Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
20580/11.4T2SNT.L1.S
Nº Convencional: 7ª SECÇÂO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: REGIME DE COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS
BENS COMUNS
BENS PRÓPRIOS
DIREITO PRÓPRIO
ARRENDATÁRIO
DIREITO DE PREFERÊNCIA
AQUISIÇÃO DE IMÓVEL
NEGÓCIO ONEROSO
BENS ADQUIRIDOS POR AMBOS OS CÔNJUGES
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 07/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO FAMÍLIA / CASAMENTO / EFEITOS DO CASAMENTO QUANTO AOS BENS DOS CONJUGES / REGIMES DE BENS (REGIME DA COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS).
Doutrina:
- Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, Vol. I, 2008, pp. 515, 519, 521.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 1722.º, N.º2, AL. D), 1723.º, AL. C), 1726.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
- DE 4/11/99, PROCESSO N.º 99B662,
-DE 13/7/10, PROCESSO N.º 1047/06-9TVPTR.P1.S1.
Sumário :
1. Não pode considerar-se adquirido no exercício de um direito de preferência, fundado em situação locatícia já existente â data do casamento, o bem cuja aquisição radica – não no exercício formal dos mecanismos da preferência legal – mas na celebração de negócio jurídico oneroso (compra e venda) em que intervieram voluntariamente ambos os cônjuges, assumindo ambos a posição de outorgantes e compradores do bem e destinatários dos efeitos jurídicos do contrato.

2. Não pode considerar-se adquirido, na sua maior parte, com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges o imóvel comprado mediante negócio em que intervieram, como compradores, ambos os cônjuges, essencialmente financiado através da concomitante celebração de mútuo bancário com hipoteca, cujas prestações foram, durante o período de vida em comum, suportadas por rendimentos comuns do casal.

3. A norma constante do nº1 do art. 1726º do CC tem em vista os casos em que o esforço patrimonial prevalecente na aquisição do bem haja recaído exclusivamente sobre um dos cônjuges – não traduzindo, porém,  qualquer esforço patrimonial pessoal da A. a mera circunstância de, por via da existência do arrendamento vinculístico de que era titular, o valor venal do prédio estar degradado ou diminuído, reflectindo-se no preço convencionado para a venda em benefício do arrendatário.

Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. AA intentou acção declarativa, na forma ordinária, contra BB , pedindo que se declare que a fracção autónoma designada pela letra "D", a que corresponde o 1.° andar esquerdo do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida …, n.° …, na freguesia de …, descrito na Conservatória do Registo Predial da Amadora sob o n.° …/… da referida freguesia e inscrito na respectiva matriz sob o artigo …, é um bem próprio seu, e não um bem comum do ex-casal composto por si e pelo R..

Como fundamento de tal pretensão, alegou que, embora a referida fracção autónoma tenha sido adquirida conjuntamente por A. e R., na constância do matrimónio entre ambos, a mesma deve ser considerada como bem próprio da A., uma vez que a sua contribuição para a aquisição da mesma, em consequência da titularidade de um direito próprio, lhe confere essa faculdade.

Na verdade, a referida fracção foi-lhes vendida na sequência de um direito ao arrendamento habitacional de que a A. era a única titular, tendo também sido a A. a pagar grande parte das prestações bancárias inerentes ao empréstimo contraído por si e pelo R. para aquisição do imóvel; o sinal pago aquando da celebração do respectivo contrato promessa de aquisição – em que outorgou tão-só pela A. como promitente adquirente — foi apenas com dinheiro dos seus pais, dado que a contribuição dos pais do R. lhes foi posteriormente devolvida.

O R. contestou, pugnando pela improcedência da acção, para o que alegou que, para além de ter residido ininterruptamente entre 1982 e 1999 no referido imóvel, sempre assegurou o pagamento, quer da renda, quer, posteriormente, do valor da prestação inerente ao empréstimo que contraíram para a sua aquisição, assim concluindo que se trata de um bem comum do casal, tanto mais que a decisão de aquisição foi tomada atento o rendimento por si auferido, uma vez que o salário da A. ao tempo jamais permitiria tal aquisição.


A A. replicou, impugnando a factualidade alegada na contestação.

Foi proferido saneador-sentença, a julgar a acção procedente, assim se declarando que a aludida fracção autónoma é um bem próprio da A. – considerando, para tanto, que ficara provado que a venda da fracção radicou decisivamente na circunstância de a mesma estar arrendada à A., por contrato iniciado antes da celebração do casamento com o R., decorrendo, deste modo, a aquisição do exercício de um direito próprio, anterior ao casamento.

2. Inconformado, o R. apelou, tendo a Relação concedido provimento ao recurso – começando no acórdão recorrido por se considerar fixada a seguinte matéria de facto:

1. Autora e réu contraíram casamento em 3/09/1985, sem convenção antenupcial.

2. Fruto da relação entre autora e réu, nasceu em 17/02/1985 CC, filho de ambos.

3. A relação conjugal entre autora e réu foi-se deteriorando, tendo o réu saído da casa de morada de família em 30/04/1999.

4. DD é mãe da autora AA.

5. A fracção autónoma correspondente ao 1o andar esquerdo (fracção D), do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida …, n° …, descrito na Conservatória do Registo Predial da Amadora, sob o n° …, esteve inscrita pela cota G1, a favor de BB e mulher AA por compra à Companhia de Seguros EE..

