Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08A1471
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: GARCIA CALEJO
Descritores: CONCURSO TELEVISIVO DE ENTRETENIMENTO
Nº do Documento: SJ200807100014711
Data do Acordão: 07/10/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Sumário : O concurso “quem quer ser milionário” é um programa televisivo, assente no factor conhecimento e também em circunstâncias de sorte ou azar (derivados da dificuldade maior ou menor das perguntas em relação ao saber do concorrente), constituindo um entretenimento, ou passatempo, com o oferecimento de um prémio.
O concurso possui as características que permitem integrá-lo juridicamente nas modalidades de jogos de fortuna ou azar e outras formas de jogo a alude o art. 159º da Lei do Jogo (Dec-Lei 422/89 de 2/12).
Devendo ser considerado um jogo lícito, o concurso desencadeia ou origina, tão só, obrigações naturais, como decorre do art. 1245º do C.Civil.
Sendo fonte de obrigações naturais, não é judicialmente exigível o cumprimento das respectivas obrigações, mas em caso de o devedor cumprir espontaneamente, não lhe será permitido exigir a repetição do indevido. A prestação pelo devedor efectuada em tais circunstâncias é juridicamente reconhecida como um cumprimento de um dever social.
Não seria assim se o concurso em causa fosse regulado por lei especial e nela se definissem as obrigações emergentes como civis. O art. 1247º do C.Civil ressalva do regime acima definido, a legislação especial sobre a matéria, pelo que, nessa circunstância, o regime aplicável seria o civil e não o particular das obrigações naturais. Porém, no caso do concurso em causa, não existe qualquer lei especial que regulamente e defina as obrigações dele decorrente, como civis. Daí que não possamos fugir à natureza jurídica definida na Lei do Jogo e, consequentemente, as obrigações dele decorrentes, serão naturais.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I- Relatório:
1-1- AA, residente no Bairro do Pinhal, Lote 5, Carapinheira, Igreja Nova, propôs a presente acção com processo ordinário contra Empresa-A, Lda, com sede na Rua Tierno Galvan, ... ... Lisboa e Empresa-B, SA, com sede na Avenida 5 de Outubro, ..., Lisboa, pedindo a condenação solidária das RR. a pagar-lhe a quantia de 42.250.000$00 líquidos de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, acrescida de juros de mora desde a citação e até integral pagamento.
Fundamenta este pedido, em síntese, dizendo que concorreu e foi seleccionada para participar no concurso televisivo “Quem quer ser Milionário”, produzido pela 1ª R. (responsável pela selecção dos concorrentes e organização do concurso) e publicitado pela 2ª R. (responsável pelo pagamento dos prémios). No concurso respondeu correctamente a 11 perguntas e estava a ganhar a quantia de Esc. 3.500.000$00 quando respondeu à pergunta que lhe daria Esc. 7.500.000$00. A resposta foi considerada errada pelo computador e, consequentemente foi eliminado, passando de Esc. 3.500.000$00 que já havia ganho, para apenas Esc. 1.750.000$00. Posteriormente constatou que a resposta dada havia sido correcta, comunicando tal facto à 1ª R., tendo obtido como resposta que o renunciara ao recurso, porquanto assinara uma declaração nesse sentido. A declaração foi assinada no estúdio, minutos antes de ser iniciada a gravação e enquanto era maquilhado na sala de caracterização, sendo que nenhuma cópia lhe foi dada. Ficou prejudicado com o erro cometido pelas RR. e o comportamento destas para consigo constitui manifesta violação do princípio de boa-fé pela qual se deviam pautar. Em concursos em que só há uma resposta certa, a mesma tem quer ser indubitável e indiscutível. Tem direito a ser ressarcido pelos danos emergentes – viu reduzido de Esc. 3.500.000$00 a Esc. 1.750.000$00, deixando de atingir Esc. 7.500.000$00, valor que deveria ter recebido caso as RR. tivessem reconhecido o erro na formulação da pergunta e/ou respostas e pelos lucros cessantes, por ter sido impedido de chegar aos Esc. 50.000.000$00, onde pela sua experiência, cultura geral, curriculum em concursos, facilidade deste concurso em concreto, e questões colocadas que deram os 50 mil contos aos concorrentes, teria com toda a probabilidade chegado
A R. Empresa-A contestou, sustentando que a decisão em causa é insusceptível de impugnação judicial, quer quanto à admissão, quer quanto à atribuição do prémio, nos termos do art. 463 nº 2 do C. Civil, sendo que o concurso tem a natureza de concurso público e, por isso, a decisão sobre a admissão dos concorrentes ou a concessão do prémio a qualquer deles pertence exclusivamente às pessoas designadas no anúncio ou, se não houver designação ao promitente.
Impugnou no demais os facto articulados pelo A., acrescentando que nenhuma das partes pode afirmar e provar quais as perguntas que iriam ser colocadas caso o A. se mantivesse em jogo e se este teria acertado nas perguntas, inexistindo qualquer expectativa juridicamente tutelada de ganho do prémio máximo.
Termina pedindo a improcedência da acção.
A R. Empresa-B excepcionou a sua ilegitimidade, tendo concluído pela absolvição da instância e do pedido.
No mais, aduziu, de essencial, a argumentação da R. Empresa-A.
O A. replicou sustentando a legitimidade da 2ª R., defendendo ainda que a interpretação da norma prevista no art. 463º C. Civil não pode ser interpretada da forma em que o foi pelas RR. sob pena de colocar em causa o princípio da boa-fé e a tutela da confiança.
Manteve, no mais, a posição assumida na p.i.
Foi proferido despacho saneador-sentença que absolveu as RR. do pedido.
Não se conformando com a decisão, apelou o A. para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 8-7-2004, julgou procedente a apelação determinando-se o prosseguimento do processo, com vista à averiguação dos factos necessários a novo e ulterior julgamento da acção.
O processo seguiu os seus regulares termos, tendo-se procedido à audiência de discussão e julgamento, após o que se respondeu à matéria de facto controvertida e se proferiu a sentença.
Nesta parcialmente procedente a acção e, em consequência, condenou-se solidariamente as RR. a pagarem ao A. o equivalente em euros à importância de 5.750.000$00 respeitante ao capital em dívida acrescida de juros moratórios legais sobre esta quantia, desde a citação (21-11-2000) até integral e efectivo pagamento e à importância de 3.125.000$00 respeitante ao capital em dívida acrescida de juros moratórios legais sobre esta quantia, desde a prolação da sentença e até integral e efectivo pagamento.
Não se conformando com esta decisão, dela recorreram as R. e o A., subordinadamente, para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo-se aí, por acórdão de 22-11-2007, julgado parcialmente procedentes as apelações e, em consequência, revogou-se a sentença recorrida condenando as RR. a pagar ao A. a quantia de 37.409,84 €, acrescida de juros de mora desde a citação e até integral e efectivo pagamento, à taxa de juros legal.
1-2- Não se conformando com este acórdão, dele recorreram as RR. e o A. para este Supremo Tribunal, recurso que foi admitido como revista e com efeito devolutivo.
A recorrente Empresa-A alegou, tendo dessas alegações retirado as seguintes conclusões:
1ª- O art. 463.° do Código Civil refere-se a todo e qualquer concurso público através do qual alguém promete uma prestação a quem se encontrar em determinada condição, a quem possuir determinadas características ou capacidades ou a quem praticar certo facto (positivo ou negativo), incluindo responder acertadamente a perguntas, sejam elas de conhecimento geral, específicas de determinada área ou genéricas:

