor ou vendedor do bem, devendo-se antes entender que não deve ser ele, única e exclusivamente, usar desses meios. Por isso, a estipulação é ilegal e, consequentemente, nula.
- É também ilegal a exclusão de responsabilidade da locadora pela não entrega do bem locado pelo fornecedor, bem como da documentação necessária a actos de registo, matrícula ou licenciamento, quando tal seja necessário, porque é obrigação da locadora a entrega do bem ao locatário, para que este possa “gozar temporariamente a coisa”.
- É absolutamente desproporcionada, desajustada e injusta a última parte da cláusula 7ª ao estabelecer que, pese embora o bem não lhe seja entregue pela fornecedora, o locatário não fica desonerado das suas obrigações face à locadora, violando a estipulação o disposto no artº 18º, al. c), do DL nº 446/85, e também o princípio da boa fé, pelo que a estipulação é nula.
- Nos casos de perda ou danificação do bem em razão de caso fortuito ou de força maior, em que não existe qualquer nexo de causalidade entre a conduta do locatário e o dano, é desajustada e inadequada a cláusula que estabelece que o risco corre por conta do locatário. Sendo a propriedade do bem da locadora até ao fim do contrato e competindo a esta a obrigação de assegurar ao locatário o gozo temporário da coisa, é adequado que o risco corra por parte do proprietário. A não se entender assim, ir-se-ia onerar de forma inadmissível a posição do locatário, imputando-lhe a perda do bem por evento de que é absolutamente alheio.
- A inclusão de tal disposição no contrato viola a boa fé contratual, pelo que se deve interpretar o artº 15.º do DL nº 149/95, restritivamente, deixando-se de fora todas as situações de perda e deteriorações do bem devidas a caso fortuito ou de força maior. Tal cláusula é, pois, nula.
De tudo quanto se expôs infere-se que a decisão convergente das instâncias não merece qualquer censura, improcedendo ou mostrando-se deslocadas todas as conclusões do recurso.

III. Decisão
Nega-se a revista.
Custas pelo recorrente.

Lisboa, 17 de Novembro de 2005
Nuno Cameira (Relator)
Salreta Pereira