6. Pela [apresentação 03 de 01/03/2004 - Cota G2, o imóvel referido em 5 ficou inscrito a favor de DD, por compra.

7. O registo referido em 6, foi convertido em definitivo pela AP 120404.

8. Por escritura pública celebrada em 21/02/2001, no 28° Cartório Notarial de Lisboa, a autora e DD, declararam respectivamente vender e comprar pelo preço de 7.000.000$00, que aquela declarou já ter recebido, a fracção autónoma referida em 5.

9. A autora desde que se encontra separada do réu encontra-se a usar o imóvel referido em 5, pernoitando no mesmo e aí recebendo os familiares e amigos, correspondência e aí tomando as refeições.

10. DD, tal como sucedia antes de 21/02/2001, continua a residir na Avenida …, n°…, 1o Esq., …, aí pernoitando, recebendo os familiares e amigos, a sua correspondência e tomando diariamente as suas refeições.

11. Desde 30/04/1999 até ao presente, o réu, a autora e DD encontraram-se por diversas vezes, sendo que nem anteriormente nem posteriormente a 21/02/2001, comunicaram ao réu respectivamente que iriam vender/comprar a casa, nem que haviam realizado o negócio.

12. O réu vive dos rendimentos que lhe são proporcionados pela sua actividade de prestação de serviços no montante de 1.089 € mensais.

13.   No âmbito da sua actividade o réu suporta o pagamento de prestações à Segurança Social no montante de 116,99 € mensais.

14. O réu contribui mensalmente para as despesas do filho do casal com o montante de100€.

15. Por escritura celebrada em 28/08/1991 a Companhia de Seguros EE. declarou vender e BB e mulher AA declararam comprar a fracção referida em 5, pelo valor de 4.350.000$00, tendo nessa mesma escritura os segundos outorgantes se confessado devedores à Instituição bancária FF da quantia de 3.920.000$00.

16. Por contrato celebrado em 10/01/1975, a Companhia de Seguros GG, deu de arrendamento a HH, o 1o andar esquerdo do prédio sito na Avenida

17. …, lote …, pela renda de 3.000$00 mensais, tendo o pai da autora sido fiador no referido contrato.

18. Aquele contrato de arrendamento teve início em 1/01/1975.

18.  Por carta datada de 27/05/1986, a Companhia de Seguros EE., comunicou à autora que a renda devida passaria a ser de 4.350$00 a partir de Julho de 1986.

19. Anteriormente ao contrato de compra e venda celebrado entre a Companhia de Seguros EE. e a autora, foi celebrado entre ambas, em 27/04/1991, contrato promessa de compra e venda, tendo naquele acto sido entregue como princípio de pagamento e carácter de sinal a quantia de 870.000$00.

20. O empréstimo contratado pela autora e réu na Instituição bancária FF para aquisição da fracção referida em E), ficou acordado que seria amortizado em 300 prestações mensais.

21. Dos 3.920.000$00 que a Banco FF mutuou à autora e ao réu, estes utilizaram 3.480.000$00 para pagar à Companhia de Seguros EE., a título de parte do preço.

22. Na sequência do processo de divórcio por mútuo consentimento entre a autora e HH, a autora passou a inquilina da fracção referida em 5, em 1984.

23. À data da aquisição do imóvel referido em 5, o réu desconhecia qual o valor de mercado do mesmo.

24. A fracção autónoma referida em 5 foi adquirida pela autora e pelo réu em 25/07/1991.

25. A compra e venda referida em 8 foi feita sem o conhecimento ou concordância do réu.

26. Não existiu por parte da autora qualquer vontade de proceder à venda do referido imóvel.

27. Bem como não existiu por parte de DD intenção de o comprar. Bem como não houve intenção de vender ou comprar pelo preço de 7.000.000$00, ou por qualquer outro preço.

28. Sendo convicção generalizada de familiares, vizinhos e amigos de que a autora juntamente com o réu são os proprietários do imóvel.

29. DD não pagou à autora qualquer preço pela compra e venda referida em 8.

30. Ao outorgarem a escritura de compra e venda referida em 8, a intenção de DD e da autora foi apenas e exclusivamente a de transferirem do património comum do casal para o património de DD o imóvel por forma a que após a dissolução do casamento o mesmo não fosse partilhado.

31. No decurso dos autos de divórcio litigioso a autora sempre se referiu ao imóvel como sendo a casa de morada de família.

32. DD e a autora ao procederem ao registo da aquisição do imóvel em 1/03/2004, pretenderam dar publicidade à venda após terem decorrido os três anos sobre a prática do acto.

33. Ao procederem ao registo de aquisição do imóvel em 1/03/2004, foi intenção das mesmas impedir o réu de solicitar a anulação da compra e venda a que alude em 8.

34. A actuação de DD e da autora descritas em 26 a 28, 30, 31, 33 e 34 deixou o réu revoltado.

35. O réu sentiu-se revoltado com as referidas atitudes.

36. A dívida da autora e do réu à Instituição bancária FF em 14/01/2001 era de 3.475.278$00.

37. Desde Junho de 1999 e até ao presente momento tem sido a autora a pagar as prestações do empréstimo a que se alude em 5.

38. A Companhia de Seguros EE., vendeu a fracção referida em 5 por 4.350.000$00, mercê de a mesma estar arrendada à autora.

39. À data da celebração da escritura de compra e venda a que se alude em 15 a fracção dos autos valia cerca de 17 mil e oitocentos contos.

40. Em 20/05/1991 foi depositada na conta da autora no Banco II a quantia de 435.000$00.

41. Em 23/05/1991 foi sacado um cheque visado sobre essa mesma conta no valor de 435.000$00 à ordem da Companhia de Seguros EE.