2ª- As regras constantes do artigo 463° do Código Civil são aplicáveis ao concurso dos autos, o “Quem Quer Ser Milionário”

3ª- O concurso “Quem Quer Ser Milionário” é, na sua essência, um mero entretenimento, um passatempo e juridicamente, deve ser encarado como um jogo lícito:

4ª- Determina o art. 1245.° do Código Civil que o jogo e a aposta, quando lícitos, são fonte de obrigações naturais;

5ª- As obrigações emergentes de concursos ou passatempos televisivos, na medida em que se tratam de jogos, são meramente naturais e não verdadeiras obrigações civis susceptíveis de serem judicialmente apreciadas ou coactivamente impostas:

6ª- A configuração do caso em apreço como um verdadeiro “concurso público” na acepção do art. 463.° do Cód. Civil pressupõe a irrecorribilidade das decisões do júri ou do promotor do concurso, inclusivamente no que diz respeito à concessão do prémio;

7ª- Ao decidir como decidiu, violou o douto Acórdão recorrido o disposto nos artigos 463°, 402° e 1245° do Código Civil:

8ª- Nem o Regulamento do Concurso nem a Declaração de Participação, em particular as suas cláusulas 3. e 7., consubstanciam qualquer nulidade já que aqueles documentos não alteram nem inovam as normas resultantes do art. 463º do Cód. Civil constituindo meras clarificações do regime lega!:

9ª- Não existe, naquelas cláusulas, qualquer violação das disposições do art. 280° nº 1 do C. Civil e do diploma sobre cláusulas contratuais gerais - na medida em que não estamos perante um contrato - nem do disposto no art. 20° nº 1 da CRP;

10ª- O Autor, ora recorrido, tinha o ónus de alegar e provar factos pelos quais se concluísse (i) que a resposta Zorro estava errada e (ii) que a resposta Tarzan estava certa.

11ª- E para tal, teria sido necessário provar inequivocamente, (i) quantas vezes a personagem Zorro foi recriada pelo cinema e (ii) quantas vezes a personagem Tarzan foi recriada pelo cinema.

12ª- Da matéria provada pelas instâncias não se conclui nem um facto nem outro - cfr. as respostas dadas aos quesitos 3° a 6º, 12° e 21º

13ª- Apenas com o conhecimento destes elementos de facto se poderia retirar um conceito de direito de “certo” ou “errado”.

14ª- Os conceitos de certo ou “errado”, de “resposta certa” ou “resposta errada” não são conceitos de facto, mas de direito.

15ª- Ao decidir como decidiu, violou o douto Acórdão recorrido o disposto no art. 342º Código Civil;

16ª- O douto Acórdão recorrido condenou a ora Recorrente no pagamento solidário da quantia de 7.500.000$00 (ou € 37.409.84) correspondente ao valor que seria pago se a resposta fosse considerada certa.

17ª- Porém, não tomou em consideração o prémio já recebido e efectivamente pago ao Autor, ou seja 1.750.000$00 (ou € 8.728,97) pelo patamar atingido e perante a sua prestação no concurso (cfr. alíneas 1) e ac) e resposta ao quesito 14).

18ª- Assim, mesmo que porventura o Autor houvesse logrado provar os factos constitutivos do seu direito (não logrou) o valor real dos danos sofridos nunca seria superior a esc. 5.750.000$00 (ou € 28.680,88).

19ª- Ao decidir como decidiu, violou o douto Acórdão recorrido o disposto nos arts. 561° e 563° do Código Civil;

20ª- A causa de pedir, tal como a configurou o Autor, não consubstancia responsabilidade aquiliana e a ora Apelante não era responsável pelo pagamento dos prémios (cfr. alínea e) da Matéria Assente);

21ª- A obrigação de pagamento dos prémios não é uma obrigação solidária;

22ª- Ao decidir como decidiu, violou o douto Acórdão recorrido o disposto nos artigos 798° e 562° do Código Civil;

A recorrente Empresa-B alegou, tendo dessas alegações retirado as seguintes conclusões:
1ª- A decisão recorrida, ao proceder à distinção entre “concursos de habilidade” e “concursos de conhecimento”, aplica de forma contra legem a norma do artigo 463°, do Código Civil, a qual não prevê esta diferenciação, por se referir a todo e qualquer concurso através do qual alguém se oferece a efectuar uma prestação a quem se encontrar nas condições publicitadas por prévio anúncio público, sendo, as decisões acerca da admissibilidade dos concorrentes ou da concessão de prémios aos mesmos, da competência exclusiva das pessoas designadas no anúncio aludido ou, em caso de falta de designação, do promitente.

2ª- A exclusão da previsão do artigo 463° do Código Civil, quando se trate do presente programa, porque as respostas às questões nele colocadas serão mais objectivas e, por isso, à partida, não tão dependentes da opinião (subjectiva) de um júri ou do promitente, por aplicação de um critério actualista na interpretação da lei é, do mesmo modo, ilegal, por violação daquela mesma norma, uma vez que, sendo a resposta correcta pré-seleccionada pela promitente, deverá considerar-se que se mantém o perfeito enquadramento na previsão da norma aludida, já que a atribuição do prémio está dependente de decisão exclusiva do júri ou do promitente acerca de quais são as respostas a serem consideradas certas, o que é feito de acordo com os seus critérios quanto à veracidade e idoneidade das fontes.