43.   Em 30/04/1999, estavam em dívida para com a Instituição bancária FF 3.618.065$00.

44.  A diferença de 11.844.708$00 entre o preço pelo qual a Companhia de Seguros EE vendeu a fracção dos autos (4.350.000$00) e o valor de mercado da mesma (17.000.000), resultou do facto da fracção se encontrar arrendada para habitação. Do sinal entregue à Companhia de Seguros EE no valor de 870.000$00, metade foi realizado pelos pais da autora e a outra metade pelos pais do réu.

45. Tendo a metade dos pais do réu sido restituída e a metade dos pais da autora não.

46. Das 300 prestações mensais acordadas com a Instituição bancária FF, 93 foram pagas com rendimentos comuns da autora e do réu.

47. Desde que o réu saiu de casa, durante o decurso da acção que correu termos sob o n° 2752/04. OPCAM D e até ao presente momento foi unicamente a autora que pagou à Instituição bancária FF as prestações mensais do empréstimo.

49.  Por sentença, já transitada em julgado, proferida no âmbito do Processo n° 2752/04. OPCAM D, que correu termos no Juízo de Grande Instância Cível - 1a Secção - Juiz 2, foi declarada nula a escritura de compra e venda referida em 8, tendo sido ordenada o cancelamento do registo de aquisição da mesma fracção a favor de DD.

50.  Autora e réu encontram-se divorciados por sentença, já transitada em julgado em 2/02/2006, proferida no âmbito do Processo n° 93/2002 do 2o Juízo - 3a Secção, do Tribunal de Família e Menores de Lisboa».


3. Passando a aplicar o direito a tais factos provados, o acórdão recorrido – após analisar os traços fundamentais do regime da comunhão de adquiridos - considerou:

No que concerne à excepção prevista no citado art.° 1722.°, n.° 1, al.a c) - bens adquiridos na constância do casamento por via de direito próprio, de um dos cônjuges, anterior ao matrimónio -, trata-se de "... bens que não resultam do esforço conjunto do casal, e portanto devem escapar à massa comum, para pertencerem apenas ao cônjuge que os fez entrar para o casamento"

Quer dizer, o princípio é o de que bens que resultam do esforço conjunto dos cônjuges são comuns, pertencendo a ambos eles, não o sendo os que resultam do esforço apenas de um desses cônjuges

Dito de outro modo, se um dos cônjuges — o "cônjuge adquirente" a que aludem os Autores que se vem citando - adquire, sozinho, um bem que resulta exclusivamente do seu esforço em virtude de um direito próprio, direito esse que já lhe cabia anteriormente ao casamento, dúvidas não restam de se tratar de um bem próprio desse cônjuge, não tendo o outro (o cônjuge do adquirente, que, como tal, não outorga no contrato de aquisição, se de aquisição derivada se tratar, como ocorre na comum compra e venda, e a que, por isso, se poderia chamar "cônjuge não adquirente") contribuído com qualquer esforço seu para a aquisição, limitando-se a ser o cônjuge de quem adquire.

Referem ainda os Autores citados quanto à aquisição no exercício de um direito de preferência baseado em situação pré-existente ao casamento: "O legislador terá entendido que o exercício do direito de preferência resultou de uma vantagem que foi conferida ao cônjuge adquirente sem que o outro tenha colaborado, porque o direito nasceu no património do adquirente antes do casamento; assim, o legislador terá querido que o cônjuge do adquirente não participasse no valor do bem".

E, se dúvidas houvesse, acrescentam que a razão de ser do preceito "... parece sugerir que ele se deve aplicar mesmo que a aquisição não mostre um exercício formal de um direito de preferência: P. ex., o cônjuge inquilino compra o andar ao senhorio, ainda que não tenha havido notificação para preferir com todos ao requisitos formais. Afinal, a aquisição não deixa de se basear na situação de privilégio em que se encontra o inquilino, que podia exercer a preferência se tivesse precisado de o fazer"

E se, como in casu, ambos os cônjuges figurarem como compradores/adquirentes, conjuntos, do bem?

Importa, nesta hipótese, verificar os legais efeitos do contrato de compra e venda.

Ora, no sistema jurídico português vigora, em matéria de efeito real do contrato de compra e venda, o chamado sistema do título, segundo o qual o efeito translativo da propriedade decorre do próprio acto pelo qual se expressa a vontade de transmitir o direito ("), tendo como corolários os princípios da causalidade e da consensualidade, este último a estabelecer que «... a constituição ou modificação de direitos reais se dá "por mero efeito do contrato" (art. 408.°, n.° 1, do Cód. Civ.)», tendo como regra a "eficácia real imediata da compra e venda" (12).

Podem, porém, ocorrer excepções àqueles princípios da causalidade e da consensualidade, admitindo a lei em certos casos "a dissociação entre o momento da conclusão do contrato e o momento da constituição ou transmissão do direito real", como ocorre com a compra e venda com reserva de propriedade (13) ou com a venda condicional.

No caso dos autos não se verifica qualquer excepção àquelas regras de direito substantivo do regime do contrato de compra e venda, pelo que a venda dos autos é uma pura e imediata venda, com a consequência da imediata transmissão, por efeito do negócio, do direito de propriedade sobre o imóvel para os adquirentes.

Ocorreu, pois, eficácia real imediata da compra e venda, transferindo-se, por isso, o direito de propriedade sobre a aludida fracção autónoma para ambos os cônjuges, pois que ambos adquirentes.

Das razões pelas quais o cônjuge mulher, aqui Apelada, consentiu - e não tinha que o fazer, como é obvio - em que o então cônjuge também figurasse como comprador no titulo de compra e venda, por forma a tornar-se, logo por isso, automaticamente, também titular do bem, e permitiu que, ademais, também o R./Apelante contribuísse, com o seu esforço, para o pagamento do preço contratado, inclusive subscrevendo ambos, ainda conjuntamente, mútuo para financiamento da aquisição, só esse cônjuge pode saber.

O certo é que, na altura, porventura não perspectivando como possível a ulterior ruptura da vida em comum, a A./Apelada, muito embora conhecesse a posição de vantagem que trazia de tempos anteriores ao negócio (estatuto, só dela, de arrendatária e de promitente compradora), optou pela celebração da compra e venda do imóvel em termos de ambos os cônjuges figurarem como compradores/adquirentes, com o que, inelutavelmente, a respectiva propriedade se transmitiu para ambos esses cônjuges/adquirentes.

Quer dizer, antes da ponderação do regime de bens do casamento, logo se salienta a aquisição, por força do contrato de compra e venda, por ambos os cônjuges, aqui A. e R., que se tornaram, em conjunto, titulares do dito direito de propriedade.

Acresce que, como visto, também o cônjuge então marido, não ficando à margem da compra e venda, contribuiu com o seu esforço para o pagamento do preço da celebrada venda, tudo como consentido pela A./Apelada.

Donde que não possa agora, se bem vemos, ignorar-se a venda nos moldes em que celebrada, o que constitui obstáculo originário e inultrapassável à pretendida consideração do imóvel como bem próprio de um dos dois adquirentes, a aqui A./Apelada.


4. Inconformada com este conteúdo decisório, interpôs agora a A. a presente revista, que encerrou com as seguintes conclusões com que termina a alegação que apresentou:

1ª No douto Acórdão da Relação de 12-5-2011 junto aos autos houve (nessa acção) apelação sobre a matéria de facto - V. a conclusão 6a dessa apelação, a fls 4 do Acórdão. Os factos - o seu significado - foram fixados por esse acórdão. O facto 31 do acórdão ora impugnado (aceito nesta presente acção na acta de 18-1-2012) tem o significado que lhe fixou nas folhas 12 e 13 aquele douto Acórdão: não se trata ali de um julgamento de direito, mas apenas de expressão da representação psicológica feita então pelas partes.

2ª Os regimes de bens definem quais são os efeitos do casamento quanto à titularidade dos bens dos cônjuges, estabelecendo um regime especial de titularidade.

3ª A diferença do regime geral de aquisição da propriedade vê-se logo porque o cônjuge na comunhão que não tenha intervindo no acto aquisitivo já é sujeito activo da massa onde o bem adquirido entra sem necessidade de exteriorizar nenhuma vontade e mesmo até se nenhuma vontade tiver. Estamos sem dúvida fora do regime geral de aquisição individual.

4ª O cônjuge adquirente não adquire para si, não adquire nem conserva nem mantém o direito real subjectivo de propriedade sobre o bem adquirido. O seu direito é sobre uma universalidade. Daí que não exista nenhum óbice à discussão da pretensão de titularidade própria por oposição à inclusão na massa de bens comuns. Não se trata então de afastar um proprietário mas de num casamento em comunhão clarificar e estabelecer a natureza do bem comum ou próprio.

5ª No caso dos presentes autos o bem não é próprio do recorrido, que não é titular dum direito específico sobre ele estando em causa saber se é comum ou se é próprio da recorrente, inexistindo qualquer obstáculo a que se possa concluir e decidir que é próprio desta, pois quando um bem não tenha sido adquirido explicitamente como próprio é sempre possível a discussão entre os cônjuges, sem prejuízo de terceiros, sobre se é comum ou próprio de algum deles.

6ª A solução dada pelo douto acórdão recorrido consentiria que o regime de bens do casamento, também destinado a proteger os cônjuges entre si, fosse alterado pois permitiria dessa forma eliminar os bens próprios dos cônjuges tornando-os comuns. A natureza imperativa do regime de bens proíbe porém essa solução.

7ª Ela contraria o estatuto imperativo que o legislador teve por necessário estabelecer, começado o casamento, devido às relações existentes entre os próprios cônjuges e destes com terceiros, não permitindo a ocorrência de enriquecimentos injustificados entre os cônjuges.

8ª A solução do douto acórdão faz com que se ambos adquirem não se aplica a norma segundo a qual "Os bens adquiridos em parte com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e noutra parte com dinheiro ou bens comuns revestem a natureza da mais valiosa das prestações" (1726º/1). Porém não se vislumbra razão para essa não aplicação.

9ª É também para tornar desnecessário conjecturar ou lucubrar sobre os possíveis motivos do consentimento ou opção do titular do direito de arrendamento e de preferência, como faz o douto acórdão na sua pág. 14, que o legislador preveniu objectiva e imperativamente o regime legal de bens.

10ª Na comunhão conjugal nenhum dos cônjuges é titular de um direito de propriedade ou de outro direito real sobre os bens que integram o património comum. O direito da família inverte e modifica o direito das obrigações, dos contratos e da propriedade privada dos bens.

11ª Também na comunhão de adquiridos não vale em toda a acepção, nos seus normais efeitos comuns, o sistema do título: o cônjuge que adquire não é proprietário do bem e ambos, mesmo o que não adquire, são titulares de um único direito sobre a amassa onde o bem se integra. O efeito real tem aqui um diferente conteúdo.