3ª- A especificidade da actuação do promitente, no âmbito do concurso dos autos, reside, maxime, no facto de a decisão de atribuição do prémio, em virtude da escolha da resposta seleccionada pelo promitente, ser feita a priori, na fase de selecção das respostas por este último, e não a posteriori, por um juízo de valor do promitente após a resposta dada pelo concorrente, o que não pode ser considerado impeditivo da aplicação da norma do artigo 463° do Código Civil, sob pena de decisão contra legem

4ª- O concurso dos autos enquadra-se, para mais na previsão da norma do artigo 463°, do Código Civil, uma vez que às perguntas feitas no concurso objecto dos autos nem sempre correspondem respostas objectivas (como é disso exemplo a problemática subjacente a este processo), já que, muitas vezes, as fontes consultadas apresentam resultados contraditórios, devendo a promitente escolher, nesse caso, a resposta que lhe é dada pela fonte que considera mais fidedigna.

4ª- A decisão de dividir o programa objecto dos autos em duas fases, às quais pertencerá, a cada uma delas, uma determinada qualificação jurídica, não pode proceder, sob pena de ilegalidade, por violação das normas dos artigos 463° e 459° do Código Civil, porque aquele programa deve ser considerado, no seu todo, um “jogo”, sujeito às regras jurídicas do “concurso público” (artigo 463°, do Código Civil) e, nunca às da promessa pública (artigo 459°, do Código Civil).

5ª- Com efeito, o programa televisivo em causa, muito embora assente no factor conhecimento, assenta, também, nos factores sorte ou azar, os quais se revelam no grau de dificuldade das perguntas formuladas e na natural apetência de cada jogador, sendo, assim, na sua essência, um mero entretenimento, um passatempo e, por isso, juridicamente, um “jogo”, nos termos do artigo 159°, nºs 1 e 2 da Lei do Jogo, pelo que, a sua não qualificação como tal é ilegal por violação das norma acima aludidas e, ainda, consequentemente, do regime previsto no artigo 463° do Código Civil.

6ª- Apesar de a Lei do Jogo ser posterior à elaboração do Código Civil de 1966, legislador optou por não alterar o regime geral (e, assim, distinguir por lei especial, os concursos de conhecimentos e os concursos transmitidos na televisão determinando, para os mesmos, um regime especifico), pelo que, não o tendo feito, se conclui necessariamente - sob pena de violação dos nºs 1 e 3 do artigo 9°, do Código Civil - que a estes concursos se aplica o regime dos concursos em geral.

7ª- Porque em ambas as fases do programa televisivo dos autos são criadas obrigações, previamente anunciadas, a quem responda e supere etapas nos termos convencionados pelo promitente, deverá este programa ser considerado um simples jogo (e não verdadeiro contrato civil) e, por isso, meramente gerador de obrigações naturais, estando sujeitos ao seu regime, não chegando a criar verdadeiras obrigações civis (cfr. artigos 402º a 404° e 1245° todos do Código Civil).

8ª- Ao distinguir o que não se pode diferenciar - porquanto têm a mesma origem, o mesmo funcionamento e as mesmas consequências - , o Acórdão recorrido aplicou de forma errada, salvo o devido respeito, as normas dos artigos 459° e 463°, qualificando a “segunda fase” ou “fase principal” do jogo dos autos, sem o dever fazer, como sujeita ao regime da primeira daquelas normas, e furtando-se à qualificação da mesma situação por aplicação do regime consignado na segunda das normas mencionadas.

9ª- Sem conceder mesmo que assim não se entendesse - o que se equaciona como mera hipótese -, o facto de a decisão recorrida fazer assentar a exclusão do regime do “concurso público”, num critério de objectividade da resposta a ser dada, é, salvo o devido respeito, verdadeiramente contraditório e inoperante, já que, na “fase inicial do jogo”, qualificada como “concurso público” existe concorrência mas, também, obrigatoriedade de responder correctamente acerca de realidades objectivas (só que de forma mais rápida que os demais concorrentes, para se ser seleccionado para a etapa seguinte), pelo que é a adopção daquele critério, como de exclusão do regime previsto no artigo 463°, do Código Civil, violador desta norma.

10ª- Para mais, na chamada, pela decisão recorrida, de “fase principal do jogo”, subsistem as características próprias do jogo: a sorte, o azar, o nervosismo, as diferentes fontes bibliográficas e a inexistência de certezas absolutas; isto é, subsistem as características que impõem a qualificação, também desta fase, como “concurso público” e, por isso, sujeita, sob pena de ilegalidade, às regras do artigo 463°, do Código Civil.

11ª- Sem prescindir do que acima se deixa dito, a verdade é que, mesmo que fosse de se entender pela não aplicação plena do regime do “Concurso Público”, previsto no artigo 463º do Código Civil - o que apenas por cautela de patrocínio se equaciona - e, por isso, se considerasse que a decisão da produção sobre a resposta dada pelo Autor recorrido fosse susceptível de sindicância, nunca poderiam as Rés ter sido condenadas no seguimento do julgamento dos factos aduzidos pelo Autor, já que tendo este o ónus de provar que (1) a resposta que deu (Tarzan) estava certa e que (2) a resposta aceite pela 1ª Ré Empresa-A (Zorro) estava errada e não o tendo feito - tendo apenas provado existirem diferenças em bases bibliográficas idóneas -, tais factos constitutivos, aliás, do direito do Autor, não podem resultar provados, sob pena de violação dos artigos 341° e seguintes do Código Civil, mormente do artigo 342°, do diploma citado.

12ª- Assim, qualquer condenação das RR. é ilegal, por violação do regime do ónus da prova previsto nas normas do artigo 341° e seguintes do Código Civil e também e consequentemente, por violação das regras relativas aos factos atendíveis para efeitos de prolação de decisão (norma do artigo 659° do Código de Processo Civil).

13ª- O Recorrido pede o pagamento de uma indemnização, pelo que, não obstante terem ambas as Rés promovido o concurso, a responsabilidade pelo pagamento de indemnizações não é de ambas, já que, não só não estamos perante obrigações solidárias, como a agora Recorrente cumpriu já com todas as suas obrigações - mormente de pagamento do prémio atribuído, para todos os efeitos, pela 1ª Ré Empresa-A ao Recorrido - não lhe competindo seleccionar as perguntas ou respostas que constarão do concurso ou, sequer, emitir juízos de valor acerca da correcção das mesmas, pelo que, à mesma, não pode ser assacada qualquer responsabilidade.

14ª- A responsabilidade pelo pagamento, a ser imputada a alguma das Rés - o que não se concede - deverá ser imputada à 1ª Ré Empresa-A, que tinha a seu cargo a função de seleccionar as perguntas, as hipóteses de resposta e a resposta certa no concurso em causa nos autos e que, por sua culpa, ou mera negligência, ocasionou a situação dos autos.

15ª- Assim, a decisão recorrida, ao imputar à agora Recorrente Empresa-B, 2ª Ré, qualquer responsabilidade, condenando-a no pagamento de indemnização, é violadora as normas dos artigos 483° e 562° do Código Civil.

16ª- Certamente por lapso, cuja correcção desde já se requer, o douto aresto recorrido condenou a agora Recorrente ao pagamento solidário de € 37.409,84 (correspondente a Esc. 7.500.000$00), sendo que a mesma procedeu oportunamente, como a tanto estava obrigada, ao pagamento do prémio do Recorrido, no valor de € 8.728,97 (correspondente a Esc. 1.750.000$0O) - cfr. alíneas L) e AC) da Matéria Assente e quesito 14°, julgado provado, da Base Instrutória —, pelo que, caso fosse de pagar alguma quantia ao Recorrido Autor, o valor nunca excederia os € 28.680,88 (correspondente a Esc. 5.750.000$00 – valor apurado na 1ª instância (cfr. ponto 1 daquela decisão).

O A. alegou, tendo concluído da seguinte forma, após ter sido notificado para sintetizar as conclusões:
1ª- A douta sentença recorrida deve ser alterada na medida em que atenta a factualidade provada e apurada, e interpretando-se e aplicando as normas jurídicas, impunha-se o provimento do recurso subordinado, bem como o entendimento plasmado nas contra alegações da apelação.

2ª- Na verdade, « resposta que o A. deu «Tarzan», terá de considerar-se que estava correcta, tinha que ser considerada certa (…) os demais factos provados apontam no sentido da resposta estar cena e correcta (...) a resposta deveria ter sido considerada como certa, e está certa (in acórdão recorrido)

3ª- O programa “Quem quer ser Milionário” foi qualificado, e bem, como um misto de concurso público e promessa pública, sendo que a promessa era quem acertar ganha 50 mil contos.

4ª- O A. acertou e foi excluído do programa, cfr douto acórdão recorrido « O A. foi excluído do concurso apesar de ter respondido correctamente e certo à pergunta efectuada».

5ª- Pelo que é forçoso concluir que as RR. prometeram e não cumprirem, o que tem como consequência a obrigação de pagamento do prémio, nos termos do art. 459º do CC e jurisprudência do STJ de 20.09.06 onde se decidiu que a promessa pública completa e firme desencadeia, de per si um dever de prestar por parte do promitente e consolida o respectivo direito na esfera do beneficiário.

6ª- Isto é tanto mais evidente quando a promessa pública sub judice era de carácter oneroso, ou seja, representa o correspectivo da vantagem económica que a situação proporciona às promitentes. (in casu audiência televisiva, share, receitas de publicidade)

7ª- Não obstante os factos e o reconhecimento por parte da Empresa-B que não era possível fazer perguntas sem margem de erro (!) - vide conclusões da apelação -, bem como a análise do direito aplicável, concluíram as instâncias recorridas que a condenação no pagamento do prémio total se baseava em meros juízos de probabilidade.

8ª- Olvidaram os arestos recorridos que foram as RR. que ilícita e contrariamente à boa fé obstaram à concretização dessa virtualidade, RR. que são premiadas pele infracção, pelo seu comportamento reprovável e eticamente censurável, ao não ser condenadas no pagamento do prémio prometido.

9ª- Ao julgar como julgou o tribunal a quo não respeitou o necessário equilíbrio entre a posição jurídica das partes como determina o princípio da materialidade subjacente, visto que premeia o infractor e assim beneficia-o.

10ª- O aresto ora em crise ignorou a dualidade da pena em sede de responsabilidade civil, a qual se destina a reparar prejuízos sofridos, mas desempenha também uma função sancionatória ao representar a reacção da ordem jurídica contra o comportamento desviante que lhe deu causa, e aqui adquire uma vertente pedagógica e preventiva quanto a comportamentos futuros.

11ª- Tendo respondido acertadamente o A. foi excluído, e a consequência de tal exclusão contrário às regras estabelecidas e publicitadas pelas RR., na decisão do tribunal a quo, não é nenhuma.

12ª- Apesar de estarmos perante promessa pública de pagamento de prémio. Apesar do princípio da boa fé. Apesar do dever de obediência à Lei Fundamental.

13ª- O ora Recorrente desempenhou o seu papel: concorreu, preparou-se e respondeu acertadamente (vide elenco de factos provados)

14ª- A confiança do A. é juridicamente tutelada e atenta a primazia da materialidade subjacente as RR deviam agir não só na aparência, mas substantivamente de boa fé. Nomeadamente, sendo diligentes e cuidadosas na elaboração das perguntas e respostas.

15ª- Atento o princípio da boa fé, o manifesto desequilíbrio entre as partes, a função social das RR e do programa transmitido não só é de pagar o prémio prometido ao A., mas fazê-lo é um imperativo de modo a obter o efeito pedagógico que marque a inexistência no nosso ordenamento de lemas de acordo com os quais a ilicitude, o desrespeito pelo prometido, compensam, beneficiando-se os infractores.

16ª- Seja à luz do regime da promessa pública, seja de acordo com o princípio da boa fé, ou da responsabilidade civil contratual, seja à luz da figura dos danos punitivos, devem as RR. ser condenadas no pagamento ao A.. da totalidade do prémio prometido, visto que foram aquelas que contra a lei, o regulamento, a boa fé e o direito excluíram o A. injusta, indevida e ilicitamente.

17ª- Na verdade, é nosso entendimento que seja qual for a norma e o regime jurídico a que se subsuma a situação dos presentes autos, promessa pública/responsabilidade civil contratual, a conclusão não pode ser outra que não passe pela condenação das RR. no pagamento do prémio na totalidade, pois foram aquelas quem faltou à verdade, à promessa, à lealdade e às obrigações publicitadas e conhecidas do público.