12ª O recorrido não se constituiu nem ficou proprietário da fracção adquirida. Que o recorrido não é proprietário nem comproprietário da fracção não está nem nunca esteve em causa. O que nos presentes autos se dirime não é uma questão entre patrimónios próprios dos ex-cônjuges, mas se a fracção é bem comum do casal ou é bem próprio da recorrente.

13ª No caso em que o direito de arrendamento da fracção é bem próprio de um dos cônjuges e devido a isso o senhorio a vende pelo preço reduzido de menos de % do seu valor real, o bem é próprio do inquilino comprador apesar de o seu cônjuge, com quem era casado na comunhão de adquiridos, ter também intervindo na escritura como comprador e participado em parte no pagamento daquele preço reduzido de menos de 1/4 do valor real do bem e de apenas cerca de 1/3 desse preço reduzido, correspondente a menos de 1/4 do valor real da fracção, ter sido pago com meios comuns do casal.

14ª O bem é próprio do cônjuge que era o titular do direito de arrendamento, seja porque possuía o direito de preferência na alienação (art. 1722°), porque o valor do seu esforço de participação na aquisição deve por isso considerar-se superior ao valor dos bens comuns utilizados (1726°); porque pagou com dinheiro ou bens próprios a maior parte do preço reduzido ajustado e o bem adquirido se deve ter por sub-rogado no lugar dos seus bens próprios (1723°).

15ª São excluídos da comunhão os bens adquiridos a título gratuito. Mais de 3A do valor real da fracção foram adquiridos, quanto ao recorrido, gratuitamente: não fazem, nem por isso a fracção, parte da comunhão. À pretensão do recorrido de comungar pela metade no bem falece causa, que se revela nula, pois a constituição de qualquer direito sobre as coisas depende da validade da causa jurídica que precede essas mesmas consequências.

16ª Em comum dispenderam apenas 8,48 % do valor real da fracção. A participação do recorrido resume-se a apenas 4,24% do valor real do bem. Ou seja, 17.800 x 4,24 % = 754,72 contos = esforço do recorrido. Já a participação da recorrente - que entrou também com a valorização patrimonial do seu próprio direito de arrendamento - foi de 95,76 % x 17.800 = 17.045,28 contos = esforço da recorrente.

17ª Constituiria um intolerável enriquecimento pretender o recorrido metade do bem quando o casal dispendeu em meios comuns menos de 1/3 de 3.915 contos por um bem do valor de 17.800 que foi adquirido pelo preço reduzido de 4.350 contos mercê da posição jurídica patrimonial superior a 13.450 contos de titular do direito de arrendamento da recorrente.

18ª O contrato promessa de 27-4-1991, foi celebrado, por força da preferência, apenas entre a EE e a recorrente. Quanto ao mútuo contraído as primeiras 93 mensalidades foram pagas com meios comuns, as 176 seguintes até esta data com dinheiro próprio da recorrente, faltando ainda pagar 31 até 28-08-2016.

19ª Do mesmo modo como foi decidido nos supracitados, em II, Acs do STJ de 13-7-2010 e de 4-11-1999 (neste caso ora sub judice a aquisição também se dá pela existência do direito real de preferência) e da Relação de Lisboa de 1-3-2011, também no caso em apreciação nos presentes autos deve decidir-se que o bem é próprio da recorrente.

20ª O direito real de preferência da recorrente constitui um direito real de aquisição pré-constituído.

21ª A solução do acórdão recorrido dá um resultado que a lei não quer nem deve proteger e satisfazer em detrimento do interesse que merece ser protegido na solução justa do litígio. Faculta a obtenção pelo recorrido duma vantagem injustificada e injusta que o sentido do regime legal não comporta. Constituiria uma vantagem injusta e não admitida.

22ª O douto acórdão recorrido fez errada aplicação do disposto no art. 408°, n° 1 do Código Civil e nos artigos 1721° a 1731° que estabelecem o regime da comunhão de adquiridos, maxime os artºs 1722°, 1723° e 1726°, pelo que deve ser revogado e manter-se a douta sentença proferida pela 1ª instância.

O R./ recorrido, na contra alegação apresentada, pugna pela manutenção da solução constante do acórdão recorrido.


5. Importa começar por enunciar claramente os traços fundamentais da situação litigiosa objecto do presente processo: está em causa a qualificação – como bem próprio da A. ou como bem comum do casal - de determinado bem imóvel, adquirido na constância do matrimónio por ambos os cônjuges (na altura, casados entre si segundo o regime da comunhão de adquiridos) por contrato de compra e venda em cuja escritura pública ambos outorgaram como compradores – num caso em que as condições contratuais – o valor do preço estipulado – foram substancialmente influenciadas pela circunstância de a A. ser titular de um direito ao arrendamento sobre o imóvel vendido, existente anteriormente à celebração do casamento (determinando a existência desse arrendamento vinculístico uma oneração do prédio, que naturalmente se repercutiu no montante do preço convencionado, substancialmente inferior ao respectivo valor de mercado).

Esta questão é abordada pela recorrente segundo dois possíveis e alternativos enquadramentos normativos:

- o que decorreria da subsunção desta situação litigiosa no âmbito da excepção prevista na alínea d) do nº2 do art. 1722º do CC, considerando-se  tal imóvel adquirido no exercício de um direito legal de preferência ( concedido ao arrendatário) fundado em situação locatícia anterior à celebração do casamento;

- o que decorreria do enquadramento deste caso peculiar na fattispecie do art. 1726º, nº1, do CC, perspectivando como contribuição reforçada da A. para a aquisição da fracção a vantagem patrimonial que resultou da sua qualidade de arrendatária, degradando substancialmente o montante do preço estipulado relativamente ao que seria normalmente devido pela transacção no mercado de imóvel não sujeito a um arrendamento vinculístico.