18. O acórdão recorrido interpretou mal o direito aplicável, pois ao minimizar a questão do pagamento do diferencial do prémio a juízos de probabilidade, ignorou que se está perante promessa pública, a qual nas decisões do Supremo tem vindo a ser entendida como um negócio unilateral capaz de criar unilateralmente obrigações e ficando o promitente vinculado ao cumprimento da obrigação prometida. -Ac. STJ de 04.02.92-

19ª- O douto acordo recorrido não interpretou a lei nem a aplicou em conformidade, violando, assim, as normas constantes dos arts. 459°, 562°, 762°, n° 2, do CC, e arts. 13°, 20°, nº 1 e 4, 37° n° 1 e 4, 73º n° 1 e 3, 86°, nº 1, e 204° da CRP, que para os devidos efeitos legais desde já se invocam, não assacando os correspondentes efeitos legais à matéria factual provada e às sues próprias afirmações;

20ª- Pelo que deve o mesmo ser revogado e substituído por outro, que aplicando as normas constantes dos arts. 459° nº 1, 809°, 762°, 798°, 799°, todos do CC e vista a prova produzida e pelo mais elementar sentido de justiça reconheça a existência do crédito do A., o seu direito à totalidade do prémio prometido subtraído da quantia recebida, condenando as RR. no seu pagamento, assim se fazendo cabal aplicação do Direito e fazendo-se, realmente e em concreto, Justiça, reequilibrando a posição das partes, tutelando a confiança do A., assim se almejando o fim último do Direito, a Justiça.
Não houve contra-alegações.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II- Fundamentação:
2-1- Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos apenas as questões que ali foram enunciadas (arts. 690º nº1 e 684º nº 3, ex vi do disposto no art. 726º do C.P.Civil).
Nesta conformidade será a seguinte a questão a apreciar e decidir:
- Natureza jurídica do concurso em causa.
2-2- Das instâncias vem fixada a seguinte matéria de facto:
a) Os RR. promoveram um concurso televisivo de cultura geral com o nome “Quem quer ser Milionário”.
b) A 1ª R. promoveu o aludido concurso, sendo a entidade responsável pela selecção dos concorrentes e organização do concurso, nomeadamente, a elaboração das questões a serem colocadas.
c) A 2ª R. publicitou o aludido concurso, emitiu-o e era a entidade responsável pelo pagamento dos prémios.
d) O A. concorreu e foi seleccionado para participar no concurso “Quem quer ser Milionário”.
e) O A. participou no concurso “Quem quer ser Milionário” em 3 e 4 de Fevereiro de 2000, tendo a gravação do programa sido emitida em 13 e 14 de Março.
f) O A. respondeu correctamente a onze perguntas colocadas pelo apresentador do concurso, BB.
g) Estava a ganhar a quantia de Esc. 3.500.000$00 (três milhões e quinhentos mil escudos) quando respondeu à pergunta que lhe daria Esc. 7.500.000$00 (sete milhões e quinhentos mil escudos).
h) A pergunta colocada ao A. foi: “Qual destas personagens de banda desenhada foi mais vezes recriada pelo cinema? A) Zorro B) Super-Homem C) Tarzan D) Batman.”
i) O A. escolheu a opção C) Tarzan.
j) A 1ª R. considerou como certa a hipótese A) Zorro.
l) Ao dar a resposta C) o A. foi eliminado passando de Esc. 3.500.000$00 que já havia ganho, esperando passar para os Esc. 7.500.000$00, para apenas 1.750.000$00.
m) O A. contactou telefonicamente a produção do programa, a 1ª R. em 8/2/2000.
n) Falou com a chefe de produção do programa, CC.
o) A chefe de produção enviou ao A. um fax com cópia do livro que a produção usou como fonte em 10/2/2000 e sugeriu ainda a consulta da Cinemania 96.
p) No elemento enviado pela produção consta em rodapé o seguinte texto: “Zorro has been portrayed on screen more often than any other comic-strip character: from the Mark of Zorro (1922) to this year’s The Mask of Zorro, he has appeared in70 films”.
q) Insistiu junto da 1ª R., na pessoa de CC, a qual solicitou ao A. que fosse ao escritório da 1ª R. para terem uma reunião.
r) No dia seguinte, a mesma funcionária telefonou ao A. e informou-o que o assunto estava com DD e com os advogados que iriam entrar em contacto com o A..
s) O que o A. fez remetendo o fax e a carta registada de fls. 123 a 127.
t) Surgiu nos jornais “O Crime” e “Tal e Qual” notícias do A. sobre o concurso dos autos.
u) No concurso “Quem quer ser Milionário” o concorrente sabe qual o teor da pergunta seguinte e opta por continuar em jogo ou sair com o valor que já está a ganhar.
v) Consta, assinaladamente, do regulamento do concurso “Quem quer ser Milionário”, sob o parágrafo 7., o seguinte: “Declarações de Participação”. Todos os participantes em cada sessão (concorrentes e respectivos apoiantes), devem assinar uma declaração que autorize a produção e a estação de televisão a emitir posteriormente as imagens da referida sessão. A declaração encontra-se em anexo”.
x) Antes de ser iniciada a gravação do concurso dos autos, o A. assinou a declaração datada de 3/3/2000, onde consta, assinaladamente, o seguinte: “Eu, AA, morador no Bairro do Pinhal, It 5, Carapinheira, 2640 Mafra, com o B.I. nº 7727533 do Arquivo de Identificação de Lisboa, maior de 18 anos, declaro ter tomado conhecimento e estar de acordo com as seguintes condições de participação no referido programa”. “3. Tenho conhecimento das regras do programa e aceito as condições da produção durante a minha participação na gravação do programa, renunciando a qualquer recurso sobre a matéria.” e ainda: “7. Ao participar no concurso, aceito também que a produção possa pôr termo à minha presença e participação no mesmo em qualquer altura, tanto anteriormente ao início das gravações, como durante ou no final das mesmas, e que a decisão para tal atitude lhe cabe inteiramente e será irrecorrível. Concordo também que a decisão da produção e todos os pontos será irrecorrível”.
z) Em v) supra, refere-se um regulamento, junto a fls. 199 e sgs. com a contestação da Empresa-A, e cuja veracidade não foi posta em causa por qualquer das partes, como julgou o Tribunal da Relação de Lisboa a fls. 352.
aa) De acordo com os nºs 1 e 2 do regulamento, o concurso em causa é um programa de televisão com 65 sessões de 25 minutos cada.
ab) De acordo com o seu nº 5 poderiam candidatar-se pessoas com mais de 18 anos, seleccionadas mais tarde por entrevistas e que, sendo-o, seriam depois agrupadas em número de 6 por cada sessão.
ac) De acordo com o seu nº 8, a sessão iniciar-se-ia pela apresentação de 6 concorrentes, logo submetidos a uma pergunta de cultura geral, sendo escolhido para o jogo principal aquele que mais depressa respondesse acertadamente; e este jogo principal consistia na formulação de sucessivas perguntas de escolha múltipla, no máximo de 15, ganhando o concorrente em prova um prémio em dinheiro de valor predeterminado pela resposta acertada à primeira delas, sendo-lhe então, apresentada a pergunta seguinte, poderia o concorrente desistir ao conhecê-la – com o que ganharia o valor obtido com a pergunta anterior – e, não o fazendo, ganharia com uma resposta acertada outra quantia também predeterminada, ou regressaria, sendo a resposta errada, ao valor estabelecido para o patamar imediatamente anterior, sendo eliminado.
ad) Já está decidido na fase inicial do “Quem quer ser Milionário” onde se procedia à escolha para intervir no jogo principal daquele que, entre os 6 concorrentes em confronto, mais depressa respondesse acertadamente à pergunta feita, havendo competição entre os concorrentes, estaríamos face a uma fase caracterizada de concurso público.
ae) Na fase seguinte, a do jogo principal – em que intervinha apenas o concorrente apurado na anterior, não se configura a mesma como concurso público, antes se configurando como uma promessa pública de pagamento, ao único concorrente ainda em actuação, de prémios de valores predeterminados consoante o número de respostas certas dadas.
af) Decidiu o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, a fls. 359, como adequada a qualificação dos actos de promoção e realização do “Quem quer ser Milionário” como um misto de concurso público e de promessa pública.
ag) Decidiu igualmente o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa a fls. 360, que os pontos 3 e 7 da declaração referida em x) estão feridos de nulidade, pelo que não obstam à eventual procedência da presente acção.
ah) Foram as seguintes as perguntas para o patamar de Esc. 50.000.000$00: “Quem ganhou o prémio Nobel da Paz em 62? Linus Pauling e “Quem escreveu “Que diz Molero? Diniz Machado”.
1 – A 1ª ré considerou como certa a resposta A) Zorro.
3 – Logo a seguir à sessão do concurso, na consulta que o A. fez junto do Cinemania 96, que é uma enciclopédia em CD-Rom da Microsoft que abrange cerca de 25 mil filmes, conseguiu o resultado que faz doc. de fls. 41 a 89.
4 – No Corel Movie Guide, outra enciclopédia em CD-Rom que tem informação sobre mais de 90 mil filmes, o A. conseguiu o resultado que faz o doc. de fls. 90 a 104.
5 – O A. procedeu à consulta do International Movie Database, uma gigantesca base de dados disponível na Internet que contém muitos milhares de filmes de todo o mundo e conseguiu o resultado que faz doc. de fls. 105 a 110.
6 – Provado apenas que em consulta mais recente, já o aludido site apresentava o resultado que faz doc. de fls. 111 a 117.
8 – O A. procurou o livro “The Guiness Book Film” a que se refere o fax de o), fotocopiado a fls. 118, não o tendo encontrado, pois pretendia ver que referências mais se encontravam aí, nomeadamente a filmes com o Tarzan.
9 – Foi então à Cinemateca Portuguesa, entidade que dispõe de um vasto leque de informações e publicações sobre cinema.
10 – O livro “The Guiness Book of Film” não existe na Cinemateca.
11 – Foi facultado ao A. a consulta de um outro livro intitulado “The Guiness Book of Film- Facts and Feats” de Patrick Robertson, considerado um dos maiores peritos mundiais de cinema.
12 – Nesse livro, capítulo respeitante às personagens do cinema, capítulo sobre “characters and themes” é referido o seguinte: “The other legendary characters most frequently represented on screen have been (…) Tarzan – 83 films (…) Zorro – 65 films” sic, com referência a fls. 121 e 122.
13 – A resposta que o A. deu era a de maior grau de certitude das possíveis, corresponde ao resultado das buscas mais fiáveis e criteriosas e pode com elevada segurança dar-se como a correcta.
14 – Ao dar a resposta C) o A. foi eliminado passando de Esc. 3.500.000$00 que já havia ganho, esperando passar para os Esc. 7.500.000$00, para apenas 1.750.000$00.
15 – Face à actuação das RR., o A. sofreu perdas patrimoniais, uma vez que a resposta que deu devia ser considerada certa, ganhando, então, o A. com a 12ª pergunta 7.500.000$00, líquidos de impostos, e ainda porque o A. foi impedido de continuar no jogo, vendo assim cortada a possibilidade de chegar ao prémio máximo de 50.000.000$00, líquidos de impostos.
16 – O A. já concorreu por diversas vezes e desde há alguns anos a concursos e prepara-se para os mesmos.
17 – Além do que constitui o seu enriquecimento pessoal, as leituras que faz, os filmes a que assiste e as viagens que faz na Internet, o A. prepara-se sempre que vai a um concurso, lendo sobre uma série de assuntos, estudando curiosidades e documentando-se sobre os mais diversos temas.
18 – Nesta fase do concurso “Quem quer ser Milionário” dava-se a possibilidade de escolher uma entre quatro hipóteses de resposta.
21 – A R. Empresa-A procedeu à consulta do International Movie Database, em 19/12/2000, procurando por palavras nos títulos, e conseguiu o resultado que faz doc. de fls. 207 a 211.-----------------------------------
2-3- Como ponto prévio, haverá desde logo a sublinhar-se que as circunstâncias mencionadas nas alíneas acima referidas sob os nºs ad) e ae), porque não constituem factos (constituindo antes a qualificação jurídica do concurso em causa, objecto ainda em discussão nos autos) não se manterão no acervo dos factos provados. Considerar-se-á pois a matéria de facto acima referenciada, expurgada das ditas circunstâncias.
Dado que a questão essencial que se coloca nos presentes autos (natureza jurídica do concurso televisivo em causa) se põe em relação a todos os recursos, optamos por conhecer das revistas em conjunto.
Não poderemos deixar de começar por notar que a qualificação jurídica dada ao concurso pelo acórdão da Relação de Lisboa (fls. 350 e segs.) não nos vincula porque, como se sabe, o efeito do caso julgado só incide em relação aos termos e limites em que se profere decisão, como decorre do disposto no art. 673º do C.P.Civil.
Posto isto vejamos:
Como os factos provados demonstram, o A. concorreu, foi seleccionado e participou no concurso televisivo “quem quer ser milionário”. Segundo o A., em determinado patamar do concurso respondeu a uma questão correctamente, mas a direcção do concurso considerou a resposta errada e, consequentemente, não só acabou por receber uma quantia inferior ao patamar em que se encontrava, como foi impedido de ascender ao prémio máximo, 50.000.000$00.
Pondo de parte agora a questão de se saber se a resposta dada foi, na realidade e para além de qualquer dúvida, certa, face aos factos provados não se nos afigura polémica a circunstância de o A. ter concorrido e participado num programa/concurso de entretenimento televisivo e simultaneamente de aferimento de conhecimentos.
No acórdão da Relação recorrido, reafirmando-se o entendimento que antes havia tido o acórdão da mesma Relação de 8-7-2004 – fls. 317 a 361-, considerou-se tal contrato como um misto de concurso público e de promessa pública.