Ora, poderá considerar-se adquirido no exercício de direito de preferência, fundado em situação locatícia já existente à data do casamento, o imóvel comprado mediante negócio jurídico em que, ao abrigo da autonomia da vontade, intervieram como compradores ambos os cônjuges?

Na verdade, neste caso, estamos confrontados com um bem adquirido, a título oneroso, na constância do matrimónio, mediante negócio jurídico no qual figuram como partes – e destinatários dos respectivos efeitos jurídicos - ambos os cônjuges: poderá a potencial situação de preferência legal do cônjuge arrendatário – que, no caso, não chegou a ser formalmente actuada – precludir, só por si, o funcionamento da regra básica segundo a qual, no regime da comunhão de adquiridos, integram a comunhão conjugal os bens adquiridos mediante negócio oneroso, titulado por ambos os cônjuges?

Poderá aquele potencial direito legal de preferência – que não chegou a ser formalmente exercido – sobrepor-se ao princípio da autonomia da vontade das partes (que, no caso, levou a que ambos os cônjuges optassem por assumir na escritura a posição de compradores /adquirentes do imóvel) e, muito em particular, ao princípio da confiança, que levará justificadamente quaisquer terceiros a inferir que tem a natureza de bem comum do casal um imóvel adquirido na constância do casamento , mediante negócio oneroso, celebrado por ambos os cônjuges, outorgantes na escritura pública e titulares inscritos no registo predial (não tendo obviamente possibilidades de saber que existia um potencial direito de preferência, fundado em relação locatícia anterior ao casamento, que, aliás, não teve de ser sequer actuado para funcionar como causa específica da aquisição da propriedade)?

Saliente-se que, no caso dos autos, não foi formal e efectivamente exercitado pela A. o direito de preferência na compra do imóvel de que era arrendatária, já que as partes não lançaram mão dos típicos mecanismos que lhe correspondem, não estando documentada qualquer notificação para o exercício de tal direito, nem tendo obviamente corrido os seus termos qualquer acção de preferência que tivesse culminado na aquisição da propriedade do imóvel - embora seja evidente – e resulte, aliás, da factualidade provada - que a proposta contratual que lhe foi feita (e se consubstanciou, num primeiro momento, na celebração de contrato promessa de compra e venda) foi influenciada pela qualidade de arrendatária da fracção pretendida vender, cujo preço proposto foi naturalmente influenciado relevantemente pela existência do arrendamento e pelos direitos conferidos à locatária.

Não parece, todavia, que aquela circunstância de índole formal, só por si, devesse obstar à possibilidade de a aquisição se ter por feita no exercício de tal direito, emergente de relação anterior ao casamento: adere-se, quanto a este ponto, à orientação defendida por Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira (Curso de Direito da Família, Vol. I, 2008, pag. 515): A razão do preceito parece sugerir que ele se deve aplicar mesmo que a aquisição não mostre um exercício formal de um direito e preferência: p ex., o cônjuge inquilino compra o andar ao senhorio, ainda que não tenha havido notificação para preferir com todos os requisitos formais: Afinal, a aquisição não deixa de se basear na situação de privilégio em que se encontra o inquilino, que podia exercer a preferência se tivesse precisado de o fazer.

Ora, decorrendo da matéria de facto apurada que influenciou decisivamente a venda celebrada e as condições contratuais estipuladas a existência de uma relação locatícia vinculística (pontos 39 e 44 da matéria de facto), não seria a simples circunstância de não ter sido necessário actuar efectivamente a preferência legal conferida ao arrendatário que afastaria, sem mais, a possibilidade de, numa visão substancial das coisas, a aquisição assentar ainda remotamente na existência do referido direito de preferência, apesar de este não ter sido formalmente exercitado.

Só que, na situação dos autos, o problema é diverso, já que a causa real da aquisição acabou por ser um negócio jurídico em que intervieram como outorgantes, na qualidade de compradores, ambos os cônjuges (incluindo, pois, aquele que nada tinha a ver com o aludido direito de preferência): ou seja, o problema não é apenas de natureza ou índole formal, reportando-se ao modo ou forma como o titular do direito de preferência adquiriu, ele próprio, o imóvel em litígio – mas antes de natureza substantiva, já que a causa real e efectiva da aquisição conjunta pelos cônjuges foi a celebração de um contrato em que interveio como parte alguém totalmente estranho ao direito de preferência em causa.

Ora, não nos parece que possa ter-se por adquirido no exercício de um direito de preferência próprio, fundado em relação anterior ao casamento, um imóvel que, afinal, se mostra efectivamente adquirido através de negócio jurídico em que figuram como outorgantes e adquirentes ambos os cônjuges, incluindo aquele que é totalmente estranho à situação fundamentadora da preferência (que, se necessário, poderia ter determinado a aquisição do bem pelo titular desse direito, ligado indissoluvelmente à qualidade de arrendatário vinculístico).

Não pode, assim, ter-se por adquirido em virtude de direito próprio, anterior ao casamento, um bem que, afinal, se mostra adquirido por negócio jurídico celebrado por ambos os cônjuges, assumindo estes a qualidade de outorgantes no contrato e de compradores do imóvel em discussão, funcionando ambos como destinatários dos efeitos produzidos pelo negócio translativo da propriedade: a causa real e efectiva da aquisição conjunta mostra-se contraditória e inconciliável com uma hipotética e potencial aquisição fundada em direito próprio anterior ao casamento e pertencente exclusivamente a um dos cônjuges.