Não podemos aceitar esta construção.
Trata-se de um programa televisivo, assente no factor conhecimento e também em factores de sorte ou azar (derivados da dificuldade maior ou menor das perguntas em relação ao saber do concorrente), constituindo, naturalmente um entretenimento, ou passatempo, com o oferecimento de um prémio.
O concurso tem, pois, as características que permitem integrá-lo nas modalidades de jogos de fortuna ou azar e outras formas de jogo a alude o art. 159º da Lei do Jogo (Dec-Lei 422/89 de 2/12). Com efeito, definindo as modalidades afins dos jogos de fortuna e azar e outras formas de jogo, estabelece o nº 1 deste artigo que “modalidade afins dos jogos de fortuna ou azar são operações oferecidas ao público em que a esperança de ganho reside conjuntamente na sorte e perícia do jogador, ou somente na sorte, e que atribuem como prémios coisas com valor económico”. Acrescenta o nº 2 da disposição que “são abrangidos pelo disposto no número anterior, nomeadamente, rifas, tômbolas, sorteios, concursos publicitários, concursos de conhecimentos e passatempos”.
No que respeita à legalidade de concursos de conhecimentos televisivos (e também dos organizados por jornais, revistas, emissoras de rádio e concursos publicitários de promoção de bens e serviços) estipula o art. 161º da mesma Lei do Jogo que “não é permitida a exploração de qualquer modalidade afim do jogo de fortuna ou azar e outras formas de jogo referidas no artigo 159º por entidades com fins lucrativos, salvo os concursos de conhecimentos, passatempos ou outros, organizados por jornais, revistas, emissoras de rádio ou de televisão, e concursos publicitários de promoção de bens e serviços”.
Estabelece este artigo a legalidade dos concursos de conhecimentos, passatempos ou outros, organizados pela televisão (e também por jornais, revistas, emissoras de rádio ou de televisão e concursos publicitários de promoção de bens e serviços). Perante esta disposição e se dúvidas houvesse, fica claro que nos concursos de conhecimentos e passatempos a que alude o art. 159º, devem inscrever-se os organizados pela televisão.
Em síntese, sendo como é, o concurso em causa um programa televisivo de aferimento de conhecimentos, em que o factor sorte ou azar tem, pelas razões aduzidas, evidente relevância, o mesmo está incluído, juridicamente, numa modalidade de jogo afim do jogo de fortuna e azar.
Devendo ser considerado um jogo lícito, o concurso desencadeia ou origina, tão só, obrigações naturais, como decorre do art. 1245º do C.Civil (diploma de que serão as disposições a referir sem menção de origem) (1) .
As obrigações naturais fundam-se num mero dever de ordem moral ou social, o seu cumprimento não é judicialmente exigível, mas corresponde a um dever de justiça (art. 402º). Estão estas obrigações sujeitas ao regime das obrigações civis em tudo o que não se relacione com a realização coactiva da prestação (art. 404º), pois, como já se viu, o seu cumprimento não é judicialmente exigível.
Por outro lado, não pode ser repetido o que for prestado em cumprimento de uma obrigação natural, excepto se o devedor não tiver capacidade para efectuar a prestação (art. 403º).
Quer isto tudo dizer que os jogos, quando lícitos, são fonte de obrigações naturais, sendo que não é judicialmente exigível o cumprimento das respectivas obrigações. Porém, no caso de o devedor cumprir espontaneamente, não lhe será permitido exigir a repetição do indevido. A prestação pelo devedor efectuada em tais circunstâncias é juridicamente reconhecida como um cumprimento de um dever social.
Nesta conformidade, a obrigação em que o A. fundamenta o seu pedido, tem a carácter de natural e, consequentemente, não pode ser exigível judicialmente.
Não seria assim se o concurso fosse regulado por lei especial e nela se definissem as obrigações emergentes como civis. O art. 1247º ressalva do regime acima definido, a legislação especial sobre a matéria, pelo que, nessa circunstância, o regime aplicável seria o civil e não o particular das obrigações naturais.
Porém, no caso do concurso em causa, não existe qualquer lei especial que regulamente e defina as obrigações dele decorrente, como civis. Daí que não possamos fugir à natureza jurídica definida na Lei do Jogo e, consequentemente, as obrigações dele decorrentes, serão naturais.
Não podendo o cumprimento ser judicialmente exigível, a acção fundando-se no não cumprimento da obrigação por parte das RR., terá que improceder.
Mas mesmo que assim não fosse, a nosso ver, nunca o concurso em causa, com as características que os factos provados afirmam, poderia ser entendido como um com contrato misto de promessa pública e concurso público, a que aludem os arts. 459º e 463º, como sustenta a Relação de Lisboa no acórdão de fls. 350 e segs. e no douto acórdão recorrido.
Na verdade, um concurso com aquelas características deveria ser antes integrado no concurso público a que alude o art. 463º.
Estabelece o art. 459º nº 1 que “aquele que, mediante anúncio público, prometer uma prestação a quem se encontre em determinada situação ou pratique certo facto, positivo ou negativo, fica vinculado desde logo à promessa”. Acrescenta o nº 2 da disposição que “na falta de declaração em contrário, o promitente fica obrigado mesmo em relação àqueles que se encontrem na situação prevista ou tenham praticado o facto sem atender à promessa ou na ignorância dela”.
A disposição fala em promessa pública, donde desde logo resulta que se trata de um compromisso, publicamente divulgado, dirigido à generalidade de pessoas que se encontrem em determinada situação ou pratiquem um facto, da realização de uma prestação.
Trata-se de um negócio jurídico unilateral dado que existe apenas a manifestação de vontade do declarante que fica vinculado à prestação, sendo que no caso de promessa pública se exige a publicidade. Como exemplos de promessa pública os autores costumam referir-se ao caso em que alguém promete alvíssaras a quem encontrar um objecto perdido ou a quem descobrir um crime (vide C.Civil Anotado Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, Vol. I, 4ª edição, pág. 441).
A obrigação tem por fonte imediata a promessa, nascendo no momento do anúncio. Destina-se a uma pessoa indeterminada, mas determinável pelo facto de se vir a encontrar em determinada situação ou vir a praticar o facto esperado.
A prestação poderá ser onerosa ou gratuita, consoante ela representa, ou não, vantagem económica para o visado.