Note-se que a situação dos autos não é análoga à que foi dirimida pelo STJ no Ac. de  4/11/99, proferido no P. 99B662, em que  - corrigindo o decidido na sentença que julgara anteriormente procedente acção de preferência - se entendeu que a circunstância de , por razões estritamente procedimentais, decorrentes da imposição da figura do litisconsórcio necessário, o outro cônjuge (estranho à relação em que se estribava o direito legal de preferência) ter de intervir na acção que versava sobre a casa de morada de família não alterava a natureza substantiva do direito exercido:

Como também não será afectada aquela qualificação pelo facto de existir uma sentença, transitada em julgado, a reconhecer o direito de preferência aos dois cônjuges.
É que, esse reconhecimento decorreu da circunstância de a acção de preferência ter sido intentada pelo casal, os ora recorrente e recorrida, e da intervenção deles ter sido imposta pelo art. 18 do Cód. Proc. Civil, ao tempo vigente, e que corresponde ao actual art. 28-A, n. 1 do mesmo diploma legal, segundo o qual devem ser propostas por marido e mulher, ou por um deles com consentimento do outro, as acções que tenham por objecto, directa ou indirectamente, a casa de morada de família.
Assim, como o andar, objecto da preferência, constituía, à data da instauração da respectiva acção, a casa de morada de família (aí vivia o casal), não podia essa acção, sob pena de ilegitimidade do demandante, deixar de ter a intervenção, pelo lado activo, dos dois cônjuges. Isso sem prejuízo de se reconhecer que o titular do direito de preferência era, tão só, o cônjuge marido, pois a qualidade de arrendatário, que deu causa à preferência, era incomunicável, como decorre do art. 1110 do Cód. Civil e, presentemente, do art. 83 do R.A.U.

É que, no caso dos autos, por um lado, não estamos confrontados com aquisição de bens em função do exercício formal e efectivo de um direito de preferência (no caso, resultante da propositura de uma acção de preferência), decorrendo antes a aquisição de negócio jurídico celebrado por ambos os cônjuges ; e, por outro lado, a circunstância de, ao abrigo do princípio da autonomia da vontade, ambos os cônjuges terem outorgado como partes no contrato, figurando ambos como compradores do bem transmitido, não tem uma dimensão estritamente adjectiva ou procedimental (análoga à que caracteriza a exigência legal de litisconsórcio numa acção de preferência referente à casa de morada da família), mas antes substantiva e material, determinante e moduladora dos próprios efeitos jurídicos de tal contrato e da titularidade das relações jurídicas através dele transmitidas.


6. Como atrás se salientou, a desconsideração – no que toca à qualificação do bem adquirido como próprio ou comum - do facto de terem, real e efectivamente, intervindo no contrato de compra e venda como partes ambos os cônjuges revelar-se-ia incompatível com a tutela do princípio da confiança e segurança no comércio jurídico; na verdade, tal situação criava a justificada aparência de que se tratava manifestamente de bem comum, enquanto adquirido onerosamente, na constância do casamento, por negócio em que intervieram como contraentes ambos os cônjuges – para de seguida se ter por prejudicada a inclusão do bem na comunhão conjugal com base na invocação de circunstâncias ocultas (radicar, remota e informalmente, a aquisição ainda na titularidade de um direito de preferência exclusivo de um dos cônjuges), manifestamente não perceptíveis por terceiros face ao teor efectivo do negócio celebrado e da escritura pública que o titula e do registo lavrado em consonância com o efeito do contrato.

É certo que – numa situação paralela - a prevista na alínea c) do art. 1723º do CC – a jurisprudência vem admitindo uma diferenciação de regimes, consoante nos situemos no plano das relações internas entre os cônjuges ou no da relação externa destes com terceiros, nos casos em que a consistência jurídica ou prática dos direitos destes pudesse ser afectada pela qualificação do bem como comum ou próprio: sirva, nomeadamente, de exemplo o do Ac. de 13/7/10, proferido pelo STJ no P. 1047/06-9TVPTR.P1.S1, em que se entendeu que:

I- Quando estão em causa apenas os interesses dos próprios cônjuges, a falta da declaração referida em prevista na alínea c) do artº 1723º do CC pode ser substituída por qualquer meio de prova que demonstre que o pagamento foi feito apenas com dinheiro de um deles, ou com bens próprios de um deles.
II-O artigo 1723º, c) do Código Civil, ao determinar que os bens adquiridos com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges conservam a qualidade de bens próprios desde que a proveniência do dinheiro ou dos valores seja devidamente mencionada no documento da aquisição, ou em documento equivalente exige a intervenção de ambos os cônjuges.

Não parece, todavia, que este entendimento deva levar a uma generalizada cisão – para além do caso previsto naquela alínea c) - entre a qualificação dos bens como próprios ou comuns, consoante nos situemos no plano das relações internas entre os cônjuges ou das relações externas destes com terceiros, sempre que a consistência jurídica ou prática dos direitos por estes invocados dependa da circunstância de os bens em litígio serem próprios ou comuns.

Na verdade, este peculiar regime de dualidade de possíveis classificações do bem – susceptível de conduzir a dificuldades e inconvenientes, ao permitir que os bens sejam qualificados de uma maneira e de outra, consoante os interessados em confronto (cfr. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, ob. cit. , pag. 521) - está conexionado e encontra respaldo numa circunstância privativa e específica da previsão normativa constante da referida alínea c), ao exigir que a declaração de que os bens ou valores que estão na base da aquisição pertenciam apenas a um dos cônjuges seja feita no negócio com intervenção de ambos os cônjuges.

É que esta exigência de bilateralidade da declaração - necessariamente conjunta - acerca da origem dos bens (sem que esteja prevista claramente a possibilidade de suprimento judicial de uma eventual recusa), suscita dificuldades fundadas que , no limite, poderiam conduzir a situações de manifesta injustiça, no caso do cônjuge do adquirente se recusar a intervir, por impossibilidade, capricho ou má fé (aut. e ob. cit., pag.519): na realidade, a referida exigência legal poderia determinar um injustificável benefício do cônjuge que se recusasse injustificadamente a intervir no negócio, para atestar que os bens que estão na base da aquisição onerosa pertenciam exclusivamente ao outro cônjuge – obtendo (se não existisse a válvula de segurança, consistente na possibilidade de demonstração no plano das relações internas que os bens que serviram de contrapartida à aquisição eram efectivamente próprios), por via desse comportamento censurável, a qualificação irremediável do bem adquirido como bem comum do casal…

Nada disto se verifica na situação dos autos, já que foi da iniciativa e da vontade de ambos os cônjuges a intervenção conjunta destes na escritura que titula o acto de alienação, apesar de as condições patrimoniais do negócio serem substancialmente influenciadas pela posição de arrendatária de que beneficiava apenas a A.- implicando tal opção e estratégia (que nada nos autos permite supor que não resida numa vontade livre e esclarecida) a produção dos típicos efeitos jurídicos de qualquer negócio celebrado conjuntamente, consubstanciados na posição de compradores e contitulares do bem adquirido e da sua imediata comunicação, por essa via, à comunhão conjugal.

Em suma: não pode considerar-se adquirido no exercício de um direito de preferência fundado em situação locatícia já existente à data do casamento o bem cuja aquisição radica, não no exercício formal dos mecanismos da preferência legal, mas antes na celebração de negócio jurídico oneroso (compra e venda) em que intervieram voluntariamente ambos os cônjuges, assumindo ambos a posição de outorgantes e compradores do bem.

7. Procura ainda a recorrente alcançar a qualificação do bem como comum por outra via jurídica – ao sustentar que o imóvel se deveria considerar adquirido na parte mais substancial com bens próprios da A., incluindo no esforço de participação desta no negócio comum o benefício patrimonial decorrente da sua anterior posição de arrendatária e titular da consequente preferência legal.

Ora, poderá considerar-se que a inegável vantagem patrimonial que decorreu da degradação do preço estipulado, relativamente ao valor venal do imóvel, se não estivesse onerado com um arrendamento vitalício da exclusiva titularidade da A., pode configurar-se razoavelmente como traduzindo um esforço acrescido da A. na aquisição da fracção em causa?

Saliente-se que, no caso dos autos, a aquisição foi essencialmente financiada através do mútuo bancário com hipoteca, em que intervieram ambos os cônjuges e que consta do mesmo instrumento notarial que titula a aquisição do imóvel – sendo o valor do sinal realizado por verbas facultadas pelos pais de A. e R. O referido empréstimo bancário foi – enquanto durou a situação matrimonial das partes – suportado por rendimentos comuns, deixando o R. de suportar tais encargos desde Junho de 1999 (não podendo, no entanto, olvidar-se que a A. realizou, em 21/2/01, uma venda simulada do imóvel, cuja nulidade já se mostra reconhecida no âmbito do P. 2752/04).

Neste quadro – em que estamos confrontados com a aquisição de um imóvel fundamentalmente financiado através de mútuo bancário contratado por ambos os cônjuges, e suportadas as respectivas prestações, durante amplo período temporal, por rendimentos comuns do casal – não poderá considerar-se que a contribuição pecuniária mais valiosa para tal aquisição provenha do património da A.

Aliás, o que em bom rigor sustenta a recorrente é que deveria enquadrar-se na norma do nº1 do art. 1726º do CC, não apenas o caso em que o sacrifício patrimonial suportado efectivamente por um dos cônjuges como contrapartida da aquisição é superior, mas também o caso em que radicou numa posição jurídica pessoal de um dos cônjuges uma vantagem ou benefício patrimonial nas condições concretamente estipuladas para o negócio (considerando-a integrada pela diferença entre o valor de mercado do imóvel, se não estivesse onerado com o arrendamento da A., e o preço efectivamente convencionado).

Não parece, no entanto, que tal tese possa razoavelmente proceder: na verdade, quando o art. 1726º, nº1, se reporta à aquisição com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges tem em vista os casos em que o esforço patrimonial prevalecente na aquisição do bem haja recaído exclusivamente sobre um dos cônjuges – não traduzindo qualquer esforço patrimonial pessoal da A. a mera circunstância de, por via da existência do arrendamento vinculístico, o valor real do prédio, enquanto alienado em benefício do arrendatário, estar diminuído.

Não procede, pois, a argumentação da recorrente também quanto a este ponto, pelo que, não se mostrando violadas as normas por ela especificadas, o recurso terá de improceder.

8. Nestes termos e pelos fundamentos apontados nega-se provimento à revista, confirmando o decidido pela Relação no acórdão recorrido.

Custas pela recorrente, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário que lhe foi concedido.


Lisboa, 03 de Julho de 2014

Lopes do Rego (Relator)

Orlando Afonso

Távora Victor