Estabelece o art. 463º nº 1, quanto aos concursos públicos, que “a oferta da prestação como prémio de um concurso só é válida quando se fixar no anúncio público o prazo para apresentação dos concorrentes”. Acrescenta o seu nº 2 que “a decisão sobre a admissão dos concorrentes ou a concessão do prémio a qualquer deles pertence exclusivamente às pessoas designadas no anúncio ou, se não houver designação, ao promitente”.
Aqui também se está perante um negócio unilateral, sendo que o objectivo do promitente é a de premiar algum ou alguns dos concorrentes. A escolha sobre os candidatos e atribuição a um ou a vários de prémios, pertence exclusivamente às pessoas designadas no anúncio (júri) ou, se não houver, ao promitente.
Como refere o Prof. Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, Vol. I, 9ª edição, pág. 459 “os problemas fundamentais que, na prática, costuma pôr-se a propósito dos concursos públicos são os dois a que a lei faz expressa alusão: o da admissão (ou exclusão) dos concorrentes e o da atribuição do prémio oferecido. A resolução deles compete, em primeiro termo, às pessoas designadas no anúncio (a que, em regra, se dá o nome de membros do júri); na falta de designação (ou tendo o júri sido extinto por qualquer causa), ao próprio promitente…”.
Por aqui se distingue esta promessa daquela (também designada promessa pública simples). Na verdade, naquela não existe qualquer admissão (prévia) de concorrentes, nem qualquer decisão sobre a concessão do prémio. O declarante limita-se, perante um anúncio público, a prometer uma prestação a quem se encontrar em determinada situação ou a quem pratique o facto esperado.
Ora no caso vertente, porque existia decisão sobre admissão de concorrentes e a deliberação sobre a atribuição de prémios pertencia a um júri (produção do programa), sem dúvidas de maior poderíamos afirmar que o concurso em causa deveria ser reputado como um concurso público e não como uma promessa pública.
No concurso público, a decisão sobre a concessão de prémio pode não obedecer unicamente a critérios puramente objectivos, sendo admissível uma componente subjectiva, o que sucederá, por exemplo, quando uma pergunta, segundo fontes diversas, possa ter mais que uma resposta.
Devendo ser reputado como concurso público, nos termos do nº 2 do art. 463º, a decisão sobre atribuição do prémio só pertenceria aos membros do júri, sendo, portanto, insindicável pelos tribunais a respectiva resolução.
Neste mesmo sentido refere-se, em sumário, no Acórdão deste STJ de 20-06-2006 (in www.djsi.pt/jstj.nsf relator Conselheiro Sebastião Póvoas):
“ 1) A promessa pública é um negócio jurídico unilateral vinculante que pressupõe um anúncio, amplamente publicitado, prometendo uma prestação a quem se encontre em determinada situação ou pratique certo facto, positivo ou negativo.
2) É independente de qualquer candidatura do beneficiário.
3) O concurso público com promessa de prémio depende de candidatura do beneficiário, que este efectue a prestação constante do anúncio e que o júri, ou promitente, lhe atribuam o prémio.
4) A promessa pública não tem factor aleatório – sorte ou acaso – ou subjectivo – gosto artístico do júri – bastando-se com critérios objectivos.
5) Se não forem exigíveis candidaturas mas atribuição do galardão depender de factores aleatórios ou subjectivos o regime será o do concurso público.
6) Atribuição do prémio num concurso público é judicialmente insindicável pelos Tribunais Judiciais, salvo indicação em contrário feita no anúncio”.
De resto, as cláusulas que A. assinou antes da participação no concurso, designadamente a declaração que subscreveu dizendo ter tomado conhecimento e estar de acordo com as regras do programa aceitando as condições da produção renunciando a qualquer recurso sobre a matéria e admitindo que a produção pusesse termo à sua participação no concurso em qualquer altura e que tal decisão seria irrecorrível, estariam conformes à índole do concurso, como concurso público. Isto é, a declaração de participação que o A. assinou, em que incluiu a irrecorribilidade das decisões do júri (produção do programa), em nada inovaria face ao regime estipulado pelo mencionado art. 463º. Tal declaração contribui (também) para dar um cunho de concurso público ao concurso dos autos.
Por outro lado e finalmente, não está inequivocamente demonstrado que a resposta que o A. deu à questão, seja certa e a considerado pela produção do programa esteja errada. Ou seja, que a resposta «Tarzan» esteja correcta e a resposta «Zorro» seja incorrecta. É que, através dos factos dados como provados, apenas se poderá dizer que existem elementos documentais que indiciam ser certa a resposta dada pelo A. (sendo estes, na realidade, os mais numerosos), mas existem outros, concretamente os utilizados pela produção do programa, que denunciam ser errada a resposta do A.. (vide factos referidos sob os nºs 12 e p)).
Sendo ao A. que competia a prova de que a resposta dada era (sem qualquer dúvida) certa, porque circunstância constitutiva do seu direito (art. 342º nº 1), não o tendo feito, a acção deveria, também por este prisma, improceder.
É certo que se provou na 1ª instância que a resposta que o A. deu era a de maior grau de certitude das possíveis, corresponde ao resultado das buscas mais fiáveis e criteriosas e pode com elevada segurança dar-se como a correcta. Porém, como se vê do acórdão recorrido, esta resposta (dada ao quesito 13º) (2).
considerou-se como não escrita, porque excedeu a pergunta em si, foi excessiva e socorreu-se de factos não carreados pelo processo pelas partes. Em substituição da resposta dada, na Relação considerou-se o facto indagado como «provado», pelo que ficou assente que o A. continua convicto que a resposta que deu estava certa e era correcta, circunstância absolutamente irrelevante para a questão de se saber e de se poder afirmar que a resposta do A. foi, realmente, certa e a considerada pela produção do programa foi errada.
Deve, assim, conceder-se a revista aos recursos dos RR. e negar-se a revista ao recurso do A., revogando-se o acórdão recorrido.
III- Decisão:
Por tudo o exposto, concede-se a revista aos recursos dos RR. e, em consequência, julga-se a acção improcedente, absolvendo-se os RR. do pedido.
Nega-se revista ao recurso do A..
Custas na acção e nos recursos pelo A..

Lisboa, 10 de Julho de 2008

Garcia Calejo (relator)
Mário Mendes
Sebastião Póvoas
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(1) O art. 1245º refere que “o jogo e a aposta não são contratos válidos nem constituem fonte de obrigações civis; porém, quando lícitos, são fontes de obrigações naturais, excepto se neles concorrer qualquer outro motivo de nulidade ou anulabilidade, nos termos gerais de direito, ou se houver fraude do credor na sua execução”.
(2) No quesito perguntava-se se “o A. continua convicto que a resposta que deu estava certa e era correcta”.